Não sei se em outro campo as coisas me
chegariam com a mesma facilidade com que elas são atiradas em minha pintura.
FRANCIS
BACON
DORES DE NADA
Um corpo marcado a arpejos.
Dor engolida como oração,
súplica inversa onde o que está fora quer
entrar a todo custo,
participar do teatro de uma dor referida,
corpo herético a recusar o suplício
dessangrado despido de apreço:
um corpo hóstia
anunciado em circuitos abertos e fechados,
mortalha ausentada com vislumbres de
sensualidade.
Corpo arrancado de si e mesmo assim gozoso.
Turvação de princípios,
a dor passando por tudo o que jamais
imaginara.
Um juízo reservado de quedas:
o inferno chega a ser divertido se identificas
o olhar dos suplicantes.
Um corpo que ainda fale e diga: só eu julgo,
onde nada resta a ninguém,
parvoíce igual em congresso ou prostíbulo
algum.
Todas as dores são extensas.
A facilidade com que falamos em morte se esvai
quando a mesma nos toca em dor
e dor a única que entendemos,
na própria carne.
A dor alheia é uma metáfora da dor:
o corpo invejando-se em partes não condenadas,
tecidos aviltados em campanha,
que ideia temos desse cadáver que começa a
empestar?
O corpo que vi
pode ter sido do diabo
– atividade duvidosa essa de desvelar
máscaras.
Caímos de tantas fraudes
que já não cabe a queda vincular-se à verdade.
Foste uma dor única,
arremetida contra a face inorgânica do ser.
Uma metáfora da dor doída sem rosto.
Impressos diziam que nada dói mais que o silêncio.
Havia um acervo de corpos espoliados,
dores caídas do âmago de anjos,
modelos recortados sobre a pele gélida de
mesas na morgue.
Já não se pode pensar em onipotência de
espécie alguma.
Em meio ao mais dolorido silêncio
corpos se apropriam de sua inutilidade,
buscam na ausência um argumento,
salientam com a frigidez ritualística
que o dentro ou fora da dor é a mesma dor:
um corpo levando consigo todo o inferno de que
se lembra.
Ao reler a ordem para o sacrifício
um corpo depara-se com outra dor:
a repulsa cruel a toda beleza,
formas corrompidas que se guardam na memória,
testemunhas de misérias sobrepostas.
Impõe-se a verdade de que merecera ser punido
e dilacera-se alheio a qualquer dúvida:
Não vejo recusa
para tal argumento,
repete o corpo sem que haja argumento algum,
crendo-se retornar ao princípio,
deus banhado em sangue,
dor despojada de si apoiada em outro mistério:
à beleza o que
lhe é devido.
Um corpo se pinta com letras que soam
desencontradas,
caligrafia bastarda que não se revela de todo:
fraudes congregadas,
a mínima dor em que se possa acreditar
tornar vergonhosos alguns gestos,
símbolos empilhados à espera da recolha de
lixo:
por onde passa um corpo defeca suas lástimas,
perdas adicionais que lhe tornam mais confusa
a imagem.
Curvas lúbricas são expostas
e cascos e rabo e asas em plumas desalinhadas,
um corpo tragado pela memória em seus mais
torpes rituais
entre sombras excitadas com a leitura dos
manuscritos,
carnes refeitas em letras flamejantes:
o que se masca é
o que se cria.
O perverso é demasiado simples:
escava a forma apropriada de cada coisa,
opõe-se à influência do previsível.
Sombras inspiram-se na luxúria de epigramas
profanos:
bem dentro de si
o homem encontra-se agachado estranhando que ainda esteja ali.
Um corpo será sempre inacabado.
Não haverá deus que o desnude ou diabo que o
vista.
Nascem-lhe mais genitálias do que asas.
Alterna modelos criminais entre risos e cínica
frieza.
Um corpo com seu traje cômico de tragédia
interrompida:
dentro da veste
em que se esconde nada mais lhe dói.
Deriva ulterior, um corpo entregue à
própria reverência
sem que morte alguma mais lhe valha
sentido,
Formas expelindo a si mesmas,
camuflagens corrompidas aos olhos de
provas mínimas:
um jogo de sombras resignadas
estudadas em classe,
curso de pilhagem,
retórica dos estilos pitorescos de
cada uma desfazer-se de si.
Um ferreiro molda-se em árvore que canta um
lamento de ave condenada ao mergulho de bestas com seus fatos básicos expostos
no dorso de um peixe cujo salto fora d'água descreve a agonia de um universo
que em vão procura por si no ferro que empilha o ferreiro para moldar-se em
árvore.
Pilhagem de corpos,
bagaços de membros despojos de seios tendões
ideias…
Uns risos agonizantes gozos interrompidos
máscaras sem assunto ou bordão…
Um corpo assim tão propício à farsa
é o que mais se encontra em empórios
de arte e ofício:
um mercado de corpos para a melhor das
quedas.
Ignora-se no corpo o que o condena ao hábito,
o que o torna um cárcere pomar regueiro de
dores correntes:
rostos ausentes no combate às máscaras,
dilema de pequenos papéis descontínuos,
evasivas que se
arrastam pelo cenário de carnes suspensas e forquilhas com veias expostas.
Toda intimidade parece intrusa,
a mesma fala recebida todas as noites como um
vaticínio a desgastar-se.
Um corpo entregue ao pecado de ser apenas o
que conhece.
Pescado de repetições de gestos atribuídos a
si.
Origem confusa do que já nem sabe ao certo se
é dor,
removido de cena,
desmilinguindo-se ao ser arrastado,
desfeito em mística e com uma imagem saturada
no canto do olho.
Um corpo lascivo percorre os ladrilhos
da noite.
Funde-se a mil outros em
surpreendentes descrições:
a monja a castigar-se para expulsar de
si o peludo,
um jovem astucioso entregue aos apuros
da sorte,
falos esculpidos em versos e acordes
dissolutos,
meninas tocando-se enumerando formas
de prazer,
o sangrento assassinato do faxineiro
de uma abadia,
cadáveres sobrepostos na agonia da
representação,
imagens estriadas por uma avidez ou
despeito sutil,
muros pichados com a obscura denúncia
do caos,
leitos imundos onde amantes apenas
contagiam-se,
genitálias mascadas em rituais e logo
abandonadas.
O que há de mais herético em um corpo
é que saia
de si a frequentar-se em outros corpos
que o negam.
RUÍNAS EXAUSTAS
1.
Dores de memória confundindo o vazio.
Rostos queimando enquanto te esforças para
lhes recordar os nomes:
Lucíola
Anete
Eugenia
Aspectos deformados de furtivos deleites,
tardes entregues aos lábios da pálida Eugenia,
dorso entrecortado de beijos,
Anete cantarolava enquanto um pezinho me
percorria toda,
aos pulos a alegria acendia os olhos de
Lucíola ao caminharmos pelo bosque,
limite fortuito do amor,
por terra caem as folhas da mais esplêndida
primavera.
Jamais compreendemos o alcance do mundo
visível.
Um dia a língua de Lucíola despojada em minhas
coxas
e depois sabê-la espancada até a morte pelo
irmão.
O triunfo da realidade será sempre mórbido?
Toques abrasados das mãos de Eugenia
extraviando-se em mim:
não é o fim, meu
anjo, bem aqui onde suspiras, não é o fim,
dizia-me com olhar travesso,
tardes inúmeras com Anete em uma banheira de
hotel,
enlace de entregas,
sagrado beijo pubiano,
amava-me com tal exasperação a cada orgasmo
renascendo mais do que qualquer uma de nós.
O marido lhe pôs o cano da arma na boca várias
vezes.
Sem coragem para o disparo se punha a chorar a
pedir-lhe perdão por tanto ciúme.
Anete e Eugenia estiveram juntas comigo uma
vez só:
três crianças esquivando-se do mundo em uma
tarde de gangorras,
vivíamos uma fantasia primitiva,
os corpos de Eugenia e Anete foram encontrados
nus e amarrados um ao outro,
único disparo em cada fronte:
eu estava certo
que ela me traía com outro homem –
foi tudo o que disse aquele homem que me
privou de dois amores de uma só vez.
Não adianta indagar-se sobre as formas do
fogo.
Nada nos custa tanto quanto o instante,
mas em nada se explica ou requer consonância.
Talismãs e ruínas são imagens distorcidas de
uma enfermidade do espírito:
o que desejamos acaba se convertendo no que
perdemos.
2.
Tinha-me em seus braços na escuridão
insinuante de um quarto de hotel às duas da tarde,
eu lhe pedia socorro entre almofadas e
lençóis,
nossos corpos mordendo-se de desejo.
Agarrava-lhe os cabelos com desespero ao
sentir a língua mergulhando em mim.
Rasteava-me –
por aqui passaram
feitiços divindades simulacros,
tua carne é um
fósforo,
nela encontro
fiadas as imagens de um renascimento –,
Eugenia não via em meu corpo nada de apócrifo,
lia em seus liames secretos a veemência com
que estive com homens,
o mito extraviado desse amor comum:
põe a língua bem
aqui é tudo o que desejo…
Chamava-me heroína,
um risco duplo de saber a qual obscuridade se
pertence,
atenta que o acaso não vem em nosso auxílio.
Mesmo alguém que não seja privado de nenhum
sentido deve saber a quem sacrifica:
uma mulher me espia pelas fendas mais secretas
de meu desejo torna minha pele um pergaminho repleto de passagens secretas
momentos cifrados talhados por estímulos que vão além da alucinação línguas
como plumas que me descerram a cortina de um teatro de sacrifícios as súplicas
por feridas mortais hábeis interjeições lamentos infalíveis uma multidão de
línguas tocando o revés de qualquer sofreguidão
ah minha putinha…
Eu disse a ela que nada acabava ali,
mas nunca soube o quanto essa paródia se
insinuava em nossa vida,
nem sei se tivemos uma vida.
A memória recolhe momentos marcados por todo
tipo de ilusão.
Eugenia me dizia que eu era uma suspirosa,
presa a leituras extravagantes do mundo,
uma mulher fascinada pelos caminhos
entrecortados subterfúgios enigmas.
Não tenho como lhe dizer agora que estava
certa, tão esquiva que sempre fui,
tão somente morta não me escutaria.
3.
Lia meu corpo confundindo-lhe as estações,
acertava caminhos sem vestígio algum,
atava-me e pedia licença para um beijo na
fronte.
A todos os seus caprichos tornava-me
compassível,
astuta e bela com uma língua a desenterrar-me
recônditos desmaios,
em meu corpo concebia todas as táticas
persuasivas do desejo,
tornava-me seu projeto inesgotável de luxúria:
o que sentes
quando te toco bem aqui?
A voz de Lucíola vinha coberta de viagens,
tesouro acumulado no estampido de abismos,
voz de enigmas que duelam entre si.
Encontrar-lhe o corpo recusando o cativeiro da
morte despedaçou-me toda:
o irmão lhe havia batido tanto,
eu quase podia ainda ouvi-la:
prova em meus dedos
o sabor de tua ventura,
Lucíola escapando-me por entre frestas da
inquietude.
Sabia fazê-lo,
preparar uma ceia de desvarios.
O corpo agora sem dissuadir-se da tragédia.
Tão quieta, impossível ser a mesma:
jamais quero ver
a vida por uma última vez.
Lavo-me o rosto reconheço a idade de algumas
rugas no espelho tenho andado a tomar vitaminas sinto-me cansada de mim…
Há rotina demais no mundo,
postos de justificação para tudo.
4.
Alcançar a penumbra que o leva até sua
casa,
sombras mudas molestadas pela noite
furtiva,
noite que não busca senão ausentar-se
de si.
