A tua palavra
fatigada e imprudente é ainda a única que me contenta.
EUGENIO MONTALE
À memória de
Consuelo, minha mãe
1.
Em tuas visões
recupero o texto perdido,
o lamento nos
lábios de Ágave: sou tua
bacante em delírio. Fêmea terrível, teus
tormentos me
fascinam. Anjo coroado
de estrelas, busco a fonte que se inflame
a todo toque. Pedra de fogo que te faça
dançar. Abaixo,
abaixo da terra de onde
Sabasius ressurge
sempre com a tocha
que acende tuas
visões: toda forma nasce
de seu próprio ser. Tu és a dor do fogo,
a dor da luz
coroando meu espírito com
as palavras de um
texto perdido. Tuas
lágrimas, Ágave,
danças que me queimam.
Óleos na concha
do ser. Tua forma, Mãe.
2.
Acima de teu
furor, o inferno. Sopra o amor,
carmelódia. O inesperado canto de tantas
manias.
Delinquente amante em suas dores:
suas mãos se espalham por minha carne. Tu,
a selvagem forma
que me destrói. Triunfo
do olhar, licor
de diamantes. Teu corpo,
um último cálice
esta noite. O mapa dos
desvarios. Quando
me tocas, sopra o amor:
sob o véu de meus cílios canta uma
antiga
canção. Esboças uma alma que me arrebata.
A ruína das
formas que me haviam criado.
Sábia afundas
comigo no poço, no espelho
do fogo. Ondulas.
Ruges em sombras. Sou
eu que canto.
Esquece que sou tua presa.
3.
Tua beleza, o
raio com que me sagras.
A flor de luz de
teus dias, cuidados por
meus suores.
Silêncio com seus fósforos
em uma canção que
se escuta longe. Peixe
doando mar de si.
Dor lendo seus versos
na noite escura.
Tua beleza, raiz arrancada
a cada metáfora
de abandono. Convém
ao espírito
inflamar-se até que cesse seu
apetite. Sobre
nós estronda a tua beleza,
o balé noturno,
chamado incessante da
solidão no teatro
do mundo, noite súbita.
Quem terá visto o
que eu? Quem me lê
esta noite? Tua
beleza devora cada golpe
de uma estranha
forma que ousa nos salvar.
4.
Eis o catre dos
extravios, onde a Grande
Roda range sua
canção, deusa do acaso,
e lemos a morte
em tantos ossos, secreto
ideograma de tua
voz. Queda dos corpos
em seu acordo
fatal: qual o olhar perdido
em meu sonho a iluminar cada gesto
errante?
Sigilo de
inquietante forma. Obscura nudez
do abismo. Sinto
ranger o espírito convulso:
meu centro intangível tocas, relâmpago
sutil
da posse. O delírio, um crime que restaura.
Pense em mim como
uma fonte de provocações,
leito de fendas,
o tempo, raiz de tua errância
nos acordes da
Grande Roda, mpiedosa tecelã
de meus gozos: virás sempre ao meu encontro.
5.
Despir-se a toda
forma, onde as águas cegam.
Teu corpo se
abrindo, árvore através do obscuro
espelho da alma. Negra matéria, desce da luz,
mostra-me teus dons. Tua nudez restaura toda
essência.
Mergulho na chaga que canta e ilumina
o céu: souteu/soutua. Cristais que a carne brota,
uma noite em tua
taça inacessível. Ishtaritu
e sua lua
profundamente oculta em cada forma
acolhida, ama
inatingível cujo tempo jamais
destrói. Teu
corpo lançado ao rio mil vezes.
Sala de devoções
e açoites, as formas são tuas.
Água abissal que
nos conduz além dos sete véus.
Soma dos
declínios a cada toque na pele. Alma
lacerada. Os
cristais se dissolvem: nudisforme.
6.
O fogo em tuas
mãos. Desço ao sacrum, onde
começa tua carne.
Transe de sombras, a minha
satura cada
fonte. O risco do abismo guardar
o fogo para si.
Fluência do sangue nos rios
da noite. Desço
ao prato cintilante de tantas
vertigens: se te pões a tremer estás perdido.
A caminho da
imagem que nos dissimula,
o adágio tecido
por tuas mãos enquanto desço
[subo?] ao bosque
ardente, escravo do silêncio.
Fêmea errante,
por mim toma o abismo com
teu corpo sobre
um deus deitado: o fogo nos
tem por seus pontos de vida. Alma penetrada
em todas as
veias. Alvo de ardis, tua sombra
a queimar a
queda, fibra e fúria da dor em mim.
7.
Serpentes tecem
uma teia de provérbios. Quais
mãos tocam nas
cinzas da memória, revelando
os vícios da
santa que levita no deserto? Fagulhas
de seu corpo,
areias que desnudam o ser, grãos
de toda loucura
abandonada ao sol. O olho,
a flor do abismo,
lótus negra do desejo: a dor
ama em silêncio. Era teu corpo o espelho ou
sua ilusão meu
degredo? Palavras sinuosas
a invadir um
vulto ajoelhado: que eu me repita
sem cessar e que outros vivam em mim o
que
não pude. A grande torrente do ser. Teu corpo
floresce no
abismo. Fúria da beleza dissipada
em suas páginas.
Nossos corpos recolhidos,
visões do horror,
sílabas resgatadas no inferno.
