terça-feira, 25 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Efígies suspeitas

 


A claridade de um fato pode ser a claridade de outro, cuja semelhança não é equivalente, que permanecia às escuras, porém a iluminação ou sentido adquirido pelo primeiro fato, ao criar outra realidade, serve de iluminação ou sentido ao outro fato, não semelhante.

JOSÉ LEZAMA LIMA

 


A QUEM SOUBESSE O NOME DELA

 

Ocupa-me com teus seios e sua álgebra frenética,

com a brevidade do abismo que cultivas no olhar.

Do quarto piso do aterro das almas cansadas,

uma janela deságua a inquietude de nosso pacto.

Não me digas o teu nome, cidade, papiro ou mar.

Jamais saberia como reaver-te em meio a tudo

que perco no transporte de enigmas luminosos.

Redijo um atropelo de caos, quando me reanimas:

as cidades não caem fora de si. Erram no que são

e se repetem, até que o erro desista delas e se vá.

Cobiçarias no outro o que se oculta em teu ser?

Caçoo de mim enquanto as imagens se estreitam.

Teus mamilos desamparam meu desejo, uma sobra

de gozos antes que tudo se repita e seja nada.

 

 

 

CLARIVIDÊNCIAS INSINUANTES

 

ZENAIDE ÁVILA

 

Danças e teu vestido alarga a noite.

Costuras tua leveza em meu espírito,

sem que haja ressalva para o episódio

de teus lábios, córrego furtivo, relva

anunciada enquanto colas com tua saliva

um jogo de nuvens em meu peito.

Exaltas o que sou em disfarçado provérbio,

carícia que prolonga a noite, reflexo

de corpos caindo dentro de um poço

onde acumulas o carvão da dança.

Teu vestido alegremente exalta o vento

e o recolhe na sombra reservada ao sol.

Lábios que se abrem como um penhasco,

quase me reconheço em teu saguão visível.

 

YUMI BALESTRE

 

Pequenas sombras se espalham pela casa.

Insultam a vidência da luz e a vigília do olhar.

Mascas o fungo de tua nudez envolta em visões.

Já não sabes ao certo o quanto estou aqui.

Despertas um deserto submerso no encaixe

de cenas roubadas, clarões da memória,

rostos mergulhados em máscaras.

Tu me fizeste inacessível. Releio tuas cartas,

a tinta atormentada do que buscavas,

e não me reconheço nelas, sequer uma miragem.

As sombras que crepitam em teus anseios

são as mesmas, sempre roubadas, sempre.

Rasgas a pedra escrita na colina que se move.

Como um lacre rompido, um dia aprendo a ser tua.

 

XÊNIA CAPELINI

 

Deixo o espelho aceso na palidez da tarde,

para que nos diga onde a ilusão recomeça.

Engatinhas por entre os móveis do abismo,

e te ris quando não encontras mais nada.

Meus seios cravam em ti outra miragem:

despimos o improvável, mascamos seus vícios.

Rumores recolhem os naipes do silêncio.

O espelho soletra um mecanismo de convulsões:

labirinto enlouquecido sem saber sair de si.

Enquanto nos devoramos a cidade se dissolve.

Roubo teus pequenos proveitos, ruínas

desfiguradas, usinas de sêmen-fátuo, uivos

entalhados na noite como um saque,

com a semelhança desfeita em cada beijo.

 

WILMA DIAS

 

Em tua casa descoberta na tormenta

todos os corpos serão possíveis: sombras

instaladas como lâmpadas nos confins

de um gozo emboscado entre dois mundos.

Cada corpo uma chave, com seus dentes

mascando um segredo antes da perda.

Vagará por entre os cômodos um abismo

sem que reconheça a ossada de seus danos.

Tua nudez imune frequenta todos eles,

os corpos alojados sob a tinta em soluços,

paradeiro aflito de uma fuga de quimeras.

Com seus lábios despistando espelhos, cada

corpo se orgulha de abrigar outros tantos,

sem saber ao certo onde plantou sua morada.

 

VIRGÍNIA ERBOLATO

 

As ruas se repetem como se temessem perder

a identidade. Canais de ilusão são abertos

em cada esquina como um estojo de vícios.