Um corpo ou outro a testemunhar apenas
dor,
inflexível queda desfalecida na farsa
do sudário.
Levamos conosco todos os corpos
anunciados.
acompanho-me até o que pretendo
venturoso:
acaso não andará Deus por toda a casa
a tecer
uma malha de dilemas, excursão de
angústias,
olhos plantados nas dobras insuspeitas
do ser?
Quais vítimas ou mensageiros darão
pela arte
o que ela presume ser a essência dessa
vida?
Olhares desfigurados, sigilos de rara
habilidade,
que estamos prevendo senão o que já
vivemos?
5.
Não sei o que diabos pode ter havido comigo.
Talvez esteja apenas cansada de tanta perda,
vigiar a fadiga por vezes desorienta.
Os bastidores da agonia gozam de prestígios
bem pouco originais.
Os amores que fui perdendo não me ensinaram
nada.
Suplicantes generosas, não pude dar a elas
muito de mim.
Não me foi fácil vir a ser a mulher que
desejavam.
Necessitaria uma escolta de deuses para
manter-me a mesma.
Mas haveria algum deles libertino interessado
em meu ofício de indecisões?
6.
Corpos transfigurados dissolvendo-se na
própria dor,
visões abandonadas simulando um rumo distinto,
toda espécie de requintado divórcio entre ser
& coisa,
imagens desvalidas,
braços púbis calcanhares,
o relógio da dor molestando o enigma rebentado
dos corpos,
fragmentos casuais de Anete Lucíola Eugenia,
porções de terra divisadas no manancial da
neblina…
Agarro-me a tais fatias como quem se entrega a
um refúgio,
mas desprendem-se do nada,
são a complexão ilusória do vazio.
Vejo-me então com esse espólio espatifado de
meus amores,
omoplatas carcomidas polegares coxas,
imagens destinadas à persuasão da agonia.
Rezo para que sejam alucinações.
Não são.
Precipitam-se como peixes importunos que
extraem do mar toda sorte de profanações.
Não vejo mais nenhuma delas.
Apenas a feitiçaria desafiante dos bagaços de
seus corpos.
A memória não pode ser a casa de ninguém.
Recolho alguns desses despojos:
mamilos devotos frontes perfuradas pulsos
silenciosos,
são pistas de meu tormento,
guardam em si não o segredo do que vivi mas
antes os vislumbres de um porvir sentenciado:
a memória lapida os pormenores da
consequência,
prepara cadáveres para as honras mortuárias.
Sinto-me uma vítima de seu inesgotável
capricho.
7.
Um dia amei Eugenia amei Lucíola amei Anete.
O curso de uma vida secreta não teme senão o
malefício do preconceito.
Somos todos devotos da normalidade,
uma sala de ruínas que guardamos como o bem
mais precioso da espécie humana,
a plenitude sob custódia,
incorruptíveis os ofícios que orientam essa
vigília,
pendentes as máscaras judiciosas quando
acorremos à fidelidade do conceito.
Apenas a dor anima o homem,
a dor transfigurada na impostura da desforra,
qualquer que seja a condenação que celebre.
Na dissertação desse ofício haverá sempre um
responsável pela minha dor.
Jamais serei eu mesma a culpada.
As mulheres que amei foram mortas por estarem com outra mulher.
Novos ofícios ambientados no jogo caseiro de
ventura e desventura.
As três foram violentamente assassinadas:
Lucíola Eugenia Anete.
Devo agradecer que me tenham deixado viva?
DÁLIA DO CORAÇÃO NEGRO
1.
Três eram as moças de Dália.
E tocavam-lhe o corpo de incontáveis maneiras.
Laços, plumas, pequenos instrumentos.
Dália exalando gemidos, a contorcer-se nas
mãos das três meninas.
Lábios, dedos afiados, seios se multiplicavam
com mamilos inflamados roçando-lhe a pele.
Esvoaçante rito de descobertas, umas tantas
doloridas, por vezes Dália sangrando.
As três moças cuidavam de tudo: não lhe davam
descanso por toda a noite, o corpo atravessando febres, letargias, banho de
óleos.
Dália coberta de beijos, as três línguas em
súbitas reentrâncias, gozo e repulsa.
Em um instante a morte lhe soprava um verso de
René Char: disciplina, como sangras!
Refeita, dizia o quanto adorava as meninas.
Riam juntas, encharcando o quarto com um riso tenebroso, corrente de sibilantes
frases de riso enroscando-se no espinhaço da noite.
Dália reconfortada pelo vinho daqueles corpos.
2.
As primeiras vozes vieram com o negro sol,
despojadas sobre os desertos do corpo.
Vastidões das misérias humanas, Dália cativa
de murmúrios, quem a escuta?
As vozes não ouvem sequer o que falam.
As três meninas dizem [sabemos]: morte morte morte, porém se espalham por
destinos distintos.
São flores queimantes na carne de Dália.
E racimos de gozo e hóstias danadas e pedras
tocadas por uma invisível solidão.
Querem o que Dália oculta de si: a perversão
tremenda com que o tempo se mostra espaço, o horror de máscaras que sustentam o
inverso do que são.
Um personagem assim não sobrevive sem as
fiandeiras cruéis do destino.
3.
O primeiro corpo de Dália encontraram-no em um
roseiral, ferido de amores inconcebíveis, docemente beijado por espinhos.
Havia um tu
és nossa tatuado logo abaixo dos seios.
O que fazer senão seguir-lhe o silêncio,
a dor agora desfeita, o tráfego da ausência?
Talvez não se possa mais que meditar ante o
assombro desse corpo, decifrar-lhe o alcance, a tateante queda de seus trapos,
carne circular do espanto, carne do ardor,
asfixia do desejo encerrado em versos.
Dália, uma delícia gozada na escuridão,
um lago de sangue, a imagem começando a
desesperar-se, úmida ainda, ante a fiança de vozes que lhe circundam o corpo.
Uma morta anuncia a primeira trama do destino.
Senhora conosco, quais bênçãos as de hoje?
4.
Dá-me teu corpo agora, Dália.
Não posso esperar pela segunda Morta.
Nudez abrigada por cubos de gelo,
mamilos afiados e pelos bailando em tremores
contagiantes.
Suores mesclados à luminosa escritura do gelo,
desejo-te agora e beijo teu corpo inteiro.
Ao penetrá-lo me desfaço de tudo em mim,
outras sombras falam, outros volumes se
mostram
e tudo se modifica em nome do gozo que mina de
uma urna de estrelas vazante de espectros latejantes festim de esponjas a úmida
plateia de teus impulsos Dália Dália alucinações de puro drama a pele por
dentro um ardor de entranhas teu sexo aturdido me devorando à sombra do
espinhaço quebrado da noite
oh Dália,
tudo o que mais amo em ti:
a floresta de teus gemidos,
o júbilo de tuas mãos,
um martírio de ânsias explosivas,
não posso, meu amor, não posso
deixar-te à espera da outra Morta.
5.
De joelhos,
ante o suplício da memória:
lábios soletrando a dor ainda presente.
De joelhos,
ante o oratório da queda:
vozes decifrando o obscuro em cada cena.
De joelhos,
ante a expressão de tua ausência:
corpo desfeito mil vezes e aqui refeito.
6.
As três mortes inquietas completam um
círculo medonho: Alfredo indaga acerca das formas assumidas em cada rito.
Fúrias de barro, estatuetas revoltas, andaimes que despencam quando da visita
de fantasmas. As três sombras que retornam ao corpo do amante, meninas
assanhadas que evocam uma ciranda de travessuras, adivinhações da carne e do
espírito. Dália em todas elas e Alfredo a dar-se conta da própria cegueira.
7.
Três eram as moças de Alfredo.
E em nome de Dália iam e vinham pelos desmaios
do tempo.
Como chamá-las senão como sempre: morte morte
morte?
Repetidas vozes, sombras delgadas, três tramas
refeitas, seis mãos furtivas e um mesmo ventre sorvendo-se entre espelhos.
Alfredo recurvado sobre si, habitado pelas
meninas febris que lhe tocam todos os instrumentos, amparo de quedas,
reconforto de uma sombra em outra, pranto ante o mito perdido:
três vezes Dália, três vezes Alfredo.
8.
Roedores confabulam em uma ceia de papiros.
Contar é existir, entre guinchos sarcásticos
deixa escapar um deles. Mortos os amantes,
que amor
conhecerão agora?, indaga um
outro.
Divertem-se com alguns manuscritos os ratos:
Dália não dava repouso a Alfredo, mostrava-se
mãe amante irmã e o tolo deixava-se seduzir
pelos caprichos vorazes de quem julgava amar.
E logo outro apressa-se a roer e contar
a própria versão: Alfredo tinha visões, um mapa
de precários
vultos que lhe atormentavam.
O mais faminto: o débil inventara as três moças.
E seguem roendo pedaços a mais, os restos
da história, refazendo-a sem nenhum pudor.
9.
Teus demônios favoritos começam a
dançar, Dália. Não mais as moças perenes, ninfas ou parcas, mas sim vultos
mesclados, imagens fétidas, tambores suando cânticos, três bestas no açoite de
falos e teus lábios mãos ventre, mulher errante, azeitados pelo enigma da
noite, resumem a sagração de todas as dores. Teus demônios em cascos pisoteiam
o fervor das entranhas da terra, a concha vulcânica que expele ódio e amor, o
bem e o mal, e tudo em ti é graça infernal iluminando o tempo além do tempo,
Dália radiante com suas máquinas de gozo, rindo-se do próprio corpo
estraçalhado por incógnita delícia, o rosto de Alfredo saltando do olhar
daquelas três visões, indo e vindo, como uma lâmpada falhando, esboçado pela
memória ou induzido por réstias do desejo, o rosto sussurrado em meio aos
requebros da esfinge e uma orgia de archotes.
10.
Um dia abriu a porta e deu com o
vulto,
aquele homem lhe sorrindo
entrecortado,
como se estivesse ciente de um fardo,
ela calada o fitava, imaginando
quantas
vezes poderia tê-lo nos braços, ele,
intérprete de uma vida tão dispersa,
ela guardando consigo gotas de sangue
de um antigo amor, o tempo inteiro
a indagar-se o motivo daquele
capricho,
e ali, diante daquele homem, um clarão
a atinge e lhe faz ler a caligrafia
veraz
do destino, à sua frente mostra-se
quem,
a qualquer custo, ela deveria matar
com o sangue envenenado do amante.
11.
Ao longe se vê uma grande festa.
Selvagens golpes da luxúria sangram a paisagem
de sóis que retornam ao sonho de cada personagem.
Três músicos acendem uma dança audaciosa.
Dália agachando-se sobre o corpo de Alfredo,
sombras gemendo desesperadas por novas formas.
Como aprofundar o batimento dessas árvores,
o tenso agulheiro onde se agitam e gozam e se
retorcem as árvores que são pássaros e Dália e Alfredo?
Terão ali ocultado uma biblioteca de
tormentos,
os livros secretos do abismo, com pés e mãos
atados para que as visões não sejam jamais tocadas?
Incontáveis eu te amo foram pronunciados:
a sopa de sarcasmos dos ratos, a pasta de
ervas das meninas, acordes desfigurados, encantamento.
A noite de Alfredo cabe no ventre de Dália,
e se agita em suas ramagens, noite possessa
vestida de vozes em íntimo contato com outras cenas.
A noite de Dália avança, penetrando a si
mesma,
transparência afinada pela dança, entoando a
nudez ardente de palavras que são o segredo cobiçado,
uma vez mais eu te amo em vigília de chamas,
criaturas de espanto que saltam iluminadas
pela mansidão desse amor contraído em plena queda.
12.
A morte esteja comigo, senhora dos
versos.
