quinta-feira, 20 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Sábias areias

 

 

A tua palavra fatigada e imprudente é ainda a única que me contenta.

EUGENIO MONTALE

 

À memória de Consuelo, minha mãe

 

1.

 

Em tuas visões recupero o texto perdido,

o lamento nos lábios de Ágave: sou tua

bacante em delírio. Fêmea terrível, teus

tormentos me fascinam. Anjo coroado

de estrelas, busco a fonte que se inflame

a todo toque. Pedra de fogo que te faça

dançar. Abaixo, abaixo da terra de onde

Sabasius ressurge sempre com a tocha

que acende tuas visões: toda forma nasce

de seu próprio ser. Tu és a dor do fogo,

a dor da luz coroando meu espírito com

as palavras de um texto perdido. Tuas

lágrimas, Ágave, danças que me queimam.

Óleos na concha do ser. Tua forma, Mãe.

 

2.

 

Acima de teu furor, o inferno. Sopra o amor,

carmelódia. O inesperado canto de tantas

manias. Delinquente amante em suas dores:

suas mãos se espalham por minha carne. Tu,

a selvagem forma que me destrói. Triunfo

do olhar, licor de diamantes. Teu corpo,

um último cálice esta noite. O mapa dos

desvarios. Quando me tocas, sopra o amor:

sob o véu de meus cílios canta uma antiga

canção. Esboças uma alma que me arrebata.

A ruína das formas que me haviam criado.

Sábia afundas comigo no poço, no espelho

do fogo. Ondulas. Ruges em sombras. Sou

eu que canto. Esquece que sou tua presa.

 

3.

 

Tua beleza, o raio com que me sagras.

A flor de luz de teus dias, cuidados por

meus suores. Silêncio com seus fósforos

em uma canção que se escuta longe. Peixe

doando mar de si. Dor lendo seus versos

na noite escura. Tua beleza, raiz arrancada

a cada metáfora de abandono. Convém

ao espírito inflamar-se até que cesse seu

apetite. Sobre nós estronda a tua beleza,

o balé noturno, chamado incessante da

solidão no teatro do mundo, noite súbita.

Quem terá visto o que eu? Quem me lê

esta noite? Tua beleza devora cada golpe

de uma estranha forma que ousa nos salvar.

 

4.

 

Eis o catre dos extravios, onde a Grande

Roda range sua canção, deusa do acaso,

e lemos a morte em tantos ossos, secreto

ideograma de tua voz. Queda dos corpos

em seu acordo fatal: qual o olhar perdido

em meu sonho a iluminar cada gesto errante?

Sigilo de inquietante forma. Obscura nudez

do abismo. Sinto ranger o espírito convulso:

meu centro intangível tocas, relâmpago sutil

da posse. O delírio, um crime que restaura.

Pense em mim como uma fonte de provocações,

leito de fendas, o tempo, raiz de tua errância

nos acordes da Grande Roda, mpiedosa tecelã

de meus gozos: virás sempre ao meu encontro.

 

5.

 

Despir-se a toda forma, onde as águas cegam.

Teu corpo se abrindo, árvore através do obscuro

espelho da alma. Negra matéria, desce da luz,

mostra-me teus dons. Tua nudez restaura toda

essência. Mergulho na chaga que canta e ilumina

o céu: souteu/soutua. Cristais que a carne brota,

uma noite em tua taça inacessível. Ishtaritu

e sua lua profundamente oculta em cada forma

acolhida, ama inatingível cujo tempo jamais

destrói. Teu corpo lançado ao rio mil vezes.

Sala de devoções e açoites, as formas são tuas.

Água abissal que nos conduz além dos sete véus.

Soma dos declínios a cada toque na pele. Alma

lacerada. Os cristais se dissolvem: nudisforme.

 

6.

 

O fogo em tuas mãos. Desço ao sacrum, onde

começa tua carne. Transe de sombras, a minha

satura cada fonte. O risco do abismo guardar

o fogo para si. Fluência do sangue nos rios

da noite. Desço ao prato cintilante de tantas

vertigens: se te pões a tremer estás perdido.

