Eu gostaria de te possuir só para mim com
o mundo transformado em quarto de hotel.
LOUIS ARAGON
1.
A sua nudez apenas sussurrada pelo vento
bailava no varal sutilmente passando de um tecido a outro. A manhã se deixava
paginar por meu olhar. Eu inúmeras vezes tentei voltar para casa, porém não
encontrava em seu corpo nenhuma brecha por onde ausentar-me de mim. Ela queria
a todo custo fazer cenas com uma rosa entre os dentes e um colar de pérolas.
Seios e nádegas se confundiam com a louçaria dispersa pelos cômodos. A varanda
suspirava se refazendo de pequenos acessos de volúpia. Nossos desejos se
amontoavam alheios a toda analogia. Ela tingia crepúsculos em meu peito ou
então caminhava na ponta dos pés como se estivesse se equilibrando sobre o arame
no picadeiro do horizonte. Ela já não sabia o que me dizer e se punha a gemer
como se anunciasse um escândalo improvável. Quando comecei a dar pelas nossas
roupas rasgadas tratei de esconder todas as lâminas do lugar.
2.
O assoalho rangia os dentes em sinal de
discórdia. Desvanecida em meus braços, ainda podia sentir a eletricidade de seu
último orgasmo. Eu recordava um reino de labirintos e a névoa apagando o
cenário. Seu olhar se desvencilhando do meu, rindo ao preparar outra emboscada.
A imagem acidentada daquela mulher. Talvez eu fosse quem ela não contava
encontrar. Enquanto os beijos se espalhavam por sua pele ainda cheguei a pensar
qual o destino da trama, a farsa invisível do destino. A cada pétala revelada
por entre o fraseado das velas ela parecia me dizer o nome de uma surpresa
distinta. Queria me contar estrelas no peito. Eu me enchia de céu para seus
vislumbres. Assim como a noite se abre para o capricho das luzes, eu a entrevia
sussurrando aos móveis como melhor poderiam se espalhar pela casa. Ela me
espelhava o viço e o assombro de estar vivo. Tínhamos ao nosso dispor um dote
incompreensível. A preocupar-nos com o verbo seguinte não faríamos nada. Suas
pernas anunciavam a assunção de algo, os tambores da alma, a prosa flexível do
olhar, o código não anotado.
3.
Tudo estava ali para se perder de vista.
Cada instante não existia senão para violentar os hábitos. Ela lançando-se
sobre mim como uma balsa arriscando mares em meio à tempestade de sua gula. Ela
me exasperava o tempo de todos os verbos. Era meu passado por vir e um futuro
deixado para trás. Quando o silêncio parecia dizer alguma coisa um de nós
remexia no mecanismo do acaso. Não nos entretinha uma dieta de bússolas, menos
ainda soletrar os fusos do desejo. Nenhuma geringonça absolvia seus mistérios.
Ela sabia pecar como ninguém. Eu não tinha senão como aprender a merecer como
suas mãos me esboçavam a melhor arquitetura de toda uma vida. Descarnamos
sempre um atropelo de adagas e lágrimas. Evitamos os dissabores românticos, a
orquestração de lantejoulas, os ritos invulneráveis. Como amávamos o risco de a
todo instante não estarmos mais aqui. Seu corpo era sempre a rosa dentada da
fortuna. Ela se encaixava em mim como uma classe pública do mistério.
4.
Nunca me preocupei em lhe dar um nome.
Ninguém saberia como trazê-la à tona. Ela seria a pedra com que se disfarça o
incompreensível. Ia e vinha, como uma multidão de espantos. Nenhuma mulher me
fez rir de tanto orgasmo. Eu desapareci de mim dentro dela como se não fosse
possível senão voltar para casa. Ela era o meu teleférico a caminho da
vegetação agônica do nada. A névoa florida do mesmo mistério que ela recebia em
si como um sinal de esplendor. Ela queimava de febre. Eu lhe fazia o mar bater
nas pedras. Jamais suspeitamos da vertigem de nosso roteiro. Ela anotava o
pulso de meu desejo com seus dedos em minhas pernas. Raiávamos de tanto rir.
Lembro uma noite em que lhe disse que tremíamos na mesma sintonia. Não importa
a equação dominada, o mundo é imprevisível. Jamais lhe disse seu nome. Ela, no
entanto, sussurrava o meu com uma intimidade que me mantinha sempre por perto.
5.
Ela me beijava a pele como quem decifra
uma herança. A leveza de seu corpo florescia com um bailado de margaridas. O
orvalho cumpria seu bordado de luzes. Ela sabia que ali éramos possíveis, sem
que nos importássemos com nenhum outro truque da eternidade. A casa estava
repleta de relâmpagos.
— Elimine as páginas que não nos dizem
respeito. Não percas tempo em sonhar com o mundo visível. Deixe sempre em
desordem o celeiro dos milagres.
A
acústica de sua voz parecia alterar as linhas de minha mão. Lia em mim os
rascunhos de uma evidente utopia. E logo me eletrocutava o desejo,
multiplicando garras de uma matilha de predadores. Seu corpo adornado pela
luxúria crescente, a fuga iluminada por um quarteto de gemidos. Minúcias de
tecidos, sofreguidão de móveis, murmúrios de pelos flutuando no ar. Seu
joelho-periscópio emergindo na banheira como um ladrão de delícias em retalhos.