Serei o mago, o fantasma, o peregrino
e beberei a seiva das danações, o
caldo
de vísceras de palavras enterradas na
areia,
sêmen sacrificial, azeite de orações,
tudo
o que me sirvas na cabaça de teus
ritos.
13.
Meu corpo grita dentro do teu: quem sou?
E um eco nos visita: suas sílabas são minha água meu pão sob o relâmpago, versos de
Ludwig Zeller que há muito vivem comigo, como é possível que estejam ali, em
meio ao recorte de nossas pernas, ao estrondo de gozos de nosso silêncio?
Como te moves, memória errante?
Em que derrame de abismos me localizas?
Quanto mais a amo, mais me perco e me atrai o
fervor de carnes abertas, o desfiladeiro dos lábios, a bunda golpeada pela
língua de espelhos que atravessam a plumagem delirante daquela mulher,
Dália encarnada em quem me toque,
presença inúmera que ainda assim me suspende,
com um alarido flamejante – quem sou?
–, gorjeio de náuseas, capítulos deixados por ler, rostos submersos no carvão
iluminado dos mamilos, pequenos pássaros bicando as migalhas do relâmpago,
ela,
sempre ali e contemplada por um bulício de
sílabas,
as mesmas de Zeller, revoada de raízes, manancial
de vertigens, copos de terra para um brinde acumulado de desmaios, a tudo me
devolve o tambor enlouquecido no deserto: quem
sou?
E uma vez mais,
enquanto me arrasa de prazeres.
14.
Agora tens enfim tuas letras
e uma outra forma te invade o ser.
Agora me tens nos braços
e meu corpo insiste em romper-te
os laços com a dor do tempo.
Reviro-te em murmúrios,
Dália,
e entre curvas me
enfeitiças.
Agora dominas tudo em
mim,
e estou fartamente
entregue
ao lampejo de
gozos que me guia
até o mais
recôndito abrigo
de teus
ossos tua carne teu nada.
Agora
percebes o que sempre houve:
a
magia de sermos um o outro.
UM LIVRO DE ÂNGELA
1.
Livro caído sobre o espelho,
o bastante para que Ângela se pusesse a reunir
as imagens todas que a memória lhe permitia.
As páginas não eram propriamente um abismo.
Mais do que fantasmas saltavam da embocadura
de seus cantos,
anatomia de centelhas,
versos refletindo o que há minutos nem se
poderia imaginar.
Porém um livro caído sobre o espelho
pode não ser de todo nem livro nem espelho.
A grande utilidade da memória é não interferir
em cascalhos e avarias do lembrado,
deixá-los reunir as pistas do que se presume
essencial.
Ao ir de uma página a outra do espelho, Ângela
anotava as guias,
recantos,
parágrafos entrecortados,
corpos empilhados,
ilustrações da agonia.
Esmerava-se em seus apontamentos.
Há um momento em que a vítima se mescla à
natureza do crime.
A reação pode vir a ser o pior de todos os
males:
aguardar o morto chegar para dar entrada no
processo,
mesmo com o livro caído sobre o espelho.
2.
As lágrimas de Ângela sugeriam que não era tão
longa a distância entre o ocorrido e o motivo.
Apenas uma morte lhe persegue.
Como encobrir a queda de um livro sobre o
espelho?
O que lhe há de revelar é toda a existência
além da quarentena:
desastres discrepâncias capítulos
simplificando dores intensas…
O espelho nos oferece uma metáfora de
exageros.
Não vemos tudo aquilo.
O que se reflete está além do visível:
abismo impresso nas dobras da memória.
Ângela folheando-se em busca de um elo entre
espelho e livro,
rabiscos transfigurados da ansiedade.
Rascunha metamorfoses a pobre Ângela:
…o que há de ser o verso o bálsamo a alegoria
essa animação de anseios a ideia que nos foi implantada de uma salvação
mesclada ao desmaio desajuste falseamento a arte decaindo em sua expectativa
humana anotar padrões de comportamento mas sem que se possa remediá-los anotar
o quanto estamos nos perdendo em engodos ah mas essa tem sido toda a nossa
existência um povo dedicado a anotações…
Por quanto tempo?
3.
Ângela reunida em fragmentos de suas dores.
Realidades pendendo de molduras corroídas,
primeiros recortes de memória,
colagens enigmáticas com anjos mordidos por
Cérbero,
precária obstinação onde tudo se crê
retornando ao que jamais fora possível:
reflexos infinitamente gastos,
tesouras cegas,
anotações à margem sem propósito algum.
Esse compêndio de falhas plantadas com astúcia
na trilha deixada por uma estirpe de sombras alucinadas,
flagelos do desejo,
inventário de renúncias,
arca de esvoaçantes cicatrizes,
esse favo de almas que sugere o lance de
escadas no olhar de Ângela,
o que nos dirá?
Cidades que percorremos em busca do inferno,
imagens sangrando em parágrafos ilustrados por
uma anatomia assustadora,
tantos versos saboreados pelo carvão,
o que essa escória permissiva da agonia nos
dirá?
4.
Ao caminhar pelas ruas de Ângela o busto de
uma celebridade local mal disfarçava a indignação: quantos livros não são encobertos justamente pela leitura?
Nossa vida está a repetir-se de maneira
impensada,
alguns pronomes foram engolidos ou
descriminados.
Quando indagamos para onde vai o pensamento depois que o pensamos sequer percebemos
que já o perdemos enquanto o pensamos.
Colecionar híbridos como se fossem anomalias,
como quem serve por iguaria rara salada de
mestiços e travestis e a ressurreição como prato do dia.
O jovem discípulo de qualquer onda ao ler
Ovídio sente um choque e indaga ao mestre de turno: a transfiguração deve ser mesmo lavrada em cartório?
Já não sabemos a que distância estamos de nós
mesmos.
Esse pseudo mito da desrazão foi convertido
por intelectuais e artistas no oportuno charme de uma falta do que dizer.
O livro como o pensara Vigo
– lugar onde se realiza a poética do universo
–,
foi convertido em um bestiário de lesmas
mancas,
cardápio de excentricidades onde são servidas
pupilas de ostras em fatias e lábios gratinados de poetas surrealistas.
O passo que demos além da modernidade não pode
ser um apêndice dela mesma.
Todos nos tornamos colecionadores vulgares de
uma precária visão da utopia.
5.
Ângela me disse um dia:
Se não andasse por aqui toda essa sorte de
malucos eu não me sentiria a metáfora concêntrica que imagino ser.
Um deles escreveu na abertura da própria
exposição: tenho dedicado a vida inteira a um cuidado lapidar de jamais ser
entendido.
Indexar verbetes aos motivos da morte não a
evita em circunstância alguma.
Estamos sendo atropelados por uma angústia
sofismável do conhecimento,
tapeados pela parvoíce
dos tolos providenciais que estão tapando o
sol com uma peneira.
6.
Escrever assim em quebradiço,
dando a falsa
ideia de ser nada.
Pender para um
ponto ou outro,
mudando de forma ou de olhar,
pingando uma
imagem ou duas,
tornando o tolo
em santa realeza,
glossário de ideias mal defendidas,
crendo que dure a
geometria…
Nem todo um livro
de Ângela
recolhe essa anatomia desfigurada do desejo.
Há algo que lhe escapa
como se pensássemos na evolução de um mesmo
dilema:
somente a impostura garante o sucesso?
Estamos condenados à taxonomia?
Pensemos um pouco que seja:
toda a arte não passa de intencional
catalogação de dilemas?
Não abrimos um livro ou ouvimos uma canção ou
deitamos o olhar sobre uma tela senão como vítimas de uma torpe estatística?
E com que propósito defendemos o trâmite das
profissões, o amor supostamente entranhado, a regalia dos filhos bem
encaminhados?
Em que espécie de farsa nos empenhamos tanto?
7.
Uns pequenos corpos amontoados,
ossadas em desalinho,
retalhos de sombras chamuscadas,
pontas de espectros evocados,
genealogia de fantasmas…
Ângela recolhendo diagramas mitologias
amuletos com marcas de dentadas,
trapos de espelhos,
lápides arranhadas,
mundo despedaçado e recheado de angústia,
anima intoxicada…
Que espécie de veneno saboreamos embebido em
sofismas?
Sentei-me a seu lado a cabeça recostada em
páginas raramente visitadas:
corpo descrevendo o abismo,
broto de quimeras,
mudas de um desejo que se refaz.
Ângela me oferta a caligrafia de suas
vertigens,
encrespa-me enquanto perdura,
é apenas o instante,
e quando lhe abrimos as vísceras não há
semântica que nos leve além do instante,
transfigurado ressurreto melancólico derruído,
porém aquecido pela mesma complexidade:
a dor do instante.
CATÁLOGO SECRETO
Algum dia eu poderei recordar o que houve
aqui. De alguma maneira serei Olívia, o corpo fluindo as múltiplas formas que
assumem diante de mim as esculturas de Antonio. Talvez apenas suponha tratar-se
dela, que seja ela a reconhecer-se em um breve gesto meu. Algo como a simples
menção de um sonho, do que nos desperta. Importa que sejamos tão reais agora,
se não vamos nunca além de nossa memória? Tê-la esculpido alguma vez faz com
que eu me sinta hoje tomada por suas mãos. Antonio com meu íntimo em bronze.
Não desejo mais do que ser Olívia: o que supunha fosse e o que lhe desvelou
Antonio. Sou-lhe então completamente a matéria sonhada que se refaz a cada
olhar. Decerto soubera bem antes: o que hoje se revela, já o somos há muito.
Era seu destino converter-se nas formas que ocorriam ao escultor. Reconheço-me
então em tudo o que vivera. Ao tocar em mim Antonio sinto que não requer senão
outras linhas, outro movimento.
Quem serei nesta noite entre sombras
tão íntimas, erguidas diante de mim como um canto? Sei que busquei seus traços,
o apuro do bronze em sua pele. Por mais de uma vez Olívia dissera que o que nos
unia era o espanto. Nada lhe afligia. Creio que dava a todas as coisas um melhor
sabor. Encomendar-lhe o espírito ao bronze não terá sido inconcebível. Comigo
conheceu apenas alguns crepúsculos gastos pela amargura. Eu a amei com
fatalidade, antevendo cada espectro de nosso rompimento. Sei agora o quanto ele
mudou as formas de meu canto. Não será tarde, já que a reencontro aqui tantas
vezes à minha volta. Partes suas: braços vultos ancas. Não de todo fragmentos.
Olívia infinita recuperando-se em cada mínima agonia do bronze, ansioso por
contá-la. Mesmo que a tenha perdido, guardou para esta noite um último
encontro. Interrogo-me então o que posso desatar senão outro labirinto da
memória. Olívia reunida em trinta esculturas. Eu perdido de mim infinitas
vezes.
Então haverá uma porta e outra e muitas mais,
inumerável a extensão de sua secular
investida.
O passado composto por estranhas partituras
que emaranham seus átrios e seus porões.
Então uma vez fui Olívia sem que esperasse
sê-lo.
Esquecida dos rostos incertos que poderia ter,
com rigor desfiava sua métrica e sem pressa
alguma.
Pareciam heréticas as pessoas do verbo,
infames
na luta para que não lhes escarne o
esquecimento.
Temiam ser apenas uma agonia de espelhos
no corredor imaginado como uma vasta
justificação
de tudo o que fomos, sempre ali com seus
motivos.
Inúmeras as portas e as vezes em que pude ser
Olívia,
tendo sido apenas uma sem que conseguisse
evitá-lo.
Vejo a mim em todas que se sentem transidas
pelo evangelho de suas formas. Felizes as que se sentem amadas por seus esmeros
táteis. Afortunadas aquelas que se deixam acender por um truque hábil.