Os lugares em teu corpo onde pousei o afago,

janelas entreabertas com luz ainda em seu bojo,

tudo insiste em ser igual a um mito aprisionado

no espelho, fábula imprecisa ou rio sem leito.

Todo êxtase nos impulsiona a uma nova fricção.

Hoje percorro as ruas de teu corpo e espanta-me

como as cidades em que estivemos são a mesma.

Não devias estar aí novamente, nos subúrbios

do gozo ou na esfera gasta de cheiros e engodos.

Não devias te repetir em parte alguma de meu ser.

Eu não te amo mais até que te ame novamente.

 

ÚRSULA FONTANA

 

Eu cubro o teu nome com os cílios da noite.

Teu desamparo mal distingue em meus dedos

as tintas com que trafego por sua vegetação.

Estás sempre nua como uma metafísica insone.

Eu misturo as sílabas flutuantes do desejo

e rabisco em tua pele uma senha esponjosa.

Teus suspiros badalam em ardilosa catedral,

com sua areia-gulosa e as joias do abismo.

Não concluis uma frase sem a reticência

luminosa de teus seios boiando no tempo,

tear de safiras da luxúria, paiol de miragens,

partes minúsculas do perigo que se põe a rir

sempre que o vemos como um cofre, um fim.

O sol configura suas telas com o traje mecânico

do esquecimento, penhasco de vícios: não dar

por conta de um único anseio no dia seguinte.

O mundo se despedaça rindo. Acumulo suas

vítimas na ribeira. Pernas trêmulas da melancolia.

Manjar contaminado da esperança. E ainda

assim ali estás, baile sem rosto e infindo,

tua nudez entrevista em seu duplo sentido.

Eu abro o teu nome para decifrar seus vidros.

 

TELMA GUTIÉRREZ

 

Tu me despias por um fio de mansidão,

ameaça de luz ao tremor do mínimo gesto.

A mobília encantada com tua habilidade

em decompor estrelas, bosques, pântanos

no intimismo de meus relevos, nos vincos

de minhas nuvens, arena de fogo e odes

ateadas ao emboléu de relvas e suores.

Enquanto me desfazias de panos descritos

meus olhos fechados tateavam cada cena:

paisagem ramificada nas gavetas da cômoda,

sombras petrificadas no espinhaço do espelho.

Tudo ali cabia na evidência do menor truque:

chegavas a inventar tecidos onde não havia,

a desfolhar meu espírito no enredo da tarde.

 

SANDRA HOFFMANN

 

Escuto teus passos inacessíveis em mim,

testemunho de ânsias e afagos fluentes,

formas espantosas que abrigam teu rosto.

Rastejas com uma evidência de pálpebras,

simulas um duplo e sua sombra refletida.

Estás diante de mim e jogas com teu olhar:

pequenas pedras pousadas no leito do rio,

peixe vibrante que é também o caule sagrado

da selva de encaixes que vislumbras em mim.

Água e fogo reescrevendo teu nome, o guia

de fontes insuspeitas por todo meu ventre.

Caminhamos como um feitiço em cujos lábios

a febre despe seus fungos, alternando

as rochas: onde fixo teu gozo, fitas meu riso.

 

REGINA IOSHIMI

 

Eu o chamei – como se fosse meu – com suas

raízes que fingiam confundir sussurros e silêncio.

Ramos que pareciam regressar do abismo,

silhuetas que se desfaziam ao som do hálito.

Eu o chamei para que me tocasse vivíssimo,

e que me pusesse a persistir junto ao mar,

indo e vindo dentro de mim, em úmido açoite,

meu fôlego crescendo ávido em cada sílaba.

Por onde mais viesse, sua extensão me refaria

de tudo o que não soube ser antes de tê-lo

a evocar-me no centro de minhas aflições.

Ele é todo feito de trevas e palavras inumadas.

Fetiche extraviado que recolho nos destroços

dos amantes que eu nunca soube comover.

 

QUÉREN JORDÃO

 

Uma árvore tremeluz refugiada em sombras.

Corpo suando um mistério aplicado às veias

que se deslocam: vultos cujo eco de sílabas

invade a véspera de teus rumores, a sábia

precaução dos sentidos, edificando teu nome.

Para aqui viríamos, para o auge dessa pedra

com que ilustras as páginas de um sonho.

Jamais saberei quantas fui, fúria ou repouso,

de um eixo a outro de teu abismo encoberto.

