sábado, 27 de maio de 2023

FLORIANO MARTINS | A última linha capaz de devoção (Homenagem a Marosa di Giorgio)

 



























 


Durante toda a noite, certa noite, eu estive digitando os originais do primeiro livro de Marosa di Giorgio, Druida. Quanto mais adentrava o bosque de sua escrita, mais me vinha à memória uma série de fotos que fiz no centro do mundo, na cidade Mitad del Mundo, no Equador. Ali se apresentaram para nós, poetas convidados, um grupo de dançarinas de uma das etnias locais. Me meti entre elas, a fotografá-las, com suas cores grandiosas, como se a câmara estivesse dançando e me levasse com ela. Por anos, guardei a maior parte dessas fotos. Talvez à espera da leitura de Druida. Suas histórias delirantes me recordam o bosque de orações que era a dança daquelas mulheres equatorianas. Meus olhos ardentes liam os passos no ar como asas e um trinar de seus movimentos era o mesmo que agora eu reconhecia em uma das passagens do livro de Marosa. O livro, uma prosa poética iluminada pelo disfarce de uma narrativa memorialística. Pensei então em minhas fotografias, que elas deveriam também evocar um disfarce, que o traço da dança deveria expressar não o registro fotográfico, mas antes a leveza de uma ponta de lápis, e que não haveria melhor ponte onde esses pigmentos poderiam realizar seu bailado do que na pele sugerida de flores e plantas exóticas. Como no livro de Marosa, tudo deveria ser uma fonte de imagens transbordantes a partir de pontos, os mais comuns, um pequeno e insurgente golpe de presságios, a alquimia das formas que são como sombras que não buscam lugar algum. O que então eu resolvi chamar de

 

A última linha capaz de devoção.

 

 


São fotos em movimento, imparáveis. Fico procurando qual é o ponto de apoio de cada uma e não discirno, porque me parece que, quando as vou decodificar, elas se esmaecem e eu perco de vista as figurações! Parece mesmo que elas andam, pulam para fora de si mesmas, explodem - a palavra é que elas não se contêm e vazam!!!! Incrível, meu lindo querido! Nem parecem fotos, não sei o que parecem e além do mais há algo de oriental - os panos que se espalham, as cores brotam uma do contraste com a outra, olha, uma epifania só!

Do borrão nasce uma forma que quer dizer para que veio, e implora uma palavra. Noutra, o desmanche predomina e as formas se debatem em cores e em fragmentos que não se dão entre si e duelam. Noutra, uma cúpula de espinhos aprisiona uma forma que é cutucada contra a opacidade herética que o ar, a pedra, um espanto de asas quer contê-la. Noutra, uma dúbia flor encosta a sua beleza de impertinências sobre o corpo que parece se apoiar na ousadia do crescimento desmesurado daquelas pétalas em direção à porosidade que a foto quer subtrair. Noutra, bumerangues despetalados e fora dos eixos produzem o difícil equilíbrio que, sem misericórdia, desloca o corpo numa montagem desnaturada sob o testemunho dos céus.  Noutra, um capim centenário e idoso, eriçado contra o tempo e em forma de flor lubricamente aberta imita raios impossíveis e esquecidos na geologia de suas lembranças, enquanto lhe nasce descentrado um monumento rubro de cio. Noutra, pensamentos pendurados no varal expõem suas tendências heráldicas para quem puder decifrar, enquanto outros, já esfiapados de tantas viagens, jogam a sua plumagem para quem puder com elas se abanar. Noutra, o milagre da flor pairando sideral sobre o mundo das coisas mais altas, competindo com elas nas braçadas que dá no ar que a tange mais para dentro dos seus estames. Noutra, explosões de água e fogo se conjugam para botar no seu seio a mulher que as sustém como aura própria. Noutra, solidão absoluta batida por traços, espectros de uma luz esfiapada e desarrazoada que desalinhava qualquer certeza sobre essa dor. Noutra, mundo submarino de cascalhos e fósseis procurando, ao léu, meios de libertação, enquanto Brüegel, sem escafandro e mudado em mulher hierática com azuis escorregando da cabeça nuca afora, contempla a obra interrompida.  Noutra, o peso do mundo me pede genuflexão e quase me enrosco como feto para que tudo recomece verde, esbranquiçado e hesitante como no primeiro dia. 

MARIA LÚCIA DAL FARRA | Maio de 2023

 

 




PROPRIEDADE IMAGINÁRIA

Galeria Virtual | FLORIANO MARTINS

SALAS DE VISITA

 

1990-2012 A IMAGEM E A SEMELHANÇA Entrevista com Floriano Martins

1998-2023 TRAJETÓRIA DE UM CAPISTA (seleção)

2010-2014 SÁTIRA DE ESPELHOS 

2011 NA MÃO DE ADÃO CABEM TODOS OS SONHOS Texto de Jacob Klintowitz

2012 PERMANÊNCIA DA REALIDADE

2013 SOMBRAS RAPTADAS Texto de Berta Lucía Estrada

2014 BRONZE NO FUNDO DO RIO Texto de Mía Gallegos

2014 CINEMA IMAGINÁRIO Texto de Floriano Martins

2014 MÁSCARA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins

2014 MÚSICA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins

2015 A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO Texto de Leila Ferraz

2015 A EXPRESSÃO DO LAMENTO 

2016 CIRCO CYCLAME

2016 LÁBIOS PINTADOS DE AZUL Texto de Aglae Margalli

2017 OSSOS DO ESPÍRITO 

2018 SELVA DE PELES Texto de Elys Regina Zils

2023 O CEGO IDEALISTA Texto de Wasily Kaplowitz

2023 A ÚLTIMA LINHA CAPAZ DE DEVOÇÃO Texto de Maria Lúcia Dal Farra

 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artistas plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 22 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a assemblagem e outros recursos. Iniciou seu percurso com colagens, algumas das quais para capas de seus livros e de outros autores. Em 2011 o crítico Jacob Klintowitz foi o curador de sua primeira individual, em São Paulo, toda ela montada a partir de suas fotografias digitais. A segunda individual foi em 2016, no Centro de Estudos Brasileiros, da Embaixada do Brasil na Costa Rica. A esta altura já havia inscrito algumas de suas obras na galeria Saatchi Art: https://www.saatchiart.com/florianomartins, bem como criado uma soma valiosa de capas de livros. Propriedade imaginária é uma galeria desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins que jamais foi realizada, Museu imaginário, documentário baseado na construção de maquete de um museu em miniatura que abrigaria toda a sua obra plástica. 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2023



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