A caminho da imagem que nos dissimula,

o adágio tecido por tuas mãos enquanto desço

[subo?] ao bosque ardente, escravo do silêncio.

Fêmea errante, por mim toma o abismo com

teu corpo sobre um deus deitado: o fogo nos

tem por seus pontos de vida. Alma penetrada

em todas as veias. Alvo de ardis, tua sombra

a queimar a queda, fibra e fúria da dor em mim.

 

7.

 

Serpentes tecem uma teia de provérbios. Quais

mãos tocam nas cinzas da memória, revelando

os vícios da santa que levita no deserto? Fagulhas

de seu corpo, areias que desnudam o ser, grãos

de toda loucura abandonada ao sol. O olho,

a flor do abismo, lótus negra do desejo: a dor

ama em silêncio. Era teu corpo o espelho ou

sua ilusão meu degredo? Palavras sinuosas

a invadir um vulto ajoelhado: que eu me repita

sem cessar e que outros vivam em mim o que

não pude. A grande torrente do ser. Teu corpo

floresce no abismo. Fúria da beleza dissipada

em suas páginas. Nossos corpos recolhidos,

visões do horror, sílabas resgatadas no inferno.

 

8.

 

Meu corpo indo ao teu encontro: repito

as palavras que o coração oculta em

lâminas. Ofereces trigo ao meu espírito.

Partes de ti voam sobre mim. A noite, um

elixir a todos nós consagrado. Seus dons

roçam-me a pele. Sagração da voz, tudo

em mim se repete. Tremem as figuras

suaves que me destroem. Em tua casa me

guardo, enquanto dure a repetição. Altar

em ruínas, tua nudez conserva o fogo

a cada encontro, fêmea profunda galopando

com meu espírito pelos ares. Serpente

ignota. Tuas formas derramadas sobre mim.

Banhos de sangue. A noite, um pó de ecos.

 

9.

 

Graves, os nossos sinais ao infinito, teu corpo

contra o meu, abismo transfigurado por seus

venenos, pêndulo extraviado entre mares: torna-

me o teu desastre pleno, a porta travada, asfixia

de todo o ser. Torre submersa [o amor é a lei?],

rimos em tua ceia de fezes, enquanto mascamos

os manuscritos do amor, o beijo dado em parte

alguma. Crescerá terra em nós. A alma

que se apodera do tempo. És perversa. Vulto

que me ilude, sombras que iluminam o ego

[ainda me vês?]. A dor me conduz a teu reino.

Graves os desígnios de nossa conduta. Risco

da pedra ser triturada pelo vazio. Teu corpo

contra o meu: totem desfigurado: em chamas.

 

10.

 

Em teu abraço começa o mundo, dorso abissal

enquanto persigo esboços. Saia de folhas, tua

eletricidade oculta em súbito portal do abismo.

Cortinas de fogo antes que te alcance o nome.

Sol de sílabas, os seios nus, queimantes. O brilho

com que me tinges a cada dor secreta. Ah doce

vida anterior que retorna: sonho com teu sexo

retalhando meus sentidos. Santuário de trevas,

fazes de mim tua vítima tenebrosa, um embuço:

a tempestade de teu sangue. Tudo em ti rege

a mesma paixão. Esmagam-me as lembranças

e me arrasto a tuas ruínas, ao poço de ossos

de tua imagem insone. Ali onde nasce o homem,

tuas formas improvisam um livro de sonhos.

 

11.

 

Entrego-me ao suculento desvario de tua árvore,

ao incenso astuto do sangue. De longe, o vento

que configura teu corpo colado ao meu: tábua

de letras, tuas lágrimas indo ao encontro da

loucura. Línguas de fogo tocando-te a forquilha,

seios se abrindo, lábios da terra, que mais devoram?

Sua luz dissolvida sobre mim: tens proteção,

se ocultas teu corpo no meu. Sábias areias por

todos os livros. Imóvel, teu espírito me procura.