Bem-aventuradas as que encontram no bronze um cúmplice de suas ênfases
desterradas. O mundo segue dividido entre o espírito e a letra. Não importa o
que pensemos, impera a angústia e o orgulho. Somos ambicionados pelas formas.
Amei Antonio em meio a seus cinzéis. Fomos sua imprescindível possessão,
linguagem sem a qual seu declínio sequer seria misericordioso. O medo de
perder-me lhe impôs uma disciplina assombrosa. Deformava tudo à sua volta, para
que delineasse apenas o que supunha ser meus traços. Não pude seguir vivendo
indecifravelmente. Antonio me amava a cinzeladas. Felizes as que se edificam
diante do quanto me desfiz de mim. Decerto que sou todas elas.
Procuro não ser devastado pelo
passado. O que fui não revela senão o tempo vivido, não mais necessita ser um
teorema. As formas que tracei sentem-se já reveladas. Os dias se vão
incorrigíveis, sem que lhes evitem as reminiscências. Sei que sou o dia, mas
sou também o que resiste a sê-lo. Somos sempre a imagem e os aforismos de seu
declínio. Tenho em minhas mãos as cinzas de Olívia, a glória de tudo o que foi.
Não espero que a beleza propicie algo menos terrível. Talvez devesse dizer que
também o sofrimento é uma dádiva. Detenho-me na busca de sombras. Tanto as que
se erguem para buscar em mim o perdido, quanto as que despertam iletradas ante
o assombro de incalculáveis ermos. Defendo-me com o bronze inquieto que
reconhece todas as formas. Defendo-me do passado, da curiosa esfera caída de
tudo o que fomos. Cinzelo a alma indecifrável do que deixamos de ser, certo de
que um dia ainda o seremos.
Algum dia eu terei dito que me tenho sem
aflição. Outra não era sua pirâmide necessária. As formas buscavam serenidade e
fui o vértice predestinado. Devorava-me minuciosamente com seu ódio pelo pão.
Sempre estive pousando para ele. Despia-me de todas as formas, com seus
inúmeros cuidados. Como fui jamais lhe importou. Creio que nada afligia a
execução de sua obra. Tormento e insensatez não eram senão estilhas de seu
canto. Decerto que fui sua Olívia precisa. Um pouco ou mais estaria perdida, de
volta às perambulações pelos corredores da memória. Tudo o que queria eram
formas, e que o seguissem submissas. Agora sou trinta delas. Não sei do que me
queixo, se passo a desafiar o tempo. Algo em mim deve supor haver ainda aflição
maior.
Sonho com tudo o que somos. Sou um
ignorante dos hábitos do tempo. Jamais poderei ser feliz. Aqui esta noite reúno
trinta esculturas. A princípio diria que são a mescla radiante de meu ocaso e
minha aurora, mas sei que se tratam apenas do que resta de mim. Sou uma matéria
amorosa dos deuses. Estou em suas mãos. Sou o seu segredo infatigável e a
injúria dos seus artifícios. Decerto ainda me chamo Antonio e alguma vez amei
Olívia. Jamais me desvencilhei de seu amor. Não me importa onde andará, que
recordações amontoa de mim. Não serei intolerável com essas trinta figuras que
assumem perfis inomináveis. A todo instante somos exaltados pela memória. Quero
apenas ser melodioso em meu êxtase. E que esta noite inaugure mais uma de suas
dores sonhadas.
AMULETOS
NOSTÁLGICOS
Ser tua imagem sem causar-te aflição,
figurando em teu ser como o fogo.
Passas por mim e não me fraudas a dor,
em paz com o deus de tua morada.
Tu me deste o espírito e me deste o
olho,
o côvado profundo em que me ponho
para que lutes com toda a força do
nome.
Teu duplo refaz o que tive e vi e fui,
sombras cujos atributos conspiram
ainda.
Uma delas mora em reticente escuridão.
Outra se arrasta por rostos que
recuam.
Haverá uma que me vê trazendo a noite.
São como palavras herdadas pelo fogo.
Por toda a terra vagam e nada cresce
ali.
O nome é apenas parte de seu legado,
um dos símbolos da morte que entalham
em formas várias e suplicantes versos
que dizem o mesmo dá-me um caminho.
Figuras de pedra e madeira e
porcelana,
as mesmas que temos sempre em casa
e que não deixam de bater o coração.
Tu és um pássaro e um sol e o túmulo
de um deus que imita o curso de teus
dias.
Tua bela forma golpeia qualquer
escriba
em tradução de trevas ou terra santa.
Passagem e selo abissal de toda
crença.
O que buscas e o que o livro oculta
em linhas invisíveis a quem supõe
sabê-las.
VIRTUDES DA
IRONIA
Para onde vamos nada tem princípio.
Uma mínima noite se esgota em si mesma.
Toda história se esvai com o poente.
Caminhamos pelas ruas de um deserto onde o
silêncio não se enfurece com a ausência de memória da imensidão que se ocupa de
nossos gestos mais fugazes.
Tu não estás aqui para dizer que sempre me
amaste.
Não há nada mais desconcertante no
esquecimento do que os rumores de outra existência.
Quanto do que jamais fomos carregamos dentro
de nós como um sinal de indiferença?
Mal pronunciamos os vislumbres da identidade.
Para onde vamos imagem alguma nos reconhece.
A neutralidade absoluta em todos os idiomas.
Não me esperes para romper o lacre de tuas
inquietudes.
O infortúnio transita como uma oferenda
insuspeita.
Todos somos as pedras marcadas de um jogo que
não se completa.
A morbidez ama suas luzes decaídas.
Lemos complacentes as crônicas que nos
encharcam de verossimilhança.
A realidade não faz a menor ideia do papel que
desempenha em nossas vidas.
Seguimos a caminho de um lugar onde o caos se
refaz considerando a apuração dos fatos.
Não me revelarás nada que eu já não tenha
dissipado.
Livre dos destroços sentimentais.
Livre dos pronomes pessoais.
Avançamos para longe da clandestinidade cidadã
em que a ficção nos viciou.
Não há lugar para o que não seja a branda
areia da escritura dos missais ante o bocejo do mar.
O que há de lícito na beleza independe de sua
idade.
A minha angústia quer estremecer em tuas mãos.
Corta o cerco.
Rasga o bloqueio.
Não tens que estar aqui.
Não podes me amar dessa maneira.
Para onde vamos nada será demasiado.
Suportarás o mundo absolutamente correto em
descrições de caminhos que não se repetem e anseios enfim concretizados de
jamais voltar a tocar em qualquer assunto.
O amor estará morto quando cessar de se
repetir.
Não recordamos um engano que acabamos de
cometer.
Nem sabemos o que é certo.
É possível que um dia um poeta tenha escrito
que a morte é uma estátua.
A ficção converteu-se na única convicção de
que a realidade não pode ser molestada em seus caminhos sem princípio algum.
Não me amaste até aqui apenas para escrever um
livro.
Não temos nenhuma ideia precisa do que somos.
DESTINO DAS
PERNAS
O alfabeto alheio das pernas que vão
se chegando, somando-se ao murmúrio de outras que se comunicam entre ânsias e
seduções, pernas que fisgam a ilusão precisa em cada moenda de gestos, o
alfabeto delas, lustrando suas letras, a serem gastas no ardil do desejo.
As pernas, por onde andá-las, comover
o capricho de suas teias, soletrá-las na passada mínima de um feitiço a outro?
Por onde se põem em desalinho quando menos se espera? Elas, dando lições de
vertigem ao tempo que trafega entre seus passos. O alfabeto, sim, graças a ele
é que elas são esta queda de tudo quanto apreciamos na vida. Como estimá-las
longe de tudo, rabiscar a ausência das pernas em nosso estar tão promíscuo em
dores cuja origem desconhecemos?
Essa floração de signos que não vemos
senão como descaminhos,
pontes de seda,
seus desmandos que elegem
nossas fraquezas mais
irreconciliáveis,
a usina secreta do passo em falso,
por onde deixamos de ir,
por onde não vamos nunca,
alheios a ele,
o alfabeto que se escreve em nós,
as pernas
que consideram nossa ausência de tudo,
os caminhos desfeitos em sinais
precários,
prenúncios de estradas derruídas,
elas que não cabem em si,
couberam ⎼ nunca se sabe ⎼,
por onde andamos: comovê-las na
andança,
falseá-las,
pernas?
Ao cruzá-las por onde segue o tempo?
Investe em quais abismos líquidos? O sal do fascínio, humores que se distraem a
cada toque, esmero de ânsias ⎼ para onde
levá-las, quando desviam sinais, esmiúçam ambiguidades, bailam imprevisíveis
ante a imagem que fazemos delas? Soberbas na luxúria de suas afluências, um
súbito desmaio de cadências, apenas para dizer que ali, entre palmos
imaginários, podem ser outros meios, pôr tudo a perder, conciliar ruídos,
quimeras de ponta-cabeça, simulacro de marchas, desvario, andamento, andamento…
Para onde tantas pernas, quantas, o
que sabem de nós? Radiação de rastros por toda a pele dos radares, bússolas
famintas, quando ausentar-se de si o colecionador de pernas? Um verso deixado
na ponta do leito, assentadas como um enigma, um crime por resolver, por elas
vamos nos deixando levar à autópsia de nossas perdas mais íntimas, o embaraço
das precárias decisões, vícios agregados, quedas mal repartidas, hastes que
ensaiam voos em busca de outros significados, ociosa locomoção de infernos,
pernas fora do jogo, as minhas, quantas agora?
Multiplicar os defeitos
irreparáveis
das passadas por onde fomos,
a sopa de equilíbrios de que se
alimenta a esperança,
a inocência arqueada,
a lonjura
apeada antes que goze sozinha.
Para tantas pernas, como se desfazer
de verbos,
desfalcar acenos,
ou simplesmente saltar páginas
de uma andança a outra?
Então para que tantas, se evitamos o
subúrbio de suas passadas, se não passamos de assaltos, semínimas, nudez
difamada por vestes indecisas? Onde a conquista das pernas e o badalo de seu
esplendor, ⎼ um golpe que
seja ⎼, o roubo a tempo
no crematório? O que fazer com elas, como passá-las, por onde andá-las,
ufanar-se de que mérito, deixá-las ir, sem vírgulas, passos?
Amiúdam-se, coladas a um cinismo constrangedor,
com ar de quem nos espera à saída do caos, quase de todo fingidas de si. Já não
sabemos quantas, e não fazem outra coisa senão imposturas, volteios, ardilezas
em tablados invisíveis, elas. Para onde saltamos em suas colunas? Quais
galerias nos devoram, corredores que são passadas encharcadas de mistério? Como
se chamam essas pernas? ⎼ acaso agora se
pareçam outras.
Quantos somos em suas mãos? E nomes,
os temos? Como nos comunicamos por entre seu mobiliário de tropeços? Algum de
nós desconfia do caminho que estamos fazendo? Elas se encaixam na própria
voragem como construções fortuitas, as pernas, que levamos dentro de cada,
abrigo insondável ⎼ é o que parecem
nos dizer ⎼ de uma evidência
que a qualquer instante pode nos atingir.
Contudo, o único extremo que se
manifesta
é que desconhecemos nossos passos,
a tal ponto que elas,
dissimuladas entre vírgulas,
artífices galhofeiras de ilusões,
devem ser mesmo nossas,
por mais que estranhem
que não saibamos infringir seus
percalços.
