O que esperar da vastidão senão um carteado de riscos?
Espada, perjúrio, lágrima, disparo, não importa a arma.
Nenhum de nós estará aqui quando se forem as aparências.
FLOYD NIX
TRADIÇÃO DESFEITA
Os mitos parecem acordar à mesma hora.
Alguns ansiosos pelo rapto, outros acalmados pelas imagens oníricas. Mutantes
de uma realidade que alterna encantos e ameaças. Os mitos soletram as vértebras
de um destino incompreensível. Evocam o conflito da ambiguidade até que
liquidem a relatividade do ser. Tramam a prescrição do impossível no íntimo de
cada um de nós. Certas imagens contêm a vida em seu sumo. Os mitos cavam poços
na alma e orquestram um encontro entre Verne e Platão. A paisagem do sofá
prosseguindo teu corpo em busca de um delta. A espiga de tua nudez debulhando
uma equação de lendas. A emoção alterada com que rabisco escadas em teu corpo.
Os mitos às vezes não têm significado algum. São como ventos alheios ao algoritmo
dos leques. Os mitos costumam ser tão irracionais quanto o desejo que cravam em
nossa pele. Não vamos além do fogo se não nos dispomos a queimar a própria
vida. Eu leio o teu corpo no sofá, os fusos de teus cabelos molhados, o mundo
de que te desprendes no olhar fixo na adaga com que te escrevo. Os mitos não
suportam a ideia de um sacrifício mútuo. Nós somos a hora sem motivo algum.
PREFIXO-FÁTUO
Teu corpo nu é igual ao meu, não importa
o cenário que os cobre. Triunfo dos contrários imersos em proezas, não há recuo
em nosso desejo de que as sombras se figurem umas nas outras. Olhamos para o
interior da escuridão como quem identifica um pé, uma omoplata majestosa, um
joelho consultando ângulos impuros. Quantas vezes nos beijamos sem saber quem
fomos? Quantos rios correm por artérias prolongadas em outros fulgentes
arbítrios? Sob a colcha preciosa do horizonte toco em mim a tua existência.
Sinto-me estimulada pela fartura de tuas carnes, a fruta distraída e imprudente
que embaralha as estações, o gozo brando e meigo de tua visita ao simulacro de
meus louvores e torpes cobiças. Ah como te amo sendo o que me és sem que eu me
saiba em ti. Tão iguais como a essência de ser o oposto, febre e ferida de um
mérito agradecido ao mais infame poço das vaidades. Mesmo assim te abraço, em
nossa vida inabalável, sem julgar o inferno em que nos despimos e somos iguais,
a trégua solapada da inocência, a fome trazida para dentro de si, os últimos
dias de uma imagem em que me desfaço por amar imenso o outro.
UM DIA
O VERÃO EXPIROU EM TUA BOCA
Vieste
mais para cá do que cabia no hemisfério.
Um
beijo e me distorces toda, toco a margem:
um bem que não nos cabe é o esquecimento.
Eu crio os teus verbos em minha tábua de luz.
Assim não precisas me dizer sobre ida e vinda.
Um gole de desejo, a praça vira cama, um leito
insuspeito, te deito e faço com que ressurjas.
Era só isso. Não crês? A noite toda em um beijo.
O espaço cedia crédito ao tempo. Vice-versa.
O que respiramos são fornalhas de novo abismo.
Não nos recordamos nem nos abandonamos.
O dia é só um lenço que pode ou não ser visto.
Não aceno senão para confirmar que te amo.
TEORIA BRINCANDO DE OCULTAR-SE NA PRÁTICA
Não há uma verdade paródica. Nosso olhar
atua sobre o mundo em busca de confirmação ou mudança. Sua colcha de efeitos
interfere na suposta existência do objeto. O fundo das coisas é uma ilusão
projetada pela superficialidade do modo como as vemos. Não há um quadro despido
de imagem. O excesso de luz ou a cegueira não se restringem ao que aparentam,
pois são um casulo múltiplo de memória e desejo. A imaginação não nos liberta
do mundo, antes nos excita a confundirmo-nos com ele. O conhecimento não tem um
objetivo em si. Pequenos diabos caídos empurrados para a rotina de seus crimes
inseguros: a lenda do orgulho e da luxúria. Essa musa intransigente da razão
aceita desfigurar-se ante um simples espelho. A fatalidade de seu amor é a
riqueza do paradoxo com que se vê em posições e recortes insuspeitos a cada
prolongamento da imagem. Desaprendemos a fazer um poema na mesma noite em que
já não sabíamos fazer amor. Cada mínima coisa ou causa, uma simples ideia que
fazemos da vida, uma espera ou uma aparência, nada se realiza sem a
hospitalidade do acaso e a ideia fixa de que o mundo sempre esteve à nossa
espera. A verdadeira arte é a da propulsão do desejo. Não importa aonde
cheguemos. Somos uma transposição perene de todos os nossos rios.
IRONIAS OBSCENAS
Elas
se despediam dos verbos antes mesmo de conjugá-los.
E
seguiam se divertindo, a alma atenta a novos préstimos.
Simulavam
uma colheita abundante, tamanha prosperidade
e
uma quantidade de chuvas na medida da própria sede.
Como
sacerdotisas destinadas a lamber os ossos da fé,
elas
eram inúmeras em cada porção de terra mastigada.
Seus
bens não estavam previstos em um rateio de sacrifícios.
