Tudo é sombra… a
luz é uma desnuda sombra.
HUMBERTO DÍAZ-CASANUEVA
Ao Graccho Braz
Peixoto
UM SORRISO DA
MORTE
Morto.
A noite reverbera no vazio.
Seu corpo na rua, monstruoso hálito.
A dor é o contato com o segredo, carnoso
mistério da perversão.
A dor lhe é quase a última gota de luz.
Escorre pelo revés, estremecimentos ulteriores
de sua prosternação.
Sangue germinado por toda a língua, não lhe
faltam tremores de visões.
A dor é uma queda permanente.
O homem oprimido com seu espelho.
Horror inaudito de nomes, formas.
A dor, uma possessão mascarada – ondulações e
cascos do abismo –, não passa de uma criatura humana.
Porém a morte não é sempre a dor.
De que morre afinal um homem?
Sofre com seus animais espantosos, escrituras
encrespadas, viscosas.
Pobre mímico da própria memória.
Apregoa o desfolhamento de tudo, ainda que
morra de sacrossanta rigidez.
Então o que faz sobre o mundo entre sílabas em
chamas, carnívoras?
O homem não sustenta a linguagem em seu
gorjeio contra o tempo.
Devir transfigurado, onde seu nome?
Imaginário perfeitamente castrado.
Sua imensidão começa no açoite, alarde de
métodos, perfeição de chagas.
Um sorriso da morte cada vez mais humana.
FARPAS PEGAJOSAS
Tudo é transfiguração. O homem é a condenação do ser.
Não pode haver equilíbrio em sua queda.
Na rua o morto, por que lhe ronda a morte até
a exalação de seu sentido?
Desprende o corpo matéria destroçada,
lembranças de Sebastian em Suddenly last
summer, mimo do fracasso da psicanálise em Tennessee Williams.
A morte uma expansão da nostalgia.
O morto começa a caminhar, anjo sem as chaves
secretas, cavalo no deserto.
Crânio desfeito em leitos de sangue.
Sombra azarenta de germes.
O morto e seu batismo por desfiguração.
Onde é possível tanta
indigência?
Corpo enlouquecido sem sentido.
Limite transubstanciado da palavra.
Cofre de memoráveis ruínas, o morto anônimo no
ardil de sua evidência.
Vida enfeitiçada por violento fulgor.
Ferocidade do cadáver sem palavras.
Noite sem água. Noite sem
sombras.
Noite em seus farrapos implacáveis.
Não há carne lúcida na gotejante deformidade.
O ventre do enigma torna-se um vaivém de
farpas pegajosas, latejo implacável da ausência.
Por quem chora o morto?
Que lufada vê passar o corpo desfeito no vazio
da noite?
Quase um enigma do êxtase, rosa encanecida em
vertigens sublimes.
Póstuma escuridão, queda óssea do canto.
Sobre a mesa o amor visível, larvas de
estalidos no mármore quebradiço.
Sombra escorrida do morto, como preservá-la?
UMA RUA EM SIGILOSAS FENDAS
Dentro de cada um sobrevive igual sigilo,
desfigurado em pânico semblante.
Aparição de fulgores, pranto, suor, a morte, o
que nos traz, apregoada em vertigens?
O morto é o mesmo, a mesma a morte, as
reverberações do dia, o sorridente caos.
Verso fulminante de sua pele, latejo abissal
das cicatrizes, sempre despidas em trêmulas raízes, sonâmbulo espelho.
Fulminante o assombro musgoso da aflição.
Esvaziada dentro da morte, a rua agônica.
Nos olhos em sangue – pretéritos sempre – três
macacos assediados por víboras.
Vultos em progressão delirante sobre o corpo
daquele Sebastian, sempre outro.
Dentes cravados em seus pés, canto descarnado
e cifrado, o verbo em óleos, frenesi dentro de um círculo, o morto feroz de
abismos que se põem em voo.