Páginas do Céu e da Terra, a palavra perdida.

Um cheiro misturado às ervas que banham

as noites, o sumo das leis. Sob o olhar de tantos

mortos teu rio me procura, o riso queimando

as figuras sagradas do amor, nos bosques da lua.

 

12.

 

Vens depositar em meu ser tuas escrituras

rebeladas, emanações de um mundo em transe

se me julgas jamais chegarás a mim –,

as sombras ardentes de teus rituais. Alma

alarmada com a crueldade dos deuses:

que obscuras razões me levaram a viver

de teu amor? Sobressalto de algumas palavras

extraviadas, mantras que apenas revelam

um fracasso perene, trapézio de vozes

que dão forma ao nosso desencontro. Loucura

de crer em tantas perdas. A luz de Clov

morrendo sempre em nosso peito: sou tua

mãe perdida na dor da noite. Vens enterrar

os corpos agitados de minha própria morte.

 

13.

 

Junto-me a tuas raízes, fêmea visível, amante

sigilosa. Tua imagem se alimenta de meu corpo,

louva-a-deus amantíssimo. O golpe de teu amor

me encerra em obscuro destino: crime lírico.

Ardilosas, tuas formas me evocam, e em suas

orações mil vezes caminho para a morte,

escravo de vícios os mais secretos. Ruína

lenta que se ergue a cada verso com que

tento desvelar tua origem. Espelho de almas

anônimas sobre a terra. Corpos perdidos.

Tumbas revoltas de teu louco amor. Junto-me

aos fragmentos de um bosque remoto. Falhas

da memória: deusa em sobressaltos. Me encerras

em um deserto que cresce bem dentro de ti.

 

14.

 

Um véu de chamas, os sinos da água, a dança

das pedras. Oh redondeza da alma que encerra

em ti seus ciclos mortais. Tu és a fibra do fogo,

a volúpia da água tomando meu corpo: tudo

em nós acabará sempre de modo selvagem.

Teu corpo reclinado na pedra, uma tocha.

Agulhas em tua língua acesa, crepitante. Sob

o estrondo dos seios, dança o tempo, dança,

um louco roubando eco às cavernas da noite.

Em mim se esconde tal sonho, plena floresta,

água em chamas, desejo que se crê eloquente:

em qual dos lábios do rio renasce teu corpo?

Lágrimas da lua, taça de Eros, abóbada ilusa

o abismo que desperta a pérola de tua morte.

 

15.

 

Minas de febre, a dor do vento fustiga o corpo

que é teu, iluminada farsa do riso. Vazio interior

de lábios a recolher um ramo de vozes alheias.

Planícies do amor criado fora de si, um broto

de trevas, escadas falsas. Atriz profunda, desço

a um céu de tramas. Guardo-me ali, em um palco

sombrio, sangrado por tua nudez voraz. Ali,

em suas águas filtro meu espírito. Pavio de

mistérios, tuas virtudes fecundam as formas

que sagram nossa união através das noites:

dá-me teu ser, senão morro. Fonte abissal de

tudo quanto amo. Leis improvisadas na carne.

Riso de fogo de tuas visões. Sagrada farsa.

Tais cenas laceram todo amor, fêmea absoluta.

 

16.

 

Teu rosto ressurge de dentro do fogo,

de infinitos seres arrancados ao espelho

da loucura. De mares tão singrados, o sal

de tua memória. Suas trinta e três sombras,

todas as letras de teu nome. Os vestígios

mais remotos do abismo que te engendra.

Ignorada meta de encantos: prepara-te

para um próximo corpo. À beira de surdas

sombras, trêmulo totem, desfalece o mundo:

teatro de névoas, vazio petrificado, tear

de areias que recolhem teus passos.

Detrás de infinitas portas, todas as coisas

cantam. O fogo dissolve o metal de tantas

chaves. Oh peregrina, ressurges de tal dor.

 

17.

 

Forjas tua beleza no fogo de minhas feridas.