Nenhuma
correspondência poderia julgá-las, ou ao menos
adaptá-las
aos costumes mais selvagens da aventura humana.
Seus
corpos se entretinham como uma fábula ao contrário.
Improvisavam
gavetas e licores, no colo, na nuca, nos seios,
sem
jamais tirar conclusão alguma dos maus hábitos do acaso.
Colavam
cartazes nas ruas de um risco que não se pode fixar.
Um
mundo sem reminiscências no olhar ou crises da razão.
MARES AVULSOS
Quando te vejo estás o mais alto possível.
O teu céu não se prende a fogo ou chuva.
Observo as tuas árvores dançando ao redor
das estações e o grito repetido dos pastores.
Quando te beijo estás rente aos meus lábios.
Ou ainda menor, para que eu me curve
e reconheça tuas vértebras a cada sussurro.
Quantas vezes fomos o osso consentido,
a trégua revelada e uma boa safra de grãos.
Quando te elejo o espelho emite pérolas
a todos os destinos onde possa me alcançar.
Eu amo as lágrimas que portam teus seios.
Eu rezo para que te vejas sempre outra.
E costuro o teu nome, que desconheço,
no travesseiro buliçoso de nossos reflexos.
ONDE
QUER QUE A PONTE RESSURJA
Eu fui te buscar do outro lado do
espanto, do rio, da cabeceira fulgurante do desejo. Eu fui, pelas escarpas de
teus trópicos, cursando o desastre de sombras deslizadas, seus despojos de
artérias ainda refulgentes. Onde estavas não estavas e estavas e estou, na
vastidão de teu corpo desemboco os reflexos devoradores de tudo quanto,
soluços, fulgores, risos, os sóis que se desprendem, onde respiras, tua flor de
ossos, labirinto, escarpas. Já não sabes por onde me despertar, anotas sonhos
na carne, meu nome cruza teus limites aturdidos, suplicantes, marcas meu corpo
como se fôssemos aves nostálgicas em busca de um solstício perdido, alguma
ilha, alguém.
Eu fui te buscar na outra margem do
delírio, e ressoava o cansaço o veneno de sua lírica. Eu fui, por curvas
ferozes e lábios escritos, infringir a lei do visível, violar-te sem nada,
reescrever a ausência, espectro carcomido do tangível, dizer-te em secreto
aposento que não estou sem que estejas e estamos. Requebro de vozes dentro de
mim, o rio, metáfora sinuosa planejada por teus pés. O anúncio queimante da
metade da ilha, eu te amo, eu te amo,
a noite se repete até que sorvas o enigma, o leite do nome, o diamante do
pacto, e encontres em ti outra metafísica que a dor simplesmente.
Eu fui te buscar do outro lado da busca,
do rio, e já não tinhas substância ou rito. Tuas luzes me esgotaram os
pássaros, voo de sílabas, letras como árvores oblíquas, reescrever-te, sempre,
sem descanso algum. O teu silêncio extremo onde está estaremos, sem um fósforo
que o garanta, zelo ou ironia, apenas ali, quem não se sabe e sabe, onde nunca
ou nada, até que o mar se cale. Eu fui te buscar e estou, visível ou não, do
outro lado do rio.
PERIPÉCIAS DELIRANTES
Um dia eu deixo teus olhos riscarem um
molde de meu corpo.
Como se fôssemos escalar as escarpas do
horizonte ou subir
pelos invisíveis fios da escuridão que
sopra em nosso quarto.
Um dia os teus olhos se confundem com as
formas que não
distingo por entre as frestas da tábua
corrida sob nossos pés.
A tua aura é uma lamparina repleta de
símbolos e vogais,
pequenos insetos cuja disciplina veste a
mobília de encanto.
As tuas proezas são improváveis e
temperam os meus sonhos
enquanto o nosso quarto de brinquedos
tilintar as sombras
que emergem de cada salpico do olhar para
o vazio que intui
nossa infância sacrificada em um bosque
de névoa e pólvoras.
INVESTIGAÇÕES
SOBRE UM LABIRINTO ASSOMBRADO
Deteve-se diante
das três faces do labirinto.
A noite chorosa a qualquer hora do percurso.
Velhos tecidos manchados e lúgubres impondo
limites a cada cena com sua névoa de perversões.
Um vulto gravava na retina a planta do lugar,
por mais improváveis que fossem regresso ou saída.
Os véus se entreabriam com sua flor de cultos,
sítio de ritos que dilaceram a alma, torpezas
do espírito, agonias do ser em seu último recurso.
O labirinto é uma trapaça com suas três faces.
Pouco adianta reconhecer o dilema que o define.
O tempo contamina o espaço com evasivas.
Anônimos expõem vícios postiços em cada cela.
Enumerá-los é como abrigar insuspeitável culpa.
O labirinto é a soma do quanto nos desconhecemos.
As três faces do sonho não se engabelam tão fácil.
Pouco importa que a vigília associe erro e naufrágio
e os simplifique como um deslize repentino.
Em um dos quartos entre véus se via prostrada
a moribunda figura que era um rio e um fio de prumo.
Esquálida senhora interrogada por sua resistência,
ali estava à espera de alguém a quem passar
um infortúnio, um novelo de signos, uma graça.
A quem importa reconhecer-se em tal labirinto?
O vulto vislumbrava a si mesmo naquela mulher,
um golpe, um martírio, uma escapadela, revezes
de um conflito onde se confundiam seus planos.