Modelaste em mim uma estranha melodia

com portas rompidas, de onde não posso sair.

Voragem de névoas a conservar em risco

a noite de úmidos espelhos de tua carne:

tumulto singelo, o beijo com que me acolhes.

 

 

PENÉLOPE KLEIN

 

Dores caídas em mim com suas noites inquietas,

luzes mordendo-me os lábios, o mar arriscando-se

a tocar por dentro as contas do farol. Dá-me tua mão.

Ouço-a cantar por todo meu corpo, relva de abismos,

deslizamento de angústias, tua ânsia sempre recolhe

mais que meus beijos. Deita teu corpo sobre o meu.

Acentuas meu destino como uma cadeia rochosa

que percorres com o peixe-águia de tuas carícias.

Tuas dores naufragam antes que saibam meu nome.

Toco a face de tua inundação. Para sempre eu fui

o quadrante inabalável do que mais temias, e agora

te estendes, como um fantasma obediente, sobre

o sigilo dessas águas, trevas líquidas, teu fulgor,

morrendo aqui em meu peito, como tanto sonhei.

 

OLÍVIA LIZABO

 

Em versos que sabem repetir-se, lentamente

desperta a tua noite acumulada em meu peito:

folhagem abrigada à beira do abismo, e então

me sentes, de bruços, flagrante de peixes escavando

nuvens na acústica do mar: bulício rastejante do infinito,

o canto que entoas com teu cardume de carícias.

Dorso apegado ao entusiasmo, com suas encostas

folheando estrofes do fogo aceso no excesso de risos.

Ali onde a tua eternidade me acalma, espreito os passos

furtivos do desejo, e como me moldas tua ilusão mais fiel.

Roubas o limiar de rumores e suas dissonâncias.

Olho enfim como passas por meu corpo,

como repartes o abismo e estremeço:

não te escondes jamais atrás de um segredo.

 

NÁDIA MORAVIA

 

Acompanho a vigência da chama

ondulando a paisagem de teu corpo.

Para cada ângulo de meu olhar

tens um extravio pronto, um alvo

a insinuar-se lento enquanto me lês

por trás de arbustos e restos de luz.

De onde me vês mil símbolos buliçosos

se agitam despindo abismos e órbitas:

formas que soluçam correnteza abaixo,

letras úmidas do barro em que modelas

teu arcanjo rebelado em meu espírito.

Desata-me na medida de teus dons.

A todo instante erramos as páginas,

braços e pedras, dessa casa invisível.

 

MERCEDES NIELSEN

 

As cidades se fecham em mapas descartáveis,

jazigos turísticos, onde sempre negas meu beijo.

Tudo em vão, se a dor desconhece seu nome.

Agendas do acaso, retóricas de um futuro gasto.

Uma noite deixamos o abismo dormir conosco,

estranho vulto cuja vida o cotidiano rejeita,

embora não deixe de saltar de um ponto a outro

de nossos trapos alegóricos, sua renda alquímica.

As cidades, no entanto, recusam a ideia do beijo

como uma túnica refeita de mitos que não retornam.

Beijo-te e as ruas não vão a parte alguma.

Soletram percursos recordados em teu íntimo.

Amigam-se da memória ardilosa e suas proezas,

como deusas decorando um mantra sacrificial.

 

LUCRÉCIA ORSATO

 

Teus beijos ensaiam uma alegoria em meu dorso.

Eu os sinto como árvores dançando, flamejantes

pétalas, constelação de corpos em plena colheita

a sussurrar: todo homem é uma recriação.

 

Apontas uma cidade longe em minha vertigem.

Vendaval de migalhas, ilhas cegas, velhos

mapas que não contavam com teu desamparo:

o amor gira sempre em torno de si mesmo.

 

Passa por aqui a galope o teu sexo emocionado,

tua piedade de Deus bicada de remorsos.

Um castelo agitado repleto de males menores

e o vestido de baile de tua primeira ilusão.

 

Passam máscaras como um pranto de roedores

e luzes afogadas em poços da mais meiga solidão.

Um único personagem em ti se atreve a falar

e me acusa de jamais haver saído do poema.

 

Aqui estou eu desfeito em verso, mal recriado,

e sem saber como evitar voltar a ser o que sou.