Haverá um limite, um ponto qualquer,
em que o estorvo se cansa, a fraude se desfaz naturalmente, o tormento rebenta
por falta de coro, haverá? Ou a intemperança entope-se apenas do inútil e não
há salvação nas sobras? Por onde fomos as pernas eram outras e em tal descompasso
que desconhecemos a isca, o engodo das letras, o alfabeto disforme e alheio
mais a nós do que a elas, as pernas, os nós em que nos engalfinhamos antes da
última topada, onde o abismo se esgota.
TELAS
NO PORÃO
Tudo o que vemos
é o invisível.
PITÁGORAS
1.
Inquieta em seu
mundo de pausas.
Asas que adentram
o lago estático.
Corpo fugindo de
espelhos, olha-me
e toda a matéria
volta a cantar.
Espaço ausente de
formas, selo
que nos guarda
dentro da chama.
Nada se define em
suas pálpebras,
mesmo que por ali
se derrame
a trêmula
essência de todo corpo.
Não quer de si
senão a sede veloz
de nomes e
números que possam
tomar-lhe a noite
entre beijos.
Desfia raízes
tecidas em seu peito,
sombras que
afirmam ser nada
todo o amor que
lhe desvela o ser,
feito o mistério
visível de Pitágoras.
E o que anuncia
seu canto grave
senão o
envelhecimento da morte?
Tendo sido criada
pelo espírito
guarda-se vidente
em sua impureza.
Entregue à trégua
de carícias,
oferenda de
hóspedes de seus feitiços,
tudo a faz vibrar
em sua remota casa.
Ao cantar me quer
junto a seu fogo,
quando esculpe as
formas mais falsas
que habitam o
desespero e a loucura.
Velozes seus
olhos em mil rostos
buscam em mim um
cúmplice de ossos,
monossílabos à
margem do rio imóvel
da linguagem que
nos distancia
a todos. Apenas
ela existe a banhar-se
em meu assombro:
sobre os corpos
[dela] tilintam
nossas palavras gastas.
2.
Recorda-me uma
rua ali sempre,
alheia à ferrugem
da história.
Cruzam-na firmes
as vozes
de todas as
tramas e as notícias
dos funerais
inumeráveis do ser.
Reino mantido
entre o estrondo
e o disparo
brando do silêncio.
Não me falta em
seus negócios
de levar consigo
um e outro,
algaravia de
mimos que se tecem
com o fio da
própria lástima.
Não me falta a
úmida presença
afeita à febre
dos detalhes
que traçam as
páginas dessa rua
presa à sua
miséria fortuita
e ao esplendor de
secretos retiros.
Eis como a
encontro. Olha-me
tomada de
espelhos, jamais vista
de outra maneira.
De fábula
não se trata, ou
generosa desordem
que me recolha em
sua fonte.
Talvez à sombra
de seu assombro
possa a memória
confundir-se
com o sonho,
reino foragido
de areias,
estuário de imagens
que se movem sem
piso ou teto.
Tudo ali se
reconhece, tão logo soe
a feminina voz de
seus encantos.
Recordo apenas a
vigília da rua,
teimando entre
portas e janelas.
Inútil aguardar
que a viagem
anuncie algum
final. A vida nos dá
com a curva de
todas as perdas,
uma palavra
precária, uma ausência
impossível. Não
se deixa a morte
seduzir por
silêncios. Ouço-a
agora confundida
com as pedras
da rua, e quase
toco sua imagem.
Sombras que se
debatem em busca
de um corpo.
Cantarão sempre.
3.
De que é teu
corpo? De que são
tuas palavras
recortadas em tábuas?
De que é tua
língua que chove
e molha-me os
olhos que te buscam?
De que são tuas
páginas escritas
enquanto chove e
parece ser noite?
De que são os
monstros talhados
por teu silêncio?
De que é a realidade?
De que são a
pele, o fósforo da imagem,
o material de
perdas, as falsas pistas,
o golpe errante,
o rol de súplicas
da linguagem para
que a imitemos
até que não mais
se reconheça em si?
De que é tua
herança entre traças?
De que são tuas
folhas em repouso?
De que é a
realidade? De que são
os livros que nos
deixam fora de tudo?
De que é a
volúpia que toca teu seio
e derrama-se por
toda a noite?
De que são os
números de tua desordem?
De que é o
esplendor de tua memória,
íncubo ridente em
sua dança? De que
são teus poemas
extintos, tuas sombras
raptadas, os
diálogos entre fantasmas,
as baladas do
peregrino, teus jogos
que supomos
inevitáveis, tuas falhas
plenas? De que é
mesmo a realidade?
4.
Seu corpo é a
razão de todo mistério.
Não importa a
serpente emplumada
que lhe habite.
Passo-lhe as páginas.
Suores me afligem
em tenebrosa pele.
Deitam-se sobre
mim à espera do golpe
do acaso.
Desconhecemos todas
as nossas
súplicas. Somos de repente,
e logo mudamos de
lugar. Seu corpo
amontoa-se sobre
o meu, à espera
do esplendor
jamais anunciado.
Corpos são
cadáveres no umbral do gozo.
Atravesso suas
noites. Penso tocar
o abismo. Livros
depois já não sabemos
quanto custa
despistar o instante.
Deliro fiel à
memória dos espelhos,
inquieta ainda em
seu milagre de cinzas.
Pele desfiada,
águas de um corpo a outro.
Rumores de nomes
e enigmas,
mulher, jamais
vista de outra maneira.
Tudo a faz vibrar
em sua remota casa.
Nada nos
atormenta como uma vitrina,
onde o relâmpago
de seu corpo desfia
a imagem que
distorce todo desejo.
Pareço um
assassino preso a seu plano?
Liquida-me em
teus braços, mulher,
corpo é tudo o
que salta de tuas páginas.
AS TINTAS NEGRAS DO JARDIM
I’ll shoot the moon
right out of the sky for you baby
TOM WAITS
O que vejo é teu olho dançando no jardim:
descreve a si mesmo com tamanha paixão
o olho pintor de seus quadros em movimento
– confessa-se uma máscara de Lucebert,
três vezes estivera com seu espírito maligno,
quase um pária, quase um duende, o olho.
Sua áspera voz correspondia às imagens
com que seguia redimensionando o jardim.
Fotos de combate, estatuetas corroídas,
papéis amassados, bosta de rato, explosão
de desordem por todos os ângulos, no ateliê,
ainda legível um recorte amassado ao chão:
um poeta que
pinte não pode dar grande coisa.
Segue o universo caindo de si, quase um olho,
tomado de imagens como janelas a descascar.
O que vejo no jardim são detalhes do horror
que ainda comove pequenas histórias ilustradas
– o poeta alimentando o caos, os santos óleos,
pequenas salas de costura onde o mundo se
refaz,
olhar inquieto em seu infortúnio: resplendor
dos signos decaídos, guaches de abismos em
chamas,
dançávamos e ele não parava de cantar, o olho:
eu vou retirar a
lua do céu para você, meu amor
– mostra-me, criatura, as evidências de tua
máscara,
não somente o irrefutável, mas sua lástima de
si.
O olho excelso no caminho ilumina meu espanto.
Seu bailado acentua-se por toda a pele do
jardim:
afeito a dissonâncias, rende-se à dor a
criatura.
Uivam figuras patéticas à distância, dança
mítica,
de antigos filósofos que viam deuses em toda
parte.
O olho no jardim é um grande oceano que
sangra,
pouco entende do tempo que ocupa com suas
serpentes e letras que segue traçando em tintas negras e árvores-pincéis as
imagens que nada têm em comum com a eternidade a simples representação do
momento em que as coisas são menos e menos o despojo de sua própria agonia
quando o desejo confunde-se com o impossível e instaura-se a multa por
transgressão e
não somente Hölderlin mas todos os poetas
viveram algum momento como se fossem deuses.
O olho é a proteção do ardor mais secreto da
beleza,
embora o jardim contaminado por imagens,
luz que já não se derrama sobre Goethe,
a última rosa do verão, o filme que se esvai
com a noite que atravessa de um encanto a
outro.
A semente que cai [novamente a voz de
Lucebert],
cai sobre o olho que assimila aquilo que vê.
Pintura e poesia. Mais do que o bailado dos
signos
no atônito jardim tomado por seus dramas,
o compasso de nosso corpo negro
firmado no horizonte, sinuosa orquestra de
timbres,
os traços caindo inspirados em arabescos
e flautas, bambus refletidos contra o sol,
amuletos-linces, rajas de opala do rio da
linguagem,
o olho do amante engana, com seu lápis-trenó,
não existe apenas para a salvação dos cegos.
É grave como a página escrita e o bailado de
Mondrian.
O olho é o jardim, mesmo que tomado de paixão.
Projeta-se sobre a ideia [sua] da imagem, um
signo branco.
E segue a dançar: voo de luas em um céu de
pincéis.
ENIGMA DOS CORPOS AMOROSOS
Acender o fogo pela sombra da chama.
Atear luz no olhar do tempo esquecido.
Assim um corpo diz como deseja
ser escrito pelo outro que o visita.
Ensinar ao corpo como sair de si.
Traçar equidistâncias entre as quedas.
Os pormenores do fogo [ela afiança]
são o melhor regaço dentro do olhar.
E o fixa com tanto esmero que as
dobras
do corpo se despem ante o ruído dos
passos
[dela] que são vestígios do sumiço
das roupas [dele]. Por onde o enigma
apura suas harmonias? Por onde um
corpo
aprende a soletrar o outro? [ela não
diz]
Esvaziar a noite de vícios que a
definam.
Deixá-la sem chance de reconhecer-se.
Estar a esboçar um tratado de trevas
requer a cegueira precisa em cada
afeição.
Quem plagiaria o suicídio ou a ruína?
Os dons são mecânicos, uma fábula
gasta?
Na balbúrdia dos corpos descobrindo-se
um soletra o dia, o outro deslinda a
noite.
Qual risco a língua desenha ao passar
de uma boca a outra? Não há exatidão,
exceto no desejo. Um corpo [ela o
tenta],
ao cair no outro, é em si que
repercute.
O amor tateia entre nódulos [ele
matuta].
Uma atração sublime pelas dissonâncias
parece iludir a queda dos corpos
amorosos.
O que tens no ventre [diz ele] é o
abismo
de que me sirvo para um dia
alcançar-me.
Apenas o acaso resguarda tais planos
[ela].
Os corpos sondam o pendor pelo
extremo.
Atear luz no olhar do tempo esquecido.
Acender o fogo pela sombra da chama.
RECORTES DO VELHO ATELIÊ
O silêncio dói dentro do mato
RAUL BOPP
O poema se inicia com um verso de Giórgos Seféris:
Os dias roem nossa vida sem alarde.
De que são nossos caminhos partilhados?
À noite nos sentamos para o bom vinho
e algumas verdades indiscerníveis.
Todos já se foram.
Não há mais Blake, não há mais Goya.
Suas pedras erguidas são o mistério do humano.
Tua mão encaixada à minha.
A sala espinhada em silêncios sangra suas sombras.
Algumas se abrem imensas e somos o ser de seus umbrais,
a treva desfiada ao fundo.
Exaltação de falhas,
agonias onduladas à proa da memória, o sólido
massacre dos fantasmas – nada
nos deixa dormir.
Véus do lúdico e do agônico,
linhas talhadas como vultos
que se agarram ao nosso passo,
pedras que não retrocedem.
Noite encravada no topo do inferno,
melodia caricata dos dilemas
que não se desgrudam de nós.
Doçura irônica da larva
em seus caracóis desatinados,
polêmica foto do espírito
aberto em feridas ilegíveis.
Lentos, lentos, somos o resíduo
de tudo quanto nos espera
nas minúcias dessa noite.
Fulgor tecido na escuridão,
somos o revés invocado,
o diamante surpreso em seu delírio,
efêmero pelo amor ao nome.