O cenário se transmudava sempre com o assalto
insuspeito de fugidios personagens do passado.
O modo como os parentes foram mortos, sinais
de intrigas, fezes familiares, abortos, disfarces
entre orações e contribuições comunitárias.
Não havia pesagem suficiente para tantas almas.
A velha decrépita converteu-se em um enigma
que apontava na direção de uma dor fugidia.
O vulto não sabia por onde recomeçar a sonhar.
A vida não nos leva em consideração jamais.
O labirinto se furta de si a cada face reconhecida.
AO REDOR DE UM RENASCIMENTO
Deixei
o teu nome desabar como uma fábula em meu coração.
As
cicatrizes, defumadas ou pendentes, são ainda avarias cegas
que
atiçam a fome dos desertos e as rosas murchas no túmulo.
A
eternidade jamais sabe quando sair de cena, como os deuses
que
um dia programamos para as funções de longe e perto.
Os
lábios queimam o traslado de teu nome até o esquecimento.
As
bordas dissolvidas por palavras que se repetem, exaustivas.
Os
símbolos que saltam do peixe para um crânio extraviado.
Perdas
que esvaziam a terra de suas cédulas de renascimento.
Os
lagartos transtornados, que não sabem mais o que devorar.
Trouxe
até aqui o teu nome, para que a noite lhe desse cura.
A
queda evita falar de seus males, imagem repleta de fugas,
como
um fogo eterno guardado para o sacrifício que não virá.
PEQUENOS CAPRICHOS DA IMAGEM
Um dia desses o céu não me dirá mais aonde vai
quando não o vejo. Soletro sua ausência no vazio.
Deve haver uma réstia sob a cômoda, uma dobra
retida pelo espelho, uma anotação em seu diário.
Em um desses dias faço a cama à espera do céu.
Não me importa quão longe ele tenha ido daqui.
Saberei reconhecê-lo quando o lençol ondular.
O céu ama a deriva tanto quanto o ninho refeito.
Eu amo a intempérie que ele me traz de viagem.
O resumo náutico de suas palavras extraviadas.
Aprendi com ele a não dar por findo nada na vida.
Tampouco a crer na fábula do ir e vir. Sempre achei
que o melhor truque do céu é não estar ali sempre,
por mais que acreditemos em sua presença perene.
O tempo que perdemos a explicar o que amamos
é o mesmo em que o céu se esvai sem motivo algum.
A PAISAGEM NÃO NOS PERTENCE
Eu
disse a mim mesmo que apreciaria melhor o abundante,
antes
que fossem semelhantes as razões de recusa e aceitação
de
suas refeições diárias no empório de nossas alegorias.
Ao
contrário da escassez, o abundante sabe quando faltar.
A
hora certa de tornar a crer em si é um êxito perdido.
Meu
coração chora tão longe daqui que decerto não voltará.
O
que fazemos com o coração por vezes nos impede de criar.
Mesmo
quando não pinto o que desejo, a pintura me revela.
Eu
vim até aqui buscar o que perdi de minhas exigências.
Não
estavas e voltei a vasculhar correspondências antigas.
Algo
na memória te deslocava de uma monotipia a outra.
Eu
pensava em pintar e já estavas, desencadeada e múltipla.
Cheguei
a pensar que eras meu único modo de expressão.
Minha
série inacabada, protocolada para impressão sem fim.
Desde
então fui o primeiro a projetar o cerco de sua evolução.
RELICÁRIO IMPREVISTO
Mal respiro quando teu corpo sai do quadro.
As tuas roupas são um incômodo adorável.
Desnudo a imagem antes mesmo do vulto.
E nos rimos dos reflexos por todo o quarto.
Paredes trocam ideias absurdas sobre o olhar.
O amor se reflete em flagrantes que se negam.
O mar se renova em uma perna erguida ao sol.
Acalanto tuas nádegas com o óleo do devaneio.
O que me dizem teus lábios é uma charada
que conservo agradecida por alguns gemidos.
Desvisto teu anonimato até que me reconheças.
Não sopres, nem sobres, tenho tudo ao leito,
os véus de tua entrega, os sussurros bem lidos,
as curvas agachadas no momento mais preciso.
Afinal um dia todos nós saímos bem na foto.
ANTES QUE O MAR SE ESQUEÇA DE SI MESMO
Eu não vejo outra razão para livrar-me do que sou
senão aderir a teu naufrágio encravado em mim.
Nem mesmo a escuridão sabe o quanto te quero.
A penumbra sopra teu corpo em meus olhos.
O impossível se desgasta pensando em nós dois.
Eu quebro a rotina dos ensaios, algum texto falta,
alguns de nós não deveriam estar aqui nesta cena.
Reprisemos o quanto importa saber quem somos.
Não importa. O texto não nos identifica para nada.
Meu teatro se rompe quando murmuro teu nome.
Vejo teu corpo lidar com cortinas, flores, poltronas.
Posso agora ver o quanto o abismo te reconhece,
o mar se desfazendo em repetir teu ágil perfil.
Estás mesmo ali? A pedra toca em si mesma e goza,
como se fosse a tua imagem anônima repetida.
