A última linha capaz de devoção.
Do borrão nasce uma forma que quer dizer para que veio, e implora uma palavra. Noutra, o desmanche predomina e as formas se debatem em cores e em fragmentos que não se dão entre si e duelam. Noutra, uma cúpula de espinhos aprisiona uma forma que é cutucada contra a opacidade herética que o ar, a pedra, um espanto de asas quer contê-la. Noutra, uma dúbia flor encosta a sua beleza de impertinências sobre o corpo que parece se apoiar na ousadia do crescimento desmesurado daquelas pétalas em direção à porosidade que a foto quer subtrair. Noutra, bumerangues despetalados e fora dos eixos produzem o difícil equilíbrio que, sem misericórdia, desloca o corpo numa montagem desnaturada sob o testemunho dos céus. Noutra, um capim centenário e idoso, eriçado contra o tempo e em forma de flor lubricamente aberta imita raios impossíveis e esquecidos na geologia de suas lembranças, enquanto lhe nasce descentrado um monumento rubro de cio. Noutra, pensamentos pendurados no varal expõem suas tendências heráldicas para quem puder decifrar, enquanto outros, já esfiapados de tantas viagens, jogam a sua plumagem para quem puder com elas se abanar. Noutra, o milagre da flor pairando sideral sobre o mundo das coisas mais altas, competindo com elas nas braçadas que dá no ar que a tange mais para dentro dos seus estames. Noutra, explosões de água e fogo se conjugam para botar no seu seio a mulher que as sustém como aura própria. Noutra, solidão absoluta batida por traços, espectros de uma luz esfiapada e desarrazoada que desalinhava qualquer certeza sobre essa dor. Noutra, mundo submarino de cascalhos e fósseis procurando, ao léu, meios de libertação, enquanto Brüegel, sem escafandro e mudado em mulher hierática com azuis escorregando da cabeça nuca afora, contempla a obra interrompida. Noutra, o peso do mundo me pede genuflexão e quase me enrosco como feto para que tudo recomece verde, esbranquiçado e hesitante como no primeiro dia.
MARIA LÚCIA DAL FARRA |
Maio de 2023
PROPRIEDADE IMAGINÁRIA
Galeria Virtual | FLORIANO MARTINS
SALAS DE VISITA
1990-2012 A IMAGEM E A SEMELHANÇA Entrevista com Floriano Martins
1998-2023 TRAJETÓRIA DE UM CAPISTA (seleção)
2010-2014 SÁTIRA DE ESPELHOS
2011 NA MÃO DE ADÃO CABEM TODOS OS SONHOS Texto de Jacob Klintowitz
2013 SOMBRAS RAPTADAS Texto de Berta Lucía Estrada
2014 BRONZE NO FUNDO DO RIO
2014 CINEMA IMAGINÁRIO Texto de Floriano Martins
2014 MÁSCARA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins
2014 MÚSICA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins
2015 A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO
2016 CIRCO CYCLAME
2016 LÁBIOS PINTADOS DE AZUL Texto de Aglae Margalli
2017 OSSOS DO ESPÍRITO
2018 SELVA DE PELES
2023 O CEGO IDEALISTA Texto de Wasily Kaplowitz
2023 A ÚLTIMA LINHA CAPAZ DE DEVOÇÃO Texto de Maria Lúcia Dal Farra
Poeta, tradutor, ensaísta, artistas plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 22 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a assemblagem e outros recursos. Iniciou seu percurso com colagens, algumas das quais para capas de seus livros e de outros autores. Em 2011 o crítico Jacob Klintowitz foi o curador de sua primeira individual, em São Paulo, toda ela montada a partir de suas fotografias digitais. A segunda individual foi em 2016, no Centro de Estudos Brasileiros, da Embaixada do Brasil na Costa Rica. A esta altura já havia inscrito algumas de suas obras na galeria Saatchi Art: https://www.saatchiart.com/florianomartins, bem como criado uma soma valiosa de capas de livros. Propriedade imaginária é uma galeria desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins que jamais foi realizada, Museu imaginário, documentário baseado na construção de maquete de um museu em miniatura que abrigaria toda a sua obra plástica.
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2023
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