quinta-feira, 20 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Mecânica do abismo


Não sei se em outro campo as coisas me chegariam com a mesma facilidade com que elas são atiradas em minha pintura.

FRANCIS BACON

 

 

DORES DE NADA

 

Um corpo marcado a arpejos.

Dor engolida como oração,

súplica inversa onde o que está fora quer entrar a todo custo,

participar do teatro de uma dor referida,

corpo herético a recusar o suplício

dessangrado despido de apreço:

um corpo hóstia

anunciado em circuitos abertos e fechados,

mortalha ausentada com vislumbres de sensualidade.

Corpo arrancado de si e mesmo assim gozoso.

Turvação de princípios,

a dor passando por tudo o que jamais imaginara.

Um juízo reservado de quedas:

o inferno chega a ser divertido se identificas o olhar dos suplicantes.

Um corpo que ainda fale e diga: só eu julgo,

onde nada resta a ninguém,

parvoíce igual em congresso ou prostíbulo algum.

Todas as dores são extensas.

A facilidade com que falamos em morte se esvai

quando a mesma nos toca em dor

e dor a única que entendemos,

na própria carne.

A dor alheia é uma metáfora da dor:

o corpo invejando-se em partes não condenadas,

tecidos aviltados em campanha,

que ideia temos desse cadáver que começa a empestar?

O corpo que vi pode ter sido do diabo

– atividade duvidosa essa de desvelar máscaras.

Caímos de tantas fraudes

que já não cabe a queda vincular-se à verdade.

 

Foste uma dor única,

arremetida contra a face inorgânica do ser.

Uma metáfora da dor doída sem rosto.

Impressos diziam que nada dói mais que o silêncio.

Havia um acervo de corpos espoliados,

dores caídas do âmago de anjos,

modelos recortados sobre a pele gélida de mesas na morgue.

Já não se pode pensar em onipotência de espécie alguma.

Em meio ao mais dolorido silêncio

corpos se apropriam de sua inutilidade,

buscam na ausência um argumento,

salientam com a frigidez ritualística

que o dentro ou fora da dor é a mesma dor:

um corpo levando consigo todo o inferno de que se lembra.

 

Ao reler a ordem para o sacrifício

um corpo depara-se com outra dor:

a repulsa cruel a toda beleza,

formas corrompidas que se guardam na memória,

testemunhas de misérias sobrepostas.

Impõe-se a verdade de que merecera ser punido

e dilacera-se alheio a qualquer dúvida:

Não vejo recusa para tal argumento,

repete o corpo sem que haja argumento algum,

crendo-se retornar ao princípio,

deus banhado em sangue,

dor despojada de si apoiada em outro mistério:

à beleza o que lhe é devido.

 

Um corpo se pinta com letras que soam desencontradas,

caligrafia bastarda que não se revela de todo:

fraudes congregadas,

a mínima dor em que se possa acreditar

tornar vergonhosos alguns gestos,

símbolos empilhados à espera da recolha de lixo:

por onde passa um corpo defeca suas lástimas,

perdas adicionais que lhe tornam mais confusa a imagem.

Curvas lúbricas são expostas

e cascos e rabo e asas em plumas desalinhadas,

um corpo tragado pela memória em seus mais torpes rituais

entre sombras excitadas com a leitura dos manuscritos,

carnes refeitas em letras flamejantes:

o que se masca é o que se cria.

O perverso é demasiado simples:

escava a forma apropriada de cada coisa,

opõe-se à influência do previsível.

Sombras inspiram-se na luxúria de epigramas profanos:

bem dentro de si o homem encontra-se agachado estranhando que ainda esteja ali.

Um corpo será sempre inacabado.

Não haverá deus que o desnude ou diabo que o vista.

Nascem-lhe mais genitálias do que asas.

Alterna modelos criminais entre risos e cínica frieza.

Um corpo com seu traje cômico de tragédia interrompida:

dentro da veste em que se esconde nada mais lhe dói.

 

Deriva ulterior, um corpo entregue à própria reverência

sem que morte alguma mais lhe valha sentido,

Formas expelindo a si mesmas,

camuflagens corrompidas aos olhos de provas mínimas:

um jogo de sombras resignadas estudadas em classe,

curso de pilhagem,

retórica dos estilos pitorescos de cada uma desfazer-se de si.

Um ferreiro molda-se em árvore que canta um lamento de ave condenada ao mergulho de bestas com seus fatos básicos expostos no dorso de um peixe cujo salto fora d'água descreve a agonia de um universo que em vão procura por si no ferro que empilha o ferreiro para moldar-se em árvore.

Pilhagem de corpos,

bagaços de membros despojos de seios tendões ideias…

Uns risos agonizantes gozos interrompidos máscaras sem assunto ou bordão…

Um corpo assim tão propício à farsa

é o que mais se encontra em empórios de arte e ofício:

um mercado de corpos para a melhor das quedas.

 

Ignora-se no corpo o que o condena ao hábito,

o que o torna um cárcere pomar regueiro de dores correntes:

rostos ausentes no combate às máscaras,

dilema de pequenos papéis descontínuos,

evasivas que se arrastam pelo cenário de carnes suspensas e forquilhas com veias expostas.

Toda intimidade parece intrusa,

a mesma fala recebida todas as noites como um vaticínio a desgastar-se.

Um corpo entregue ao pecado de ser apenas o que conhece.

Pescado de repetições de gestos atribuídos a si.

Origem confusa do que já nem sabe ao certo se é dor,

removido de cena,

desmilinguindo-se ao ser arrastado,

desfeito em mística e com uma imagem saturada no canto do olho.

 

Um corpo lascivo percorre os ladrilhos da noite.

Funde-se a mil outros em surpreendentes descrições:

a monja a castigar-se para expulsar de si o peludo,

um jovem astucioso entregue aos apuros da sorte,

falos esculpidos em versos e acordes dissolutos,

meninas tocando-se enumerando formas de prazer,

o sangrento assassinato do faxineiro de uma abadia,

cadáveres sobrepostos na agonia da representação,

imagens estriadas por uma avidez ou despeito sutil,

muros pichados com a obscura denúncia do caos,

leitos imundos onde amantes apenas contagiam-se,

genitálias mascadas em rituais e logo abandonadas.

 

O que há de mais herético em um corpo é que saia

de si a frequentar-se em outros corpos que o negam.

 

 

 

RUÍNAS EXAUSTAS

 

1.

 

Dores de memória confundindo o vazio.

Rostos queimando enquanto te esforças para lhes recordar os nomes:

Lucíola

Anete

Eugenia

Aspectos deformados de furtivos deleites,

tardes entregues aos lábios da pálida Eugenia,

dorso entrecortado de beijos,

Anete cantarolava enquanto um pezinho me percorria toda,

aos pulos a alegria acendia os olhos de Lucíola ao caminharmos pelo bosque,

limite fortuito do amor,

por terra caem as folhas da mais esplêndida primavera.

Jamais compreendemos o alcance do mundo visível.

Um dia a língua de Lucíola despojada em minhas coxas

e depois sabê-la espancada até a morte pelo irmão.

O triunfo da realidade será sempre mórbido?

Toques abrasados das mãos de Eugenia extraviando-se em mim:

não é o fim, meu anjo, bem aqui onde suspiras, não é o fim,

dizia-me com olhar travesso,

tardes inúmeras com Anete em uma banheira de hotel,

enlace de entregas,

sagrado beijo pubiano,

amava-me com tal exasperação a cada orgasmo renascendo mais do que qualquer uma de nós.

O marido lhe pôs o cano da arma na boca várias vezes.

Sem coragem para o disparo se punha a chorar a pedir-lhe perdão por tanto ciúme.

Anete e Eugenia estiveram juntas comigo uma vez só:

três crianças esquivando-se do mundo em uma tarde de gangorras,

vivíamos uma fantasia primitiva,

os corpos de Eugenia e Anete foram encontrados nus e amarrados um ao outro,

único disparo em cada fronte:

eu estava certo que ela me traía com outro homem

foi tudo o que disse aquele homem que me privou de dois amores de uma só vez.

Não adianta indagar-se sobre as formas do fogo.

Nada nos custa tanto quanto o instante,

mas em nada se explica ou requer consonância.

Talismãs e ruínas são imagens distorcidas de uma enfermidade do espírito:

o que desejamos acaba se convertendo no que perdemos.

 

2.

 

Tinha-me em seus braços na escuridão insinuante de um quarto de hotel às duas da tarde,

eu lhe pedia socorro entre almofadas e lençóis,

nossos corpos mordendo-se de desejo.

Agarrava-lhe os cabelos com desespero ao sentir a língua mergulhando em mim.

Rasteava-me –

por aqui passaram feitiços divindades simulacros,

tua carne é um fósforo,

nela encontro fiadas as imagens de um renascimento –,

Eugenia não via em meu corpo nada de apócrifo,

lia em seus liames secretos a veemência com que estive com homens,

o mito extraviado desse amor comum:

põe a língua bem aqui é tudo o que desejo…

Chamava-me heroína,

um risco duplo de saber a qual obscuridade se pertence,

atenta que o acaso não vem em nosso auxílio.

Mesmo alguém que não seja privado de nenhum sentido deve saber a quem sacrifica:

uma mulher me espia pelas fendas mais secretas de meu desejo torna minha pele um pergaminho repleto de passagens secretas momentos cifrados talhados por estímulos que vão além da alucinação línguas como plumas que me descerram a cortina de um teatro de sacrifícios as súplicas por feridas mortais hábeis interjeições lamentos infalíveis uma multidão de línguas tocando o revés de qualquer sofreguidão

ah minha putinha…

Eu disse a ela que nada acabava ali,

mas nunca soube o quanto essa paródia se insinuava em nossa vida,

nem sei se tivemos uma vida.

A memória recolhe momentos marcados por todo tipo de ilusão.

Eugenia me dizia que eu era uma suspirosa,

presa a leituras extravagantes do mundo,

uma mulher fascinada pelos caminhos entrecortados subterfúgios enigmas.

Não tenho como lhe dizer agora que estava certa, tão esquiva que sempre fui,

tão somente morta não me escutaria.

 

3.

 

Lia meu corpo confundindo-lhe as estações,

acertava caminhos sem vestígio algum,

atava-me e pedia licença para um beijo na fronte.

A todos os seus caprichos tornava-me compassível,

astuta e bela com uma língua a desenterrar-me recônditos desmaios,

em meu corpo concebia todas as táticas persuasivas do desejo,

tornava-me seu projeto inesgotável de luxúria:

o que sentes quando te toco bem aqui?

A voz de Lucíola vinha coberta de viagens,

tesouro acumulado no estampido de abismos,

voz de enigmas que duelam entre si.

Encontrar-lhe o corpo recusando o cativeiro da morte despedaçou-me toda:

o irmão lhe havia batido tanto,

eu quase podia ainda ouvi-la:

prova em meus dedos o sabor de tua ventura,

Lucíola escapando-me por entre frestas da inquietude.

Sabia fazê-lo,

preparar uma ceia de desvarios.

O corpo agora sem dissuadir-se da tragédia.

Tão quieta, impossível ser a mesma:

jamais quero ver a vida por uma última vez.

Lavo-me o rosto reconheço a idade de algumas rugas no espelho tenho andado a tomar vitaminas sinto-me cansada de mim…

Há rotina demais no mundo,

postos de justificação para tudo.

 

4.

 

Alcançar a penumbra que o leva até sua casa,

sombras mudas molestadas pela noite furtiva,

noite que não busca senão ausentar-se de si.