MEUS OLHOS FORA DA TERRA
Máscaras são cúmplices dos algoritmos do
tempo a que pertencem. Raramente se reúnem para corrigir o roteiro banal do
teatro que representam. Como lagartas meditando no interior de uma berinjela. O
que levamos ao palco é uma catedral polida, uma prateleira escalada por
divindades de toda ordem, as mais austeras. O invulgar espírito que veneramos é
sempre alheio ao que somos. Como podes seguir assim, profanando até mesmo tuas
veleidades? As histórias que ouvimos são a frivolidade da memória. No entanto,
nos deixamos guiar por elas como náufragos antecipados. Certas palavras ficam
melhor quando perdem uma letra. Em qual diário de bordo se oculta a página que
aprendeu a separar as letras que fazem mal a determinadas palavras? Como
distinguir a recompensa de tua beleza das imagens saltadas dos lábios de uma
cartomante? Todos os barcos são ébrios, considerando a inconstância das marés.
EU VI A MÁQUINA DE OXIDAÇÃO DO TEMPO
Há momentos em que o dia não sabe com quem falar,
rumina seus verbos ao léu, numa escadaria de névoas.
Replanto a ausência de quantos logo não verei mais.
O inevitável é uma precipitação, um escárnio de Deus.
Não creio que o mundo finja que cai apenas em mim.
Onde quer que eu dê por mim, não há mais ninguém.
Deve ser uma cilada. O tempo é uma trapaça invulgar.
Entupimos o mundo de remorsos, noites mal dormidas
e mil pedágios que sincronizam a veracidade das almas.
A culpa é um princípio da fé. Usurpado pelo Estado.
Os dois poderes, no entanto, amontoando lâmpadas,
não sabem senão como garantir a mais plena escuridão.
Há momentos em que o dia não quer mesmo falar nada.
Porém de nada – de nada – adianta guardar os verbos.
ÁRVORES NÃO DORMEM PARA SEMPRE
Os desastres são mais belos quando
começamos a abortar suas razões. Corpos nus banhados de gasolina queimando em
um celeiro abandonado. Os disparos atômicos bem sucedidos enquanto a noite se
desgasta em sonhos pacíficos. Os naipes subornados que depredam castelos e
eliminam valetes em nome de uma única noite compartilhada no leito da princesa
muda. Em quantos lençóis se afogam os pássaros e os fedelhos reeleitos? Quando
a noite sofre um ataque de estátuas de antigos deuses os céus se abrem e
revestem o exílio de palavras de conforto. Quantos somos até que o inferno
entre em desacordo com sua suprema corte? Quais os nomes contagiosos e qual
boca acumular de palavreio sem sentido? Talvez a discordância não passe de uma
autópsia mal feita. Clemência decapitada diante das câmaras, equívoco
contagioso, carta em branco ao relento. Os desastres não podem mais esperar
pelos segredos do sacrifício. As sedutoras pernas nuas do impensável. As
lágrimas ácidas de um deus arrependido. Se ainda dormes, te invejamos. Se estás
desperto, que morras.
DISCRETA CADEIA DE TRANSIÇÃO
As dores mudam de forma a cada conquista do hábito.
Sempre que soletro meu nome ao voltar para casa
eu encontro outro ambiente intercalado de charadas
que exige de mim uma intimidade à qual não atendo.
Quantas vezes regressar até que a casa me reconheça?
Ou quantas, quantas errar até que o mistério se canse?
Não creio que nenhum de nós corresponda ao espelho.
Talvez represente nossa origem, ou desumanize tudo
o que aprendemos com a ilusão de um espírito em nós.
Quantos nos vemos indiferentes à luz de um espelho?
O que somos, estaria em nós ou no que nele se reflete?
Quando as letras se abrem as formas se transmudam.
Tenho uma letra em mim que explica minha voracidade.
Graças a ela compreendo a tua escrita sempre invertida.
Passas por mim e não te vejo porque te espelho alhures.
As dores não são apenas o que sofremos. O inverso
é quase sempre a cara mais comum daquilo que somos.
NO ANO PASSADO AINDA ERA A MESMA PRAIA
Há versos que levamos uma vida inteira
com eles no bolso da alma. Decerto há almas que não chegarão a bom pasto com o
verso errado. Ainda menos improvável é que a vida aceite o ônus de tanta
dúvida. Quantos modos relutantes de ser eu levo à praça, à cama, ao cinema? Com
quantas noites durmo até que me desperte nova razão de ser? Promessas são
cicatrizes expostas, fístulas, segredos de estado. Nenhum de nós se reconhece
no relatório policial da noite passada. Perdi o relicário de nossos encontros,
teus gemidos, minhas risadas. As imagens se golpeiam, já ninguém sabe como
remediar o erro. Voltar uma frase, esquecer uma imagem, desculpar-se pelo
olhar, não há como deixar de ser, não há como livrar-se de si mesmo. Não é uma
questão de tempo ou espaço, truque ou deliberação. Jamais pensei em ti como um
verso que eu não pudesse escrever. O que somos não sabe o que fazer conosco
quando deixamos de ser.
PRECÁRIO HÁBITO DAS REVELAÇÕES
Sempre nos amparamos nas mais frívolas razões
de evocar ou não um pecado para cada existência.
Somos os bufões de tantos escrúpulos e canduras
com que levamos a metafísica a crer no homem.
Quantos não passamos da presunção de um espírito
revitalizado sob o epíteto diabólico do fiat lux?
Nenhum de nós escolhe ser o contrário do outro.
Cada fragmento nosso imagina sua ideal função.
