A claridade de um fato pode ser a claridade de outro, cuja
semelhança não é equivalente, que permanecia às escuras, porém a iluminação ou
sentido adquirido pelo primeiro fato, ao criar outra realidade, serve de
iluminação ou sentido ao outro fato, não semelhante.
JOSÉ LEZAMA LIMA
A
QUEM SOUBESSE O NOME DELA
Ocupa-me com teus seios e sua álgebra frenética,
com a brevidade do abismo que cultivas no olhar.
Do quarto piso do aterro das almas cansadas,
uma janela deságua a inquietude de nosso pacto.
Não me digas o teu nome, cidade, papiro ou mar.
Jamais saberia como reaver-te em meio a tudo
que perco no transporte de enigmas luminosos.
Redijo um atropelo de caos, quando me reanimas:
as cidades não caem fora de si. Erram no
que são
e se repetem, até que o erro desista
delas e se vá.
Cobiçarias no outro o que se oculta em teu ser?
Caçoo de mim enquanto as imagens se estreitam.
Teus mamilos desamparam meu desejo, uma sobra
de gozos antes que tudo se repita e seja nada.
CLARIVIDÊNCIAS INSINUANTES
•
ZENAIDE ÁVILA
Danças e teu vestido alarga a noite.
Costuras tua leveza em meu espírito,
sem que haja ressalva para o
episódio
de teus lábios, córrego furtivo,
relva
anunciada enquanto colas com tua
saliva
um jogo de nuvens em meu peito.
Exaltas o que sou em disfarçado
provérbio,
carícia que prolonga a
noite, reflexo
de corpos caindo dentro de um poço
onde acumulas o carvão da dança.
Teu vestido alegremente exalta o
vento
e o recolhe na sombra reservada ao
sol.
Lábios que se abrem como um
penhasco,
quase me reconheço em teu
saguão visível.
•
YUMI BALESTRE
Pequenas sombras se espalham pela
casa.
Insultam a vidência da luz e a
vigília do olhar.
Mascas o fungo de tua nudez envolta
em visões.
Já não sabes ao certo o quanto estou
aqui.
Despertas um deserto submerso no
encaixe
de cenas roubadas, clarões da
memória,
rostos mergulhados em máscaras.
Tu me fizeste inacessível. Releio
tuas cartas,
a tinta atormentada do que buscavas,
e não me reconheço nelas, sequer uma
miragem.
As sombras que crepitam em teus
anseios
são as mesmas, sempre roubadas,
sempre.
Rasgas a pedra escrita na colina que
se move.
Como um lacre rompido, um dia
aprendo a ser tua.
•
XÊNIA CAPELINI
Deixo o espelho aceso na palidez da tarde,
para que nos diga onde a ilusão recomeça.
Engatinhas por entre os móveis do abismo,
e te ris quando não encontras mais nada.
Meus seios cravam em ti outra miragem:
despimos o improvável, mascamos seus vícios.
Rumores recolhem os naipes do silêncio.
O espelho soletra um mecanismo de convulsões:
labirinto enlouquecido sem saber sair de si.
Enquanto nos devoramos a cidade se dissolve.
Roubo teus pequenos proveitos, ruínas
desfiguradas, usinas de sêmen-fátuo, uivos
entalhados na noite como um saque,
com a semelhança desfeita em cada beijo.
•
WILMA DIAS
Em tua casa descoberta na tormenta
todos os corpos serão
possíveis: sombras
instaladas como lâmpadas nos confins
de um gozo emboscado entre dois
mundos.
Cada corpo uma chave, com seus
dentes
mascando um segredo antes da perda.
Vagará por entre os cômodos um
abismo
sem que reconheça a ossada de
seus danos.
Tua nudez imune frequenta todos
eles,
os corpos alojados sob a tinta em
soluços,
paradeiro aflito de uma fuga de
quimeras.
Com seus lábios despistando
espelhos, cada
corpo se orgulha de
abrigar outros tantos,
sem saber ao certo onde plantou sua
morada.
•
VIRGÍNIA ERBOLATO
As ruas se repetem como se temessem perder
a identidade. Canais de ilusão são abertos
em cada esquina como um estojo de vícios.
Os lugares em teu corpo onde pousei o afago,
janelas entreabertas com luz ainda em seu bojo,
tudo insiste em ser igual a um mito aprisionado
no espelho, fábula imprecisa ou rio sem leito.