– Adeus, seres
monstruosos, adeus!
O QUE SE PASSA COM A RUA?
A morte sucede por causa de forças
dissolventes, suores imperfeitos, estados letárgicos do sonho.
A morte sucede por nudez evidente, resgate de
ossos, gotejo do vazio.
Três macacos mutilam o cérebro de um corpo
inundado de morte.
Memória exaurida no centro fosfórico da rua,
limites da retidão sibilante.
Ali meditaram as três insólitas figuras.
Esvaziada a rua em sua fruição, luto.
Grotesco o silêncio demarcado.
O morto arrasta consigo um espólio de papiros.
Estreita-se a condição humana, disfarçada
sempre.
Silêncio das cicatrizes traçadas nos pulmões
do kyrie eleison.
Paradoxos impetuosos: morte, obsessão
sangrenta do cotidiano e uns olhos desaparecidos no vazio.
O que nos toca por fazer com a vida?
Mistério súbito à procura de sentido, três
macacos impostores, sangue perdido.
Sebastian em sua plenitude: intocável na
ternura, acossado nas maneiras, como Paolo em sua rosa promulgada.
O homem é o assombro que se abre dentro de si.
O homem é o homem e seu conjuro.
A
morte é uma porta incessante.
A vida, uma sombra aterradora.
Os três monos, a intimidade do caos.
O corpo destroçado, uma quebradeira do
possível.
TUDO É MISTERIOSO NA CLARIDADE
O morto – quem?
– em seu desespero da língua, açoites do entendimento.
A carne rota, velha trilha fatigada.
A morte acaso cumprira sua morada?
O poeta estendido, um ninho de arbítrios.
Agora lhe toca ser o próprio fantasma, The last rose of summer: palavra
assombrosa, livro agitado, fratura profética dos desígnios do homem na terra.
Arpão de metáforas, estrondo da memória, o
homem docemente exausto, rocio de dores, marcas pegajosas, rosto apagado ante o
espelho, atroamento do imaginário, corpos dessangrados.
EIS O TRABALHO MONSTRUOSO: CUIDAR DE
SI MESMO
O homem saiu de si, de seu caos de súplica,
cólera de larvas, sua tocha bebedora de tudo.
O homem saiu do súbito fundo das coisas, de seus
corpos sonoros, das tendas corrosivas do sentido, de suas raízes humanas.
O homem é o verme do homem.
Seu espelho é o espelho do próximo, jamais o
dele próprio.
Tem morrido de cicatrizes alheias.
O homem é tudo. |
Não
morre o homem. |
O homem está pronto. |
Sempre
estará. |
O homem não é ninguém. |
Deo gratias. |
Igualmente selvagem foi a morte do outro, o
poeta e sua intenção comum.
A poesia é sacrílega. Vazia: a rua. Conjuro: a memória.
Tempestuosa solenidade: três macacos
embriagados pela frivolidade voluptuosa.
Ardente, o corpo em seu derrame de sentidos.
Seus lábios não dão conta da boca, sopa de
salivas, o raio da língua, acumulação da palavra em suas vertigens.
É a morte um luminoso mandato?
O homem o provedor do inferno.
Sua vida um desenlace de trevas.
Olhos lascivos da lentidão, vontade de ser,
pranto, ossos do relâmpago, o morto em meio ao nada.
Quem teria sido tão precioso em seu devir?
O morto sou eu. Dilatação do ser, meus olhos vão sumindo,
pobre cego. Também o corpo, milenária
dor.
A morte é uma agulha soberba, uma solidão
vantajosa ante a perfeição da agonia, suas visões de macacos devorando os
livros, seus inchaços da metáfora.
Graças a Sebastian, uma página apaixonada por
sua queda: – a rosa dissecada é o velho livro
destroçado pelas serpentes da falação.
A SOLIDÃO ALIGEIRA O PESO DA MORTE
Com quem dialoga o corpo restado em suas
raízes exterminadas?