Se o mundo é portador de um significado, percorro
a riqueza de teus presságios, o olhar fora do rosto.
Se o homem é receptivo ao que lhe é contrário,
não pode temer a morte mais do que a própria vida.
Vem colher comigo as letras proscritas que ignoram
a nossa presença em seu mundo sem memória.
Por alguma razão estamos aqui. Como uma acelga
ou a crina de um deus, o sol ou a falsificação de tudo.
NUNCA
SABEMOS ATÉ ONDE FOMOS
Eu fui morar do outro lado do esgoto, uma esfera cujo nome
recordava dias atravessados em meio a outro desassossego. Eles se postavam como
ovos diante de uma relutante frigideira. Como alguém pode dar início assim à própria ausência de si? Ao
abrir a lata de abacaxi o dia se desprende de algoritmos, e trata apenas de
bailar, como quem ouve Cannonball Adderley. Caçoo de mim mesmo enquanto te masturbas
e pensas em mim. O tempo não vai a parte alguma se não estou aqui para detê-lo.
As minhas meninas escreveram para mim o dia inteiro, queriam a todo instante
estar onde eu jamais poderia, elas, sufragistas. O desconforto masca os abrigos
que a imaginação procria. Seguiremos a máxima até que uma encardida tempestade
se vista de um estranho jeito de não estar em parte alguma.
A INTENÇÃO DAS MÃOS CONFESSAS
Sempre
que me punha a contar quantas éramos
as
cartas se embaralhavam, rodopiavam as cortinas,
as
janelas se riam com o vai e vem dos lençóis,
a
tua pele astuta passava as páginas de um romance
e
o que imaginávamos perdido surgia como leitos
de
rios irreconhecíveis no mapa aleatório do desejo.
Eu
chafurdava no horizonte ilusório de teu umbigo
e
te arrepiavas como um tesouro delicado, a mais
arguta
de todas as metáforas, com seu trêmulo ímpeto.
Eu
fui o mistério desossado de tuas ancas insolentes.
Encarnação
das lâmpadas mais úmidas de teu gozo.
Por
onde passávamos o tempo se tornava insubmisso.
Em
quantas de mim queres rumorejar tua audácia?
Deixo
que trames a gritaria de um próximo vislumbre,
que
me ilumines os estropícios de tantos redemoinhos
e
a goteira fabulosa de teu mistério dentro de mim.
RABISCOS DE UMA CONFISSÃO PIEDOSA
O diabo se move como um deus abandonado em seu palco.
Tange o ar buscando uma parede ou outra do cenário vazio.
O que mais lhe inquieta talvez sejam os caprichos da luz,
sua ventania instável e as imagens queimantes como breu.
Os excessos se arrastam como premonições esquecidas.
Nenhum de nós pertence à saga de lamúrias desses mitos.
Detenho-me diante de tua forma feminina, em dúvida
ante o acento de teus milagres, a tática de tua iniquidade,
decurso de assombros que nos levam de uma vida a outra.
Quantas são as alternativas até que se elimine o ambíguo?
Nenhum de nós desejaria a loucura ou o esquecimento
cuja nitidez ou harmonia fosse convertida em sombras
imperando na beleza que caminha como uma noite perdida.
A reciprocidade é a chama agônica de uma tradição esgotada.
AS PEDRAS QUE NÃO ATIRAMOS JAMAIS
Há tetos que desabam antes de ser construídos. Impérios
que desconhecem a capacidade de quem os ergueu.
Cidadãos que passam o século indo e vindo, os bolsos
inchados de ingressos para os concertos de temporada.
Como pedras que escapam do disparo em uma baladeira.
Há gente que habita uma cidade branca, afeita aos luxos
da dialética de ocasião, sem nenhum resquício humano.
A gravidade cava suas intempéries, adelgaça o absoluto,
torna mundos intransitáveis seus elementos mais comuns.
Os objetos nos revelam na medida em que os afastamos.
Corpos com pedras luminosas brotando às costas são
nossa fé no maravilhoso, ao contrário de crianças famintas
largadas na estrada pelos mesmos corpos iluminados.
O mundo se justifica a ponto de não ser jamais o mesmo.
A imensidão nos atrai ao bater à porta com seus fósseis.
Há tetos que não vão a parte alguma. Impérios modulados
cujo risco maior é a sedução exercida pelas ruínas vizinhas.
O homem é um animal confuso, nunca sabe a quem culpar.
ENQUANTO OS REMOS REGURGITAM ALGAS
Os pequenos monstros foram entrando com seu pote
de sacrifícios e tributos, uns compostos de pecado
e outras influências malignas. Anéis com dedos trocados,
fatos correspondentes a interpretações espúrias.
Quando o delírio se dispõe a ser interpretado, melhor
estar preparado para não sentar-se à mesa da realidade.
Olhemos fixamente os talismãs e o fulgor das relíquias.
A memória se contrapõe ao instinto e sua erupção.
Pequenos monstros trazem consigo tanques de procriação
de mágicas e ardis em cativeiro. Extravio de maravilhas.
O lugar simbólico da perda é o mesmo da obsessão.
Um funcionário da tradição coleta dados e inscreve
cada consciência em seu legado inatingível: pássaros
com cabeças de peixes, grifos que sabem imitar touros,
esfinges ressentidas, quimeras com transtorno de pânico,
salamandras acuadas em caixas de fósforo e um pobre
gigante que não sabe quem é e ninguém o reconhece.