Todo êxtase nos impulsiona a uma nova fricção.
Hoje percorro as ruas de teu corpo e espanta-me
como as cidades em que estivemos são a mesma.
Não devias estar aí novamente, nos subúrbios
do gozo ou na esfera gasta de cheiros e engodos.
Não devias te repetir em parte alguma de meu ser.
Eu não te amo mais até que te ame novamente.
•
ÚRSULA FONTANA
Eu
cubro o teu nome com os cílios da noite.
Teu
desamparo mal distingue em meus dedos
as
tintas com que trafego por sua vegetação.
Estás
sempre nua como uma metafísica insone.
Eu
misturo as sílabas flutuantes do desejo
e
rabisco em tua pele uma senha esponjosa.
Teus
suspiros badalam em ardilosa catedral,
com
sua areia-gulosa e as joias do abismo.
Não
concluis uma frase sem a reticência
luminosa
de teus seios boiando no tempo,
tear
de safiras da luxúria, paiol de miragens,
partes
minúsculas do perigo que se põe a rir
sempre
que o vemos como um cofre, um fim.
O
sol configura suas telas com o traje mecânico
do
esquecimento, penhasco de vícios: não dar
por
conta de um único anseio no dia seguinte.
O
mundo se despedaça rindo. Acumulo suas
vítimas
na ribeira. Pernas trêmulas da melancolia.
Manjar
contaminado da esperança. E ainda
assim
ali estás, baile sem rosto e infindo,
tua
nudez entrevista em seu duplo sentido.
Eu
abro o teu nome para decifrar seus vidros.
•
TELMA GUTIÉRREZ
Tu me despias por um fio de
mansidão,
ameaça de luz ao tremor do
mínimo gesto.
A mobília encantada com tua
habilidade
em decompor estrelas, bosques,
pântanos
no intimismo de meus relevos, nos
vincos
de minhas nuvens, arena de fogo e
odes
ateadas ao emboléu de relvas e
suores.
Enquanto me desfazias de panos
descritos
meus olhos fechados tateavam cada
cena:
paisagem ramificada nas gavetas da
cômoda,
sombras petrificadas no espinhaço do
espelho.
Tudo ali cabia na evidência do
menor truque:
chegavas a inventar tecidos onde não
havia,
a desfolhar meu espírito no enredo
da tarde.
•
SANDRA HOFFMANN
Escuto teus passos
inacessíveis em mim,
testemunho de ânsias e afagos
fluentes,
formas espantosas que abrigam teu
rosto.
Rastejas com uma evidência de
pálpebras,
simulas um duplo e sua sombra
refletida.
Estás diante de mim e jogas com teu
olhar:
pequenas pedras pousadas no leito do
rio,
peixe vibrante que é também o caule
sagrado
da selva de encaixes que vislumbras
em mim.
Água e fogo reescrevendo teu nome, o
guia
de fontes insuspeitas por todo meu
ventre.
Caminhamos como um feitiço em cujos
lábios
a febre despe seus fungos,
alternando
as rochas: onde fixo teu
gozo, fitas meu riso.
•
REGINA IOSHIMI
Eu o chamei – como se fosse meu –
com suas
raízes que fingiam confundir
sussurros e silêncio.
Ramos que pareciam regressar do
abismo,
silhuetas que se desfaziam
ao som do hálito.
Eu o chamei para que me tocasse
vivíssimo,
e que me pusesse a persistir junto
ao mar,
indo e vindo dentro de mim, em úmido
açoite,
meu fôlego crescendo ávido em cada
sílaba.
Por onde mais viesse, sua extensão
me refaria
de tudo o que não soube ser antes de
tê-lo
a evocar-me no centro de minhas
aflições.
Ele é todo feito de trevas e
palavras inumadas.
Fetiche extraviado que recolho nos
destroços
dos amantes que eu nunca soube
comover.
•
QUÉREN JORDÃO
Uma árvore tremeluz refugiada em
sombras.
Corpo suando um mistério
aplicado às veias
que se deslocam: vultos cujo eco de
sílabas
invade a véspera de teus rumores, a
sábia
precaução dos sentidos, edificando
teu nome.
Para aqui viríamos, para o auge
dessa pedra
com que ilustras as páginas de um
sonho.
Jamais saberei quantas fui, fúria ou
repouso,
de um eixo a outro de teu abismo
encoberto.