Adagas do silêncio, seu ardoroso vagido,
ninguém dissipa os monturos de sombras, selo tão próximo de nós, tantos
inconclusos.
Escuto as cicatrizes refletidas, passos por
todo o corpo, peso das feridas.
O morto é um espaço tenebroso, abismo da
semelhança, terríveis fungos doem na memória de todos.
O que se passou com a carne, tábuas imensas, o
jorro de palavras, páginas do desejo, a tragédia do espanto, marcas em
desamparo, branquíssima agonia cativa do ser?
O que se desprendeu do homem a cada morte?
Passa o morto ante nós sem que ressuscite.
Trilha de macacos em suas flautas ossudas,
escultura sonora degolada.
Amontoarão noites em débil cortejo.
Adormecida rua na indigência branca da
memória, come algumas sombras e bebe o vento nas sementes oníricas, caindo de
carne em carne, no calabouço esculpido sem alento.
A música de três troços vãos dilatados, delito
de ossos, tumba de gemidos.
O olhar do morto quer sair à rua sem
fundamento, o irreconhecível acaso, pó de tudo, formas açoitadas pelo vento.
Três macacos com seus despojos de carne e
sonho, dor madeirada em ícone.
Humanos céus, vigas dos lamentos, três macacos
comunicam – lodo nas flautas – que a morte não é sua ganância, que a rua sofre
de aparências, vésperas armadas.
O dia claro queima suas dessemelhanças,
respira aos borbotões as esplêndidas palavras repetidas.
Corpo de Sebastian, espantoso reflexo da
desfiguração.
A MORTE NÃO PASSA DE UMA NOSTALGIA DE
MITOS?
Vermes visíveis, cansaços de sombra, quem foi
Sebastian, o de todos, salpicos do desterro, vapores do ser?
Vozes encarniçadas, corpo de escombros,
aterradoras figuras que perderam o duelo, sua jornada inumerável, jade
solitário, formas tesouradas do vazio, imagens desvalidas, telhados do nada.
Saboreia a noite o rastro do morto.
Repete sua caveira a abundância da dor.
O poeta acaso seria um homem caído?
Pelas ruas sorria Sebastian, em seu aroma
forte de incrível apaixonado pela vida.
Flui o rosto da morte como uma larga
tempestade.
Morte.
Há morte para os deuses, morte para os santos. Morte e suas agulhas cegas que nos rasgam
as entranhas. Morte para tudo. Em todas as partes da terra.
Ramos da riqueza dos infernos, mármore da
oferenda dos céus, trâmite da miséria do ser.
O homem é a múmia do homem.
Árvore de duendes, o poema, única sombra não
vencida.
Lavoura de instintos, os mortos tão distintos,
bestas que não buscam se ver.
Sobre a cidade, a rua comum, bem próximo à
solidão o ventríloquo das sombras, véspera de tudo, petrificada origem, sobre a
cidade e seu derrame de fanáticos, cargos e destituições, tablado insustentável
de perdas e disfarces.
O HOMEM NÃO PASSA DE UM PAVOR DA
DISTÂNCIA?
O morto deseja sua romaria, a sociedade de
lágrimas e a saciedade de seus musgos.
O morto deseja a própria morte.
É a Parca, a soberba de suas imagens, leito de
misérias feitas em pedaços.
Nada mantém sobre a terra.
Tudo foi instrumento da carne.
Rua de tempestades, fogo de macacos.
Caminhos de reminiscências, chave de seus
limites, iluminação mortal.
É certo que não há urgência estética, que a
noite morre sem dor alguma.
A queda é nada, opróbrio do acaso.
Mesa brilhante, metáforas ensimesmadas, a eternidade
não resultou tão selvagem.
O homem é o cardápio do homem.
Sonha com sua metade profunda a la carte.