— Entrever a confusão de silêncios. Mudar
a luz de canto. Resguardar os acordes ainda por afinar.
6.
Ela vinha com suas nuvens sobre minha
pele. Eu a amava bem antes que viesse a saber, porém o amor desconhecerá sempre
seus méritos. Seu corpo sussurrava algo como se a consciência houvera sido usurpada
pelo mal. Por uma recorrência benevolente de sua contraparte jamais saberemos
ao certo o que é o mal. Leilão de almas, imprecações de uma possessa em língua
ininteligível, mecanismos utilitários do cotidiano. O bem nos priva do mal. Ela
me aprimora o devaneio, me orquestra a existência, me expande ao limite do
incontornável. Não há sinais de retorno possível sem que ela me destile os
extremos. Ela me ensina a ser o rebanho de suas vertigens. Eu aprendo a fuçar
em seus flancos. Sou o sopro das províncias dessa mulher e a pedra viciosa de
seus influxos.
7.
Desconheço quanto tempo terei vivido
entre uma dor e outra. Venho notando em mim uma queda pelo absurdo. Desde que a
conheci ponho em dúvida as forças que me mantêm em mim mesmo. Leio em seus lábios
o trocadilho do espírito, os gestos elásticos, como quer e como se nega, a
folha mais alta do ardil existencial. As páginas improvisadas da sedução. Agora
me pareceu entender onde as pessoas se reconhecem. Os lábios mentem menos do
que os olhos. Eu tocava em seus seios, descendo pela barriga, a pele firme,
brincava com seu umbigo. Jamais seríamos desviados a caminho da realidade. Os
meus olhos embaralhavam os ângulos encontrados de suas pernas ao coração. O seu
corpo me diverte. Não representamos nada além do que tocamos.
— O acaso sequer pensa em nós. A
humanidade criou para si uma fonte de justificativas de suas artimanhas. Uma
espécie de véu protetor de todas as arbitrariedades. Eu morro de amor pelo
acaso.
Já
nos habituamos ao fragmento ou ainda idealizamos a vida como algo completo,
finda em si mesma?
8.
Ela me inscreve em sua horda errante de
surpresas. O verbo anotado, o jogo amoroso dos enlaces, a queda vislumbrada, o
contorno perfeito de sua bunda. Ao me falar sobre milagres não esquecia de prevenir
que jamais lhe desse desnecessário excesso de páginas. Ela constantemente me
testava o destino, ao fazer com que eu me visse a mim mesmo em distintas
idades. Um vislumbre sutil de todas as minhas possibilidades. Eu adornava sua
pele com toda a minha intimidade. Ela compreendia como nenhuma outra a estranha
relação existente entre o que sou e o que se desprende de mim. Ela me habita à
sombra dessa pequena ponte insuspeita na noite inquieta da memória. Eu sempre
fui a sua casa aberta aos mais obscuros passos. Ela me trouxe de volta da
dissonância, como seu instrumento sagrado, quase impreciso. Um pássaro
libertado da torre de seus lamentos. Graças a ela a morada dos deuses me abriu
as portas.
9.
Jamais pude lhe inventariar as
contrações. Uma delicadeza de elementos implantados enquanto eu dormia, sob a
guarda trêmula das luzes cobiçadas pelo vento. Ela me trafega como uma centelha
inabalável. Quando alteramos a ordem das estações ela cruza as pernas
languidamente. Eu não me atrevo senão a esvair-me. Ela brilha com meus truques
dentro de si.
— Os seus olhos todos saíram para pescar.
As suas noites confabulam estrondos. As suas ancas assaltam as calhas do
horizonte.
A
vidência é tão imprevisível quanto a memória. Conto em meus dedos quantas vezes
eu estive aqui antes que ela pudesse me identificar. O desejo retorcendo-se,
traços febris da pele, essência sussurrada desde a nuca até o tecido arredio
das coxas. Paisagem de luzes crepitantes. Minhas mãos em suas pequenas luas. O
coro de penugens, vegetação solidária que me convida para o festim de seus
minerais. Meus beijos aplicados em sua textura irisada. O corpo evoluindo a
caminho do ápice, tão lentamente quanto possível. Desdobrando-se em uma cadeia
vertiginosa de suspiros, em um novelo murmurante de improvisos. Um regaço de
vislumbres e a maloca de seu desejo queimando ao me abrigar.
10.
Ela então chorava e me dizia que eu a
estava fazendo inesperadamente feliz. Eu me aturdia. Meu nome uma vez mais
aprendia a ser outro. Todo o cenário havia ido embora. Nada fora de nós
resistira à voragem do tempo, à moeda comida pela ferrugem da desolação. Fomos
consumidos pelo espírito. Ela se pôs a contar seus passos dentro de mim. O
silêncio nos cercava com seus instrumentos fibrosos. Éramos invocados pelas
tintas do desconhecido e ali mesmo bebíamos do caldo do abismo. Ela murchava em
minhas mãos. Eu me extinguia ainda em seu íntimo. Não havia ciência do que
fosse ou mesmo prenúncio de algo. Nos resumimos àquela sombra extasiada: não
importa qual fosse.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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