O eixo do mundo é uma velha anatomia proscrita,
não cabe na massa, vertigem, inspiração, deriva ou ilusão.
Quem sabe os pequenos monstros nos digam quem somos.
INVENTÁRIO DO ETERNO RETORNO
Os deuses esta manhã foram ao mercado dos peixes.
Alguns viram o mundo pela primeira vez. Quase todos
desconhecem a dramática estrutura dos moldes,
que nos distinguem figurino, forma e enfia de cada uso.
Por não envelhecer, os deuses se distanciam de nós
como uma pintura contemporânea que mal amanhece.
Para muitos, a eternidade parece quase não acabar.
Outros se perdem tentando escapar de seus enigmas.
Os deuses não suportam o coágulo, a urina, a ressaca.
Jamais aprenderam a contar os mortos ou conter o gozo.
Não se assustam ou lamentam tão precário destino,
ou mesmo celebram o extermínio da torpe humanidade.
Os deuses não fazem ideia do que seja o efêmero,
nem mesmo quando vão ao mercado comprar peixes.
PASSADO ANTECIPADO
Deixemos que entre a arca e que assimile os estratos
de nossa espontaneidade. A arca repleta de analogias,
jardim alquímico de nossas andanças pelos esgotos.
A vida também corresponde a tudo que lhe é contrário.
Quartos sob vigilância, templos sem entrada franca,
primeiras lições de inacessibilidade e catástrofe possível,
matizes sombrios de um símbolo de recolha mística.
A casa que acolhemos com a dor de nossos extravios.
A dor sempre estrangeira que habita os sinais de fogo.
Erguemos a vivenda de tanta impureza como o relato
de enigmas que alteram a conjunção do que tocamos.
A arca transborda lendas como uma mutação possível.
Os deuses batem à porta para nos ofertar espelhos.
Embora bem vindos os espelhos não se reconheceram
e se puseram a saltar pelas janelas, como um dilúvio
que ocorresse ao contrário, uma visita do inexistente.
A casa é uma mordida de símbolo de duplo significado.
Eu a habito o suficiente para que o mundo entre e saia.
TARÔ DA REALIDADE MAIS PRÓXIMA
O baralho é um recado do oráculo para suas noites perdidas.
Viajamos de uma carta a outra, como um relato venerável.
O evangelho descrito como uma decadência anunciada.
A fábula imoral que converte em trunfo os muros pichados.
Segredamos nossas taras no concreto desarmado das noites.
Somos feitos de imagens, invisíveis ou não, mortais ou não.
Fiéis unicamente à arte de destinar toda vida à sofreguidão.
Pastiches que se julgam invulgares intérpretes do caos.
As cartas evitam as noites chuvosas e os mares repetidos.
A bondade perde constituição quando elas não chegam.
Talvez por isto blefemos, fingindo sobretudo o que não temos.
Manuscritas ou impressas, hoje tão pálidas, já nada revelam.
Meus olhos navegam suas frases e símbolos como um rio
que a todo custo tentasse desfazer-se da própria nascente.
O deserto à frente não é o mesmo que colheu nossas digitais.
Não estamos agregando sabedoria a cada jogo ou leitura.
As cartas levaram uma vida até aqui e nós as desconhecemos.
NATUREZA IRRESTRITA DOS PERFIS
Quais perfis tu reservastes para mim? Tua mão se abre
a quantas pistas que indiquem o que podemos cruzar?
Uma resposta de cada vez. Um palpite ou distorção
de astúcias que possamos negociar por novas crenças?
A mão que apazigua a especulação não é a mesma
que intui os sulcos do irrevogável, artimanha de êxitos,
as estradas rasgadas no dorso do inferno, pura lógica
de queimação que não indaga sobre a dor simulada.
Recortei teu olhar em uma gravura, bem-posto ao lado
da foto de um lago vulcânico e os restos de uma vela.
O medo queima, fede, ninguém pode evitar sua ruína.
Deixei a tua mão suspensa, ela que me diga o que quer.
Os teus dedos são a fisionomia de um desejo traçado.
Eu me inclino como um deus diante da carne ingrata.
Não me deixes sem nome. Não quero morrer instável.
DIAGRAMAS DE PASSO E FUGA
O teu corpo descrito pelas tábuas corridas deixou de fora
umas letras que só pude decifrar ao misturar suas quedas.
Qualquer altíssimo desenharia a cena. A luz inquieta,
o incenso inseparável do rito, minha submissão proscrita.
Refizeste o zodíaco em minutos de uísque e esperma.
Eu li meu nome saltado em tua carne, trafegando o corpo
submetido à lei de uma letra que jamais a identificamos.
Proezas e asperezas são mais do que um jogo amarelecido.
Nossos corpos errantes são a mediação de todo o impossível.
Quantos livros narram a dificuldade de sua própria leitura?
A presunção cava as covas mais rápidas do paraíso caído.
Não há apelação para os números que se deformam,
ou nomes em estoque para os significados que perdemos.
Se queres tornar o meu corpo ilimitado, passa a página
como quem busca ingredientes para uma nova reversão.
As inúmeras combinações do que posso ser em teu olhar
tocam-me como se fossem forma e ilusão do que és em mim.