Um corpo ou outro a testemunhar apenas dor,

inflexível queda desfalecida na farsa do sudário.

Levamos conosco todos os corpos anunciados.

acompanho-me até o que pretendo venturoso:

acaso não andará Deus por toda a casa a tecer

uma malha de dilemas, excursão de angústias,

olhos plantados nas dobras insuspeitas do ser?

Quais vítimas ou mensageiros darão pela arte

o que ela presume ser a essência dessa vida?

Olhares desfigurados, sigilos de rara habilidade,

que estamos prevendo senão o que já vivemos?

 

5.

 

Não sei o que diabos pode ter havido comigo.

Talvez esteja apenas cansada de tanta perda,

vigiar a fadiga por vezes desorienta.

Os bastidores da agonia gozam de prestígios bem pouco originais.

Os amores que fui perdendo não me ensinaram nada.

Suplicantes generosas, não pude dar a elas muito de mim.

Não me foi fácil vir a ser a mulher que desejavam.

Necessitaria uma escolta de deuses para manter-me a mesma.

Mas haveria algum deles libertino interessado em meu ofício de indecisões?

 

6.

 

Corpos transfigurados dissolvendo-se na própria dor,

visões abandonadas simulando um rumo distinto,

toda espécie de requintado divórcio entre ser & coisa,

imagens desvalidas,

braços púbis calcanhares,

o relógio da dor molestando o enigma rebentado dos corpos,

fragmentos casuais de Anete Lucíola Eugenia,

porções de terra divisadas no manancial da neblina…

Agarro-me a tais fatias como quem se entrega a um refúgio,

mas desprendem-se do nada,

são a complexão ilusória do vazio.

Vejo-me então com esse espólio espatifado de meus amores,

omoplatas carcomidas polegares coxas,

imagens destinadas à persuasão da agonia.

Rezo para que sejam alucinações.

Não são.

Precipitam-se como peixes importunos que extraem do mar toda sorte de profanações.

Não vejo mais nenhuma delas.

Apenas a feitiçaria desafiante dos bagaços de seus corpos.

A memória não pode ser a casa de ninguém.

Recolho alguns desses despojos:

mamilos devotos frontes perfuradas pulsos silenciosos,

são pistas de meu tormento,

guardam em si não o segredo do que vivi mas antes os vislumbres de um porvir sentenciado:

a memória lapida os pormenores da consequência,

prepara cadáveres para as honras mortuárias.

Sinto-me uma vítima de seu inesgotável capricho.

 

7.

 

Um dia amei Eugenia amei Lucíola amei Anete.

O curso de uma vida secreta não teme senão o malefício do preconceito.

Somos todos devotos da normalidade,

uma sala de ruínas que guardamos como o bem mais precioso da espécie humana,

a plenitude sob custódia,

incorruptíveis os ofícios que orientam essa vigília,

pendentes as máscaras judiciosas quando acorremos à fidelidade do conceito.

Apenas a dor anima o homem,

a dor transfigurada na impostura da desforra,

qualquer que seja a condenação que celebre.

Na dissertação desse ofício haverá sempre um responsável pela minha dor.

Jamais serei eu mesma a culpada.

As mulheres que amei foram mortas por estarem com outra mulher.

Novos ofícios ambientados no jogo caseiro de ventura e desventura.

As três foram violentamente assassinadas:

Lucíola Eugenia Anete.

Devo agradecer que me tenham deixado viva?

 

 

 

DÁLIA DO CORAÇÃO NEGRO

 

1.

 

Três eram as moças de Dália.

E tocavam-lhe o corpo de incontáveis maneiras.

Laços, plumas, pequenos instrumentos.

Dália exalando gemidos, a contorcer-se nas mãos das três meninas.

Lábios, dedos afiados, seios se multiplicavam com mamilos inflamados roçando-lhe a pele.

Esvoaçante rito de descobertas, umas tantas doloridas, por vezes Dália sangrando.

 

As três moças cuidavam de tudo: não lhe davam descanso por toda a noite, o corpo atravessando febres, letargias, banho de óleos.

Dália coberta de beijos, as três línguas em súbitas reentrâncias, gozo e repulsa.

Em um instante a morte lhe soprava um verso de René Char: disciplina, como sangras!

Refeita, dizia o quanto adorava as meninas. Riam juntas, encharcando o quarto com um riso tenebroso, corrente de sibilantes frases de riso enroscando-se no espinhaço da noite.

 

Dália reconfortada pelo vinho daqueles corpos.

 

2.

 

As primeiras vozes vieram com o negro sol,

despojadas sobre os desertos do corpo.

Vastidões das misérias humanas, Dália cativa de murmúrios, quem a escuta?

As vozes não ouvem sequer o que falam.

As três meninas dizem [sabemos]: morte morte morte, porém se espalham por destinos distintos.

São flores queimantes na carne de Dália.

E racimos de gozo e hóstias danadas e pedras tocadas por uma invisível solidão.

Querem o que Dália oculta de si: a perversão tremenda com que o tempo se mostra espaço, o horror de máscaras que sustentam o inverso do que são.

Um personagem assim não sobrevive sem as fiandeiras cruéis do destino.

 

3.

 

O primeiro corpo de Dália encontraram-no em um roseiral, ferido de amores inconcebíveis, docemente beijado por espinhos.

Havia um tu és nossa tatuado logo abaixo dos seios.

O que fazer senão seguir-lhe o silêncio,

a dor agora desfeita, o tráfego da ausência?

 

Talvez não se possa mais que meditar ante o assombro desse corpo, decifrar-lhe o alcance, a tateante queda de seus trapos,

carne circular do espanto, carne do ardor,

asfixia do desejo encerrado em versos.

Dália, uma delícia gozada na escuridão,

um lago de sangue, a imagem começando a desesperar-se, úmida ainda, ante a fiança de vozes que lhe circundam o corpo.

 

Uma morta anuncia a primeira trama do destino.

Senhora conosco, quais bênçãos as de hoje?

 

4.

 

Dá-me teu corpo agora, Dália.

Não posso esperar pela segunda Morta.

Nudez abrigada por cubos de gelo,

mamilos afiados e pelos bailando em tremores contagiantes.

Suores mesclados à luminosa escritura do gelo,

desejo-te agora e beijo teu corpo inteiro.

Ao penetrá-lo me desfaço de tudo em mim,

outras sombras falam, outros volumes se mostram

e tudo se modifica em nome do gozo que mina de uma urna de estrelas vazante de espectros latejantes festim de esponjas a úmida plateia de teus impulsos Dália Dália alucinações de puro drama a pele por dentro um ardor de entranhas teu sexo aturdido me devorando à sombra do espinhaço quebrado da noite

oh Dália,

tudo o que mais amo em ti:

a floresta de teus gemidos,

o júbilo de tuas mãos,

um martírio de ânsias explosivas,

não posso, meu amor, não posso

deixar-te à espera da outra Morta.

 

5.

 

De joelhos,

ante o suplício da memória:

lábios soletrando a dor ainda presente.

 

De joelhos,

ante o oratório da queda:

vozes decifrando o obscuro em cada cena.

 

De joelhos,

ante a expressão de tua ausência:

corpo desfeito mil vezes e aqui refeito.

 

6.

 

As três mortes inquietas completam um círculo medonho: Alfredo indaga acerca das formas assumidas em cada rito. Fúrias de barro, estatuetas revoltas, andaimes que despencam quando da visita de fantasmas. As três sombras que retornam ao corpo do amante, meninas assanhadas que evocam uma ciranda de travessuras, adivinhações da carne e do espírito. Dália em todas elas e Alfredo a dar-se conta da própria cegueira.

 

7.

 

Três eram as moças de Alfredo.

E em nome de Dália iam e vinham pelos desmaios do tempo.

Como chamá-las senão como sempre: morte morte morte?

Repetidas vozes, sombras delgadas, três tramas refeitas, seis mãos furtivas e um mesmo ventre sorvendo-se entre espelhos.

Alfredo recurvado sobre si, habitado pelas meninas febris que lhe tocam todos os instrumentos, amparo de quedas, reconforto de uma sombra em outra, pranto ante o mito perdido:

 

três vezes Dália, três vezes Alfredo.

 

8.

 

Roedores confabulam em uma ceia de papiros.

Contar é existir, entre guinchos sarcásticos

deixa escapar um deles. Mortos os amantes,

que amor conhecerão agora?, indaga um outro.

Divertem-se com alguns manuscritos os ratos:

Dália não dava repouso a Alfredo, mostrava-se

mãe amante irmã e o tolo deixava-se seduzir

pelos caprichos vorazes de quem julgava amar.

E logo outro apressa-se a roer e contar

a própria versão: Alfredo tinha visões, um mapa

de precários vultos que lhe atormentavam.

O mais faminto: o débil inventara as três moças.

E seguem roendo pedaços a mais, os restos

da história, refazendo-a sem nenhum pudor.

 

9.

 

Teus demônios favoritos começam a dançar, Dália. Não mais as moças perenes, ninfas ou parcas, mas sim vultos mesclados, imagens fétidas, tambores suando cânticos, três bestas no açoite de falos e teus lábios mãos ventre, mulher errante, azeitados pelo enigma da noite, resumem a sagração de todas as dores. Teus demônios em cascos pisoteiam o fervor das entranhas da terra, a concha vulcânica que expele ódio e amor, o bem e o mal, e tudo em ti é graça infernal iluminando o tempo além do tempo, Dália radiante com suas máquinas de gozo, rindo-se do próprio corpo estraçalhado por incógnita delícia, o rosto de Alfredo saltando do olhar daquelas três visões, indo e vindo, como uma lâmpada falhando, esboçado pela memória ou induzido por réstias do desejo, o rosto sussurrado em meio aos requebros da esfinge e uma orgia de archotes.

 

10.

 

Um dia abriu a porta e deu com o vulto,

aquele homem lhe sorrindo entrecortado,

como se estivesse ciente de um fardo,

ela calada o fitava, imaginando quantas

vezes poderia tê-lo nos braços, ele,

intérprete de uma vida tão dispersa,

ela guardando consigo gotas de sangue

de um antigo amor, o tempo inteiro

a indagar-se o motivo daquele capricho,

e ali, diante daquele homem, um clarão

a atinge e lhe faz ler a caligrafia veraz

do destino, à sua frente mostra-se quem,

a qualquer custo, ela deveria matar

com o sangue envenenado do amante.

 

11.

 

Ao longe se vê uma grande festa.

Selvagens golpes da luxúria sangram a paisagem de sóis que retornam ao sonho de cada personagem.

Três músicos acendem uma dança audaciosa.

Dália agachando-se sobre o corpo de Alfredo, sombras gemendo desesperadas por novas formas.

Como aprofundar o batimento dessas árvores,

o tenso agulheiro onde se agitam e gozam e se retorcem as árvores que são pássaros e Dália e Alfredo?

Terão ali ocultado uma biblioteca de tormentos,

os livros secretos do abismo, com pés e mãos atados para que as visões não sejam jamais tocadas?

Incontáveis eu te amo foram pronunciados:

a sopa de sarcasmos dos ratos, a pasta de ervas das meninas, acordes desfigurados, encantamento.

A noite de Alfredo cabe no ventre de Dália,

e se agita em suas ramagens, noite possessa vestida de vozes em íntimo contato com outras cenas.

A noite de Dália avança, penetrando a si mesma,

transparência afinada pela dança, entoando a nudez ardente de palavras que são o segredo cobiçado,

uma vez mais eu te amo em vigília de chamas,

criaturas de espanto que saltam iluminadas pela mansidão desse amor contraído em plena queda.

