1.
O sacramento dos primeiros furtos
nos dá um grão novo, causa nova para as
mandíbulas,
pescado há longas noites cobiçado,
algumas almas agradecidas por serem dali
levadas.
O homem começa a roubar muito cedo,
ainda como uma forma de reconhecer seus
domínios.
Acumula em si cerimônias inconscientes, um
primeiro débito com os deuses
que não o consideram senão veículo de suas
impunidades.
O homem é a primeira galinha, o primeiro bode,
a primeira vaca
de um culto que se abastece de expiações.
Ao soprar na areia o rosto de um inimigo
imaginário
passa a imitar o desejo e a replantar
sucessores
certo de que o mundo é uma reta sem fim.
Se alguém se reconhece no fio de sua espada
rapidamente o sangue salpicado altera os
termos da verdade e da justiça.
Molda seus dons na argila temperada com veneno
e se algo lhe parece familiar recolhe sob sua
guarda até que a árvore produza o fruto que ele determina.
O homem não prova o outro senão como uma
iguaria de desmandos,
e ama a progressão de quedas que escava seu
nome no vazio antes de desaparecer da memória de todos os tempos.
A memória sempre foi licenciosa.
2.
O hábito destrói templos inspirado na crença
de que sempre é possível refazer a ilusão,
e coleciona a cabeça decepada de todas as
devoções.
O hábito não dispõe de tempo para agraciar
deusas ou adscrever novos motivos no santuário de sua devassidão.
O tempo é este, o que temos, não importa
quanto dure ou se algum dia retorne.
Os animais sagrados não fixam o olhar em parte
alguma.
São como servos do acaso.
Almas de evidente entrega à matança com fins
bíblicos.
Não importa se Egito ou Jerusalém ou a casa de
mil cores que se instala de costas para a ingênua oração de seus discípulos.
O bem é uma fadiga.
A loucura cada dia se sente mais castigada por
suas pedras de luz.
Hábito, hábito, entro em casa e o mundo se
reproduz sempre igual, como se não fosse sequer preciso prevenir-se de seus
demônios mais caseiros.
3.
A idade da terra de nada nos serve.
Os glaciares despojam suas lágrimas com uma
voracidade a ponto de expulsar o homem de seu pomar de eras.
A Amazônia emite raios de suor, uma escrita
que poucos sabem decifrar.
De nada serve convocar os deuses, intensificar
a sintaxe das hóstias, identificar a pilha de ansiedades.
Os figurinos da alma possuem aspectos
dormentes,
como criaturas que se detêm diante de si
mesmas, sem perceber por quais mundos foram renegadas.
O mar se repete como o dedo de uma deusa
convidando uma astúcia enigmática a vir deitar consigo por uma noite apenas.
Um espírito vagando pela terra.
Um nome qualquer que alguém destrinche e saia
por aí com ele na algibeira a usar como senha para identificar o prazo final de
ritos reservados à morte violenta da imagem.
A ilusão sendo transmitida graças a uma
correia de persuasão.
Móbile da grande árvore do alto de onde me
esgueiro para pronunciar as quedas da história.
A arte renova a lascívia de todas as perdas.
O verbo é uma atrocidade que desampara todos
os cadáveres.
O homem sempre esteve de costas para o mundo.
A guerra é uma encarnação temporária de nossa
angústia.
Se algumas atravessam os rudimentos da
eternidade não significa senão que o hábito é o rubi mais fácil de nossa
ansiedade religiosa.
Um coro de vozes escavado em uma aldeia no
Afeganistão preserva a clareza:
a paz não está de
nosso lado ou de lado algum.
Reprimir as escavações, separar o corpo de seu
desejo, banhar o mundo de um tabu assistido que rejeite a influência humana…
A arqueologia também é parte do que o homem
quer de si.
E não quer aproximar-se de Deus senão para
dominá-lo.
Roubar-lhe a casa, a imortalidade e uma
multidão de lagartos.
4.
Um mundo de sombras defumadas começa a brotar
do olho das relíquias.
As velhas tábuas da lei são penduricalhos
roídos expostos em pontas de calçada sob a guarda de demônios errantes.
As cidades se ocupam em decifrar o propósito
de tantas rixas e propinas.
Sombras escavam a morada frondosa do
infortúnio.
Sombras cultivam a idade cega dos monoteísmos.