MAPA DE PEQUENAS TRANSGRESSÕES
Os corpos desaparecem tão rapidamente que
a memória não se atreve a julgá-los. Despimos as peles e ris e choras e vemos o
mundo desfazer-se de tantas formas que já não nos atormenta quanto deixamos de
ser um no outro. Eu te beijo como o capricho de uma rede sem fio. Deixo a tua
mão hibernar em meus segredos. O acaso se alimenta de nossas indecisões. Digo
aos dedos de teus pés, enquanto cruzam meus lábios, que pretendo apoiar seus
caminhos. Não relutem. Todos os mapas são um só. Nós nos deixamos fotografar
como ruínas cuja roupa íntima ninguém pode prever. Nenhum de nós cabe no
Paraíso que imagina. O futuro sabe exatamente de quantas páginas necessita para
ser escrito. Teus pés sussurram em minhas orelhas que a paisagem está por
tremer, a qualquer instante. Só não me peças para dizer o nome de cada beijo.
As luzes se acendem antes que a noite desperte. O mundo que conhecemos resiste
a desaparecer. Afeito a pedras muito antigas, não se imagina reduzido a seu
passado. O esgoto se encerra aqui, em sua reprodução contínua. Desaparecemos de
nós por instantes, porém ressurgimos em uma espiral ardilosa que nos leva a
crer que a imagem reflete uma insurreição solitária. Nossas carícias não são
desertoras. De algum modo, o mundo se refaz.
NÃO HÁ COMO RESISTIR À FUGA
As tuas últimas semanas comigo não vão embora.
Jamais voltei aqui para dizer que sinto tua falta.
As sombras falam mais do que sabemos escutar.
As falhas são o júbilo de qualquer amor perdido.
Não me anuncies ao teu esquecimento, ao código
secreto de tuas pernas punidas, à estranha voz
que não cansa de repetir suas mentiras generosas.
O que deu certo entre nós é o que nos faltou.
Descansamos à beira do abismo, sem mais tarefas.
Quando o acaso veio nos cobrar algum desvario
há muito já não estávamos. ⎼ Aceita um bolinho?
Um de nós indagou ao acaso, havíamos previsto
que viria entornado de lágrimas e desculpas,
como a ausência de talento para arrumar a cena
sem um inseto que nos reconheça ou um grito
arquivado nas pastas dos mistérios do século…
SINCERAMENTE AQUI UM DIA ESTIVE
O acaso desaparece antes de conhecer sua queda.
O homem dessacraliza a si mesmo como uma pedra
que perde o efeito a caminho de sua astuta ofensa.
Qual verbo conjura a natureza de seu próprio fim?
Eu soletro teu corpo encontrado ao meu alcance,
algo em mim completa a cena: uma cabana de praia,
a névoa sedutora de tua respiração alternada,
enquanto te beijo como um troféu simultâneo
que busca em dois desconhecidos um fogo comum.
Formular a verdade como um ato solitário é uma mentira.
Todos nós combatemos as combinações insinceras.
Porém o mundo encarde ao tomar uma só direção.
Ao morrer o que criamos ainda podemos voltar a errar.
O erro é o melhor disfarce para que a beleza se refaça.
POLÊMICA INVISÍVEL DAS INVERSÕES
Eu vim buscar a noite como uma gravura indecifrável
ao gritar seus afazeres entre o sangue e a tinta,
soletrados por meus dedos no horizonte de teu ventre.
Eu traduzi a tua vertigem a cada letra que o mar engolia.
Tínhamos a ilusão de uma casa refeita segundo as frases
do vento, alinhando segredos que jamais regressariam.
Não estamos assim tão distantes das linhas esquecidas.
O amor, bem como o mito, gosta de permutar ossos
e mostrar-se alheio às colunas e vazantes de seu canto.
Morro de amor pelas horas sinistras que me prolongam
a jornada no interior de verbos que decifro em ti.
Um beijo mais e me despeço do cântaro do mistério.
Um milagre transfigurado traduz tua morada em mim.
Guardo teu nome, tua sopa de ventos e umidades,
manhãs em que a cidade masca lâmpadas e quadros.
Eu vigio os animais viciados em qualquer renascimento.
Cada corpo aprende a escrever o nome de seu revés.
Eu te beijo como uma vela repleta de noites e noites.
MEU ESPELHO NUNCA ME FOI FIEL
Eu pus os teus olhos dentro dos meus e
não havia mais uma sombra perdida, os vultos se reconheciam como um atelier
incendiado manhã bem cedo e as ruas perdidas nas linhas de nossas mãos. Ninguém
sabe como resistimos ao fogo. Três noites depois quando ali retornamos já não
éramos donos de nada. Os meus desenhos ramificavam suas linhas finíssimas
buscando acordo com o traço rude de teus perfis. Nenhum de nós se dispôs a
adular o acaso para que nos salvasse. Nem mesmo a febre maculada de nossos
corpos aceitaria dedicar-se ao espírito castigado do outro. Árvores se
recobravam à nossa volta. O mundo sempre capina suas dúvidas, angústias,
arrependimentos. Os meus olhos querem apenas te amar. Mas já não estás aqui,
como todos os documentos que atestam minha existência. Tanto tive que crer que
sou o mesmo, que desisti de sê-lo. O verão nos deixa sem fôlego. As
contradições são a única prova da existência humana.
OS MAIS BELOS VÍCIOS DA MEMÓRIA
Guardo instantes apodrecidos na névoa de tua relutância.
Flanávamos pelas ruas e lembro o quanto insisti na perda.