Hölderlin, Hölderlin, mais do que Sebastian,
mais do que Paolo, abrasado pela carga desmedida de sua profecia. Hölderlin e sua vigília da loucura. Trakl e sua vigília da solidão. Cage e sua vigília da dissipação do homem
– transfigurações dos grãos da humanidade em nós.
O que apazigua a morte? E a vida?
A dor atravessa o tempo, eis como se mostra:
pergaminhos arrogantes, troços do acossado, semblantes de moinhos deslidos,
rostos fechados, língua perdurável, olhos em círculos, majestosa aparência de
macacos, provas, descarnadas provas, o homem cruzado por suas provas, quanta
morte morte morte!
Esvaziada a rua, o morto é o pranto do sentido.
Verbo de uma túnica insondável.
Amorosa a morte, seus frutos sob o teto das
testemunhas, corpos esfriados pela idade convertida em mito.
Fala por si mesma a morte, Sebastian, ao
afirmar o corpo, radiante ruína.
De que morre o sudário?
De que morrem as provas do renascido e seu
desígnio?
O homem é tudo no homem.
QUEM FALA NA RUA COM O MORTO?
Suplico tua
piedade oh insubstituível, fome de meus miolos, escrevo poemas encarregados da
dor, bênção de quedas, o horror é bastante mortal, mãe, sinto a realidade dos
tremores, o clarão – quem fala com
seu coração elegíaco, com seu pensamento escuro ardente renascido? –, não quero defender-me, repito meus versos,
apenas o que tenho, até a morte, irremediável, escravidão do desejo, suplico, a
morte é minha humanidade, a humanidade inutilmente perseguida, peregrina, é
mais do que vício rejeitado a miséria florida, peregrina minha, não há
indignação na semelhança, diversidade profanada, mística perdida, a humanidade
é uma arma monstruosa – Sebastian e sua ração de trevas, por que não me
falas de tua doçura fustigada? –,
fósforo, fósforo, tudo é fósforo na exceção desenfreada, grito intemporal,
falação de vermes, condenados reduzidos violentos, os macacos e sua farsa
pueril, te suplico, peregrina insubstituível, até o último verso, até as
sílabas triunfantes de teu catre, deixa-me só, jamais entre os três, que seja
fúnebre minha glória, seja trágica, longe porém da falácia dos macacos, não há
piedade para minha doçura, sim, nem lógica na morte, macacos afastam ainda mais
a eternidade do homem, ninguém mais importa a quem seja, a morte é sem fim, o
homem uma situação violenta, torpe tragédia, peregrina, a tua uma sombra sem
remissão.
LIVRO IRRECONHECÍVEL
Ilusão de luzes na rua, lua sobrada de outras
noites, velha deusa aflita em suas fezes míticas e o relincho da nostalgia.
Rua da lua.
Rua da morte.
O morto sem nome. Busca o sentido extraviado de seu
pêndulo. Grave e branco.
Corpo e mundo, um sem o outro.
Colheita corrente da vida, por que não tê-la a
cada instante? Rua desfeita.
Acaso não vai além da morte a verdade?
Carnificina de sombras, amantes famélicos da
queda, tudo brilha na pedra de seus olhos – gotas de pedra na rua, zumbidos da
escuridão, noite soerguida no enxame de contradições, Sebastian morrendo em
carne viva.
Vida ou morte compartilhada?
Não lhe encontra mais que o som da lira, a
mesma de Hermes que Apolo desafinou.
Consome o morto a própria imagem, ardente a
onda sobre seu rosto, alarmada a alma pelo fulgor, despojos cintilantes impiedosos
na tragédia de seus dias.
O morto é ninguém. O cérebro apodrecido.
Livro irreconhecível, exceto pelos macacos.
O HOMEM MATA: É ONDE TERMINA SEU CANTO
Morte por asfixia, matança de sentidos,
filantropias pentecostais, encargos, estalido de corpos, arrombamento de
sombras, o esmaecimento do barqueiro, faíscas do inferno líquido das ruas,
teatro efêmero: o homem mata, o macaco devasta.