Caído sobre os olhos fixos
da imagem que lhe conduz
ao sopro de suas contradições.
Poesia lentamente, o verso apagado
com rastros da discórdia, até
aqui viemos, dentro da sombra.
Mesmo nas palavras ausentes,
visões que não se esgotam
no mineral admirável das chamas,
somos o esgoto primordial.
Caímos dentro de nós, sombrias
fezes de nossas súplicas,
dor de cordas entrelaçadas
ligando um vazio a outro. Alpendre
de palavras que não lhe alcançam
o piso, rio de disfarces:
vidro em sua água distorcida,
areia que não mais revela
seus rostos ao fogo, pulmão
suspenso nos galhos da inquietude.
Todas as noites parecem estar aqui,
açoitadas pelo relógio da dor,
pendulares inquéritos do verso que nos debulha.
Até aqui viemos.
Seguiram-se outras noites de estranho tumulto,
queimadas em remorso, algumas.
Velho caminho de tábuas gastas pelo abandono.
Narciso violento ao descobrir as primeiras rugas.
Seguiram-se as noites tomadas de Bosch
e Lezama, noites
que iluminam o ignoto
e fazem tremer o universo. Tua mão
afeita à minha, cruzamos nossos olhares,
desfeitas já inúmeras sombras.
Por entre a folhagem, somente a ausência tornara-se profunda.
Mesmo se fôssemos um o outro,
ou líquida anunciação
de um no outro,
nada nos deixaria dormir.
Conclama o relâmpago suas sílabas,
o que se desfaz é apenas o entrevisto,
o que planeja o regresso mutila a si próprio,
corpos adoram suas reentrâncias,
por vezes caem seduzidos pela semelhança,
estátuas sondam a artificialidade do movimento,
vagabundos se sentem sagrados,
poetas imortais, dançarinos sonham
com crisálidas, seus rostos despencam
do abismo, flâmulas do equívoco,
fixos reflexos risíveis, cativeiro de versos
reduzidos a feras torpes, pedras sem fogo,
bambus afogados, aves banidas da praça,
corpos que cegaram o cristal da metáfora.
Possessos do vazio, desfigurados rostos
que vinham sendo traçados por uma cerimônia,
tua, de cuidados com a queda, a chama
da descida ao inferno, o manto com suas bordas
de ramagens, sombras que se assemelham
a uma árvore, figura da mãe, traços
do abismo, cantos transfigurados, as vozes
que surgem de uma noite vegetal,
palavras em seu âmbito de folhas e raízes,
golpes do pólen, potência ininterrupta
das forças que circunscrevem teu mistério,
negro, negro o círculo, a esfera no olho
da sombra que traça ânsia e receio
nas noites derramadas sobre nossas mãos.
Já não somos tão visíveis, nem certos
de que passamos por aqui, pelos terraços
carcomidos do delírio. Respiramos
graças às imagens que se sucedem,
sentenciosas em seus recados, quase carne,
de tudo quanto desejávamos tocar.
Deuses cínicos, vozes fiadas no olhar,
semelhantes ao relâmpago, zumbido de anjos
em ardiloso artesanato, escola de quedas,
o que mais? Tornamo-nos os demoníacos,
de um céu a outro, os servos do espelho.
Já não somos venturosos. Há nomes
que lacram a aventura de nossas mãos.
Sombras perfeitas de tudo que não tocamos.
Tínhamos muitos mortos. Entre eles a primeira leitura
daquela noite iniciada por Seféris.
Não escondemos o sorriso. Outro grego
já nos lembrara que um dia diremos adeus a nosso enigma.
Contudo, não se despedia a noite, bem ao contrário,
mais se despia. E brilhava sangrento nosso coração,
mesmo no milagre de suas sílabas.
Esquivas, as imagens.
Através delas, voltam a crescer
os anseios sobre a exatidão do inferno.
Ainda estamos aqui.
Gostaríamos de crer. Mas não estão Benn e Brueghel.
Tudo é fuligem sobre suas obras, glória de moscas.
Está certo Seféris: o poeta,
um vazio.
Ali, minha mão afeita à tua, enquanto os dias roem nossa vida sem
alarde,
o lodo crescendo, dói o silêncio dentro da noite.
Converte-se a memória em ruínas,
à velha maneira
de juntar pedaços, livros desfeitos, gravuras rasuradas, sinais de
sacrifícios. Noite,
noite. Não mais que um caderno de extravios.
O HÁBITO E O
MONGE
Lâminas despencam de um céu de tintas,
tateiam-se à procura de um deus
possível.
Vestes da memória, vestígios do que
virá,
dilemas acaso flutuantes, surdos
ainda.
A que ponto navegas em teus disfarces?
Escreves o mesmo verso há tantos anos,
mudas de roupa, alforje, provisão de
mitos,
uns poucos atritos que a tua dor suporta.
O que tens sido, acéfalo errante,
fisgado talvez por um acervo de
eufonias?
Uns planos audazes, máquinas de
guerra,
cofre onde guardas teus escritos
mordazes.
Terás sido um palco de trevas de tua
própria
e inatingível morbidez, com seus
destroços
desarrumados na grande sala da
memória?
O que recordas, entre o ainda não
vivido?
Mãos tateando cicatrizes, trilha
marcada,
uns velhos signos de resistência e
conforto.
O que finges ter é o que jamais terás,
uma nesga de si por um lapso de tempo.
Toda a desordem de uma vida buscando
sentido
no que não lhe cabe senão louvar o
havido.
Um embrulho de teus desejos e
pesadelos
despenca de uma ponte remota,
não mais escuro do que frio o estômago
da água que recolhe tua clandestina
queda.
Cais de onde, de quem, de quantos em
ti?
Limpar a pele após o tombo, olhar de
lado,
disfarçar o engano, até que nada nos
recupere
do que acabamos de ser, em pânicos
minutos.
O que vejo bem dentro de ti, entre
tintas,
nostálgico acéfalo, não se confunde
com expansão ou degeneração. Menos
te elogia a razão ou consente teus
frêmitos.
Pratos de borco, abandonadas
forquilhas,
quantos, meu caro, são os teus
disfarces
e seus esgares em cada face do
espelho?
Exageros? Qual o valor de uma queda?
No que te perdes quando nada
expressas?
Assim indaga o tolo que necessita
abrandar sua previsão de infortúnios.
O ritmo é o do silêncio que nos
recusa.
Não perdemos a razão, enrugado
acéfalo,
nos desfizemos de aplicá-la
indistintamente.
O grande deus que somos nos diz agora,
em sua ágora, que caímos de tanto
querê-lo.
Seguirás no mesmo verso, por noites
adentro,
sempre indagando: o que dói em mim,
acaso doerá em todos? E em tal
cantilena
a frase bordará sua síntese imprópria.
Não há respostas na arca ou no livro.
Crer de nada vale se não é em si.
Que sejas pictórico, acéfalo
elementar,
não te descrevo senão como um
vestígio,
um esmo propício ao que se averigua:
o atributo da pele será mesmo o
frêmito?
Ânimo, logo estarás contigo, pobre
diabo,
não pelo que te falte, mas pelo que
não és.
ALGURES UM MAPA
Quantas serão as migalhas do espírito,
quando este mal soletra seus
extravios?
Um bocado de nada, quanto lhe custa?
Quantas vezes suportará o desatino de
ser
tão excessivamente nada entre
escombros?
Qual preço em cada agulha que o
desfia?
Uma vez que empalidece o mapa da
ilusão,
já não reconhece um vestígio próprio.
De tanto olhar para si, quantos vê
ainda?
Será deste modo que se esvai, tão
líquido?
Quem quer que encontre durante a
queda,
com nenhum contará que o defenda de
si.
Estará sempre em débito com os
espelhos,
as imagens se despedaçando a cada
lustre.
Que importa quantas eram um minuto
antes?
Ao levar as mãos aos olhos quanto
repinta
do que até então nem presume haver
perdido?
Saberia se desfazer do que ainda não
teve?
Quanto escavará a lembrança e a
ambição,
sem distinguir a qual cova mais se
dedique?
Ao roer as vozes que o cercam, apenas
cinzas.
Formas arrastadas para o limite do
ilegível.
Onde pouso a mão sem que me escapes,
diz.
E já quase nada mais dizia, limitado à
queda.
Planejaria tornar a cada espelho
submerso,
para refazer-se da imagem mal
vislumbrada?
Quanto lhe custaria em naufrágios,
interessa?
Corpos da ilusão imersos em água
salgada,
como rios atormentados por um ritual.
Quantas vezes não somos senão o que
fomos?
Algures um deus, um menino travesso,
luz
queimada em plena ilustração do
espírito.
Quanto custa percorrer a dor inteira?
O que mais revira o ser que seu
reverso?
Uma grande língua que vare toda a
vida,
e que nos fale o que temos de mais
íntimo.
Cair na traquinagem do tempo ou do
espaço,
eis como ceder à arte de matar o
espírito.
Quanto de mim deposito na conta do
viver?
Em comum, os escrúpulos da inocência
e as suspeitas de crime, o que têm?
Decaído o espírito flerta com vagos
perfis.
Quem sabe o peso do vazio e seu
destino,
calcule a tarifa da postagem e lamba
o selo como o espinhaço do infortúnio.
O que subscrevo quando me livro de
mim?
Para onde vou se observo o mar caindo
por toda parte e tudo é rio
desmoronado?
Esticar o limite do fim até que
rebente.
Que a ilusão não tenha sossego e se
rompa,
como a esperança arruinada por
capricho.
As imagens se retorcem, feito uma
chama
dentro do fogo. Um pássaro diz-se
outro
ao desfazer-se de suas asas
carbonizadas.
Como reter a escrita de um espírito
findo?
Por onde cai salpica labirintos e
ressurge
e, ósseo, volta a morrer por toda
parte.
Desfazer-se da neblina, da areia, dos
golpes
do desejo lavrados na pele da
prudência,
custa mais caro que a insônia, quem
banca?
Quanto se pede pelo enredo da
semelhança?
Dívida assim não se paga em vida. Deus
algum cobraria tão pouco por seus
mortos.
A vida é excessivamente nula do que
somos,
e revela-se na dor que desferimos
contra
o espelho, quebra, guarda, nenhum
desconto.
ÚLTIMAS PISTAS
Em memória de
Uílcon Pereira.
Náufrago desperto em números,
detido no jogo do vento
em suas artérias de presságios.
Ossos de um mesmo e exposto cadáver.
Longe canta a eternidade sua desprezada
justiça.
Canções de trevas.
Relâmpagos risíveis.
Náufrago iluminado pelo contágio,
contando lágrimas sob a língua.
Longe longe a pretensa história de seus
mortos.
Quem por terra cai ali se esvai.
Em súbito monumento de chamas
ardiam os dias sepulcros à deriva.
Horror delicado das súplicas.
Paisagem com seus planos de histeria.
Um lampejo de traumas.
Arrastam-se os lábios por toda a fala.
Tenebrosa estrela,
és o equívoco silencioso
Náufrago à borda de teu miserável destino.
Tempo contemplado em despojos.
Por onde o fogo a desfolhar-se começa?
Como o abismo reconhecer gotejando suas aves?
Pondo as coisas para andar,
para cantar a selva sua paciente tragédia.
Fantasmas a cada passo.
Absoluto absurdo.
Para cantar as formas que são a vertigem do
tempo,
a intimidade disforme de tudo quanto sonhas.
Náufrago desfeito em um sistema de perdas,
quantas refletem tua queda?
Qual a irreparável vocação?
Será tua a vez de assumir o desastre,
das formas perderem a fala,
do espaço evadir-se de si.
Quem és?