Modelaste em mim uma estranha
melodia
com portas rompidas, de onde não
posso sair.
Voragem de névoas a conservar
em risco
a noite de úmidos espelhos de
tua carne:
tumulto singelo, o beijo com que me
acolhes.
•
PENÉLOPE KLEIN
Dores caídas em mim com suas noites inquietas,
luzes mordendo-me os lábios, o mar arriscando-se
a tocar por dentro as contas do farol. Dá-me tua mão.
Ouço-a cantar por todo meu corpo, relva de abismos,
deslizamento de angústias, tua ânsia sempre recolhe
mais que meus beijos. Deita teu corpo sobre o meu.
Acentuas meu destino como uma cadeia rochosa
que percorres com o peixe-águia de tuas carícias.
Tuas dores naufragam antes que saibam meu nome.
Toco a face de tua inundação. Para sempre eu fui
o quadrante inabalável do que mais temias, e agora
te estendes, como um fantasma obediente, sobre
o sigilo dessas águas, trevas líquidas, teu fulgor,
morrendo aqui em meu peito, como tanto sonhei.
•
OLÍVIA LIZABO
Em versos que sabem repetir-se,
lentamente
desperta a tua noite acumulada em
meu peito:
folhagem abrigada à beira do abismo,
e então
me sentes, de bruços, flagrante de
peixes escavando
nuvens na acústica do mar: bulício
rastejante do infinito,
o canto que entoas com teu cardume
de carícias.
Dorso apegado ao entusiasmo, com
suas encostas
folheando estrofes do fogo aceso no
excesso de risos.
Ali onde a tua eternidade me acalma,
espreito os passos
furtivos do desejo, e como me moldas
tua ilusão mais fiel.
Roubas o limiar de rumores e suas
dissonâncias.
Olho enfim como passas por meu
corpo,
como repartes o abismo e estremeço:
não te escondes jamais atrás de um
segredo.
•
NÁDIA MORAVIA
Acompanho a vigência da chama
ondulando a paisagem de teu corpo.
Para cada ângulo de meu olhar
tens um extravio pronto, um alvo
a insinuar-se lento enquanto me lês
por trás de arbustos e restos de
luz.
De onde me vês mil símbolos
buliçosos
se agitam despindo abismos e órbitas:
formas que soluçam correnteza
abaixo,
letras úmidas do barro em que
modelas
teu arcanjo rebelado em meu
espírito.
Desata-me na medida de teus dons.
A todo instante erramos as páginas,
braços e pedras, dessa casa
invisível.
•
MERCEDES NIELSEN
As cidades se fecham em mapas descartáveis,
jazigos turísticos, onde sempre negas meu beijo.
Tudo em vão, se a dor desconhece seu nome.
Agendas do acaso, retóricas de um futuro gasto.
Uma noite deixamos o abismo dormir conosco,
estranho vulto cuja vida o cotidiano rejeita,
embora não deixe de saltar de um ponto a outro
de nossos trapos alegóricos, sua renda alquímica.
As cidades, no entanto, recusam a ideia do beijo
como uma túnica refeita de mitos que não retornam.
Beijo-te e as ruas não vão a parte alguma.
Soletram percursos recordados em teu íntimo.
Amigam-se da memória ardilosa e suas proezas,
como deusas decorando um mantra sacrificial.
•
LUCRÉCIA ORSATO
Teus beijos ensaiam uma alegoria em meu dorso.
Eu os sinto como árvores dançando, flamejantes
pétalas, constelação de corpos em plena colheita
a sussurrar: todo homem
é uma recriação.
Apontas uma cidade longe em minha vertigem.
Vendaval de migalhas, ilhas cegas, velhos
mapas que não contavam com teu desamparo:
o
amor gira sempre em torno de si mesmo.
Passa por aqui a galope o teu sexo emocionado,
tua piedade de Deus bicada de remorsos.
Um castelo agitado repleto de males menores
e o vestido de baile de tua primeira ilusão.
Passam máscaras como um pranto de roedores
e luzes afogadas em poços da mais meiga solidão.
Um único personagem em ti se atreve a falar
e me acusa de jamais haver saído do poema.
Aqui estou eu desfeito em verso, mal recriado,
e sem saber como evitar voltar a ser o que sou.