Paolo é ninguém, o mesmo que Sebastian.
Rostos atravessados pela tragédia. Nada, ninguém. A pele possui uma vida breve. Por que a dúvida? O homem mata. Sua caçada é humana.
Não arrancou a vida do vento ou do ventre, mas
sim do encargo de semear morte em si mesmo. Arrebatado pela soberba, o homem e
o milagre de suas cinzas: soluços na plateia, gargalhadas no ar, misterioso voo
de tantas obras, gritos sem respiro, mortos de tudo, do desequilíbrio do fogo
entranhável nas páginas dos artifícios, serpentes destroçadas, convulsiva
agonia, ira golpeada, farrapos do desejo, barbárie, sacrifícios, corpo confuso
do morto, linguagem de estigmas, Sebastian, Paolo, mendigos zumbis diante da
sabedoria do homem.
Desde a dor até a porta imensa de sua
solitária ausência.
Desde a morte até o assobio da memória.
O homem mata. O morto está mais adentro.
A morte não tem inimigo ou verdugo.
Não há enigma ou igreja ou outras facas na
terra ou mesmo outros selos de metáforas.
Agonia do verbo, o nariz do homem aspira ao
terror – mercado de carícias errantes, o firmamento extraviado –, o homem
descarnado pelo homem, lobo dragão serpente, também a pedra é seu firmamento.
Resta o mundo sem Sebastian. Quem haverá de sofrer? A quem causa dano sua perda? Quem olha para trás?
Seu corpo é a barbárie, devir delirante,
charco de chagas, olhos da divindade castrada, textos hostis, catacumbas
veneradas em seus uivos, a dor vomita sombras carnívoras, memória andrajosa
caótica demente em suas crepitações.
É contra tudo olhar para trás.
Espelho de asfixias, concha carnosa dos
estremecimentos do espírito.
Tudo é transparência, uma vez mais circundada pela miséria, latejo da solidão, depuração da violência.
SEGUIR ADIANTE, SEM VOLTAR O OLHAR
Sebastian é a metade inaudita de Paolo.
Seu verdadeiro abismo e o enigma.
Em farrapos, um. Desfeito em sonhos, outro.
Pálido o coração obstinado, a transfiguração
da pedra, imersão de máscaras no batismo do caos, triunfo do nada, palidez
profunda.
Ambos prontamente homens sem fim.
De carne, de nuvem, de gozo, de acaso.
Um regressa às escrituras de seu duplo, cartas
à mãe: garras revoltas, miolos de merda,
urinas do abismo dessangrado do ser, ovos melancólicos, não há espanto, é a
besta humana, a concha de seus peidos e suspiros, enigmas viscosos do cu e sua
anteface falaciosa, com mais vigor a besta amanhece, rejuvenescida pela merda,
por seu caldo de entranhas, discurso coberto de misericórdia e bostas de ratos,
o sacrossanto pavor da indecência gera seus mitos, suas galinhas aturdidas,
ossamentas líquidas, ninhos em trapos do eterno retorno, iras funerárias,
gorjeio de rochas, provisões de pus, fome desvelada, o caos sustenta o mundo,
mãe, o desejo é carnívoro, tudo é armadilha para que se morra, equilíbrio
inesperado, perfeição magnânima de Deus, cada vez mais macaco em seu disfarce
obsceno de homem, pletora retórica da divindade absoluta, seu vagido trágico,
teatro da queda, escuridão venerada no fustigo do verbo, encarnado, inocente
como a escuridão espantosa do instante, bailado da ferocidade, escombros da
própria inocência, tudo é inocência, bosque de merda inocente nas chaves
secretas de seu pântano, espelhos musgosos, mãe, toda aparição é fulminante,
não se pode olhar com o pranto, com o tremor da evidência, proscrito o verdor
do musgo, a alquimia do desejo, sobre a mesa os mortos, o ímpeto de Deus, os
espaços de sua mutação, caos mutilado, pedra enferrujada da memória, desnuda
reverberação, por que veio?, morte, merda, Deus, minha alma derramada sobre os
charcos, eu porque estou estás está estamos estais estão, o mesmo que nada
ninguém nunca, desenfreada mortalha de cada vértebra do relâmpago.