 

12.

 

A morte esteja comigo, senhora dos versos.

Serei o mago, o fantasma, o peregrino

e beberei a seiva das danações, o caldo

 

de vísceras de palavras enterradas na areia,

sêmen sacrificial, azeite de orações, tudo

o que me sirvas na cabaça de teus ritos.

 

13.

 

Meu corpo grita dentro do teu: quem sou?

E um eco nos visita: suas sílabas são minha água meu pão sob o relâmpago, versos de Ludwig Zeller que há muito vivem comigo, como é possível que estejam ali, em meio ao recorte de nossas pernas, ao estrondo de gozos de nosso silêncio?

Como te moves, memória errante?

Em que derrame de abismos me localizas?

Quanto mais a amo, mais me perco e me atrai o fervor de carnes abertas, o desfiladeiro dos lábios, a bunda golpeada pela língua de espelhos que atravessam a plumagem delirante daquela mulher,

Dália encarnada em quem me toque,

presença inúmera que ainda assim me suspende, com um alarido flamejante – quem sou? –, gorjeio de náuseas, capítulos deixados por ler, rostos submersos no carvão iluminado dos mamilos, pequenos pássaros bicando as migalhas do relâmpago,

ela,

sempre ali e contemplada por um bulício de sílabas,

as mesmas de Zeller, revoada de raízes, manancial de vertigens, copos de terra para um brinde acumulado de desmaios, a tudo me devolve o tambor enlouquecido no deserto: quem sou?

E uma vez mais,

enquanto me arrasa de prazeres.

 

14.

 

Agora tens enfim tuas letras

   e uma outra forma te invade o ser.

      Agora me tens nos braços

            e meu corpo insiste em romper-te

               os laços com a dor do tempo.

                  Reviro-te em murmúrios, Dália,

                     e entre curvas me enfeitiças.

                        Agora dominas tudo em mim,

                           e estou fartamente entregue

                              ao lampejo de gozos que me guia

                                 até o mais recôndito abrigo

                                    de teus ossos tua carne teu nada.

                                       Agora percebes o que sempre houve:

                                          a magia de sermos um o outro.

 

 

UM LIVRO DE ÂNGELA

 

1.

 

Livro caído sobre o espelho,

o bastante para que Ângela se pusesse a reunir as imagens todas que a memória lhe permitia.

As páginas não eram propriamente um abismo.

Mais do que fantasmas saltavam da embocadura de seus cantos,

anatomia de centelhas,

versos refletindo o que há minutos nem se poderia imaginar.

Porém um livro caído sobre o espelho

pode não ser de todo nem livro nem espelho.

A grande utilidade da memória é não interferir em cascalhos e avarias do lembrado,

deixá-los reunir as pistas do que se presume essencial.

Ao ir de uma página a outra do espelho, Ângela anotava as guias,

recantos,

parágrafos entrecortados,

corpos empilhados,

ilustrações da agonia.

Esmerava-se em seus apontamentos.

Há um momento em que a vítima se mescla à natureza do crime.

A reação pode vir a ser o pior de todos os males:

aguardar o morto chegar para dar entrada no processo,

mesmo com o livro caído sobre o espelho.

 

2.

 

As lágrimas de Ângela sugeriam que não era tão longa a distância entre o ocorrido e o motivo.

Apenas uma morte lhe persegue.

Como encobrir a queda de um livro sobre o espelho?

O que lhe há de revelar é toda a existência além da quarentena:

desastres discrepâncias capítulos simplificando dores intensas…

O espelho nos oferece uma metáfora de exageros.

Não vemos tudo aquilo.

O que se reflete está além do visível:

abismo impresso nas dobras da memória.

Ângela folheando-se em busca de um elo entre espelho e livro,

rabiscos transfigurados da ansiedade.

Rascunha metamorfoses a pobre Ângela:

…o que há de ser o verso o bálsamo a alegoria essa animação de anseios a ideia que nos foi implantada de uma salvação mesclada ao desmaio desajuste falseamento a arte decaindo em sua expectativa humana anotar padrões de comportamento mas sem que se possa remediá-los anotar o quanto estamos nos perdendo em engodos ah mas essa tem sido toda a nossa existência um povo dedicado a anotações…

Por quanto tempo?

 

3.

 

Ângela reunida em fragmentos de suas dores.

Realidades pendendo de molduras corroídas,

primeiros recortes de memória,

colagens enigmáticas com anjos mordidos por Cérbero,

precária obstinação onde tudo se crê retornando ao que jamais fora possível:

reflexos infinitamente gastos,

tesouras cegas,

anotações à margem sem propósito algum.

 

Esse compêndio de falhas plantadas com astúcia na trilha deixada por uma estirpe de sombras alucinadas,

flagelos do desejo,

inventário de renúncias,

arca de esvoaçantes cicatrizes,

esse favo de almas que sugere o lance de escadas no olhar de Ângela,

o que nos dirá?

 

Cidades que percorremos em busca do inferno,

imagens sangrando em parágrafos ilustrados por uma anatomia assustadora,

tantos versos saboreados pelo carvão,

o que essa escória permissiva da agonia nos dirá?

 

4.

 

Ao caminhar pelas ruas de Ângela o busto de uma celebridade local mal disfarçava a indignação: quantos livros não são encobertos justamente pela leitura?

Nossa vida está a repetir-se de maneira impensada,

alguns pronomes foram engolidos ou descriminados.

Quando indagamos para onde vai o pensamento depois que o pensamos sequer percebemos que já o perdemos enquanto o pensamos.

Colecionar híbridos como se fossem anomalias,

como quem serve por iguaria rara salada de mestiços e travestis e a ressurreição como prato do dia.

O jovem discípulo de qualquer onda ao ler Ovídio sente um choque e indaga ao mestre de turno: a transfiguração deve ser mesmo lavrada em cartório?

Já não sabemos a que distância estamos de nós mesmos.

Esse pseudo mito da desrazão foi convertido por intelectuais e artistas no oportuno charme de uma falta do que dizer.

O livro como o pensara Vigo

– lugar onde se realiza a poética do universo –,

foi convertido em um bestiário de lesmas mancas,

cardápio de excentricidades onde são servidas pupilas de ostras em fatias e lábios gratinados de poetas surrealistas.

O passo que demos além da modernidade não pode ser um apêndice dela mesma.

Todos nos tornamos colecionadores vulgares de uma precária visão da utopia.

 

5.

 

Ângela me disse um dia:

Se não andasse por aqui toda essa sorte de malucos eu não me sentiria a metáfora concêntrica que imagino ser.

Um deles escreveu na abertura da própria exposição: tenho dedicado a vida inteira a um cuidado lapidar de jamais ser entendido.

Indexar verbetes aos motivos da morte não a evita em circunstância alguma.

Estamos sendo atropelados por uma angústia sofismável do conhecimento,

tapeados pela parvoíce

dos tolos providenciais que estão tapando o sol com uma peneira.

 

6.

 

Escrever assim em quebradiço,

dando a falsa ideia de ser nada.

Pender para um ponto ou outro,

mudando de forma ou de olhar,

pingando uma imagem ou duas,

tornando o tolo em santa realeza,

glossário de ideias mal defendidas,

crendo que dure a geometria…

Nem todo um livro de Ângela

recolhe essa anatomia desfigurada do desejo.

Há algo que lhe escapa

como se pensássemos na evolução de um mesmo dilema:

somente a impostura garante o sucesso?

Estamos condenados à taxonomia?

Pensemos um pouco que seja:

toda a arte não passa de intencional catalogação de dilemas?

Não abrimos um livro ou ouvimos uma canção ou deitamos o olhar sobre uma tela senão como vítimas de uma torpe estatística?

E com que propósito defendemos o trâmite das profissões, o amor supostamente entranhado, a regalia dos filhos bem encaminhados?

Em que espécie de farsa nos empenhamos tanto?

 

7.

 

Uns pequenos corpos amontoados,

ossadas em desalinho,

retalhos de sombras chamuscadas,

pontas de espectros evocados,

genealogia de fantasmas…

Ângela recolhendo diagramas mitologias amuletos com marcas de dentadas,

trapos de espelhos,

lápides arranhadas,

mundo despedaçado e recheado de angústia,

anima intoxicada…

Que espécie de veneno saboreamos embebido em sofismas?

Sentei-me a seu lado a cabeça recostada em páginas raramente visitadas:

corpo descrevendo o abismo,

broto de quimeras,

mudas de um desejo que se refaz.

Ângela me oferta a caligrafia de suas vertigens,

encrespa-me enquanto perdura,

é apenas o instante,

e quando lhe abrimos as vísceras não há semântica que nos leve além do instante,

transfigurado ressurreto melancólico derruído,

porém aquecido pela mesma complexidade:

a dor do instante.

 

 

CATÁLOGO SECRETO

 

Algum dia eu poderei recordar o que houve aqui. De alguma maneira serei Olívia, o corpo fluindo as múltiplas formas que assumem diante de mim as esculturas de Antonio. Talvez apenas suponha tratar-se dela, que seja ela a reconhecer-se em um breve gesto meu. Algo como a simples menção de um sonho, do que nos desperta. Importa que sejamos tão reais agora, se não vamos nunca além de nossa memória? Tê-la esculpido alguma vez faz com que eu me sinta hoje tomada por suas mãos. Antonio com meu íntimo em bronze. Não desejo mais do que ser Olívia: o que supunha fosse e o que lhe desvelou Antonio. Sou-lhe então completamente a matéria sonhada que se refaz a cada olhar. Decerto soubera bem antes: o que hoje se revela, já o somos há muito. Era seu destino converter-se nas formas que ocorriam ao escultor. Reconheço-me então em tudo o que vivera. Ao tocar em mim Antonio sinto que não requer senão outras linhas, outro movimento.

 

Quem serei nesta noite entre sombras tão íntimas, erguidas diante de mim como um canto? Sei que busquei seus traços, o apuro do bronze em sua pele. Por mais de uma vez Olívia dissera que o que nos unia era o espanto. Nada lhe afligia. Creio que dava a todas as coisas um melhor sabor. Encomendar-lhe o espírito ao bronze não terá sido inconcebível. Comigo conheceu apenas alguns crepúsculos gastos pela amargura. Eu a amei com fatalidade, antevendo cada espectro de nosso rompimento. Sei agora o quanto ele mudou as formas de meu canto. Não será tarde, já que a reencontro aqui tantas vezes à minha volta. Partes suas: braços vultos ancas. Não de todo fragmentos. Olívia infinita recuperando-se em cada mínima agonia do bronze, ansioso por contá-la. Mesmo que a tenha perdido, guardou para esta noite um último encontro. Interrogo-me então o que posso desatar senão outro labirinto da memória. Olívia reunida em trinta esculturas. Eu perdido de mim infinitas vezes.

 

Então haverá uma porta e outra e muitas mais,

inumerável a extensão de sua secular investida.

O passado composto por estranhas partituras

que emaranham seus átrios e seus porões.

Então uma vez fui Olívia sem que esperasse sê-lo.

Esquecida dos rostos incertos que poderia ter,

com rigor desfiava sua métrica e sem pressa alguma.

Pareciam heréticas as pessoas do verbo, infames

na luta para que não lhes escarne o esquecimento.

Temiam ser apenas uma agonia de espelhos

no corredor imaginado como uma vasta justificação

de tudo o que fomos, sempre ali com seus motivos.

Inúmeras as portas e as vezes em que pude ser Olívia,

tendo sido apenas uma sem que conseguisse evitá-lo.