Sombras não abandonam o hábito de suas
libações.
O cadáver decantado em uma noite de chuva que
trafegue por outras ruas,
as espigas que replantem suas mulheres
estéreis o mais longe possível,
as portas que refaçam seus abrigos.
Fomos instruídos a estocar nacos de trevas
para as estações desamparadas.
Pequena floração de olhos viciados em
desgraças.
Um caldo de misticismos com suas virtudes desencontradas.
As cidades costuradas pelo carvão das deidades
traídas se ocupam em distinguir as razões de uma fuga laboriosa.
Ninguém se atreve mais a declarar o pronome
que o identifica.
Os verbos são expelidos como um cancro, um
catarro, um alvoroço de tosse e pigarro.
Enquanto embalsamamos o que somos, qual imagem
mergulha no forno das analogias e ali se dissimula em alguma crosta que suporte
a mais alta temperatura dos dissabores?
A salvação é um mito.
Acumula em seu íntimo os mais improváveis
atributos.
As deusas risíveis que evocam cetros de todas
as cores.
O halo fajuto dos cadafalsos que mudam de
forma a cada sacrifício.
É impossível adjetivar a ressurreição.
5.
Sombras mascam o hábito como um símbolo de
degeneração.
O presente se desfaz em angústia sem ter onde
reinar ou com quem ao menos conversar.
O presente se desfaz de sua túnica de
abundância e perambula pela vida eterna em busca de alguém a quem convencer de
seus apelos súbitos.
O presente e sua semelhança superficial.
O tempo atribui ao homem uma jornada de
simulacros.
O espírito é agradecido por tantas
representações.
O hábito nos veste de fábulas.
Tal rol de assertivas dilacera a vestidura da
alma humana, sem no entanto estimar o ponto em que o feitiço revela a escória
de seus componentes.
Nossos desertos estão alagando de descuidos.
Nossas vítimas são degredos públicos que
ninguém se atreve a assumir.
A terra não quer aproximar-se do fim.
Nenhum de nós pode ainda crer na expulsão de
demônios como um ritual sagrado.
Não são os deuses que nos desconfortam e traem
e escalpelam.
Há muito a quaresma de fogos se converteu em
assinatura de decretos.
As metáforas se converteram em grupos
mercenários.
Estimamos a matança de todos os deuses por
contratos virtuais.
Árvores decepadas, sonhos mutilados, crenças
amputadas, desejos estropiados, tréguas descumpridas, quantas mais anotar entre
tantos modos de injustiça?
Como descrever cada ato sanguinário de um modo
que seja compreendido como tal?
Como identificar o perjúrio nas declarações de
amor?
Como desfazer-se de um reinado violento que
deixamos tomar forma dentro de nós?
Os espelhos esquartejam o reflexo de todas as
formas que desacreditam de seus poderes.
Os espelhos tanto fabricam ilusões quanto são
ritos funerais.
O homem jamais conseguiu averiguar a
fidelidade de sua imagem encarnada em um espelho.
Os santuários estão repletos de hábitos,
sombras e espelhos.
6.
Não vamos a parte alguma graças à invenção do
deslocamento instantâneo.
Cristais refazem a esfera religiosa do mundo.
Esta é uma era mineral.
O talismã não é mais a permanência, mas sim a
frequência com que alternamos as nossas inenarráveis chances de ser.
Guerra de sombras infiltradas na intimidade de
reinos, desmatamento sigiloso de todos os bosques sagrados, cultivo de perfis
tabuados,
domínio de dossiês, a linguagem sórdida da
dependência, simulacro da interdição moral.
Não há mais verdugos ou executores de qualquer
ordem, ante o patíbulo ou no salão das bolsas de valores.
Os cárceres apodrecem as mais aberrantes
formas de inocência.
A luz não é um atributo das sombras.
O homem atribuiu a si a perspectiva de estar
em outro lugar.
Por quanto tempo vamos personificar o espírito
como uma estalagem aberta a toda espécie de estradeiro?
Nenhuma dor indica um reinado da claridade.
Os conjuros são impronunciáveis.
As meninas nos levaram para respirar longe do
velório do deus naufragado.
Temos que ser humildes ao receber em casa a
visita dessas mulheres que aliviam nossas dores.
Um céu estropiado como uma tábua vesga
abarrotada de nomes ilegíveis.