 

KAREN PROVENDEL

 

Eu roubo os declives crispados

da luz na cavidade de teu abraço,

audácia de suores com que interrogas

certos pontos encobertos na brenha

de vícios que renascem em teu corpo.

Não há melhor saída para o indício

que queres instigar em minhas águas.

Embaralho tuas quedas incompletas,

suas hipóteses rompidas entre beijos.

Erras de um extremo a outro da pena,

revelando tuas máscaras insuspeitas

nos tecidos dissipados da escrita.

Refaço tuas dores enquanto pensas

que o fogo não me queima dentro de ti.

 

JÚLIA QUARESMA

 

As línguas viajam pelo céu da boca,

sempre aladas, como anjos caídos.

Ao dizer-te que meu nome era Ilusão,

meu sermão não levaste em conta.

E passaste a me chamar como antes,

como sempre me soube tua imaginação.

Línguas nos levam de uma parte a outra,

sempre em trânsito, guiadas pela gravidade.

Jamais te vi tão nua quanto naquele dia

em que me puseste sal na língua a entoar

um não te vás silencioso e veraz como a lua.

A língua nova era tua e sonhei com ela

toda uma vida, sem saber onde pousar.

Agora que o sei, o céu muda de lugar.

 

IRENE ROCHETTI

 

Teu incêndio forma uma cadeia de labirintos,

despojos aflitos com seus rios queimados.

Um corpo remando contra os delitos

prolongados numa margem e outra, ritos

carregados de súplicas e negras portas.

Alfabeto de pedras a recolher seus espectros.

como uma vida de dores em armários suspensos,

tudo ali parece queimar em modos distintos:

furor de salmos com passos descontrolados,

cinzas maltratadas sem saber onde cair.

Teu incêndio funda uma reserva de tumultos.

Um corpo imerso em lágrimas vulcânicas,

violando os nomes que dedico a seus rostos,

cada um abrindo as covas de seu testemunho.

 

HENRIQUETA SELVA

 

A tua caligrafia vibra em meu corpo,

suspende as distâncias, recria portas,

a desgastar-me de tanto entusiasmo.

A meiguice de tua escrita me esvazia.

Eu me lavo com tuas palavras, e navego

a insensatez de suas virtudes: falam

através de mim em impetuoso idioma.

Por onde viajo há mil anos me eleges,

sempre o mesmo homem relendo sombras,

como se em transe a pele fizesse aflorar

outra agonia, vômito de vertigens, um

novo hóspede de teu fogo, anjo tremente

com seu manuscrito arrebatado e sutil.

De um súbito naufrágio em teu ser renasço.

 

GLÓRIA TEDESCO

 

Eu te persigo como uma lua envelhecida

refazendo as nódoas do vento em sua memória,

ou ruas abandonadas que se recusam a aceitar

não serem mais a rota do fogo ou da seda.

Eu te persigo em busca da ruína de meu corpo,

que foi lavrada na argila manhosa de teu vulto.

Não me virás uma vez mais com teus moinhos

de beijos, efeitos alquímicos, sopros de vida,

arqueios escritos ao contrário, flor de enigmas.

Eu te persigo como uma tonelada de peixes

mortos denuncia a falta de mar em mim.

Não penso em deixar de morrer. Fecho os olhos

e persigo, alheia às linhas de minha mão,

o teu fim como se fosse meu último orgasmo.

 

FELÍCIA URBINO

 

Eu bebo a soma de teus rios, quando abres

o escândalo rascunhado pelo próprio punho

e um corpo banhado em murmúrios se agita

escondido do destino numa velha escrivaninha.

Bem dentro compartes idiomas esquecidos,

ruínas disfarçadas, rótulas místicas,

um remorso retirado de cena antes mesmo

que compreendesse o papel que lhe cabia.

Eu me embriago com teus vapores sem pausa,

sombras de onde se avista a maré alucinada

de tuas ânsias. Dali também vejo o rastro

de vultos perseguidos pela angústia, a tua

árvore decaída em susto e mistério, a minha

vida subitamente enterrada em sábio alvoroço.

 

EUNICE VEREZA

 

Entras em mim pela noite devastada

com todos os teus vultos indecifráveis,

ao acender a lâmpada da tempestade.

Reconheço o ardil de raízes queimando,

o elemento flutuante posto em cada sílaba

com que me tornas tua árvore mítica.