 

Vejo a mim em todas que se sentem transidas pelo evangelho de suas formas. Felizes as que se sentem amadas por seus esmeros táteis. Afortunadas aquelas que se deixam acender por um truque hábil. Bem-aventuradas as que encontram no bronze um cúmplice de suas ênfases desterradas. O mundo segue dividido entre o espírito e a letra. Não importa o que pensemos, impera a angústia e o orgulho. Somos ambicionados pelas formas. Amei Antonio em meio a seus cinzéis. Fomos sua imprescindível possessão, linguagem sem a qual seu declínio sequer seria misericordioso. O medo de perder-me lhe impôs uma disciplina assombrosa. Deformava tudo à sua volta, para que delineasse apenas o que supunha ser meus traços. Não pude seguir vivendo indecifravelmente. Antonio me amava a cinzeladas. Felizes as que se edificam diante do quanto me desfiz de mim. Decerto que sou todas elas.

 

Procuro não ser devastado pelo passado. O que fui não revela senão o tempo vivido, não mais necessita ser um teorema. As formas que tracei sentem-se já reveladas. Os dias se vão incorrigíveis, sem que lhes evitem as reminiscências. Sei que sou o dia, mas sou também o que resiste a sê-lo. Somos sempre a imagem e os aforismos de seu declínio. Tenho em minhas mãos as cinzas de Olívia, a glória de tudo o que foi. Não espero que a beleza propicie algo menos terrível. Talvez devesse dizer que também o sofrimento é uma dádiva. Detenho-me na busca de sombras. Tanto as que se erguem para buscar em mim o perdido, quanto as que despertam iletradas ante o assombro de incalculáveis ermos. Defendo-me com o bronze inquieto que reconhece todas as formas. Defendo-me do passado, da curiosa esfera caída de tudo o que fomos. Cinzelo a alma indecifrável do que deixamos de ser, certo de que um dia ainda o seremos.

 

Algum dia eu terei dito que me tenho sem aflição. Outra não era sua pirâmide necessária. As formas buscavam serenidade e fui o vértice predestinado. Devorava-me minuciosamente com seu ódio pelo pão. Sempre estive pousando para ele. Despia-me de todas as formas, com seus inúmeros cuidados. Como fui jamais lhe importou. Creio que nada afligia a execução de sua obra. Tormento e insensatez não eram senão estilhas de seu canto. Decerto que fui sua Olívia precisa. Um pouco ou mais estaria perdida, de volta às perambulações pelos corredores da memória. Tudo o que queria eram formas, e que o seguissem submissas. Agora sou trinta delas. Não sei do que me queixo, se passo a desafiar o tempo. Algo em mim deve supor haver ainda aflição maior.

 

Sonho com tudo o que somos. Sou um ignorante dos hábitos do tempo. Jamais poderei ser feliz. Aqui esta noite reúno trinta esculturas. A princípio diria que são a mescla radiante de meu ocaso e minha aurora, mas sei que se tratam apenas do que resta de mim. Sou uma matéria amorosa dos deuses. Estou em suas mãos. Sou o seu segredo infatigável e a injúria dos seus artifícios. Decerto ainda me chamo Antonio e alguma vez amei Olívia. Jamais me desvencilhei de seu amor. Não me importa onde andará, que recordações amontoa de mim. Não serei intolerável com essas trinta figuras que assumem perfis inomináveis. A todo instante somos exaltados pela memória. Quero apenas ser melodioso em meu êxtase. E que esta noite inaugure mais uma de suas dores sonhadas.

 

 

AMULETOS NOSTÁLGICOS

 

Ser tua imagem sem causar-te aflição,

figurando em teu ser como o fogo.

Passas por mim e não me fraudas a dor,

em paz com o deus de tua morada.

Tu me deste o espírito e me deste o olho,

o côvado profundo em que me ponho

para que lutes com toda a força do nome.

Teu duplo refaz o que tive e vi e fui,

sombras cujos atributos conspiram ainda.

Uma delas mora em reticente escuridão.

Outra se arrasta por rostos que recuam.

Haverá uma que me vê trazendo a noite.

São como palavras herdadas pelo fogo.

Por toda a terra vagam e nada cresce ali.

O nome é apenas parte de seu legado,

um dos símbolos da morte que entalham

em formas várias e suplicantes versos

que dizem o mesmo dá-me um caminho.

Figuras de pedra e madeira e porcelana,

as mesmas que temos sempre em casa

e que não deixam de bater o coração.

Tu és um pássaro e um sol e o túmulo

de um deus que imita o curso de teus dias.

Tua bela forma golpeia qualquer escriba

em tradução de trevas ou terra santa.

Passagem e selo abissal de toda crença.

O que buscas e o que o livro oculta

em linhas invisíveis a quem supõe sabê-las.

 

 

VIRTUDES DA IRONIA

 

Para onde vamos nada tem princípio.

Uma mínima noite se esgota em si mesma.

Toda história se esvai com o poente.

Caminhamos pelas ruas de um deserto onde o silêncio não se enfurece com a ausência de memória da imensidão que se ocupa de nossos gestos mais fugazes.

Tu não estás aqui para dizer que sempre me amaste.

Não há nada mais desconcertante no esquecimento do que os rumores de outra existência.

Quanto do que jamais fomos carregamos dentro de nós como um sinal de indiferença?

Mal pronunciamos os vislumbres da identidade.

Para onde vamos imagem alguma nos reconhece.

A neutralidade absoluta em todos os idiomas.

Não me esperes para romper o lacre de tuas inquietudes.

O infortúnio transita como uma oferenda insuspeita.

Todos somos as pedras marcadas de um jogo que não se completa.

A morbidez ama suas luzes decaídas.

Lemos complacentes as crônicas que nos encharcam de verossimilhança.

A realidade não faz a menor ideia do papel que desempenha em nossas vidas.

Seguimos a caminho de um lugar onde o caos se refaz considerando a apuração dos fatos.

Não me revelarás nada que eu já não tenha dissipado.

Livre dos destroços sentimentais.

Livre dos pronomes pessoais.

Avançamos para longe da clandestinidade cidadã em que a ficção nos viciou.

Não há lugar para o que não seja a branda areia da escritura dos missais ante o bocejo do mar.

O que há de lícito na beleza independe de sua idade.

A minha angústia quer estremecer em tuas mãos.

Corta o cerco.

Rasga o bloqueio.

Não tens que estar aqui.

Não podes me amar dessa maneira.

Para onde vamos nada será demasiado.

Suportarás o mundo absolutamente correto em descrições de caminhos que não se repetem e anseios enfim concretizados de jamais voltar a tocar em qualquer assunto.

O amor estará morto quando cessar de se repetir.

Não recordamos um engano que acabamos de cometer.

Nem sabemos o que é certo.

É possível que um dia um poeta tenha escrito que a morte é uma estátua.

A ficção converteu-se na única convicção de que a realidade não pode ser molestada em seus caminhos sem princípio algum.

Não me amaste até aqui apenas para escrever um livro.

Não temos nenhuma ideia precisa do que somos.

 

 

DESTINO DAS PERNAS

 

O alfabeto alheio das pernas que vão se chegando, somando-se ao murmúrio de outras que se comunicam entre ânsias e seduções, pernas que fisgam a ilusão precisa em cada moenda de gestos, o alfabeto delas, lustrando suas letras, a serem gastas no ardil do desejo.

 

As pernas, por onde andá-las, comover o capricho de suas teias, soletrá-las na passada mínima de um feitiço a outro? Por onde se põem em desalinho quando menos se espera? Elas, dando lições de vertigem ao tempo que trafega entre seus passos. O alfabeto, sim, graças a ele é que elas são esta queda de tudo quanto apreciamos na vida. Como estimá-las longe de tudo, rabiscar a ausência das pernas em nosso estar tão promíscuo em dores cuja origem desconhecemos?

 

Essa floração de signos que não vemos

senão como descaminhos,

pontes de seda,

seus desmandos que elegem

nossas fraquezas mais irreconciliáveis,

a usina secreta do passo em falso,

por onde deixamos de ir,

por onde não vamos nunca,

alheios a ele,

o alfabeto que se escreve em nós,

as pernas

que consideram nossa ausência de tudo,

os caminhos desfeitos em sinais precários,

prenúncios de estradas derruídas,

elas que não cabem em si,

couberam ⎼ nunca se sabe ⎼,

por onde andamos: comovê-las na andança,

falseá-las,

pernas?

 

Ao cruzá-las por onde segue o tempo? Investe em quais abismos líquidos? O sal do fascínio, humores que se distraem a cada toque, esmero de ânsias ⎼ para onde levá-las, quando desviam sinais, esmiúçam ambiguidades, bailam imprevisíveis ante a imagem que fazemos delas? Soberbas na luxúria de suas afluências, um súbito desmaio de cadências, apenas para dizer que ali, entre palmos imaginários, podem ser outros meios, pôr tudo a perder, conciliar ruídos, quimeras de ponta-cabeça, simulacro de marchas, desvario, andamento, andamento…

 

Para onde tantas pernas, quantas, o que sabem de nós? Radiação de rastros por toda a pele dos radares, bússolas famintas, quando ausentar-se de si o colecionador de pernas? Um verso deixado na ponta do leito, assentadas como um enigma, um crime por resolver, por elas vamos nos deixando levar à autópsia de nossas perdas mais íntimas, o embaraço das precárias decisões, vícios agregados, quedas mal repartidas, hastes que ensaiam voos em busca de outros significados, ociosa locomoção de infernos, pernas fora do jogo, as minhas, quantas agora?

 

Multiplicar os defeitos

irreparáveis

das passadas por onde fomos,

a sopa de equilíbrios de que se alimenta a esperança,

a inocência arqueada,

a lonjura

apeada antes que goze sozinha.

Para tantas pernas, como se desfazer de verbos,

desfalcar acenos,

ou simplesmente saltar páginas

de uma andança a outra?

 

Então para que tantas, se evitamos o subúrbio de suas passadas, se não passamos de assaltos, semínimas, nudez difamada por vestes indecisas? Onde a conquista das pernas e o badalo de seu esplendor, ⎼ um golpe que seja ⎼, o roubo a tempo no crematório? O que fazer com elas, como passá-las, por onde andá-las, ufanar-se de que mérito, deixá-las ir, sem vírgulas, passos?

 

Amiúdam-se, coladas a um cinismo constrangedor, com ar de quem nos espera à saída do caos, quase de todo fingidas de si. Já não sabemos quantas, e não fazem outra coisa senão imposturas, volteios, ardilezas em tablados invisíveis, elas. Para onde saltamos em suas colunas? Quais galerias nos devoram, corredores que são passadas encharcadas de mistério? Como se chamam essas pernas? ⎼ acaso agora se pareçam outras.

 

Quantos somos em suas mãos? E nomes, os temos? Como nos comunicamos por entre seu mobiliário de tropeços? Algum de nós desconfia do caminho que estamos fazendo? Elas se encaixam na própria voragem como construções fortuitas, as pernas, que levamos dentro de cada, abrigo insondável ⎼ é o que parecem nos dizer ⎼ de uma evidência que a qualquer instante pode nos atingir.

 

Contudo, o único extremo que se manifesta

é que desconhecemos nossos passos,

a tal ponto que elas,

dissimuladas entre vírgulas,

artífices galhofeiras de ilusões,

devem ser mesmo nossas,

por mais que estranhem

que não saibamos infringir seus percalços.