O mundo cercado de deuses, os cofres
derretidos, as trapaças sob controle como se fossem palavras mágicas, dígitos,
senhas, a verdade mudando de face a cada reacender do sistema.
Não há terra suficiente para tanta cobiça.
Os capítulos da história da humanidade se
sacrificam como um livro que não para de produzir páginas.
Corporações mastigam o índice situando o
mistério da espécie humana em favor de sua horticultura de degredos.
As páginas representam a confiança nas
estações.
As ações sigilosas são uma representação da
usura, um mecanismo da fraude de que se alimenta o disfarce de todas as
cerimônias.
Não há desígnios imprescindíveis.
Há muito habitamos uma terra sombria onde
ninguém assume honra ou arrependimento.
As coisas aparentam reflexo simplesmente do
que estava a ponto de ser.
Um mundo sem deuses, sem uma triste risca no
horizonte, um pecado que se repita três vezes e nos dê a prova de nossa
humanidade.
Um mundo que não vai a parte alguma e não faz
ideia de como regressar a si mesmo.
Posso expulsar todos os diabos, mas eu quero
saber o teu nome.
Não vou me renovar em uivos e anéis.
Não vou erguer um palácio central para teus
ritos.
Não me importam as tuas sombras ou vícios.
Eu quero que me digas o interesse de teus
erros, a submissão voluntária de teus anseios, o gesto desprendido da
humanidade ao aceitar tua imagem reproduzida em nosso íntimo.
7.
Continuamos à espera de uma resposta.
Há aqueles que verdadeiramente esperam e os
que duvidam que haja alguma.
Nada nos machuca tanto quanto essas marcas de
ansiedade corroendo a pele.
A poeira amontoada em recantos eleitos como um
reformatório.
A casa em sua vastidão de pronúncias do
inominável.
Corpos infectados pela solidão.
Rabiscos por toda a madeira impregnados de
unhas e sangue.
Manchas de vômito seco parodiam as letras
quase ilegíveis:
alguém acabe com meu sofrimento
O mesmo desespero ecoando por mil casas.
Os amaldiçoados se amam.
As telhas se beijam como amores frígidos e já
não sabem que resposta dar ao tempo.
Expedições atordoadas de morcegos e pardais e
grilos e baratas,
as casas se reproduzem em seu íntimo como uma
transportadora de acasos.
A analogia esvaindo-se sem encontrar ombro em
precipício algum.
Os véus antes excitados com a meiguice do ar,
hoje resumidos a uma senha com deleite a tempo contado.
As palhas da casa, o caráter esvoaçante das
oferendas, os hóspedes com seus ramos azuis e plumas felizes.
Quem nos escreve de impensadas eras indagando
sobre visitas e outras fontes de sentidos?
Alguém que inclua em sua agenda aprender a
amar o silêncio?
Árvores sendo plantadas dentro de outras por
falta de espaço.
Pequenas cidades expulsas de homens que sonham
com desastres ambientais.
Um credo de enfermidades varre os dias nos
levando de volta ao passado.
Há circunstâncias em que as coincidências não
passam de simples conspiração.
8.
Infestação de luzes expiatórias.
Os rios se partem em pingos alucinados.
Não arrastam mais consigo cadáveres de árvores
ou peixes envenenados.
As trevas já não sabem nadar.
Aprendizes de êxodo fazem fila para tirar
passaporte desconhecendo qual a real fronteira que irão cruzar.
Há muito o mundo não vai a parte alguma.
Um formigamento de males repetidos, cancros
reincidentes, talhos exaltados com a última residência possível.
Eu me sento aqui por acreditar no esgoto dos
prejuízos.
Certo de que amar ao próximo como a si mesmo
não seja um rabisco mal compreendido em uma fábula esquecida.
Tanto os homens cativaram deuses que já não
sabem o que são.
Não há perda ou açoite, carneiro ou véu
sagrado longe do caminho que alimentamos com o corpo e a alma.
As perdas são a nossa deformidade ditosa.
Os orgasmos relutantes são uma montaria de
reflexos com sua corte distraída e um ajuntado de armas que já não fazem
sentido.
Posso embalar os corpos para quedas sob
encomenda.
Preparar os céus como salas de massagem.
Deixar os crédulos felizes com sua horta de
presságios.
