Uma prisão como um pecado
só requer alguém para prender.
FRANK
ZAPPA
Amanhã eu começo a me afastar de ti.
Cinco noites quebradas dentro do poço.
Cinco fulgores com a cabeça pendida.
O anúncio atormenta o espírito decaído sobre a
pedra.
Ouvimos as vozes recorrendo às rajadas de
silêncio.
Já vimos como é fácil viciar motivos.
Temos que embrulhar a noite em tua pele
impressa.
Não deixemos a dor tocar profundidade alguma,
pois ainda há muitos tonéis de espanto por recolher.
Amanhã eu digo que não passarás mais daqui.
Sabemos que nem todas as evidências são úteis.
Não há quem desperte o tédio de sua ressaca.
Não chores no miolo do inferno.
Não vociferes no alvoroço de salas da
penumbra.
O poema a todo instante te engana.
As metáforas conhecem todos os feitiços.
Tuas imagens se desfalecerão por excesso de
nomes.
Amanhã eu sou a tua metafísica aturdida.
A fria sopa de trevas servida com ervilhas e
as manchas de esperma na toalha de mesa.
Teu negro coração se parte, esvaziado de seu
fulgor.
Prazeres defumados em tua pele.
Tudo invisível como pedra e limite da areia em
nosso olhar.
Deserto vítreo que nos devora a carne em
tormentos solares.
Nenhuma lei nos resta por infringir.
Amanhã eu esgoto as tuas formas sem perdão.
Um rapto anunciado dentro da espuma dos risos.
Tudo em ti se extenuando enquanto me gozas.
As posições que ocupam em meu corpo as tuas
esferas secretas.
Submeter cada forma a sua vergonha extrema.
Ser bom para com a queda que se despe.
Adotar por princípio a delicadeza nos
dormitórios e outros meios de transporte.
Há um livro sendo escrito enquanto se
descarnam ruído e silêncio.
Nada em ti deve cobiçar a eternidade.
Amanhã eu começo a desfazer-te de mim.
Não me escrevas mais nenhum poema.
Temos que embrulhar a noite em tua pele
impressa.
Nenhum de nós se esvai dentro do gozo.
Há desastres previstos para cada instante.
Sortilégios que se confundem com o olhar
decaído de um pássaro.
Vítimas não se reúnem a redigir imprecações.
Mortos jamais passaram de mortos.
Tudo o que circula entre nós é apenas uma
chaga dentro de sua ausência aparente de tudo.
Não rezo por ti esta noite.
Não morro por ti.
Não vivo por ti.
Alimentamo-nos um do outro enquanto todos os
cadáveres bailam.
Amanhã eu tomo o depoimento de teus mortos.
O sol não te adora.
O dia não está à tua disposição.
Os teus deuses não querem senão sair nos
telejornais.
Não somos primitivos.
Somos deprimentes.
Já ninguém sabe o que se passa com um
esqueleto ao desatar o nó de suas crenças.
Muitos riem e indagam se a morte será apenas
isto.
A vida de muitos é ainda menor e em nada tal
fato incomoda.
Amanhã eu percorro a tua vertigem anunciada.
Porque eu estou dentro da noite e a noite
requer extravagância.
Em teu olhar a pequena pétala distraída do
destino.
Amores enfaixados de deltas, trilhas
sanguinárias, indiferenças confiantes no próprio suplício.
Eu quero o teu sussurro em minhas costas, a
tua insônia em minha ânsia de matar-te, os teus mamilos recostados em meu
peito, a girar, tudo a girar, como se aceitássemos o extravio do equilíbrio que
se agita dentro de nós.
Em um único verso o amor descreve que não
passa do espectro da dissipação.
Amanhã eu estreio o sangue de tantas mortes.
Não há como evitar o riso ante a reação do
público.
O enredo se põe a rir como uma coleção
desfeita de enigmas.
Não sei como este segredo veio parar em mim.
Não me confesses nada que não possas recordar.
Esta vertigem me é de todo desconhecida.
E não somente seios, omoplatas, olhares: não
havia limites para o que se pretende fora de lugar.
O valor intrínseco de cada coisa desapareceu.
Nos bastidores os personagens remendam os
figurinos.
O teatro sabe que não pode parar.
O público se recria com um enigma estupefato
nas mãos.
Amanhã eu caio de tua boca fechada.
Não há acordo ou silêncio advertido.
Eu simplesmente caio, sem que facção alguma
assuma o feito.
Declives na vida do olho, cadáveres encerrados
no gozo, efeitos ordinários.
Roncos da insônia, linguagens trotando em
busca de uma imagem desfeita, tatuagens boiando no fogo.
Um pequeno vazio se dilata.
O vento não me venha com sua resenha de
espantos.
Teu silêncio requer mais que um requebro de
espinhas.
Amanhã eu fujo de tuas previsões.
É ingênuo pensar que os olhos do carrasco se
encherão de lágrimas.
Os deuses não conhecem outro sóis senão
aqueles que lhes dedicamos.
Os carrascos não têm olhos.
A vida não nos rende homenagem.
Eu planejei tudo para estar aqui às três da
tarde, mas um rumor, a droga de um rumor que se derramava pela engrenagem de
meus salmos, não me permitiu atingir idade suficiente para perder-me em ti.
Amanhã eu trato de dissipar teus suspiros.
Os vícios nos tornaram tão pensativos.