Regresso de Paolo ante a aniquilação do
espírito de Sebastian.
Que verdade busca o leitor?
A VERDADE ESTÁ SUMIDA DENTRO DO POEMA
Porém a verdade não é ninguém.
Fortuita, mostra-se como o último dos seres.
Archote assediado por mil sombras.
A verdade não tem raízes.
É uma víbora espantosa, trágica espada do
homem, seu olhar, a verdade está sumida dentro bem dentro.
Também o leitor é ninguém, plenitude cifrada,
progressão do caos de toda escritura humana, idade de látegos lamúrias latejos
luzes lacônicas livros leviatãs lesmas, serrim de alucinações, círculo da baba,
cloaca do grotesco, o pássaro de um, a bigorna do outro, signos do sangue
imundo do homem, de Deus, de suas maçãs desfiguradas, esmeralda dos fundamentos
apodrecidos, tudo em tudo, o poema, Deus, Sebastian, Paolo, o leitor: língua
dissolvente, apaixonada por seus filhos.
Ventre dissecado em seus livros, pranto de
sombras – velhas sufocadas rígidas –, quase humanas, à semelhança da dor,
plenas da agonia terrestre, homem reatado por sua obsessão de ser possível, ímã
da última solidão, flores de vertigem, sonâmbulas, e a consequência de sua
ferida, nunca a mesma, busco entre elas prolongar a queda, roída pelos sentidos
tomados de serpentes, impenetrável eu, emaranhado eu eu eu, o verbo em sua
profundidade de centelhas, onde o corpo do anjo?
Quem recolhe sua imagem putrefata, seu encanto
pela queda imensa da alma?
Os três macacos e seus risos sulfúreos, nenhum
faz sangrar o morto mais do que a própria pronúncia de trevas: a dor é a mãe
desmembrada, cartas de extravios.
Nenhum é semelhante à visão de Sebastian.
Esplendor demasiado, três macacos brincam com
as provisões da misericórdia, engessam seus medos, pernas e miolos, zombam da
noite submersa na cloaca da poesia, mãe transfigurada, ovos com suas asas de
improviso.
A noite masca Sebastian em sua ramalhada.
O fulgor e sua grande velocidade, fungos da
linguagem exposta a seu abismo.
O homem não tem dado conta de suas palavras,
dos motivos de sua vida entre elas.
Onde a revelação do humano em nós?
Há um largo silêncio entre o morto e sua
morte: súbito a cena torna-se vulgar, anônima, anjo sacrílego, e Sebastian não
passa de seu desamparo, crepitar dos versos dissimulados na conjuração.
A morte seguirá cantando, a poesia.
Deusa austera, bela. Paolo rompendo a noite
esvaziada na matança do outro, seu revés, seu cumprimento da solidão, Paolo que
sabe que a morte nada diz.
Mãe dos despojos, petrificada mordaça,
condenação de látegos o verbo, os espelhos da calamidade humana, borrões
ilegíveis da dissipação.
A linguagem a encalhar nas cicatrizes do
movimento.
O olhar é a impiedade do olho.
Um gesto é a impiedade do corpo.
O homem é a impiedade da humanidade.
Três macacos cegos à margem do homem efêmero,
cobertos de cinzas, memória carbonizada pelo flagelo do mito.
No entanto, tudo é homem.
Não há como deter o homem.
É
homem a vergonha do homem.
É homem a miséria do homem.
É homem o genocídio.
É homem quem sofre a humanidade do homem.
O homem e seus restos ao sol, linguagem,
sonho, poesia.
Não é um animal a quem agrade padecer nas
sombras.