Posso até chegar mais tarde para o anúncio
secreto de impossibilidades.
Não por erro de traslado, a cavalo ou
teletransportado.
Não por fábula improvável ou corredor não
identificado na grande biblioteca da memória.
Não por lumes mal escritos, poros iludidos,
bilhetes queimados, fronteiras abandonadas, fetos estocados…
A cada três ilusões o homem se associa a uma
nova selvageria.
Eu esquadrinho as áreas conjeturadas para a
formação de novas deidades.
Eu preparo a sopa de reclusões com que a noite
se alimenta.
Eu vivo de um canto a outro buscando mais
propriedade na sombra do que a luz pode alcançar.
Ninguém deve respeito à palavra
incompreendida, mesmo por erro de tradução.
9.
Rezam as tabuletas que ninguém cai de si se
não houver um talho na cesta.
Sentenciam as espigas que os animais caçados
um dia se convertem em mitos.
Debulham as vozes que o silêncio é uma cidade
alimentada por uma hierarquia de promessas.
Os adivinhos sonham com as falhas mecânicas do
acaso.
Os propósitos dormem sem prevalecer sonhos.
Nunca estás por aqui quando a realidade se
torna redutível.
Se não me revelas tuas causas eu embaralho
teus efeitos.
Se não me amas como necessito de ti, as tuas
linhas em meu corpo jamais se repetirão como um canto, uma plantação de arroz,
uma senha que nos permita regressar ao lugar onde jamais estivemos.
Nenhum de nós veio aqui para isto.
O mundo se banha de consequências, como uma
arma secreta que o leve de uma ruína a outra.
Meus deuses atendem aos teus, desde que
ajustemos a expressão da vigilância em relação ao legado de cada um.
Deixemos que todas as formas assumidas como tais
busquem a expressão de seu sentido, ao ponto em que não sejamos mais inimigos
espirituais.
Vamos ver o quanto o céu é mesmo azul.
Vamos à ponte que nos leva ao trigal dos
labirintos.
Vamos, simplesmente vamos.
Um dia compreenderemos o cinismo com que os
demônios pedem clemência.
Um dia as pérolas serão ruínas na memória dos
porcos.
Um dia as mãos não lavarão sequer a si mesmas
e a intempérie será visitada por uma caravana de cadáveres.
Os céus estão cobertos por um enxame de
inações.
As dores foram se repetindo até a ausência
mais completa de comoção.
A tática se tornou órfã e por toda sorte de
lugar o que vemos não é senão um tecido gasto e a enegrecida flor da retórica.
Sonhos roídos pelo abandono, mapas descartados
não mais sequer mascados pela ventania, um gradeado deteriorado onde ainda se
pode ler a plaqueta: última moral da
história.
Aqui jazemos todos nós.
10.
Um trapo de ilusão acalanta as almas que não
encontraram guarida.
Um verbo cujo significado já ninguém o tem com
precisão confunde as ações que tropeçam pelo terreiro às escuras.
Fomos nos desabrigando por excesso de paixão
pelas velas e os sacrifícios.
As imagens não duravam senão poucos dias.
Seres engasgados pela lâmpada esmigalhada da
fadiga.
Porão de ossos raspados, podridão de vermes
ressecados, o vulto raramente manifesto de um sacerdote com sua litania obscena
⎼ astuta insistência da agonia, para que dali
não saíssemos nunca.
Os deuses não sabem mais por onde voltar a
crescer, dentro ou fora do homem.
Uma colmeia de vitrais e tábuas da lei, com
suas descargas elétricas e um jorro perene de barbáries e ideias fixas,
despertaram os demônios desvalidos e a primeira tempestade magnética de
manequins.
Desde então somos apenas uma ansiedade
torturada.
A evidência incontornável de crimes que jamais
teríamos cometido.
Poças de sêmen, castelos de plástico, mecânica
das chagas.
Luz cega do sobrenatural, realidades
fosforescentes arrastadas de volta ao catre, fisiologia do fracasso.
Mercado de carnes metálicas.
Poeira adormecida por um instante em que
esqueci meu nome.
Ventos sem súplica, marés sem desejo, um
tráfico de revoltas em desalinho.
A noite estranha tanta ordem.
Um emaranhado de fios sufoca a memória.
Uma taça de silício por eras passadas à beira
do fogo.
Um dia todos somos de outro mundo.