•
KAREN PROVENDEL
Eu roubo os declives crispados
da luz na cavidade de teu abraço,
audácia de suores com que interrogas
certos pontos encobertos na
brenha
de vícios que renascem em teu corpo.
Não há melhor saída para o indício
que queres instigar em minhas
águas.
Embaralho tuas quedas incompletas,
suas hipóteses rompidas entre
beijos.
Erras de um extremo a outro da pena,
revelando tuas máscaras insuspeitas
nos tecidos dissipados da escrita.
Refaço tuas dores enquanto pensas
que o fogo não me queima dentro de
ti.
•
JÚLIA QUARESMA
As línguas viajam pelo céu da boca,
sempre aladas, como anjos caídos.
Ao dizer-te que meu nome era Ilusão,
meu sermão não levaste em conta.
E passaste a me chamar como antes,
como sempre me soube tua imaginação.
Línguas nos levam de uma parte a outra,
sempre em trânsito, guiadas pela gravidade.
Jamais te vi tão nua quanto naquele dia
em que me puseste sal na língua a entoar
um não te vás silencioso e veraz como a lua.
A língua nova era tua e sonhei com ela
toda uma vida, sem saber onde pousar.
Agora que o sei, o céu muda de lugar.
•
IRENE ROCHETTI
Teu incêndio forma uma cadeia de
labirintos,
despojos aflitos com seus rios
queimados.
Um corpo remando contra os delitos
prolongados numa margem e outra,
ritos
carregados de súplicas e negras
portas.
Alfabeto de pedras a
recolher seus espectros.
como uma vida de dores em armários
suspensos,
tudo ali parece queimar em modos
distintos:
furor de salmos com passos
descontrolados,
cinzas maltratadas sem saber onde
cair.
Teu incêndio funda uma reserva de
tumultos.
Um corpo imerso em lágrimas
vulcânicas,
violando os nomes que dedico a seus
rostos,
cada um abrindo as covas de seu
testemunho.
•
HENRIQUETA SELVA
A tua caligrafia vibra em meu corpo,
suspende as distâncias, recria
portas,
a desgastar-me de tanto entusiasmo.
A meiguice de tua escrita me esvazia.
Eu me lavo com tuas palavras, e
navego
a insensatez de suas virtudes: falam
através de mim em impetuoso idioma.
Por onde viajo há mil anos me
eleges,
sempre o mesmo homem relendo
sombras,
como se em transe a pele fizesse
aflorar
outra agonia, vômito de vertigens, um
novo hóspede de teu fogo, anjo
tremente
com seu manuscrito arrebatado e
sutil.
De um súbito naufrágio em teu ser
renasço.
•
GLÓRIA TEDESCO
Eu te persigo como uma lua envelhecida
refazendo as nódoas do vento em sua memória,
ou ruas abandonadas que se recusam a aceitar
não serem mais a rota do fogo ou da seda.
Eu te persigo em busca da ruína de meu corpo,
que foi lavrada na argila manhosa de teu vulto.
Não me virás uma vez mais com teus moinhos
de beijos, efeitos alquímicos, sopros de vida,
arqueios escritos ao contrário, flor de enigmas.
Eu te persigo como uma tonelada de peixes
mortos denuncia a falta de mar em mim.
Não penso em deixar de morrer. Fecho os olhos
e persigo, alheia às linhas de minha mão,
o teu fim como se fosse meu último orgasmo.
•
FELÍCIA URBINO
Eu bebo a soma de teus rios, quando
abres
o escândalo rascunhado pelo
próprio punho
e um corpo banhado em murmúrios se
agita
escondido do destino numa velha
escrivaninha.
Bem dentro compartes idiomas
esquecidos,
ruínas disfarçadas, rótulas
místicas,
um remorso retirado de cena antes
mesmo
que compreendesse o papel que lhe
cabia.
Eu me embriago com teus vapores sem
pausa,
sombras de onde se avista a maré
alucinada
de tuas ânsias. Dali também vejo o
rastro
de vultos perseguidos pela angústia,
a tua
árvore decaída em susto e mistério,
a minha
vida subitamente enterrada
em sábio alvoroço.
•
EUNICE VEREZA
Entras em mim pela noite
devastada
com todos os teus vultos
indecifráveis,
ao acender a lâmpada da tempestade.
Reconheço o ardil de raízes
queimando,
o elemento flutuante posto em cada
sílaba
com que me tornas tua árvore mítica.