A NOSTALGIA É PENITENCIAL
Os três macacos sonham com o vazio.
Sebastian é um homem cortado por sua mãe.
Telhados ressonantes, precipícios, lonjuras.
Terra de gritos, brotos do inferno, caos de
Deus, onde o homem?
Eis o que consta de sua carta carcomida, de
sua peça desvalida inteiramente de humanidade, triunfo trivial dos três
macacos, letras que são deuses e sua dissimulação, filha obscura, a noite despojada
na sede de seus náufragos, morte morrendo, imagens arrancadas pela dor,
Sebastian em farrapos, Paolo com sua morte invisível, lá dentro do ser os
vivos, desgraçados, os vivos, com seus espelhos suas máscaras seus mortos, os
vivos e sua tempestade de gritos, rosto traído, espuma dos pés, plenitude do
lodo, língua ao revés, memória estraçalhada, os homens imensos do espelho
humano, suas glórias, torrente feudal, suas colônias do animus, traços plenos de lágrimas e perguntas sem respostas,
vírgulas, pontos.
A morte não é ninguém.
A morte é uma ciência, uma poética, uma
religião.
Ninguém morre.
Sebastian é os três macacos, Paolo uma
folhagem da memória.
Segue a rua em seus apontamentos proverbiais,
em seu vício de tudo é Deus.
Cai o homem em poema em esplendor em ciência
em vazio.
A noite é uma reverberação da própria
criatura.
A outra ponta do homem.
Morto, constitui agora um devir de soçobras,
bagulhos.
Vigília de indigências, rostos que buscam
novas formas, leis do próprio delírio e sombras menos mortais, adentro sempre.
O homem é a metade de seu canto, a metade de
seu mundo devorado pela criação, linhas e raízes do desejo, pedras negras do
sonho, o homem e sua metade dissolvida dentro das visões dessangradas, seus
ecos.
A outra, blasfema entranha, é a aparição de si
mesmo, o mito destruído, o horror predileto do ser, vida ornada de miséria,
sonhos macerados, o homem em seu canteiro de imagens, secreta morada de cinzas.
Para quem crias, besta esplêndida?
Esta é a taça de tua redenção?
Vês a pele imutável da extensão humana?
Ópio soberbo, tudo é perfeito em teu mundo?
Ídolos em seu mercado de cebolas, deuses
defendendo enigmas.
Quem foi o homem antes de morrer?
Estratagemas do êxtase, obras saqueadas,
psicanalistas usurários, golpes do engano remunerável.
O homem foi o próprio confim do homem.
A tudo manejou.
Em suas mãos a vida é nada.
Não é a dor da conquista, mas sim um
arrebatamento de falsários.
O homem e sua alegria destruída, outono na
árvore de sonhos, livros mofados, sorrisos reduzidos à zombaria.
Quem se esconde nele?
Não há provérbios, musgo bíblico,
estremecimentos da folhagem, lua falsificada.
O HOMEM PARECE VIVO, SEMPRE
A morte é nada em suas mãos, mãe imensa
desgraçada adormecida, túnica contra a pele, vozes do tablado, obscuro extravio
transfigurado, semelhança com os poços e o átrio da torrente humana, morto,
morte, morto, caminha por último o homem pela passarela de seu presumido
desígnio, a peça escura e sua insuportável lição, o que parece o morto dentro
do morto?
Que importa o nome? Paolo, Sebastian.
A morte vai passando em sua plenitude.
Não obstante, que pode fazer o barqueiro sem o
rosto?
Lance de sombras, condução dos mortos
secretos, Caronte, tudo é visível na queda, tudo é sempre sentido extraviado.
A morte é uma disputa de sombras, conjuro
sinistro de seus vultos, noite de espumas, despojos do olhar.
O revés da escritura é ninguém. Ninguém é o homem.
Juntemos as páginas. Todos os mortos estão cobertos de seu revés: a outra ponta.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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