Até mesmo o hábito desiste de suas hortaliças.
A casa se fecha antes que seja habitada apenas
por estátuas.
O dia não chega a sangrar tudo o que tem para
contar.
A roupa limpa nos faz confundir a realidade.
Assim como a visita do peixe-espada, as flores
no jarro que começam a desenhar seu renascimento e os parques que enlutam as
sombras que se foram de modo inesperado.
Não esqueçamos de alimentar a vertigem.
O crime irresolúvel jamais a deixou de incluir
em sua agenda secreta.
Todos perdemos a razão, sejamos sombrios ou
heroicos.
11.
Quem sabe um dia o homem se canse de seus
limites.
Marés, lágrimas, anseios, cogumelos
disfarçados de enfermeiras, imagens alimentando um rebanho de idólatras,
ilusões fluviais, relojoarias de angústias com hora marcada para distanciar-se
umas das outras.
A febre guardando um disparo para cada nova
fabulação.
Um jeito de morrer submisso ao acaso repleto
de truques.
O universo todo pelas costas e nenhuma
lembrança do que sucederá amanhã.
As válvulas prodigiosas que nos levam de uma
fuga a outra.
A realidade sempre foi o blefe perfeito, um
modo sorrateiro de desacreditar as opiniões em contrário.
12.
As imagens saltam em minhas mãos alheias ao
tempo.
Para inúmeras coisas em nossas vidas
dificilmente encontraríamos um sentido.
Certa vez uma frase se perdeu em adornos
irresistíveis,
e não sabemos como retornar ao princípio do
labirinto.
Um viajante costuma conversar com o céu e a
água.
Os dias no deserto são inúmeros e mudam sempre
de lugar.
Em uns os arbustos levitam e improvisam uma
dança ancestral,
em outros as pedras se reúnem em um templo
pagão de metamorfoses.
As noites expressam melhor o que as cidades
perderam,
com suas divisas promíscuas repletas de catres
morais.
Por mais que se entregue a deuses de todas as
varas e distrações,
o homem não tem mais sua Ítaca, perdeu seu
quintal:
máscara sacramental, ângulo da terra a ser
lavrada, sombra impressa na tenda dos mistérios de seu amor.
O passado nunca foi como o imaginamos.
As dores se espantam de ainda causarem alguma
angústia.
Todos os espíritos são perversos, não importa
de onde fujam.
As leis mascaram a iniquidade.
Sob a sua tutela, os verbos estão marcados por
nós e anéis.
A noite queima por dentro até o último
elemento do mistério.
Nós nos viciamos em crises e já não
compreendemos a magia das transmutações para além dos conselhos práticos do
glamour e os tons dominantes da infâmia.
As imagens se apressam a corrigir o que os
espelhos não mais podem revelar.
Uma representação inconsciente do que somos é
tudo o que ainda teima em resistir.
Quanto sangrará a noite até que um arcano se
engasgue com suas visões fecundas?
13.
As trevas não sabem até onde imperar.
Os termos de sua obsessão convertem o
crepúsculo em uma escadaria de prantos com ruínas contratadas como modelos
vivos e uma pastagem de rogos eróticos rasurados.
Há um ponto em comum entre todas as
dilacerações.
Palavra escrita ao revés inserida no íntimo de
uma tecla que se repete até a dissuasão de todos os conflitos.
Graças a ela são iniciados os apóstolos de
todas as hegemonias.
O piano do caos e suas frases de efeito.
O bordão da ciência com seus jagunços
tecnológicos.
O conluio primitivo das vítimas.
A imagem a que aspira esse truque é a do
indivíduo se desfazendo de sua originalidade.
A justiça dispensa julgamentos.
A fé dispensa vigilância.
A euforia dispensa consumo.
Tudo perde naturalidade quando as trevas não
sabem até onde prosperar.
Eu me fiz de eremita para melhor compreender o
outro.
Os céus transbordam de culpa quando começamos
a identificar as frustrações de cada um dos nossos deuses.
Os votos se disfarçam de impossibilidades
felizes.
O mundo é improvável e santificamos a revolta
como um erro carente de purificação.
Os símbolos que restaram nos enchem de
orgulho.
Somos um centro de irradiação permanente, até
que as trevas descubram o que querem de si.
14.
Não nos culpemos pelas desatenções do inferno.
