Nem tudo o que se diz corresponde à verdade. Esta frase, de uma obviedade tamanha, por mais que se lamente, emenda seus fios na casa de força de uma realidade forçada. A arte não tem tirado do coelho mais nenhuma cartola. O mundo nem mesmo posto ao contrário se explica. Talvez porque a razão, cansada de tantas honrarias a um mérito que não é seu, tenha se isolado e deixado o desvario atuar em um modus virulentus, de febril contágio. Fato é que não há mais explicação possível para o que vemos. Há explicações de toda ordem, porém todas taxadas pelas ações do mercado. Os mundos esquecidos foram aos poucos se tornando cúmplices inadvertidos de verdades contrapostas e afirmações sem prova. Ora, as provas mudaram de endereço. Robert Charroux já antevia o inferno de nossos dias ao dizer que em uma sociedade futura os sentidos possivelmente se tornarão mais e mais atrofiados e substituídos por uma organização protetora criada pelo cérebro. O que ele nem de longe poderia imaginar é que o cérebro passasse a ver no ludíbrio a sua grande fonte de anulação de identidades. Ao contrário do que se passou com outras épocas, em que os vestígios dos antepassados foram destruídos pelas civilizações seguintes, agora foram todos dissolvidos em sua capacidade de gerar alguma curiosidade sobre sua origem. São como florestas petrificadas em uma época que acredita firmemente que as florestas não passam de lenda. Um dia soube de um artista que, ao sair do vernissage de uma exposição de esculturas gigantes, indagado por uma jornalista, disse o seguinte:
Sempre que extraviados
os sonhos descobrem um modo de voltar à cena do crime. A extensão da perda
certamente interfere na dimensão do que trazem à luz uma vez mais. Uma pele
humana com seus escritos traduzindo as visões de outros tempos. A ave
gigantesca que descarna a si mesma. O amontoado de corpos encharcando a
planície de dor. As perdas remoem o tempo com suas fagulhas dilaceradas. Quando
vemos reunidos em uma mesma sala esses personagens é que percebemos a estranha
saga de nossos delírios. O que afinal sabemos de nosso passado?
Até
onde soube se tratava de uma mostra de obras recuperadas do escultor Alfons Zahner, cujos aspectos graníticos representados em forma tão colossal, de
algum modo nos remetiam aos personagens de Jonathan Swift ou um Adamastor
disfarçado, que assumisse formas as mais inusitadas. Não importa. A arte não pode
aceitar essa imposição de faxineira do quanto o homem escave em seu íntimo e
não consiga entender o que se passa. Alguém guardou consigo uma carta, perdidas
todas as referências de emissário e destinatário, mas era interessante, dizia
assim logo no começo: Acabei por achar o
homem que escavou os buracos em nossas rochas, ele escreveu, e que se
acreditava ser obra céltica. Que homem, que escavação, que obra? É como o
visitante da exposição indagava (da jornalista): O que afinal sabemos de nosso passado?
Depois
houve o caso enervante de um jornal de bairro que reproduziu nota de um suposto crítico
Xwalotozkoff, que estaria tentando vender algumas das falsas esculturas de papelão pintadas por Alfons Zahner para algum Museu no Uzbequistão.
O tráfico de artes é uma prática que remonta à antiguidade. Há colares e penas
que reproduzem ondas sonoras que podem ser interpretadas como partituras que
indiquem um mapa de proporções cósmicas. Um lugar, longe de nosso entendimento,
onde se preserva uma harmonia sexual entre os nativos. O cheiro da aura, a
marca dos corpos, até mesmo a concepção de uma violência legítima. O dilema é
que toda a nossa compreensão do mundo, na medida em que ela ia fiando um
conceito, ela foi falsificada, como uma Bíblia, todos os livros de origem foram
falsificados. Então não sabemos a que lei servimos, onde estamos, os decálogos
de nossa presença na terra.
Quando
estive em um museu da Moravia e vi a exposição tão requerida e mencionada de Alfons Zahner, com o sugestivo título de “O cego saudosista”, percebi finalmente
estar diante de uma realidade à qual não importa mais a sua fraude, o modo como
ela vem sendo, ao longo da história humana, tão extinguida, como se ao homem,
de cada época, o que mais importasse fosse não se reconhecer no passado, mas
sim impor um presente que, dentre outras coisas, o permita modificar as leis de
deus (qualquer deus) e os sintomas incendiários da criação artística. É isto?
Estarei certo? Então o que sobrou para nós?
Está
bem, quando vim ao Brasil, descobri com inarredável espanto que à beira do mar
um escultor se ocupa de invadir o território das proporções. Sem que habite
comunidade alguma, falei com os nativos, todos sabem a seu respeito, não como o louco da aldeia, mas como alguém que
recebe os essênios, sem, no entanto, vociferar em nome de suas descobertas. Era
apenas ele, ali, naquele bairro não de todo afastado da cidade. Como chegou à
ideia de que o que deixamos de ver define a nossa existência, não saberemos.
Tentei em vão entrevistá-lo. Foi simpático ao me dizer que todas as
manifestações do ser, em qualquer época, abrem uma cratera que nos leva a dois
mundos, em muitos casos inconciliáveis, o que somos e o que desejamos.
WASILY KAPLOWITZ | Abril de 2023
PROPRIEDADE IMAGINÁRIA
Galeria Virtual | FLORIANO MARTINS
SALAS DE VISITA
1990-2012 A IMAGEM E A SEMELHANÇA Entrevista com Floriano Martins
1998-2023 TRAJETÓRIA DE UM CAPISTA (seleção)
2010-2014 SÁTIRA DE ESPELHOS
2011 NA MÃO DE ADÃO CABEM TODOS OS SONHOS Texto de Jacob Klintowitz
2013 SOMBRAS RAPTADAS Texto de Berta Lucía Estrada
2014 BRONZE NO FUNDO DO RIO
2014 CINEMA IMAGINÁRIO Texto de Floriano Martins
2014 MÁSCARA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins
2014 MÚSICA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins
2015 A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO
2016 CIRCO CYCLAME
2016 LÁBIOS PINTADOS DE AZUL Texto de Aglae Margalli
2017 OSSOS DO ESPÍRITO
2018 SELVA DE PELES
2023 O CEGO IDEALISTA Texto de Wasily Kaplowitz
2023 A ÚLTIMA LINHA CAPAZ DE DEVOÇÃO Texto de Maria Lúcia Dal Farra
Poeta, tradutor, ensaísta, artistas plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 22 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a assemblagem e outros recursos. Iniciou seu percurso com colagens, algumas das quais para capas de seus livros e de outros autores. Em 2011 o crítico Jacob Klintowitz foi o curador de sua primeira individual, em São Paulo, toda ela montada a partir de suas fotografias digitais. A segunda individual foi em 2016, no Centro de Estudos Brasileiros, da Embaixada do Brasil na Costa Rica. A esta altura já havia inscrito algumas de suas obras na galeria Saatchi Art: https://www.saatchiart.com/florianomartins, bem como criado uma soma valiosa de capas de livros. Propriedade imaginária é uma galeria desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins que jamais foi realizada, Museu imaginário, documentário baseado na construção de maquete de um museu em miniatura que abrigaria toda a sua obra plástica.
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2023
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