Nossos pecados são um delicado ajuste de permanência.
Aceitavas o mundo inteiro partilhando uma mesma magia.
Princípios e fins, quando coincidentes, jamais se encontram
em um vestíbulo. A realidade é uma delicadeza de rumos.
Amores, usuras, conquistas, ganha-pães, vista cansada,
a princípio a minha imagem se desfez dentro de casa,
mas logo irradiou seu desencanto sem possível proteção.
Onde erramos quando o mundo se desfaz em favores?
Uma pedra arrastada até a sua controversa função.
Um ícone planejado como a mais esquálida paisagem.
Minha melhor tela ninguém a comprou em época alguma.
Quantas vezes somos apenas o símbolo da discordância!
ÚLTIMA FIGURA PENDENTE
A queda cai. O que fica é uma hora
inadvertida.
Não importa o estado da imagem, o espelho
a reflete.
Se não voltamos para o beijo, deixamos o
lábio sem uso.
Quando identificamos o morto, aplacamos
sua dor?
A vida de cada um de nós é um acidente
perene.
Talvez a todo instante nos indaguemos: qual queda?
Portas se abrem como caem livros ou
apenas chove.
Acidentes discutem a melhor teoria para o
holocausto?
Talvez nenhum de nós caiba em sua própria
imagem.
É bem possível que o espelho não seja
imperfeito,
e reproduza o acidente que passamos a
vida a evitar.
PRIMEIRAS HORAS DO FIM
A casa foi se despindo de seu passado e
renovando pés e pontos. Não sangra mais em meus sonhos, não me aturde com suas
dores. Os losangos mais aflitivos descamam em nós uma absurda ascese. As
imagens projetadas na realidade são de um improviso bizarro. Os espelhos olham
para onde bem querem. A vida repugnante de suas metáforas cobra em dobro pelos
detalhes sangrentos. Estoco em meus lábios a eucaristia de teus pecados e
fábulas. Sobe comigo até o porão dos suplícios invisíveis, até a chaga fria de
lacerações que há milênios provam ao mundo que não existo. Nem sei se confesso
que jamais me preocupou o peso de tua alma. As horas desovam um abismo-cancro
em cada cena e sua moral de mortalhas disfarçadas, sua prece fanática, seu
agônico saltério. A casa mantém igual curiosidade sobre nossas privadas
tentações. Móveis reabrem um velho capítulo de perversões, como um livro
encontrado sob o assoalho que traga de volta símbolos vorazes: realidade
paralela, passado encalhado em escombros, inferno decorado por tantas crenças e
desilusões com seus estigmas… Nenhum de nós sabe para onde retornar. Nem mesmo
a casa.
NINGUÉM SABERIA DIZER O QUANTO A NOITE SE RECRIA
Os meus 33 dias estão contados. Eu nunca
te vi por aqui até ontem. E quanto te olhei novamente a janela havia mudado de
lugar. Quais são as possibilidades de que me visites amanhã? Uma noite movendo
as cicatrizes de um corpo a outro. Certas inquietudes guardadas lacradas à
espera do adeus. Quando faço a ronda pelo quintal recavo os números enterrados
em nome de coisas que jamais aceitaríamos. Os números ímpares em que cada
instante se renova. O orgasmo celeste que refaz a ordem do universo. Eu te amo
debaixo da torneira e sobre as calhas que demarcam a casa. Nenhum celofane
deformando a visão. Nenhuma ladeira instruindo a queda. Tranquei em meu íntimo
o milagre de teus suores. Peço a Deus que saiba morrer. Quando eu te olhei
novamente a casa inteira havia inventado outra morada. O céu ficou bem
quietinho dentro de nós, esperando que o dia passasse.
FONTE-PÊNSIL
Fotografas a tempestade restada nos
vincos dos corpos delirantes que devotamos ao tempo. Em cada um deles se
adivinha o elemento que comporá o seguinte. Eu te amo aqui mesmo. Tu nunca
sabes onde me amas. Nem me matas, nem me curas. O amor escala desertos
suspensos no laborioso desejo com que desenho teu inferno. Sabes a dor de meu
nome, porém não sentes dor. Já não sei como te amar ou te fazer sofrer. No
entanto, invades meu ser a qualquer hora, rebentas meu corpo nos rochedos do
orgasmo e, quando na minha a tua boca derrama seu vinho, transcreves uma
cartografia que não aprendo nunca. Cegas minha alma: o mundo ficou sem
resposta.
O MAIS ANTIGO DOS DIAS
Eu voltei a dizer que éramos apenas nós.
O teatro repleto de rasgos, lamúrias malcriadas,
furiosas luxúrias, traços do vazio decomposto.
Como preparar-se para representar o alheio?
Quais palavras devo prevenir ao ato criminal
que podem ser a denúncia de gestos pueris?
Quando desfolho teu corpo, qual frêmito evolui?
As noites recolhem seus lábios, silenciados
pelo abismo que cavamos entre orgasmos.
Como remendar a água para que o rio flua
alheio à carícia de nossos fúteis desmazelos?
Quem sofre na alma que finge ser uma estátua?
Multiplicar as pernas de uma natureza morta
acaso desampara a consciência que renasce?
É preciso dar um objetivo aos seres inanimados
que residem no andar inferior de nossos méritos.
O homem ilumina e humilha, de um mesmo ponto,
tudo o que o leva ao melhor e pior de si mesmo.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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