Reparaste que há partes tuas que jamais se
moveram em mim?
Eu não estou aqui.
Eu não vigio o monstro que mantemos à beira do
fulgor.
Tu me desterras com teu amor.
A tua beleza é uma descoberta minha.
Agora não sei o que fazer de ti, e me enfureço
por não saber como banir-te daqui.
Amanhã eu começo a desaprender-te.
Não é muito, para quem sequer sabe teu
verdadeiro nome.
A paisagem se torna constrangedora com tantas
pernas sem saber quando devem ser cruéis.
Há atraso previsto até mesmo no compasso da
perversão.
Se há uma verdade, há que evitá-la.
Temos que embrulhar a noite em tua pele
impressa.
Os olhos nos levam de um andar a outro.
Contamos entre os vivos quantos tornaram
possível a tragédia que nos atemoriza.
E os perseguimos como se não houvesse espelhos
no mundo.
Estamos agora em um andar secreto onde não
podemos ser identificados.
Tua morte não cabe em meus braços.
Amanhã eu decoro a tua ausência.
Tu és a minha beleza refeita em cinzas.
Eu sou a queda rutilante de tudo quanto havia
em mim de teu amor.
E agora nos entregamos a este ar pensativo com
que denunciamos tudo o que desprezamos no outro.
Por onde cai a pele?
Ainda estamos aqui, no entanto.
Escuto o batuque das roupas se desfazendo de
sua morada.
Um poema pode salvar a imagem decadente do
amor.
Nunca nos movemos por baixo da neblina de tais
absurdos.
Um suspiro alimentando outro sem que nenhum
buscasse significado sequer para si mesmo.
Como saber qual de nós insiste nisto por
acreditar em algo?
Somos levados por rumores.
É o grande ritual que alimenta as vísceras de
toda metáfora.
Ruídos, murmúrios, burburinho.
A vida não passa disto.
Amanhã eu reparto as carnes extraviadas de teu
desamparo.
Já não estarás aqui e as ruínas mal se
distinguem entre rostos ausentes.
Deves recordar quando aprendemos a descombinar
golpes.
É como sair a petrificar nuvens por onde se
passa.
Aqui não passará nada.
Conhecemos os atrozes enigmas incapazes de nos
denunciar.
Teu próprio riso se manifesta demasiado
antigo.
Fomos perdendo a noite dentro de arquivos
citados.
Sequer o infortúnio manteve a cor original.
Amanhã eu saio daqui com alguns traços
ocultos.
Convulsões esmiuçadas dentro da estação
fechada.
Não me tens sob tua roupa, mas sabemos que as
circunstâncias nos convertem em idiotas.
Decerto haverá um espelho em que me possas
matar.
Cortar os pés da imagem para que tenhas
descanso.
Substituir a esperança por escadas mais
baixas.
As vítimas se delatam em sua palidez.
Resumem a vida a uma lista de imperativos.
Os violinos não puderam vir para o jantar.
Morrerás assim mesmo.
Amanhã eu soletro o mistério de tuas flores.
Não se sabe como essa vigília passou a crer
demasiado em seus méritos.
Muitos crimes se confundem, em seus desconexos
motivos.
O corpo permanece morto.
As pistas tornam a sobrevivência atrativa.
Vestígios se deliciam em traçar planos de
fuga.
Temos que embrulhar a noite em tua pele
impressa.
Amanhã eu trato que regressem a seus lares os
fantasmas de todas essas noites.
Muitos sonhos já não sabem o que fazer de si.
Imagens se atropelam em busca de soluções
artísticas para seu abandono.
Um livro assim não ficará pronto nunca.
Tens um poema ruim dentro de tua alma.
Agora que não sabes nada de mim, posso
confundir-te por toda a vida.
Somente se afogam os profetas que sabem nadar.
Os conceitos são servidos em uma mesma pasta
de agulhas.
Não estarás aqui em teu dia mais solene.
E todas as tuas lembranças serão viscosas e
malsinadas.
Eu me inundo de ti, de onde extraio os sons
que me iludem de ser tua própria sombra.
Amanhã eu faço os reparos na inundação de teu
ser.
A dor tem que saber que dói.
A ilusão, que faz germinar um jardim de
gavetas.
Onde quer que surjas, haverá sempre um relógio
a dizer: espero.
Por qualquer que seja a víscera que o mundo se
extinga: espero.
A tua morte contemplada mil vezes dentro do
olho de um fósforo: espero.
Por infinitas horas a tempestade agônica da
mesma tecla.
O livro já se foi, ninguém o pôde ler.
Não nasce nada aqui.
Temos que embrulhar a noite em tua pele
impressa.
Amanhã eu tenho que contestar as minhas
promessas.
Não vamos passar a vida toda assim.
Criaste um segredo comigo e isto me atormenta.
A realidade não é uma abstração tão perigosa
quanto pensam os poetas.
Treinar parricídios diante do espelho.
Desacreditar em abismos dispostos a tudo.
Também Deus envia bilhetes anônimos.
A fé não trapaceia menos que os relógios
silenciosos do inimigo.
Todos nós somos inimigos.
Não se pode concluir um poema assim.
A terra gira.
A inocência se alimenta de si mesma.
O engano a fortalece.
A inação domina todos os cenários.
O homem não crê senão no amanhã.
A todo instante reitera: amanhã.
Amanhã:
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
∞
Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
∞
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
Nenhum comentário:
Postar um comentário