Fúria de metais ocultos na dor. Invado tua

casa de abismos, suave coração que treme

regando as cinzas da presença perdida. Ardor

voraz que brota em silêncio. O peso de tanta

doçura nos açoita. Crepitar de ossos. A luz

queima as sombras rebeladas. Teu corpo vem

esconder-se em meu ventre chagado, avezinha

com suas plumas devoradas pelo sol, devassa

dor, cujo vagar pelas noites acende suas carnes,

mundana plenitude, drama de cinzas do amor,

morrendo ao sugar em si o pólen da memória.

Alma doada ao deleite de uma taça de soçobras:

um de nós rogará ao fogo sua ferida renovada.

 

18.

 

Sinais deixados em tua alma. Eis o que

és: o perigo de tantos enigmas, delírica

ceia ardendo corpo adentro, um chafariz

de águas corrosivas. Meus versos desejam

o crime de tuas entranhas, as torturantes

nuvens de tantas sombras. Eis o que és:

canções do espírito, máquinas de virtudes

vorazes. Tua dor nos excita, em seus cristais

rompendo a noite. Carne do mundo, carne

do amor. Tuas formas caem no torvelinho

de uma luz que nos flagela. Máscaras

do sol, flores da lua. Tudo queima em ti.

Eis o que és: deus tomando nosso corpo,

a bordo da alma incinerada. Tu: quem: eu.

 

19.

 

Alminha, árvore de dons a ti confiados.

Cela nua que me recebe, os véus do vento

preparando a dança, veneras a flor aberta,

adoras a imagem que nasce a cada gesto.

Minha caixa de ecos, teus mil olhos à hora

de ser em todas as formas. Sentidos retidos.

Taça dos mistérios que tua sede requer.

Um deus em cada vértebra. Líquido desmaio

dos vestígios. Flor de espectros. Em vestes frias

a solidão me cuida as feridas. Mãe guardada

em mim que me visita. Sirvo a tuas sombras.

Sou teu dançarino. Todas as noites me dizem

que nunca mais a verei, avezinha que bica

minha tristeza. O que resta em mim do amor.

 

20.

 

Teu prato de fogo vazio reluz. Estás aqui

uma vez mais. Ali onde ressurges, a névoa

cria suas ruínas. Creio nas formas que não

posso alterar. Não me vês, porém teu olhar

me recria. Rosto próprio ao abismo, figura

mortal que sorve um caldo de trevas. Em seu

íntimo caos nos encontramos. Ceia de nossos

temores ignorados. Deusa oculta em desejos.

Livro trêmulo que guarda tua morte. Ouro

do olhar. Resides em todas as sombras. Nobre

terror de máscaras no refúgio de tua refulgente

queda. Luz da cela vazia. Onde estamos?

Quando teu fogo se desfaz, te multiplicas

em três nomes – a ignota perfeição do fim.

 

21.

 

Encerrado no esplendor de tuas entranhas –

com a minha dor eu tomo a tua dor –, engolido

por teu fôlego misterioso, naufrágio de raios

em teu ser, ando sobre o fio de tua beleza. Tens

tua aterradora flor em meus dentes. Secreta

eucaristia de tua queda: as presenças furtivas

do fogo em tua alma assinalas. Sigilo de fúrias

na dissolução de toda origem. Amarga via

de teu desejo, à minha taça posso agora unir

a tua nudez. Que livro torna a tecer nossa liana

de encantos? Úmida areia onde a dor renasce,

deixo-me abraçar por tuas sombras. Teu fulgor

tumular enroscando-se em mim, oh filha do fogo.

Um ramo de espectros vem queimar o teu nome.

 

22.

 

Em seu leito de incêndios o canto. Teu corpo

enlaçado por serpentes. Mãe serena dos

relâmpagos. Indizível noite. Sou teu servo

pleno, nua destruição de sons. Mudez

selvagem de cenas reconhecendo a própria

dor. Tremor sagrado da presa sob o arco

indizível da morte. Alma destroçada e a

caminho da tempestade. Foco de abismos.

Árvores de cinzas. Como são antigas. Quem

ousa decifrar o bosque de seus rumores?