Nossos méritos são quase sempre mais sagazes.
O louco constitui um modelo privado de si
mesmo.
Ele observa a própria silhueta ausentar-se
de um mundo regido por ilegíveis coordenadas.
O louco imprime e pende em palmas invisíveis
o método com que distrai a evolução humana.
Método que se destina a abolir as
contradições.
Qual veredito equivale confiança a mesquinhez?
Julgar é o ardil que nos rouba toda a energia.
As experiências se deixam confrontar pela
inocência.
Os ratos debaixo da cama estraçalham um cesto
de promessas e esperanças, e se riem como
nunca.
Os ratos comeram o sol e a lua, comeram o
pasto
versado em estrelas e a prática da verdade
pessoal.
Os ratos roeram os estribos dos corcéis em
fuga.
A criação confiou ao louco sua última chave.
Ao atingir o cerne da linguagem mais secreta,
logo descartou o adjetivo e lhe abriu mil
portas,
cada uma delas convertendo-se em uma torre,
casinhola apropriada para os tabus
negligenciados.
O louco disse a Deus que não temesse ser quem
é.
O tempo, afinal, é sempre oportuno e o espaço
inútil.
As sombras jamais souberam a que corpo
regressar,
e a morte não faz ideia do abismo em que se
meteu.
O louco melhor do que ninguém sempre soube
que o homem finge a imagem de sua tragédia
infinita.
15.
As páginas cegas do espelho demarcam o livre
arbítrio dos cárceres.
Personagens plantados em nossa vida relutam
ante a indiferença.
A conveniência embaraça as culpas, retalha a
fé, diverte-se com a sordidez de seus vislumbres.
Pérolas flutuam como inocentes falsificações.
Perdas desaprendem a gravidade.
A pele se retorce ante a incompreensão de seu
desejo mais íntimo.
O homem se tornou supérfluo por excesso de
utilidade.
O mal abençoa nossas preces.
Este é o momento em que nada mais está vivo
dentro de nós.
Este é o momento propício para unir todas as
forças e desabitar o ser.
Este é o momento de dizer ao outro que não se
culpe por nossa incompreensão.
Não nos aceitamos.
Não nos identificamos.
Não nos revelamos um autorretrato de nossa
imensidão espiritual.
Sobramos como as cartas não solicitadas em um
jogo.
A trilha autônoma da beleza é um recipiente
vazio.
A liberdade é qualquer coisa que se diga a seu
respeito.
Lingerie ensanguentada, ritual de
esquartejamento, coração exposto.
Eu fui o transporte de todas as chagas de um
corpo a outro.
Eu fui o teu vício místico e a tua morte sem
reserva.
Eu fui a tua última emoção e olhei bem em teus
olhos enquanto te contaminava.
16.
Até aqui não sobrou quase nada de nossa
humanidade.
Pátio de cinzas, tabela de preços, dossiê
secreto.
Uma sombra que vaga pelo planeta com sua
coleção de fronteiras sofre ao recordar a vidente que lhe disse que um dia não
teria mais a quem trair.
O espírito se apega ao invisível como o cão ao
movimento impreciso.
A noite não chora pelo que perdeu, mas sim
pelo que ainda está nela.
A noite tem uma colheita reservada à hora
certa.
A noite desconsidera os hábitos incertos.
O espírito blefa com os bolsos pesados de
areia.
Um homem emoldurou a nudez de sua mulher e
sonhou com um mundo bem simples.
Uma ilha mágica, que compreendesse a extensão
de todo o arquipélago e desse forma ao convívio das desproporções.
Os deuses já não recordam quando errarão pela
última vez.
Este homem por três noites foi supliciado ao
limite de uma confissão.
Seus carrascos sempre julgaram que uma metade
sua viria interceder em seu favor.
A terra está coberta de domínios.
Provisões contaminadas, medicamentos
controlados, uma convulsão de investimentos.
Empresários e mercenários varrem todo o
fermento do mal-estar.
A desventura é a última réstia de uma fraqueza
humana.
A sombra de um casebre improvisado para
fortalecer os grãos do espírito.
A sombra de um dia marcado para ser imensurável.
O homem é esta sombra.
Não importa a extensão da enfermidade de seu
sonho.
Esta é a sombra absurda.
Este é o homem intolerável.
Estes são os altares do caos.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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