 

Haverá um limite, um ponto qualquer, em que o estorvo se cansa, a fraude se desfaz naturalmente, o tormento rebenta por falta de coro, haverá? Ou a intemperança entope-se apenas do inútil e não há salvação nas sobras? Por onde fomos as pernas eram outras e em tal descompasso que desconhecemos a isca, o engodo das letras, o alfabeto disforme e alheio mais a nós do que a elas, as pernas, os nós em que nos engalfinhamos antes da última topada, onde o abismo se esgota.

 

 

TELAS NO PORÃO

 

Tudo o que vemos é o invisível.

PITÁGORAS

 

1.

 

Inquieta em seu mundo de pausas.

Asas que adentram o lago estático.

Corpo fugindo de espelhos, olha-me

e toda a matéria volta a cantar.

Espaço ausente de formas, selo

que nos guarda dentro da chama.

Nada se define em suas pálpebras,

mesmo que por ali se derrame

a trêmula essência de todo corpo.

Não quer de si senão a sede veloz

de nomes e números que possam

tomar-lhe a noite entre beijos.

Desfia raízes tecidas em seu peito,

sombras que afirmam ser nada

todo o amor que lhe desvela o ser,

feito o mistério visível de Pitágoras.

E o que anuncia seu canto grave

senão o envelhecimento da morte?

Tendo sido criada pelo espírito

guarda-se vidente em sua impureza.

Entregue à trégua de carícias,

oferenda de hóspedes de seus feitiços,

tudo a faz vibrar em sua remota casa.

Ao cantar me quer junto a seu fogo,

quando esculpe as formas mais falsas

que habitam o desespero e a loucura.

Velozes seus olhos em mil rostos

buscam em mim um cúmplice de ossos,

monossílabos à margem do rio imóvel

da linguagem que nos distancia

a todos. Apenas ela existe a banhar-se

em meu assombro: sobre os corpos

[dela] tilintam nossas palavras gastas.

 

2.

 

Recorda-me uma rua ali sempre,

alheia à ferrugem da história.

Cruzam-na firmes as vozes

de todas as tramas e as notícias

dos funerais inumeráveis do ser.

Reino mantido entre o estrondo

e o disparo brando do silêncio.

Não me falta em seus negócios

de levar consigo um e outro,

algaravia de mimos que se tecem

com o fio da própria lástima.

Não me falta a úmida presença

afeita à febre dos detalhes

que traçam as páginas dessa rua

presa à sua miséria fortuita

e ao esplendor de secretos retiros.

Eis como a encontro. Olha-me

tomada de espelhos, jamais vista

de outra maneira. De fábula

não se trata, ou generosa desordem

que me recolha em sua fonte.

Talvez à sombra de seu assombro

possa a memória confundir-se

com o sonho, reino foragido

de areias, estuário de imagens

que se movem sem piso ou teto.

Tudo ali se reconhece, tão logo soe

a feminina voz de seus encantos.

Recordo apenas a vigília da rua,

teimando entre portas e janelas.

Inútil aguardar que a viagem

anuncie algum final. A vida nos dá

com a curva de todas as perdas,

uma palavra precária, uma ausência

impossível. Não se deixa a morte

seduzir por silêncios. Ouço-a

agora confundida com as pedras

da rua, e quase toco sua imagem.

Sombras que se debatem em busca

de um corpo. Cantarão sempre.

 

3.

 

De que é teu corpo? De que são

tuas palavras recortadas em tábuas?

De que é tua língua que chove

e molha-me os olhos que te buscam?

De que são tuas páginas escritas

enquanto chove e parece ser noite?

De que são os monstros talhados

por teu silêncio? De que é a realidade?

De que são a pele, o fósforo da imagem,

o material de perdas, as falsas pistas,

o golpe errante, o rol de súplicas

da linguagem para que a imitemos

até que não mais se reconheça em si?

De que é tua herança entre traças?

De que são tuas folhas em repouso?

De que é a realidade? De que são

os livros que nos deixam fora de tudo?

De que é a volúpia que toca teu seio

e derrama-se por toda a noite?

De que são os números de tua desordem?

De que é o esplendor de tua memória,

íncubo ridente em sua dança? De que

são teus poemas extintos, tuas sombras

raptadas, os diálogos entre fantasmas,

as baladas do peregrino, teus jogos

que supomos inevitáveis, tuas falhas

plenas? De que é mesmo a realidade?

 

4.

 

Seu corpo é a razão de todo mistério.

Não importa a serpente emplumada

que lhe habite. Passo-lhe as páginas.

Suores me afligem em tenebrosa pele.

Deitam-se sobre mim à espera do golpe

do acaso. Desconhecemos todas

as nossas súplicas. Somos de repente,

e logo mudamos de lugar. Seu corpo

amontoa-se sobre o meu, à espera

do esplendor jamais anunciado.

Corpos são cadáveres no umbral do gozo.

Atravesso suas noites. Penso tocar

o abismo. Livros depois já não sabemos

quanto custa despistar o instante.

Deliro fiel à memória dos espelhos,

inquieta ainda em seu milagre de cinzas.

Pele desfiada, águas de um corpo a outro.

Rumores de nomes e enigmas,

mulher, jamais vista de outra maneira.

Tudo a faz vibrar em sua remota casa.

Nada nos atormenta como uma vitrina,

onde o relâmpago de seu corpo desfia

a imagem que distorce todo desejo.

Pareço um assassino preso a seu plano?

Liquida-me em teus braços, mulher,

corpo é tudo o que salta de tuas páginas.

 

 

AS TINTAS NEGRAS DO JARDIM

 

I’ll shoot the moon right out of the sky for you baby

TOM WAITS

 

O que vejo é teu olho dançando no jardim:

descreve a si mesmo com tamanha paixão

o olho pintor de seus quadros em movimento

– confessa-se uma máscara de Lucebert,

três vezes estivera com seu espírito maligno,

quase um pária, quase um duende, o olho.

Sua áspera voz correspondia às imagens

com que seguia redimensionando o jardim.

Fotos de combate, estatuetas corroídas,

papéis amassados, bosta de rato, explosão

de desordem por todos os ângulos, no ateliê,

ainda legível um recorte amassado ao chão:

um poeta que pinte não pode dar grande coisa.

Segue o universo caindo de si, quase um olho,

tomado de imagens como janelas a descascar.

 

O que vejo no jardim são detalhes do horror

que ainda comove pequenas histórias ilustradas

– o poeta alimentando o caos, os santos óleos,

pequenas salas de costura onde o mundo se refaz,

olhar inquieto em seu infortúnio: resplendor

dos signos decaídos, guaches de abismos em chamas,

dançávamos e ele não parava de cantar, o olho:

eu vou retirar a lua do céu para você, meu amor

– mostra-me, criatura, as evidências de tua máscara,

não somente o irrefutável, mas sua lástima de si.

O olho excelso no caminho ilumina meu espanto.

Seu bailado acentua-se por toda a pele do jardim:

afeito a dissonâncias, rende-se à dor a criatura.

Uivam figuras patéticas à distância, dança mítica,

de antigos filósofos que viam deuses em toda parte.

 

O olho no jardim é um grande oceano que sangra,

pouco entende do tempo que ocupa com suas serpentes e letras que segue traçando em tintas negras e árvores-pincéis as imagens que nada têm em comum com a eternidade a simples representação do momento em que as coisas são menos e menos o despojo de sua própria agonia quando o desejo confunde-se com o impossível e instaura-se a multa por transgressão e

não somente Hölderlin mas todos os poetas

viveram algum momento como se fossem deuses.

 

O olho é a proteção do ardor mais secreto da beleza,

embora o jardim contaminado por imagens,

luz que já não se derrama sobre Goethe,

a última rosa do verão, o filme que se esvai

com a noite que atravessa de um encanto a outro.

A semente que cai [novamente a voz de Lucebert],

cai sobre o olho que assimila aquilo que vê.

Pintura e poesia. Mais do que o bailado dos signos

no atônito jardim tomado por seus dramas,

o compasso de nosso corpo negro

firmado no horizonte, sinuosa orquestra de timbres,

os traços caindo inspirados em arabescos

e flautas, bambus refletidos contra o sol,

amuletos-linces, rajas de opala do rio da linguagem,

o olho do amante engana, com seu lápis-trenó,

não existe apenas para a salvação dos cegos.

É grave como a página escrita e o bailado de Mondrian.

 

O olho é o jardim, mesmo que tomado de paixão.

Projeta-se sobre a ideia [sua] da imagem, um signo branco.

E segue a dançar: voo de luas em um céu de pincéis.

 

 

ENIGMA DOS CORPOS AMOROSOS

 

Acender o fogo pela sombra da chama.

Atear luz no olhar do tempo esquecido.

 

Assim um corpo diz como deseja

ser escrito pelo outro que o visita.

Ensinar ao corpo como sair de si.

Traçar equidistâncias entre as quedas.

 

Os pormenores do fogo [ela afiança]

são o melhor regaço dentro do olhar.

E o fixa com tanto esmero que as dobras

do corpo se despem ante o ruído dos passos

[dela] que são vestígios do sumiço

das roupas [dele]. Por onde o enigma

apura suas harmonias? Por onde um corpo

aprende a soletrar o outro? [ela não diz]

 

Esvaziar a noite de vícios que a definam.

Deixá-la sem chance de reconhecer-se.

Estar a esboçar um tratado de trevas

requer a cegueira precisa em cada afeição.

Quem plagiaria o suicídio ou a ruína?

Os dons são mecânicos, uma fábula gasta?

Na balbúrdia dos corpos descobrindo-se

um soletra o dia, o outro deslinda a noite.

 

Qual risco a língua desenha ao passar

de uma boca a outra? Não há exatidão,

exceto no desejo. Um corpo [ela o tenta],

ao cair no outro, é em si que repercute.

 

O amor tateia entre nódulos [ele matuta].

Uma atração sublime pelas dissonâncias

parece iludir a queda dos corpos amorosos.

O que tens no ventre [diz ele] é o abismo

de que me sirvo para um dia alcançar-me.

Apenas o acaso resguarda tais planos [ela].

Os corpos sondam o pendor pelo extremo.

 

Atear luz no olhar do tempo esquecido.

Acender o fogo pela sombra da chama. 

 

 

RECORTES DO VELHO ATELIÊ

 

O silêncio dói dentro do mato

RAUL BOPP

 

O poema se inicia com um verso de Giórgos Seféris:

Os dias roem nossa vida sem alarde.

De que são nossos caminhos partilhados?

À noite nos sentamos para o bom vinho

e algumas verdades indiscerníveis.

Todos já se foram.

Não há mais Blake, não há mais Goya.

Suas pedras erguidas são o mistério do humano.

Tua mão encaixada à minha.

A sala espinhada em silêncios sangra suas sombras.

Algumas se abrem imensas e somos o ser de seus umbrais,

a treva desfiada ao fundo.

Exaltação de falhas,

agonias onduladas à proa da memória, o sólido

massacre dos fantasmas – nada

nos deixa dormir.

 

Véus do lúdico e do agônico,

linhas talhadas como vultos

que se agarram ao nosso passo,

pedras que não retrocedem.

Noite encravada no topo do inferno,

melodia caricata dos dilemas

que não se desgrudam de nós.

Doçura irônica da larva

em seus caracóis desatinados,

polêmica foto do espírito

aberto em feridas ilegíveis.

Lentos, lentos, somos o resíduo

de tudo quanto nos espera

nas minúcias dessa noite.

 

Fulgor tecido na escuridão,

somos o revés invocado,

o diamante surpreso em seu delírio,

efêmero pelo amor ao nome.