Oh náufrago com o homem às costas,
como eletrificastes as circunstâncias?
Visionários guias.
Rumores cristalizados.
Destinos em série.
De que se ri a imóvel paisagem?
Foram-se os outros todos náufragos.
Um precioso talho de árvores em fuga.
Caos contra o infortúnio.
Ânima contestada.
Formas resumidas a um breve bosque de
catástrofes.
Que vida prolonga o poema?
Que célebre demência ancora na esfera
fulminada?
Para mudar tua vida o canto,
dar nome ao silêncio ao verbo ao esquecimento,
riscar os fósforos de todos os domicílios da
beleza.
Uma última onda até morrer o sentido.
Linguagem arenosa.
Monastério da dúvida.
Comporta-se o náufrago como um farol caído.
A tudo vê passar sem utilidade alguma.
Escombros da própria agonia.
Interminável a conta das lágrimas seus estudos
de silêncio.
Terra insolente sobre os prodígios de sua
queda.
Fronteira onde não floresce uma ave uma luz
vulgar uma voz.
Náufrago o náufrago de si mesmo.
Soberbo ataúde.
Nenhuma treva lhe cai tão bem.
Recordará um dia sua fortuna recusando-se ao
enterro.
Caminhos os temos em silêncio aos berros.
Vozes recuperam-se de crimes da cortina de
delitos do alimento de lamentos da convulsão de sons.
São como ases.
Um poema repleto de vozes.
Um templo contra a morte.
Ávida beleza infernal de aves corroendo o céu
com seus véus.
Naufrague a pedra o homem a árvore,
ali onde sabemos a eternidade magnético
equívoco.
Místico pavor quando tudo pode esperar.
Não há um triunfo da forma.
As honras são todas da dor.
Náufrago o náufrago caído em números.
Perfeito o veneno sobre seu dorso abandonado.
Quem o toque em naufrágio iguala-se.
Lúbricas as transfigurações do ser.
O monumento do náufrago a si mesmo.
Uma história de angústias em rostos
desfigurados.
Ali soam suas vértebras a seiva a solidez.
Sombras que se urdem acumuladas em gozo.
Ressurgem o mito as vozes migratórias a árvore
que canta.
Dá-se que tudo é naufrágio
– trema um sentido decaia uma dor retire-se um
abismo.
O corpo detido em destino,
despedaçado em sombras,
náufrago de que lei?
Febre de areias sobre seu dorso.
Imagens circulares refazendo-se sob o sol.
Sobre a morte interroga-se.
É sua língua desmedida.
Deserto é afeto desfeito o ermo do medo da
solidão.
Aproxima-se de si o náufrago,
sem mais temer sua fábula.
Dá-se a cicatrizar a memória.
O rio do náufrago o sal sem pressa o sonho o
barco desvirado a imagem sangrenta delirante agulha o infinito a montanha o mar
a pesca de anseios o engulho de algas a dor do céu a rosa molhada os lábios
comidos de areia o milagre do esquecimento…
Não há tempo a perder no náufrago.
Gramática é a sua do rumor desperto em êxtase.
Loucura a linguagem recriar-se soberba
ambígua.
Incalculável farol nos lábios do náufrago.
Dorso de sal.
Inclemência do verbo.
Alegoria do ser.
Parábola do verso sobre a agonia humana.
Areia areia areia…
Diante do próprio naufrágio o náufrago mal
consegue respirar suas aves.
REINO FORAGIDO DO ASSOMBRO
1.
Corpo
idêntico a repetir noites e refúgio.
Astúcia
cintilante repousada entre afagos.
Rio cruzando
a mesma sede sob a carne,
demônios
espelhando a umidade, o sonho
adentrando
iguais cavidades tuas, o tempo
inteiro
reescritas, galerias que se retorcem
com os
rudimentos de um mesmo gozo.
A realidade
é um velho mecanismo viciado
em árvores
tombadas e céus manchados de dor.
Eu venho
aqui todo dia moldar nossos lábios
em um beijo
análogo, talvez exatamente igual.
Perseguimos,
na salivante repetição do gesto,
um vulto sem
memória, que possa guiar-nos
através de
um súbito abrigo, vagando pela casa.
2.
Rascunho o
teu vulto por dentro da noite.
Vozes
cavadas no fundo de um bosque,
ramos de
fogo desatados enquanto esperas
que árvores
ressurjam da memória vazia.
Queimo tuas
sombras sem que me toquem.
Há fulgores
desencontrados que confundem
os abismos
de teu ser, resumo de quedas,
pele
rasgada, fragmentos de fuga esquecidos
em meio às
roupas em desuso no armário.
Já não me
escutas no horror de teu silêncio.
Traduzes como minhas
as cinzas de outro sonho.
Eu ainda te
quero em minhas ruínas incertas,
porém me
escapas como uma treva muda.
Não sei por
onde começo a esquecer teu nome.
3.
Não faço ideia se é noite, vertigem ou
silêncio.
Sopra um vazio contínuo, sem que o
identifique.
Persiste a catástrofe da memória, a
recordar
coisas que nunca vivi. A desossar-me.
Urro selvático do extravio. Perdemos
tudo.
Tão sós que sequer percebemos o
abandono.
A flor-obsessão se foi desmembrando,
gerando
novos conflitos: pequenos e grandes
pomares.
Eu te amei até onde pude estar apenas
contigo.
4.
Agora é que
começas a escapar de mim,
saltando de
uma paisagem a outra,
riso
elétrico no rumor do nome refletido.
Eis por onde
o mistério se atreve a mudar
de ramo ou
semelhança: as lâmpadas
desviam a
água de suas visões e recolhem
rostos
soterrados por um entulho de sombras.
Voz impressa
na confusão do silêncio,
com uma lua
ofegante debaixo da cama.
Ainda me
afogo em tuas mãos, no ardor
movediço de
tuas luzes, fogo contra fogo.
Agora é que
começas a lacrar os truques,
a mobiliar a
vertigem em plena queda.
5.
Desfiamos as
margens em nossos corpos,
rios pele
adentro, comboio sinuoso de carícias,
cada vez que
me olhas são outros os lábios,
seixos,
amuletos, destroços, outras as ruas
por onde
respiras, outro o compasso da areia.
Contamos nuvens
em tua mão, deserto furtado
à noite
recostada um segundo, mapas do acaso,
fulgor de
árvores imitando dedos, anjos travessos.
Por entre um
bosque de vultos tu me conduzes,
enquanto
decifro o espelho que me apontas.
Saboreamos
os estreitos virtuosos de tua mão,
mares
fixados em pálpebras e uma lua vítrea
adernada
entre seios. Suas linhas percorrem
o destino
que em outro tempo julgamos nosso.
6.
Como pequenos desastres migrando de
árvores
ou desertos fingindo a infância que
não tiveram,
expandimos a catástrofe de teus
gemidos.
Em tuas axilas um displicente alfabeto
de algas,
rumores de pássaros despedaçados com o
canto
preservado no penhasco com que me
escutas.
Vértebras da loucura, silêncios ventríloquos,
nos alimentamos do capinzal que cresce
entre um vislumbre e outro, pincel de
nuvens.
Já ninguém se atreve a indagar o
próprio nome.
Se a chave está perdida, desfeito o
poema,
que nome dar ao ramo de lágrimas que
visita
de porta em porta o vilarejo de teu
abandono?
7.
Vens do
fogo: a casa nua, o corpo vazio.
Um pé no
imprevisto, afagas uma tensão
constante –
piedade a quem te chama.
Rompido o
esmalte das visões, sombras
emergidas
de semblantes esgotados.
Comoção de
letras ao pé de cada espelho,
refúgio a
deslocar-se de uma pedra a outra,
da nuca ao
joelho, do calcanhar ao queixo.
Nunca te vi
tão linda como a espreguiçar-se
excitando a
combustão, um vulto lendário
em
sua marca de olho de peixe e o transe
de formas
ensopadas em súbito ofertório.
Incêndio nos
ombros e improviso de lábios.
Deus algum
jamais decifraria tal riso.
8.
Os olhos com que te vejo já começam
a exigir de mim outra morada. Sinto
que suspeitam das coordenadas atuais.
Tocam-me como se uma pele de cinzas
revestisse o espírito de tudo o que
vivemos.
Em silêncio embaralham nossas visões,
os recortes sensíveis de uma vida em
comum.
Desalojam velhos segredos, despedem-se
de imagens descoradas, riem da
memória
quando esta se desfaz de gastos
vislumbres.
Os olhos com que te vejo, no entanto
sequer
confabulam seus truques em minha
retina.
Será como sempre [dizem]: abrir-se ao
incerto,
até que novas formas se fixem e
multipliquem.
9.
Parte do que somos somente nos recorda
se um acidente lhe importa: entrada
redecorada
por cupins ou sátira do acaso a
reinscrever
o homem em seu trajeto. Parte do que
somos
somente o desgaste reaviva: proeza
concreta
de carcomidos ciclos da humanidade
encravada em nós.
Nós da memória, rasgos, erosões da
alma:
longa jornada da decomposição,
até que reescreva seu nome destinado a
apodrecer.
PERSONIFICAÇÃO DE
BARBUS
1.
Sempre que ela me toca é como se refletisse
somente a si mesma.
Uma luz faminta devorando as estações, as
posições do corpo, as árvores ignotas que conservo na memória.
Busco as pontes levadiças de sua obscuridade
perdida.
Ela tem sido o meu cúmulo do mistério.
Eu me curvo para adentrar sua mandala, um
livro posto na cabeceira do sol e outro acariciando o abismo com suas páginas
passageiras dos ventos noturnos.
Não me esqueço de amar o vulto que cai, o rio
que bebe a própria cauda, a flor vagando pelos resquícios da casa.
Sempre que ela me toca eu reflito acerca do
passado que ainda me resta.
2.
À noite ela se converte em uma crença,
história de fantasmas, lenda.
Repete amuletos e olhos solitários. Repete o
milagre da clarividência. Repete a trama picaresca com que me cavalga pela casa
toda.
Tinge o espaço que habitamos com seu jogo como
se fosse um céu ainda em casulo.
As cores aguardando serem transcritas para a
linguagem de gozo das visões.
Meu corpo reconhecendo seu parentesco com a
devoção.
Ante a escada que separa dois quartos acena
com a euforia de quem se reconhece em outro.
⎼ Aqui,
onde estamos, venha nos ver.
A pequena voz masca a erva de sua avidez.
3.
Quem pensaria em contar os degraus ao descer
uma escada?
Sequer reconhecemos sua ambígua direção.
Do outro lado eu a vejo lavando o chão com as
escamas cintilantes, uma vez mais refletindo a si mesma.
Porém agora me vejo como parte de seu enigma,
resumo do universo em caracteres que sobem e descem por meu corpo.
Descubro-me o zodíaco de suas inquietudes,
livro vital, e me deixo tragar por seu olhar.
A paisagem é uma arbitrariedade do desejo.
Vejo aquilo que me escolhe e me transformo em semelhanças aflitivas.
A luz não mais acaricia o abismo e sim as
hóstias da loucura, os círculos amontoados de tua hipnose.
4.
Os ângulos da paisagem são quebrados em
silêncio. Quanto maior a necessidade de interpretá-los, mais eles se partem.
São acessórios de sua ideia dominante do
mundo.
A quem interessa esconder os diagramas da
ilusão?
Eu quero escolher os meus lugares. Eu quero
dar conta da forma que imagino ser minha. Eu gosto de me sentir devotada a mim
mesma.
Ao sair do casulo o céu perdeu-se de si, e
levou consigo a cor que poderia ser a chave de nosso desaparecimento, de meu
refúgio, de tua ambiguidade.
Os símbolos se contorcem quando cruzam o
deserto.