Tu és a Queda. Oh quanto esta noite é escura.

Que estranho lamento tuas lágrimas tecem.

Fogo de lótus. Lembrarás ainda de mim? Aqui

estão, Mãe, os versos que despertam tua voz.

 

23.

 

Íntimo ninho de retornos. Flor inquieta

no desmaio de suas pétalas. Recolho tuas

formas extraviadas. Os violados véus

de teu disfarce: pequenos princípios refazem

o mundo. Uma cidade sitiada por seus

párias. Dizem as feridas que nossa vida

é um crime comum. Luz de declínios.

Alma interrogada por seus êxtases. Mimese

coroada a cada perda: escuto teus passos

onde as sombras se escondem. As chaves

dissimuladas. Deserto guardado em solidão.

Cárcere de vento de teus delírios. Paixão

que regurgita morte. Tuas pétalas caídas.

Senhas no altar do Incriado: teus passos…

 

24.

 

…tuas sombras imitam os pesados espelhos

da noite. Grito: – sou teu filho. As imagens

dançam. Tudo em volta a memória destrói,

braseiro faminto. Teu olhar me faz ler nas

areias do verbo alguns nomes do abismo.

Figuras negras conduzem-me à tua presença

insondável. Nudez flamejante. Algo em teu

ser me exila para sempre no mundo. Oh via

estreita de fugas, que alimento somos

da vida? Alma roída por pequenos delitos.

Mãe de todos os sacrifícios: vertiginoso tear

de meus sonhos, refúgio de teus ícones.

Nos braços de tantas sombras, grito: – sou teu

filho. Nas águas de tantos espelhos derivo.

 

25.

 

Sob as areias descubro as vogais ocultas

de teu nome. Cinzas caem [caem] por toda

a noite. Teus sonhos me trazem de volta

à terra. Choro sobre um túmulo vazio.

Ris, quando o livro se fecha: Santa Santa

Santa. Estou lendo ali todas as palavras

de tua vida: o que mais pode abalar teu

ser? Agulhas alimentam-se de teu corpo

petrificado. Me arrastas olho adentro. Ao

fosso de tuas imagens sombrias, nômade

fatal. Ali estou, novamente ungido por

teus prazeres, a vagar por entre as ruínas:

abre toda a casa, deixa o livro tomar

seu curso. Em silêncio a alma se expande.

 

26.

 

Sigo tropeçando em tuas árvores e seus

altares destruídos vid vac vak ide cant

kánte civu cio vide: nenhuma outra voz

te alcança, a não ser a minha. Queimas

a dor que me afasta de ti. Círculo de ossos

em torno do fogo. Mulheres queimadas.

Tua alma erosada ecoa dentro de mim.

Em mil sombras, tua imagem, astro negro.

Luntis, fonte de óleos. Tremor de nossos

dias devorados por infame solidão. Areias

gotejantes de teu ventre. Retornas a cada

corpo, Mãe, pelas trinta e três portas

desse deserto místico: usa a tua língua

como chave. Jamais esqueço a tua dança.

 

27.

 

Uma vez mais dentro do fogo, onde me vejo

todo encoberto por tuas sombras: eis o golpe

de enlaces de nossa vida. Desci tanto para

encontrar teu fim. Três noites um corpo

abrindo-me as urnas do êxtase. Abismo acima

de nós suspenso, os disfarces da agonia,

sempre irônicos. Caem sobre mim as chamas

de tua alma, invisível árvore cujas raízes

são meus versos. A seiva, um sexo dissolvido

em minhas mãos. Beleza docemente deixada

no espelho. As palavras que me queimam.

Por tantos ruídos guardada, refaz a morte

seus perfis de sal. Mãe perdendo os filhos:

deixe sempre o livro com uma página marcada.

 

28.