Caído sobre os olhos fixos

da imagem que lhe conduz

ao sopro de suas contradições.

Poesia lentamente, o verso apagado

com rastros da discórdia, até

aqui viemos, dentro da sombra.

Mesmo nas palavras ausentes,

visões que não se esgotam

no mineral admirável das chamas,

somos o esgoto primordial.

 

Caímos dentro de nós, sombrias

fezes de nossas súplicas,

dor de cordas entrelaçadas

ligando um vazio a outro. Alpendre

de palavras que não lhe alcançam

o piso, rio de disfarces:

vidro em sua água distorcida,

areia que não mais revela

seus rostos ao fogo, pulmão

suspenso nos galhos da inquietude.

Todas as noites parecem estar aqui,

açoitadas pelo relógio da dor,

pendulares inquéritos do verso que nos debulha.

 

Até aqui viemos.

 

Seguiram-se outras noites de estranho tumulto,

queimadas em remorso, algumas.

Velho caminho de tábuas gastas pelo abandono.

Narciso violento ao descobrir as primeiras rugas.

Seguiram-se as noites tomadas de Bosch

e Lezama, noites

que iluminam o ignoto

e fazem tremer o universo. Tua mão

afeita à minha, cruzamos nossos olhares,

desfeitas já inúmeras sombras.

Por entre a folhagem, somente a ausência tornara-se profunda.

Mesmo se fôssemos um o outro,

ou líquida anunciação

de um no outro,

nada nos deixaria dormir.

 

Conclama o relâmpago suas sílabas,

o que se desfaz é apenas o entrevisto,

o que planeja o regresso mutila a si próprio,

corpos adoram suas reentrâncias,

por vezes caem seduzidos pela semelhança,

estátuas sondam a artificialidade do movimento,

vagabundos se sentem sagrados,

poetas imortais, dançarinos sonham

com crisálidas, seus rostos despencam

do abismo, flâmulas do equívoco,

fixos reflexos risíveis, cativeiro de versos

reduzidos a feras torpes, pedras sem fogo,

bambus afogados, aves banidas da praça,

corpos que cegaram o cristal da metáfora.

 

Possessos do vazio, desfigurados rostos

que vinham sendo traçados por uma cerimônia,

tua, de cuidados com a queda, a chama

da descida ao inferno, o manto com suas bordas

de ramagens, sombras que se assemelham

a uma árvore, figura da mãe, traços

do abismo, cantos transfigurados, as vozes

que surgem de uma noite vegetal,

palavras em seu âmbito de folhas e raízes,

golpes do pólen, potência ininterrupta

das forças que circunscrevem teu mistério,

negro, negro o círculo, a esfera no olho

da sombra que traça ânsia e receio

nas noites derramadas sobre nossas mãos.

 

Já não somos tão visíveis, nem certos

de que passamos por aqui, pelos terraços

carcomidos do delírio. Respiramos

graças às imagens que se sucedem,

sentenciosas em seus recados, quase carne,

de tudo quanto desejávamos tocar.

Deuses cínicos, vozes fiadas no olhar,

semelhantes ao relâmpago, zumbido de anjos

em ardiloso artesanato, escola de quedas,

o que mais? Tornamo-nos os demoníacos,

de um céu a outro, os servos do espelho.

Já não somos venturosos. Há nomes

que lacram a aventura de nossas mãos.

Sombras perfeitas de tudo que não tocamos.

 

Tínhamos muitos mortos. Entre eles a primeira leitura

daquela noite iniciada por Seféris.

Não escondemos o sorriso. Outro grego

já nos lembrara que um dia diremos adeus a nosso enigma.

Contudo, não se despedia a noite, bem ao contrário,

mais se despia. E brilhava sangrento nosso coração,

mesmo no milagre de suas sílabas.

Esquivas, as imagens.

Através delas, voltam a crescer

os anseios sobre a exatidão do inferno.

Ainda estamos aqui.

Gostaríamos de crer. Mas não estão Benn e Brueghel.

Tudo é fuligem sobre suas obras, glória de moscas.

Está certo Seféris: o poeta, um vazio.

Ali, minha mão afeita à tua, enquanto os dias roem nossa vida sem alarde,

o lodo crescendo, dói o silêncio dentro da noite.

Converte-se a memória em ruínas,

à velha maneira

de juntar pedaços, livros desfeitos, gravuras rasuradas, sinais de sacrifícios. Noite,
noite. Não mais que um caderno de extravios.

 

 

O HÁBITO E O MONGE

 

Lâminas despencam de um céu de tintas,

tateiam-se à procura de um deus possível.

Vestes da memória, vestígios do que virá,

dilemas acaso flutuantes, surdos ainda.

A que ponto navegas em teus disfarces?

Escreves o mesmo verso há tantos anos,

mudas de roupa, alforje, provisão de mitos,

uns poucos atritos que a tua dor suporta.

O que tens sido, acéfalo errante,

fisgado talvez por um acervo de eufonias?

 

Uns planos audazes, máquinas de guerra,

cofre onde guardas teus escritos mordazes.

Terás sido um palco de trevas de tua própria

e inatingível morbidez, com seus destroços

desarrumados na grande sala da memória?

O que recordas, entre o ainda não vivido?

Mãos tateando cicatrizes, trilha marcada,

uns velhos signos de resistência e conforto.

O que finges ter é o que jamais terás,

uma nesga de si por um lapso de tempo.

Toda a desordem de uma vida buscando sentido

no que não lhe cabe senão louvar o havido.

 

Um embrulho de teus desejos e pesadelos

despenca de uma ponte remota,

não mais escuro do que frio o estômago

da água que recolhe tua clandestina queda.

Cais de onde, de quem, de quantos em ti?

Limpar a pele após o tombo, olhar de lado,

disfarçar o engano, até que nada nos recupere

do que acabamos de ser, em pânicos minutos.

O que vejo bem dentro de ti, entre tintas,

nostálgico acéfalo, não se confunde

com expansão ou degeneração. Menos

te elogia a razão ou consente teus frêmitos.

 

Pratos de borco, abandonadas forquilhas,

quantos, meu caro, são os teus disfarces

e seus esgares em cada face do espelho?

Exageros? Qual o valor de uma queda?

No que te perdes quando nada expressas?

Assim indaga o tolo que necessita

abrandar sua previsão de infortúnios.

O ritmo é o do silêncio que nos recusa.

Não perdemos a razão, enrugado acéfalo,

nos desfizemos de aplicá-la indistintamente.

O grande deus que somos nos diz agora,

em sua ágora, que caímos de tanto querê-lo.

 

Seguirás no mesmo verso, por noites adentro,

sempre indagando: o que dói em mim,

acaso doerá em todos? E em tal cantilena

a frase bordará sua síntese imprópria.

Não há respostas na arca ou no livro.

Crer de nada vale se não é em si.

Que sejas pictórico, acéfalo elementar,

não te descrevo senão como um vestígio,

um esmo propício ao que se averigua:

o atributo da pele será mesmo o frêmito?

Ânimo, logo estarás contigo, pobre diabo,

não pelo que te falte, mas pelo que não és.

 

 

ALGURES UM MAPA

 

Quantas serão as migalhas do espírito,

quando este mal soletra seus extravios?

Um bocado de nada, quanto lhe custa?

 

Quantas vezes suportará o desatino de ser

tão excessivamente nada entre escombros?

Qual preço em cada agulha que o desfia?

 

Uma vez que empalidece o mapa da ilusão,

já não reconhece um vestígio próprio.

De tanto olhar para si, quantos vê ainda?

 

Será deste modo que se esvai, tão líquido?

Quem quer que encontre durante a queda,

com nenhum contará que o defenda de si.

 

Estará sempre em débito com os espelhos,

as imagens se despedaçando a cada lustre.

Que importa quantas eram um minuto antes?

 

Ao levar as mãos aos olhos quanto repinta

do que até então nem presume haver perdido?

Saberia se desfazer do que ainda não teve?

 

Quanto escavará a lembrança e a ambição,

sem distinguir a qual cova mais se dedique?

Ao roer as vozes que o cercam, apenas cinzas.

 

Formas arrastadas para o limite do ilegível.

Onde pouso a mão sem que me escapes, diz.

E já quase nada mais dizia, limitado à queda.

 

Planejaria tornar a cada espelho submerso,

para refazer-se da imagem mal vislumbrada?

Quanto lhe custaria em naufrágios, interessa?

 

Corpos da ilusão imersos em água salgada,

como rios atormentados por um ritual.

Quantas vezes não somos senão o que fomos?

 

Algures um deus, um menino travesso, luz

queimada em plena ilustração do espírito.

Quanto custa percorrer a dor inteira?

 

O que mais revira o ser que seu reverso?

Uma grande língua que vare toda a vida,

e que nos fale o que temos de mais íntimo.

 

Cair na traquinagem do tempo ou do espaço,

eis como ceder à arte de matar o espírito.

Quanto de mim deposito na conta do viver?

 

Em comum, os escrúpulos da inocência

e as suspeitas de crime, o que têm?

Decaído o espírito flerta com vagos perfis.

 

Quem sabe o peso do vazio e seu destino,

calcule a tarifa da postagem e lamba

o selo como o espinhaço do infortúnio.

 

O que subscrevo quando me livro de mim?

Para onde vou se observo o mar caindo

por toda parte e tudo é rio desmoronado?

 

Esticar o limite do fim até que rebente.

Que a ilusão não tenha sossego e se rompa,

como a esperança arruinada por capricho.

 

As imagens se retorcem, feito uma chama

dentro do fogo. Um pássaro diz-se outro

ao desfazer-se de suas asas carbonizadas.

 

Como reter a escrita de um espírito findo?

Por onde cai salpica labirintos e ressurge

e, ósseo, volta a morrer por toda parte.

 

Desfazer-se da neblina, da areia, dos golpes

do desejo lavrados na pele da prudência,

custa mais caro que a insônia, quem banca?

 

Quanto se pede pelo enredo da semelhança?

Dívida assim não se paga em vida. Deus

algum cobraria tão pouco por seus mortos.

 

A vida é excessivamente nula do que somos,

e revela-se na dor que desferimos contra

o espelho, quebra, guarda, nenhum desconto.

 

 

ÚLTIMAS PISTAS

 

Em memória de Uílcon Pereira.

 

Náufrago desperto em números,

detido no jogo do vento

em suas artérias de presságios.

Ossos de um mesmo e exposto cadáver.

Longe canta a eternidade sua desprezada justiça.

Canções de trevas.

Relâmpagos risíveis.

 

Náufrago iluminado pelo contágio,

contando lágrimas sob a língua.

Longe longe a pretensa história de seus mortos.

Quem por terra cai ali se esvai.

Em súbito monumento de chamas

ardiam os dias sepulcros à deriva.

Horror delicado das súplicas.

Paisagem com seus planos de histeria.

Um lampejo de traumas.

Arrastam-se os lábios por toda a fala.

Tenebrosa estrela,

és o equívoco silencioso

 

Náufrago à borda de teu miserável destino.

Tempo contemplado em despojos.

Por onde o fogo a desfolhar-se começa?

Como o abismo reconhecer gotejando suas aves?

Pondo as coisas para andar,

para cantar a selva sua paciente tragédia.

Fantasmas a cada passo.

Absoluto absurdo.

Para cantar as formas que são a vertigem do tempo,

a intimidade disforme de tudo quanto sonhas.

 

Náufrago desfeito em um sistema de perdas,

quantas refletem tua queda?

Qual a irreparável vocação?

Será tua a vez de assumir o desastre,

das formas perderem a fala,

do espaço evadir-se de si.