Eu respiro teu fogo e masco a
mobília
cravada na coxa terrestre de teu
enigma.
Escuta meu coração rasgando-lhe as
veias.
Antes que atires todas as janelas
fora,
dá-me um acesso à multidão de teu
nome.
Deixa-me gritar por ti antes que
arruínes
todos os argumentos do destino,
antes,
bem antes que me deixes sem
perguntas.
•
DIANA WASH
Tua ausência me enfeitiça e renasces
como uma fraude por repetidas noites.
Pressinto a espreita dos gemidos pegajosos:
os lábios sempre no limite. Nada em mim
jamais esteve a salvo de tua voragem.
Quando me encontraste eu estava louco.
Recolhia pequenos pássaros congelados
e mascava seus voos em rituais de pranto.
Tu me deste a efígie negra de teu ser,
como um último recurso e livre rota celeste
por entre deuses, desertos, misérias, nomes.
Moí o vazio à procura de como empregá-la,
a imagem lutuosa de teu afastamento.
Percorri os círculos brancos da memória,
com suas bestas cochichando ardilezas,
até que não houvesse mais noites em mim
sem a tua nudez invisível: falso terror
com que me golpeias o voo cristalizado
dentro dos pássaros que se foram comigo.
•
CAROLINA XAVIER
O teu abismo me
veste, improviso perverso
de convulsões e ruídos: jarra
de sombras
com que corrigimos a sede de nossos
corpos.
Espreitamos as variações de um
deserto
adormecido nas
escadarias: grafismo
exausto, sonho refeito pelo avesso,
uma dor
intrigante a perturbar
a virtude da trégua.
A tua crônica se apressa em
negar um último
enlevo: reanima figuras devotas
do fogo,
gemidos tateados pela sala, a
escultura
de gestos úmidos com que me
alucinaste.
Repercutes em mim as exigências do
bosque
que impuseste como limite de nosso
refrão.
Sintaxe faminta, o milagre com que
me vestes.
•
BERENICE YOCHICAVA
Tuas mãos renascem singrando meus declives.
Verbo exaltado, oscilando em curiosas esquinas:
fomos
seremos deveríamos – frestas audaciosas,
a pele roubada de um instante a outro:
enquanto me beijas um mundo inteiro se refaz.
Orla abismada do acaso, os dados em tuas mãos.
Jogamos com os nervos do resplendor, frescor
de músculos extasiados e uma liturgia de suores:
árvore arrebatada pelo canto, pássaro fisgado
pelo voo projetado no olho do peixe-lince,
luzes como estrelas incompletas. Rotas elétricas,
a fruteira de sonhos, teus beijos sem razão alguma.
Uma morada de lobos devoradores de sombras.
Não dormes nunca. Corpo extenuando a linguagem.
•
AMELIA ZERBONE
O teu sorriso fala comigo pelo corpo
inteiro.
Lábios, os teus lábios vastos de
noite em sigilo
trançada em pelos de lâmpada,
fiação de algas
exaurindo as margens do mundo que me
pões
pelo avesso em suas negras estrofes
confessadas.
Beijo a palma de teus sonhos, o
instrumento
anunciado no extravio de páginas com
que
esvoaças as ancas em um ardil de
ânsias.
O teu sorriso ancorado em um
bosque suspenso,
estrondo de penumbras e
letras desfeitas, tudo
revirado dentro da casa que
interrompes
com a tua sombra ateada
em grutas e desertos.
Mascas um salmo enquanto me
percorres,
com toda a franqueza do êxtase em
teu sorriso.
ESCALAS
ANÔNIMAS
Há uma voragem imediata que nos
enlaça,
lâmpadas criadas no mesmo olho do
desejo.
Uma euforia da semelhança
despindo-se
enquanto me beijas: revoada de
espelhos,
letra revelando-se em pequenos caprichos.
Apanho a confissão de tuas sombras,
a carícia
do céu esquecido na mesa da sala, um
rosto
visível e outro extinto no encaixe
de gozos.
Tu me beijas o pássaro, a pedra, o
abandono.
Um frenesi sem fim palpita em
teus braços.
Pernas se multiplicam em comovidas
formas.
O dia reluta em guardar segredo:
teus suores:
nenhum perigo será mais grave:
refúgio algum
terá sossego: nada mais nos escapa
ou retorna.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
∞
Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
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