Eu respiro teu fogo e masco a mobília

cravada na coxa terrestre de teu enigma.

Escuta meu coração rasgando-lhe as veias.

Antes que atires todas as janelas fora,

dá-me um acesso à multidão de teu nome.

Deixa-me gritar por ti antes que arruínes

todos os argumentos do destino, antes,

bem antes que me deixes sem perguntas.

 

DIANA WASH

 

Tua ausência me enfeitiça e renasces

como uma fraude por repetidas noites.

Pressinto a espreita dos gemidos pegajosos:

os lábios sempre no limite. Nada em mim

jamais esteve a salvo de tua voragem.

Quando me encontraste eu estava louco.

Recolhia pequenos pássaros congelados

e mascava seus voos em rituais de pranto.

Tu me deste a efígie negra de teu ser,

como um último recurso e livre rota celeste

por entre deuses, desertos, misérias, nomes.

Moí o vazio à procura de como empregá-la,

a imagem lutuosa de teu afastamento.

Percorri os círculos brancos da memória,

com suas bestas cochichando ardilezas,

até que não houvesse mais noites em mim

sem a tua nudez invisível: falso terror

com que me golpeias o voo cristalizado

dentro dos pássaros que se foram comigo.

 

CAROLINA XAVIER

 

O teu abismo me veste, improviso perverso

de convulsões e ruídos: jarra de sombras

com que corrigimos a sede de nossos corpos.

Espreitamos as variações de um deserto

adormecido nas escadarias: grafismo

exausto, sonho refeito pelo avesso, uma dor

intrigante a perturbar a virtude da trégua.

A tua crônica se apressa em negar um último

enlevo: reanima figuras devotas do fogo,

gemidos tateados pela sala, a escultura

de gestos úmidos com que me alucinaste.

Repercutes em mim as exigências do bosque

que impuseste como limite de nosso refrão.

Sintaxe faminta, o milagre com que me vestes.

 

BERENICE YOCHICAVA

 

Tuas mãos renascem singrando meus declives.

Verbo exaltado, oscilando em curiosas esquinas:

fomos seremos deveríamos – frestas audaciosas,

a pele roubada de um instante a outro:

enquanto me beijas um mundo inteiro se refaz.

Orla abismada do acaso, os dados em tuas mãos.

Jogamos com os nervos do resplendor, frescor

de músculos extasiados e uma liturgia de suores:

árvore arrebatada pelo canto, pássaro fisgado

pelo voo projetado no olho do peixe-lince,

luzes como estrelas incompletas. Rotas elétricas,

a fruteira de sonhos, teus beijos sem razão alguma.

Uma morada de lobos devoradores de sombras.

Não dormes nunca. Corpo extenuando a linguagem.

 

AMELIA ZERBONE

 

O teu sorriso fala comigo pelo corpo inteiro.

Lábios, os teus lábios vastos de noite em sigilo

trançada em pelos de lâmpada, fiação de algas

exaurindo as margens do mundo que me pões

pelo avesso em suas negras estrofes confessadas.

Beijo a palma de teus sonhos, o instrumento

anunciado no extravio de páginas com que

esvoaças as ancas em um ardil de ânsias.

O teu sorriso ancorado em um bosque suspenso,

estrondo de penumbras e letras desfeitas, tudo

revirado dentro da casa que interrompes

com a tua sombra ateada em grutas e desertos.

Mascas um salmo enquanto me percorres,

com toda a franqueza do êxtase em teu sorriso.

 

 

 

ESCALAS ANÔNIMAS

 

Há uma voragem imediata que nos enlaça,

lâmpadas criadas no mesmo olho do desejo.

Uma euforia da semelhança despindo-se

enquanto me beijas: revoada de espelhos,

letra revelando-se em pequenos caprichos.

Apanho a confissão de tuas sombras, a carícia

do céu esquecido na mesa da sala, um rosto

visível e outro extinto no encaixe de gozos.

Tu me beijas o pássaro, a pedra, o abandono.

Um frenesi sem fim palpita em teus braços.

Pernas se multiplicam em comovidas formas.

O dia reluta em guardar segredo: teus suores:

nenhum perigo será mais grave: refúgio algum

terá sossego: nada mais nos escapa ou retorna.

  


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

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