 

Quem és?

Oh náufrago com o homem às costas,

como eletrificastes as circunstâncias?

Visionários guias.

Rumores cristalizados.

Destinos em série.

De que se ri a imóvel paisagem?

Foram-se os outros todos náufragos.

Um precioso talho de árvores em fuga.

Caos contra o infortúnio.

Ânima contestada.

Formas resumidas a um breve bosque de catástrofes.

Que vida prolonga o poema?

Que célebre demência ancora na esfera fulminada?

 

Para mudar tua vida o canto,

dar nome ao silêncio ao verbo ao esquecimento,

riscar os fósforos de todos os domicílios da beleza.

Uma última onda até morrer o sentido.

Linguagem arenosa.

Monastério da dúvida.

 

Comporta-se o náufrago como um farol caído.

A tudo vê passar sem utilidade alguma.

Escombros da própria agonia.

Interminável a conta das lágrimas seus estudos de silêncio.

Terra insolente sobre os prodígios de sua queda.

Fronteira onde não floresce uma ave uma luz vulgar uma voz.

Náufrago o náufrago de si mesmo.

Soberbo ataúde.

Nenhuma treva lhe cai tão bem.

Recordará um dia sua fortuna recusando-se ao enterro.

 

Caminhos os temos em silêncio aos berros.

Vozes recuperam-se de crimes da cortina de delitos do alimento de lamentos da convulsão de sons.

São como ases.

Um poema repleto de vozes.

Um templo contra a morte.

Ávida beleza infernal de aves corroendo o céu com seus véus.

Naufrague a pedra o homem a árvore,

ali onde sabemos a eternidade magnético equívoco.

Místico pavor quando tudo pode esperar.

Não há um triunfo da forma.

As honras são todas da dor.

 

Náufrago o náufrago caído em números.

Perfeito o veneno sobre seu dorso abandonado.

Quem o toque em naufrágio iguala-se.

Lúbricas as transfigurações do ser.

O monumento do náufrago a si mesmo.

Uma história de angústias em rostos desfigurados.

Ali soam suas vértebras a seiva a solidez.

Sombras que se urdem acumuladas em gozo.

Ressurgem o mito as vozes migratórias a árvore que canta.

Dá-se que tudo é naufrágio

– trema um sentido decaia uma dor retire-se um abismo.

O corpo detido em destino,

despedaçado em sombras,

náufrago de que lei?

Febre de areias sobre seu dorso.

Imagens circulares refazendo-se sob o sol.

Sobre a morte interroga-se.

É sua língua desmedida.

Deserto é afeto desfeito o ermo do medo da solidão.

 

Aproxima-se de si o náufrago,

sem mais temer sua fábula.

Dá-se a cicatrizar a memória.

O rio do náufrago o sal sem pressa o sonho o barco desvirado a imagem sangrenta delirante agulha o infinito a montanha o mar a pesca de anseios o engulho de algas a dor do céu a rosa molhada os lábios comidos de areia o milagre do esquecimento…

 

Não há tempo a perder no náufrago.

Gramática é a sua do rumor desperto em êxtase.

Loucura a linguagem recriar-se soberba ambígua.

Incalculável farol nos lábios do náufrago.

Dorso de sal.

Inclemência do verbo.

Alegoria do ser.

Parábola do verso sobre a agonia humana.

Areia areia areia…

Diante do próprio naufrágio o náufrago mal consegue respirar suas aves.

 

 

REINO FORAGIDO DO ASSOMBRO

 

1.

 

Corpo idêntico a repetir noites e refúgio.

Astúcia cintilante repousada entre afagos.

Rio cruzando a mesma sede sob a carne,

demônios espelhando a umidade, o sonho

adentrando iguais cavidades tuas, o tempo

inteiro reescritas, galerias que se retorcem

com os rudimentos de um mesmo gozo.

A realidade é um velho mecanismo viciado

em árvores tombadas e céus manchados de dor.

Eu venho aqui todo dia moldar nossos lábios

em um beijo análogo, talvez exatamente igual.

Perseguimos, na salivante repetição do gesto,

um vulto sem memória, que possa guiar-nos

através de um súbito abrigo, vagando pela casa.

 

2.

 

Rascunho o teu vulto por dentro da noite.

Vozes cavadas no fundo de um bosque,

ramos de fogo desatados enquanto esperas

que árvores ressurjam da memória vazia.

Queimo tuas sombras sem que me toquem.

Há fulgores desencontrados que confundem

os abismos de teu ser, resumo de quedas,

pele rasgada, fragmentos de fuga esquecidos

em meio às roupas em desuso no armário.

Já não me escutas no horror de teu silêncio.

Traduzes como minhas as cinzas de outro sonho.

Eu ainda te quero em minhas ruínas incertas,

porém me escapas como uma treva muda.

Não sei por onde começo a esquecer teu nome.

 

3.

 

Não faço ideia se é noite, vertigem ou silêncio.

Sopra um vazio contínuo, sem que o identifique.

Persiste a catástrofe da memória, a recordar

coisas que nunca vivi. A desossar-me.

Urro selvático do extravio. Perdemos tudo.

Tão sós que sequer percebemos o abandono.

A flor-obsessão se foi desmembrando, gerando

novos conflitos: pequenos e grandes pomares.

Eu te amei até onde pude estar apenas contigo.

 

4.

 

Agora é que começas a escapar de mim,

saltando de uma paisagem a outra,

riso elétrico no rumor do nome refletido.

Eis por onde o mistério se atreve a mudar

de ramo ou semelhança: as lâmpadas

desviam a água de suas visões e recolhem

rostos soterrados por um entulho de sombras.

Voz impressa na confusão do silêncio,

com uma lua ofegante debaixo da cama.

Ainda me afogo em tuas mãos, no ardor

movediço de tuas luzes, fogo contra fogo.

Agora é que começas a lacrar os truques,

a mobiliar a vertigem em plena queda.

 

5.

 

Desfiamos as margens em nossos corpos,

rios pele adentro, comboio sinuoso de carícias,

cada vez que me olhas são outros os lábios,

seixos, amuletos, destroços, outras as ruas

por onde respiras, outro o compasso da areia.

Contamos nuvens em tua mão, deserto furtado

à noite recostada um segundo, mapas do acaso,

fulgor de árvores imitando dedos, anjos travessos.

Por entre um bosque de vultos tu me conduzes,

enquanto decifro o espelho que me apontas.

Saboreamos os estreitos virtuosos de tua mão,

mares fixados em pálpebras e uma lua vítrea

adernada entre seios. Suas linhas percorrem

o destino que em outro tempo julgamos nosso.

 

6.

 

Como pequenos desastres migrando de árvores

ou desertos fingindo a infância que não tiveram,

expandimos a catástrofe de teus gemidos.

Em tuas axilas um displicente alfabeto de algas,

rumores de pássaros despedaçados com o canto

preservado no penhasco com que me escutas.

Vértebras da loucura, silêncios ventríloquos,

nos alimentamos do capinzal que cresce

entre um vislumbre e outro, pincel de nuvens.

Já ninguém se atreve a indagar o próprio nome.

Se a chave está perdida, desfeito o poema,

que nome dar ao ramo de lágrimas que visita

de porta em porta o vilarejo de teu abandono?

 

7.

 

Vens do fogo: a casa nua, o corpo vazio.

Um pé no imprevisto, afagas uma tensão

constante – piedade a quem te chama.

Rompido o esmalte das visões, sombras

emergidas de semblantes esgotados.

Comoção de letras ao pé de cada espelho,

refúgio a deslocar-se de uma pedra a outra,

da nuca ao joelho, do calcanhar ao queixo.

Nunca te vi tão linda como a espreguiçar-se

excitando a combustão, um vulto lendário

em sua marca de olho de peixe e o transe

de formas ensopadas em súbito ofertório.

Incêndio nos ombros e improviso de lábios.

Deus algum jamais decifraria tal riso.

 

8.

 

Os olhos com que te vejo já começam

a exigir de mim outra morada. Sinto

que suspeitam das coordenadas atuais.

Tocam-me como se uma pele de cinzas

revestisse o espírito de tudo o que vivemos.

Em silêncio embaralham nossas visões,

os recortes sensíveis de uma vida em comum.

Desalojam velhos segredos, despedem-se

de imagens descoradas, riem da memória

quando esta se desfaz de gastos vislumbres.

Os olhos com que te vejo, no entanto sequer

confabulam seus truques em minha retina.

Será como sempre [dizem]: abrir-se ao incerto,

até que novas formas se fixem e multipliquem.

 

9.

 

Parte do que somos somente nos recorda

se um acidente lhe importa: entrada redecorada

por cupins ou sátira do acaso a reinscrever

o homem em seu trajeto. Parte do que somos

somente o desgaste reaviva: proeza concreta

de carcomidos ciclos da humanidade encravada em nós.

Nós da memória, rasgos, erosões da alma:

longa jornada da decomposição,

até que reescreva seu nome destinado a apodrecer.

 

 

PERSONIFICAÇÃO DE BARBUS

 

1.

 

Sempre que ela me toca é como se refletisse somente a si mesma.

Uma luz faminta devorando as estações, as posições do corpo, as árvores ignotas que conservo na memória.

 

Busco as pontes levadiças de sua obscuridade perdida.

Ela tem sido o meu cúmulo do mistério.

Eu me curvo para adentrar sua mandala, um livro posto na cabeceira do sol e outro acariciando o abismo com suas páginas passageiras dos ventos noturnos.

 

Não me esqueço de amar o vulto que cai, o rio que bebe a própria cauda, a flor vagando pelos resquícios da casa.

Sempre que ela me toca eu reflito acerca do passado que ainda me resta.

 

2.

 

À noite ela se converte em uma crença, história de fantasmas, lenda.

Repete amuletos e olhos solitários. Repete o milagre da clarividência. Repete a trama picaresca com que me cavalga pela casa toda.

 

Tinge o espaço que habitamos com seu jogo como se fosse um céu ainda em casulo.

As cores aguardando serem transcritas para a linguagem de gozo das visões.

Meu corpo reconhecendo seu parentesco com a devoção.

 

Ante a escada que separa dois quartos acena com a euforia de quem se reconhece em outro.

Aqui, onde estamos, venha nos ver.

A pequena voz masca a erva de sua avidez.

 

3.

 

Quem pensaria em contar os degraus ao descer uma escada?

Sequer reconhecemos sua ambígua direção.

Do outro lado eu a vejo lavando o chão com as escamas cintilantes, uma vez mais refletindo a si mesma.

 

Porém agora me vejo como parte de seu enigma, resumo do universo em caracteres que sobem e descem por meu corpo.

Descubro-me o zodíaco de suas inquietudes, livro vital, e me deixo tragar por seu olhar.

 

A paisagem é uma arbitrariedade do desejo. Vejo aquilo que me escolhe e me transformo em semelhanças aflitivas.

A luz não mais acaricia o abismo e sim as hóstias da loucura, os círculos amontoados de tua hipnose.

 

4.

 

Os ângulos da paisagem são quebrados em silêncio. Quanto maior a necessidade de interpretá-los, mais eles se partem.

São acessórios de sua ideia dominante do mundo.

 

A quem interessa esconder os diagramas da ilusão?

Eu quero escolher os meus lugares. Eu quero dar conta da forma que imagino ser minha. Eu gosto de me sentir devotada a mim mesma.

 

Ao sair do casulo o céu perdeu-se de si, e levou consigo a cor que poderia ser a chave de nosso desaparecimento, de meu refúgio, de tua ambiguidade.