 

Teu nome é ausência, vertigem da memória,

flecha de ouro cujo percurso desvenda

uma submersa utopia. Ascensão ao inferno,

contigo nas emanações do vazio. Vapores

do caos sopram que tua morte é meu asilo

primordial. Um a um os fantasmas virão

depor: recolho as cinzas de teu refúgio

em meu corpo. Estranho mar de sentidos:

tua imagem paciente, oh Incriado, teia

que nos torna uma tribo de vícios. Tremor

de visões daquela que guarda a chave

em seu leito. Materiais de risco. Fogueira

de sonhos. Sentenças isoladas na torre

dos delírios. Mãe infundada. Este é o corpo.

 

29.

 

Continuas caindo [caindo], o corpo ao meu

amarrado, olhos perfurados, cósmica ilusão:

pretendia caminhar contigo por toda a

noite. Estranha casa de tremores. Livro

que me recolhe em suas páginas. Confesso

meu cansaço. Noite pesada sobre tudo

o que falamos. Em seu lago recebe, imóvel,

caindo, não sei mais quem és (espelho,

deusa, inseto). As formas que tomei

em ti: falhas, gretas, horror, vazio de tantas

sombras. Refúgio da queda: escoas tua

dor no estuário de minha morte. Pobre

louca irmã de meus tormentos. Sangras

em mim. Fenda de tuas raízes. Continuas.

 

30.

 

Almavagava além dos cortes pelo corpo.

É tua chama envolta pela noite que amo,

a pele do céu lacrando suas dores, imagem

imersa em tudo o que escrevo: toma para ti

meu espírito. Teu rosto súbito desenhado

em folhas secas. Gema de vertigens. O sol

refletido no olhar petrificado. Árvore

abrasada. Diante dela, ajoelhado, choro.

Choro: em que leito escuro ressurgirá teu ser?

Um homem e outro e outro. O mesmo ninho

de declínios. Túnel de muitas mortes: o nome,

a casa, o amor. Desvario de cinzas. A pedra

com suas quedas escritas. Mímica de mim.

Abandono teu corpo: falta-nos a oferenda.

 

31.

 

Porque não podemos errar entre guetos.

Noite de adagas cegas. Ordem perversa do

desapego, entrevista em antigos relatos.

Porque não podemos buscar abrigo no abismo.

A pele não ama sua imagem. Aos pés do que

me dói, o desamparo vela um pomar de odes.

Temos sido apenas queda e escuridão corrente.

Um mar de salmos. Porque não podemos

com a áspera nudez dos lamentos. Tua carne

reconhece a própria erosão. Eis a oferenda.

Pouco além da agonia individual, o silêncio

desperta o sabor da ausência, pobre filha

do presente, em cujo corpo não há nada

[a verdade] além de uma sátira de escrúpulos.

 

32.

 

Tua vida no calor dos sóis. Caminho sobre

teu ventre. Três vezes em silêncio repito

as vogais de teu nome. Enigma sereno das

sombras. Conservas o perfume. Sou teu homem

do fogo, vagabundo perene pelas ruas de

tantos versos. Dor de areias mastigando seios

lábios tendões. Restos da árvore de teu ser.

Espelhos dissecados. Mãe da tribo, de nossas

palavras enterradas nos monturos do tempo.

Calmo caminho sobre as tábuas escritas

por teu corpo. Não há outra terra. Santuário

de vertigens. Uma mesma ferida repercute

no abismo da eternidade. Litanias do fogo.

Ossuário da queda. O vento O verbo O amor.

 

33.

 

Ali onde encontramos sempre uma névoa

de gritos derramados. Eterno ardil da serpente.

Taça em que o poema dissolve suas sílabas,

com seu vulto iluminado pelo mistério

mais antigo, catálogo de cinzas. Escombros

de tantas palavras escritas no céu. Ali onde

esgotamos o corpo deste livro, louco esforço

de lucidez, improvável sem o furor de suas

areias. Tuas formas também se dissolvem,

ousadas ainda. Arrasta-se a noite. Ali onde

tuas línguas tocam-me a alma, toda ausência

indaga o que a morte celebra: a tua palavra

fatigada e imprudente é ainda a única

que me contenta. Pobre trapo. Perco teu nome.

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 


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