5.
Eu me retraio. Há muito não me sinto
distanciado dessas paredes. Cuidei de evitar sua destruição: pajear a visita
dos ventos, entregar-me às minúcias da luz, amar-me em sigilo, sendo todos em
mim. Jamais sonhei com outros mundos ou fiz parte da destruição universal. E
agora essa garganta quer despedaçar meu silêncio. Como alguém pode se sentir
penetrado por um desfiladeiro? Eu me retraio. Eu não quero combater. Nada em
mim aceita se tornar um herói.
6.
A casa agora se multiplica em formas
imaginativas da devoração.
Os olhos se convertem em bocas. Há bocas por
toda parte.
Olho meu corpo, até onde posso vê-lo, como há
recolhido todas as duplicações, como se contivesse um espelho em si.
Vago travestido pela casa, sem que me
reconheça mais na totalidade de meu ser.
Talvez tenha sido replicado pela luz,
convertido em um modo apropriado ao leque da analogia.
Vim aqui para livrar-me de meus disfarces e o
mundo me quer de volta.
Não há como escapar de si mesmo?
7.
Olhem bem ao fundo a espiral que deixo para
trás.
Reuni os artifícios que me invadiram o ninho e
com eles esboço uma espiga.
Este sou eu agora, sem que me preocupe quanto
tempo dure.
Somei os atributos de aspectos que sempre me
soaram alheios ao espírito.
Não sei o que vou enfrentar, nem tenho êxtase
ou angústia diante do que deve haver fora daqui.
Uma persuasão do acaso? Maldição do
estrangeiro? Uma oportunidade de vida?
Desço a escada. Masco o anseio indisfarçável
de meu olhar.
Toco meu estômago como quem tateia o percurso
do abismo em si mesmo.
Sinto-me ao ponto de ser todos.
VITRAIS DO TEMPO
As imagens nos visitam e logo se
perdem porque não as percebemos ou não as anotamos. As imagens constituem os
vitrais de nossa passagem pela terra. O tempo necessita ser amarrado ao pé da
cama, como uma cadeira impedida de sonhar com asas. Uma libélula esmagada por
duas folhas de vidro acaba por se tornar o símbolo acentuado de suas vertigens.
A secreta idade da queda, o prenúncio da miragem, as duas mulheres passeando
abraçadas e a velha cogitando a eternidade em seu tremor solitário a confundir
a própria idade. A vida se repete em seus mínimos apetrechos desconexos entre
si, como tatuar números na pele, reinar sem súditos ou polir as asas da xícara
idealizando a mecânica do voo. Um plano de silhuetas lambe a lua, a pétala do
orgasmo, a caixa de ruídos da inquietude. O verbo detido pela iniquidade é a
minha menina pedindo que eu fosse ao empório buscar sementinhas, a minha menina
que me queria entrando pela tarde e não saindo jamais. O azul da tarde é tão
lindo quando a cidade não sabe o que fazer com ele. A pérola oculta na concha
cega do olhar dos passantes, caricaturas sinistras do que antes fora uma
humanidade otimista. Véu de sedas metálicas, relógios cujos ponteiros não se
movem, fotografias gastas da ansiedade, a angústia como um descompasso de
caminhos, as ruas perseguindo uma evasão de pernas.
Hoje lemos a noite caindo do gancho, o
bife a rolê de tua ausência. Quanto me custa entender que teus requebros me
retorcem o olhar. Eu te vejo melhor à distância e nunca me verás. As pessoas
passam fumando a tarde que esfria, uma senhora consulta seus papéis apressados
como se estivesse perdida, o plano de saúde alinha a gravata do morto a caminho
de seu óbito, a poesia jamais se modificou desde a primeira ave embalsamada.
Nossos lugares-comuns nos derrotaram. Capitulamos por complacência. Sócios do
acaso, mercadores de ilusões fatiadas. Vejo a tua pressa em despir-se, a minha
angústia ao soletrar teu decoro, o inferno organizando um brechó de suas
vaidades. O pecado acumulado trafega entre pastas, as boinas intimistas da
ilusão se excitam em passos lentos, a temperatura cai e me faz cócegas.
Eu fiquei feliz de ali estar vendo o
que ia e vinha: o mundo se desconhece nas ruas, o inflamável susto de ser
tocado por alguém, o pânico ante o inesperado, uma letra perdida e ninguém mais
acha o alfabeto. Nas ruas é outra a pronúncia do mundo, e não nos compreendemos
jamais.
CINCO POEMAS PARA SOCORRO NUNES
1. REINO DE
VERTIGENS
Teu corpo e o meu
caindo sobre o mundo:
noite saqueada
por uma caravana de relâmpagos.
Despojos do tempo
foragido de sua fonte,
minando abismos à
deriva, perdas flutuantes.
O rosto deformado
da beleza que as ruínas cultuam,
linguagem
extraviada ao querer entrar em si.
Teu corpo e o meu
em sua queda mais secreta.
Um labirinto que
fosse um deserto e um deus
ciente que dali
não há retorno. Fuga de trevas.
Os disfarces
fatais da memória ante o infinito.
Indetíveis
sombras caindo sobre o mundo.
Teu corpo e o
meu: o que resta de um no outro.
2. UM VÉU AO
ACASO
Teu véu me visita no acidente das noites.
Ainda estou aqui. O meu papel no abismo é te
proteger.
Porém me desfazes mil vezes,
como uma pétala aprendendo a ser o próprio
outono.
Sempre tivemos um segredo cujo nome
se reescrevia em letras distintas.
Um nome perdido no labirinto de sua essência.
Talvez uma repetição de vozes que nos levam
por inúmeras salas.
O mar dentro da pele.
O sorriso fora do olhar.
Um espectro protegido pelo acaso.
A última ideia de que a chama da alegria possa
um dia extinguir-se.
Teu véu sempre cuidou de meus desvarios.
Sempre a mesma cascata a assumir formas
insondáveis.
A relutante metáfora que nos assedia – este
vozerio de truques da realidade –, sempre a lemos como um enigma breve, com sua
voltagem de mistérios que nos tocam apenas por um instante.
E logo me recolhes em teus braços.
3. RABISCOS
PRESSENTIDOS
Os dias mascam a própria pele à
procura do que sequer desconfiam. São devotos do inimaginável e por isto estão
sempre a cair de si. Os dias foram concebidos como uma tela de proteção para todo
desvario. Porém jamais se sentiram à vontade pela recusa ao pranto e ao sonho.
Os dias conjuram seus esquecimentos voláteis e a brisa secreta do acaso. Eu não
vejo motivo para acreditar mais nos dias do que nas noites. Serão antípodas?
Amantes insuspeitáveis? O que somos para ambos? Há mais de um século escrevo
sobre o irreparável na colcha do tempo. É bem possível que estejamos crendo em
deuses irreconciliáveis. Os mistérios se reproduzem como se pouco lhes
interessasse desvendar o que está se alimentando de tantas dúvidas, tantas
quimeras afásicas. Uma vez meu amor desceu do mar e me disse que estava bem
cansada, que eu já não poderia contar com as suas âncoras e os diários de
bordo. Naufrago até o momento em que escrevo este poema. Tampouco intuo o que
será de minha vida, até…
4. PROFECIA PENDULAR DOS 63 ANOS DE SOCORRO NUNES
As
noites dizem sim dentro da alma desamparada e me levam ao teu corpo nu como um
rio.
As
sombras cruzam suas pernas dilaceradas pelo sol e a memória celebra seus
disfarces improváveis. Releio tudo quanto imaginamos um dia decifrar como
linhas favoritas que nos trazem de uma palavra a outra.
Nossos
sapatos famintos devorando os restos de uma estrada e as escadas extenuadas
regando os degraus da escuridão.
Somente
tu pareces compreender quantos somos em meio a tantas casas decantadas.
Ouvimos
a pedra soletrar o próprio abismo em uma canção improvisada.
Despimos
as cordas que repercutem os melhores acidentes de toda uma vida.
As
migalhas do horizonte ainda acreditam que podemos refazer as páginas esquecidas
em outros livros.
Vivemos
como frases quarando na intempérie.
Fomos
somente tu e eu em meio às espigas do desejo e as aves negras do esquecimento.
E
ainda estamos aqui. Não importam os postais esmaecidos da paisagem ou os
rascunhos sigilosos do que não soubemos ser.
Ainda
estamos a bordo do acaso e da aspereza enxovalhada do dia.
Dedicados
e delicados. Como uma nuvem que ausculta o coração do tempo.
Como
o silêncio que rege uma sinfonia de rangidos e outros presságios.
Somente
tu e eu. Dois rios dentro de uma mesma fábula corrente.
5. RENASCENÇA
A grande
taça aos solavancos,
suculenta
como sonhos virginais,
embebe a
lentidão de sumos
que
lubrificam o desgaste do tempo.
Deusa com
estoque de lábios
para as
tempestades atômicas,
decifra a
angústia de mil reinos,
deslacra as
estações insolentes.
Nome que é
todos os nomes,
beija-me a
própria renascença.
VINHETA
Viajas pela terra, vês tudo o que está
dentro dela, observas todos os negócios da tua casa, e comes pão, tendo sido
efetuadas por ti transformações iguais às de Baba.
TAQUERT-P-URU-ABT (texto funerário)
Teu corpo floresce selado em páginas
necessárias.
Santuário que surge e pousa e torna a
ausentar-se.
Um abraço de folhas naquele que te abre à luz
de enigmas proporcionados pelo tempo. As
porções
de um mesmo dia que albergam tremor e sombras
de tudo quanto o homem julga torná-lo um
santo.
E um chão de folhas caídas (a cela repleta de
folhas)
a traduzir a travessia do que recita a própria
agonia.
Tarde passas por aqui, vinda de tarefas que te
inundam,
o corpo ainda em sopro majestoso florindo um
suave
estojo de frases do coração e a saúde de ritos
erguidos
por todos os feitos vitoriosos da respiração.
Onde estás?
Tuas letras nos chegam em súplicas e
cuidadosas dores.
O homem é preservado graças a seu duplo. E
floresce
em papiros relutantes enrolados em teu corpo.
Aceita
a companhia de deuses para que dali triunfante
ele saia
a soletrar seus martírios e dobre as folhas
lidas de modo
a não retornar nunca ao que supõe ter sido um
dia.
Onde estás? Mesmo que digas que o vazio é como
estar
perto de ti, ergue-se o dia a cada dia sem
rejubilar-se
por tal façanha. Os deuses alargam o passo. Os
homens
se julgam santos. Uma mesma tinta glorificada
lacra
sua passagem de um tempo a outro: a memória
é o sangue, as palavras mágicas, a firmeza da
ilusão,
a rubrica de dotes sacrificiais implantados no
espírito.
Teu corpo floresce exaltado pelo nome e por
todas
as formas que exaurem a devoção. Teu corpo
oculto
como um pássaro no céu a degustar os tremores
do voo.
Decerto será misericordioso o calor de teu
corpo
estendido ali onde a miséria triunfa. Ali onde
causa dano
a oportunidade perdida. Ali onde continuamente
o ser
perde sua linguagem. Bem ali onde morreremos
inúmeras
vezes, onde as vozes escolhem seus louvores e
assinamos
com trêmulo vigor as faixas que garantem que
teu corpo
não seja jamais despedaçado. Onde temperamos a
odisseia
de ilusões de que floresces. Onde és o corpo
sob nossos pés.
Deusa de um túmulo encravado em nosso
espírito.
Não há quem a proteja de si mesma. Rabiscos
por toda
a pedra santa. O verso é o verbo diante de si.
Dentro
do livro está o homem: carregado de sombras e
vertigens.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
∞
Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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