Os símbolos se contorcem quando cruzam o deserto.

 

5.

 

Eu me retraio. Há muito não me sinto distanciado dessas paredes. Cuidei de evitar sua destruição: pajear a visita dos ventos, entregar-me às minúcias da luz, amar-me em sigilo, sendo todos em mim. Jamais sonhei com outros mundos ou fiz parte da destruição universal. E agora essa garganta quer despedaçar meu silêncio. Como alguém pode se sentir penetrado por um desfiladeiro? Eu me retraio. Eu não quero combater. Nada em mim aceita se tornar um herói.

 

6.

 

A casa agora se multiplica em formas imaginativas da devoração.

Os olhos se convertem em bocas. Há bocas por toda parte.

Olho meu corpo, até onde posso vê-lo, como há recolhido todas as duplicações, como se contivesse um espelho em si.

 

Vago travestido pela casa, sem que me reconheça mais na totalidade de meu ser.

Talvez tenha sido replicado pela luz, convertido em um modo apropriado ao leque da analogia.

Vim aqui para livrar-me de meus disfarces e o mundo me quer de volta.

 

Não há como escapar de si mesmo?

 

7.

 

Olhem bem ao fundo a espiral que deixo para trás.

Reuni os artifícios que me invadiram o ninho e com eles esboço uma espiga.

Este sou eu agora, sem que me preocupe quanto tempo dure.

 

Somei os atributos de aspectos que sempre me soaram alheios ao espírito.

Não sei o que vou enfrentar, nem tenho êxtase ou angústia diante do que deve haver fora daqui.

Uma persuasão do acaso? Maldição do estrangeiro? Uma oportunidade de vida?

 

Desço a escada. Masco o anseio indisfarçável de meu olhar.

Toco meu estômago como quem tateia o percurso do abismo em si mesmo.

Sinto-me ao ponto de ser todos.

 

 

VITRAIS DO TEMPO

 

As imagens nos visitam e logo se perdem porque não as percebemos ou não as anotamos. As imagens constituem os vitrais de nossa passagem pela terra. O tempo necessita ser amarrado ao pé da cama, como uma cadeira impedida de sonhar com asas. Uma libélula esmagada por duas folhas de vidro acaba por se tornar o símbolo acentuado de suas vertigens. A secreta idade da queda, o prenúncio da miragem, as duas mulheres passeando abraçadas e a velha cogitando a eternidade em seu tremor solitário a confundir a própria idade. A vida se repete em seus mínimos apetrechos desconexos entre si, como tatuar números na pele, reinar sem súditos ou polir as asas da xícara idealizando a mecânica do voo. Um plano de silhuetas lambe a lua, a pétala do orgasmo, a caixa de ruídos da inquietude. O verbo detido pela iniquidade é a minha menina pedindo que eu fosse ao empório buscar sementinhas, a minha menina que me queria entrando pela tarde e não saindo jamais. O azul da tarde é tão lindo quando a cidade não sabe o que fazer com ele. A pérola oculta na concha cega do olhar dos passantes, caricaturas sinistras do que antes fora uma humanidade otimista. Véu de sedas metálicas, relógios cujos ponteiros não se movem, fotografias gastas da ansiedade, a angústia como um descompasso de caminhos, as ruas perseguindo uma evasão de pernas.

 

Hoje lemos a noite caindo do gancho, o bife a rolê de tua ausência. Quanto me custa entender que teus requebros me retorcem o olhar. Eu te vejo melhor à distância e nunca me verás. As pessoas passam fumando a tarde que esfria, uma senhora consulta seus papéis apressados como se estivesse perdida, o plano de saúde alinha a gravata do morto a caminho de seu óbito, a poesia jamais se modificou desde a primeira ave embalsamada. Nossos lugares-comuns nos derrotaram. Capitulamos por complacência. Sócios do acaso, mercadores de ilusões fatiadas. Vejo a tua pressa em despir-se, a minha angústia ao soletrar teu decoro, o inferno organizando um brechó de suas vaidades. O pecado acumulado trafega entre pastas, as boinas intimistas da ilusão se excitam em passos lentos, a temperatura cai e me faz cócegas.

 

Eu fiquei feliz de ali estar vendo o que ia e vinha: o mundo se desconhece nas ruas, o inflamável susto de ser tocado por alguém, o pânico ante o inesperado, uma letra perdida e ninguém mais acha o alfabeto. Nas ruas é outra a pronúncia do mundo, e não nos compreendemos jamais.

 

 

CINCO POEMAS PARA SOCORRO NUNES

 

1. REINO DE VERTIGENS

 

Teu corpo e o meu caindo sobre o mundo:

noite saqueada por uma caravana de relâmpagos.

Despojos do tempo foragido de sua fonte,

minando abismos à deriva, perdas flutuantes.

O rosto deformado da beleza que as ruínas cultuam,

linguagem extraviada ao querer entrar em si.

Teu corpo e o meu em sua queda mais secreta.

Um labirinto que fosse um deserto e um deus

ciente que dali não há retorno. Fuga de trevas.

Os disfarces fatais da memória ante o infinito.

Indetíveis sombras caindo sobre o mundo.

Teu corpo e o meu: o que resta de um no outro.

 

2. UM VÉU AO ACASO

 

Teu véu me visita no acidente das noites.

Ainda estou aqui. O meu papel no abismo é te proteger.

Porém me desfazes mil vezes,

como uma pétala aprendendo a ser o próprio outono.

Sempre tivemos um segredo cujo nome

se reescrevia em letras distintas.

Um nome perdido no labirinto de sua essência.

Talvez uma repetição de vozes que nos levam por inúmeras salas.

O mar dentro da pele.

O sorriso fora do olhar.

Um espectro protegido pelo acaso.

A última ideia de que a chama da alegria possa um dia extinguir-se.

Teu véu sempre cuidou de meus desvarios.

Sempre a mesma cascata a assumir formas insondáveis.

A relutante metáfora que nos assedia – este vozerio de truques da realidade –, sempre a lemos como um enigma breve, com sua voltagem de mistérios que nos tocam apenas por um instante.

E logo me recolhes em teus braços.

 

3. RABISCOS PRESSENTIDOS

 

Os dias mascam a própria pele à procura do que sequer desconfiam. São devotos do inimaginável e por isto estão sempre a cair de si. Os dias foram concebidos como uma tela de proteção para todo desvario. Porém jamais se sentiram à vontade pela recusa ao pranto e ao sonho. Os dias conjuram seus esquecimentos voláteis e a brisa secreta do acaso. Eu não vejo motivo para acreditar mais nos dias do que nas noites. Serão antípodas? Amantes insuspeitáveis? O que somos para ambos? Há mais de um século escrevo sobre o irreparável na colcha do tempo. É bem possível que estejamos crendo em deuses irreconciliáveis. Os mistérios se reproduzem como se pouco lhes interessasse desvendar o que está se alimentando de tantas dúvidas, tantas quimeras afásicas. Uma vez meu amor desceu do mar e me disse que estava bem cansada, que eu já não poderia contar com as suas âncoras e os diários de bordo. Naufrago até o momento em que escrevo este poema. Tampouco intuo o que será de minha vida, até…

 

4. PROFECIA PENDULAR DOS 63 ANOS DE SOCORRO NUNES

 

As noites dizem sim dentro da alma desamparada e me levam ao teu corpo nu como um rio.

As sombras cruzam suas pernas dilaceradas pelo sol e a memória celebra seus disfarces improváveis. Releio tudo quanto imaginamos um dia decifrar como linhas favoritas que nos trazem de uma palavra a outra.

Nossos sapatos famintos devorando os restos de uma estrada e as escadas extenuadas regando os degraus da escuridão.

Somente tu pareces compreender quantos somos em meio a tantas casas decantadas.

Ouvimos a pedra soletrar o próprio abismo em uma canção improvisada.

Despimos as cordas que repercutem os melhores acidentes de toda uma vida.

As migalhas do horizonte ainda acreditam que podemos refazer as páginas esquecidas em outros livros.

Vivemos como frases quarando na intempérie.

Fomos somente tu e eu em meio às espigas do desejo e as aves negras do esquecimento.

E ainda estamos aqui. Não importam os postais esmaecidos da paisagem ou os rascunhos sigilosos do que não soubemos ser.

Ainda estamos a bordo do acaso e da aspereza enxovalhada do dia.

Dedicados e delicados. Como uma nuvem que ausculta o coração do tempo.

Como o silêncio que rege uma sinfonia de rangidos e outros presságios.

Somente tu e eu. Dois rios dentro de uma mesma fábula corrente.

 

5. RENASCENÇA

 

A grande taça aos solavancos,

suculenta como sonhos virginais,

embebe a lentidão de sumos

que lubrificam o desgaste do tempo.

Deusa com estoque de lábios

para as tempestades atômicas,

decifra a angústia de mil reinos,

deslacra as estações insolentes.

Nome que é todos os nomes,

beija-me a própria renascença.

 

 

 

VINHETA

 

Viajas pela terra, vês tudo o que está dentro dela, observas todos os negócios da tua casa, e comes pão, tendo sido efetuadas por ti transformações iguais às de Baba.

TAQUERT-P-URU-ABT (texto funerário)

 

Teu corpo floresce selado em páginas necessárias.

Santuário que surge e pousa e torna a ausentar-se.

Um abraço de folhas naquele que te abre à luz

de enigmas proporcionados pelo tempo. As porções

 

de um mesmo dia que albergam tremor e sombras

de tudo quanto o homem julga torná-lo um santo.

E um chão de folhas caídas (a cela repleta de folhas)

a traduzir a travessia do que recita a própria agonia.

 

Tarde passas por aqui, vinda de tarefas que te inundam,

o corpo ainda em sopro majestoso florindo um suave

estojo de frases do coração e a saúde de ritos erguidos

por todos os feitos vitoriosos da respiração. Onde estás?

 

Tuas letras nos chegam em súplicas e cuidadosas dores.

O homem é preservado graças a seu duplo. E floresce

em papiros relutantes enrolados em teu corpo. Aceita

a companhia de deuses para que dali triunfante ele saia

 

a soletrar seus martírios e dobre as folhas lidas de modo

a não retornar nunca ao que supõe ter sido um dia.

Onde estás? Mesmo que digas que o vazio é como estar

perto de ti, ergue-se o dia a cada dia sem rejubilar-se

 

por tal façanha. Os deuses alargam o passo. Os homens

se julgam santos. Uma mesma tinta glorificada lacra

sua passagem de um tempo a outro: a memória

é o sangue, as palavras mágicas, a firmeza da ilusão,

 

a rubrica de dotes sacrificiais implantados no espírito.

Teu corpo floresce exaltado pelo nome e por todas

as formas que exaurem a devoção. Teu corpo oculto

como um pássaro no céu a degustar os tremores do voo.

 

Decerto será misericordioso o calor de teu corpo

estendido ali onde a miséria triunfa. Ali onde causa dano

a oportunidade perdida. Ali onde continuamente o ser

perde sua linguagem. Bem ali onde morreremos inúmeras

 

vezes, onde as vozes escolhem seus louvores e assinamos

com trêmulo vigor as faixas que garantem que teu corpo

não seja jamais despedaçado. Onde temperamos a odisseia

de ilusões de que floresces. Onde és o corpo sob nossos pés.

 

Deusa de um túmulo encravado em nosso espírito.

Não há quem a proteja de si mesma. Rabiscos por toda

a pedra santa. O verso é o verbo diante de si. Dentro

do livro está o homem: carregado de sombras e vertigens.

 



 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

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