8.
Meu corpo indo ao
teu encontro: repito
as palavras que o coração oculta em
lâminas. Ofereces trigo ao meu espírito.
Partes de ti voam
sobre mim. A noite, um
elixir a todos
nós consagrado. Seus dons
roçam-me a pele.
Sagração da voz, tudo
em mim se repete.
Tremem as figuras
suaves que me
destroem. Em tua casa me
guardo, enquanto
dure a repetição. Altar
em ruínas, tua
nudez conserva o fogo
a cada encontro,
fêmea profunda galopando
com meu espírito
pelos ares. Serpente
ignota. Tuas
formas derramadas sobre mim.
Banhos de sangue.
A noite, um pó de ecos.
9.
Graves, os nossos
sinais ao infinito, teu corpo
contra o meu,
abismo transfigurado por seus
venenos, pêndulo
extraviado entre mares: torna-
me o teu desastre pleno, a porta
travada, asfixia
de todo o ser. Torre submersa [o amor é a lei?],
rimos em tua ceia
de fezes, enquanto mascamos
os manuscritos do
amor, o beijo dado em parte
alguma. Crescerá terra em nós. A alma
que se apodera do tempo. És perversa. Vulto
que me ilude,
sombras que iluminam o ego
[ainda me vês?]. A dor me conduz a teu
reino.
Graves os
desígnios de nossa conduta. Risco
da pedra ser
triturada pelo vazio. Teu corpo
contra o meu:
totem desfigurado: em chamas.
10.
Em teu abraço
começa o mundo, dorso abissal
enquanto persigo
esboços. Saia de folhas, tua
eletricidade
oculta em súbito portal do abismo.
Cortinas de fogo
antes que te alcance o nome.
Sol de sílabas,
os seios nus, queimantes. O brilho
com que me tinges
a cada dor secreta. Ah doce
vida anterior que
retorna: sonho com teu sexo
retalhando meus sentidos. Santuário de trevas,
fazes de mim tua
vítima tenebrosa, um embuço:
a tempestade de
teu sangue. Tudo em ti rege
a mesma paixão.
Esmagam-me as lembranças
e me arrasto a
tuas ruínas, ao poço de ossos
de tua imagem
insone. Ali onde nasce o homem,
tuas formas
improvisam um livro de sonhos.
11.
Entrego-me ao
suculento desvario de tua árvore,
ao incenso astuto
do sangue. De longe, o vento
que configura teu
corpo colado ao meu: tábua
de letras, tuas
lágrimas indo ao encontro da
loucura. Línguas
de fogo tocando-te a forquilha,
seios se abrindo,
lábios da terra, que mais devoram?
Sua luz
dissolvida sobre mim: tens proteção,
se ocultas teu corpo no meu. Sábias areias por
todos os livros.
Imóvel, teu espírito me procura.
Páginas do Céu e
da Terra, a palavra perdida.
Um cheiro
misturado às ervas que banham
as noites, o sumo
das leis. Sob o olhar de tantos
mortos teu rio me
procura, o riso queimando
as figuras
sagradas do amor, nos bosques da lua.
12.
Vens depositar em
meu ser tuas escrituras
rebeladas,
emanações de um mundo em transe
– se me julgas jamais chegarás a mim –,
as sombras
ardentes de teus rituais. Alma
alarmada com a
crueldade dos deuses:
que obscuras razões me levaram a viver
de teu amor? Sobressalto de algumas palavras
extraviadas,
mantras que apenas revelam
um fracasso
perene, trapézio de vozes
que dão forma ao nosso
desencontro. Loucura
de crer em tantas
perdas. A luz de Clov
morrendo sempre
em nosso peito: sou tua
mãe perdida na dor da noite. Vens enterrar
os corpos
agitados de minha própria morte.
13.
Junto-me a tuas
raízes, fêmea visível, amante
sigilosa. Tua
imagem se alimenta de meu corpo,
louva-a-deus
amantíssimo. O golpe de teu amor
me encerra em
obscuro destino: crime lírico.
Ardilosas, tuas
formas me evocam, e em suas
orações mil vezes
caminho para a morte,
escravo de vícios
os mais secretos. Ruína
lenta que se
ergue a cada verso com que
tento desvelar
tua origem. Espelho de almas
anônimas sobre a
terra. Corpos perdidos.
Tumbas revoltas
de teu louco amor. Junto-me
aos fragmentos de
um bosque remoto. Falhas
da memória: deusa
em sobressaltos. Me encerras
em um deserto que
cresce bem dentro de ti.
14.
Um véu de chamas,
os sinos da água, a dança
das pedras. Oh
redondeza da alma que encerra
em ti seus ciclos
mortais. Tu és a fibra do fogo,
a volúpia da água
tomando meu corpo: tudo
em nós acabará sempre de modo selvagem.
Teu corpo
reclinado na pedra, uma tocha.
Agulhas em tua
língua acesa, crepitante. Sob
o estrondo dos
seios, dança o tempo, dança,
um louco roubando
eco às cavernas da noite.
Em mim se esconde
tal sonho, plena floresta,
água em chamas,
desejo que se crê eloquente:
em qual dos lábios do rio renasce teu
corpo?
Lágrimas da lua,
taça de Eros, abóbada ilusa
o abismo que
desperta a pérola de tua morte.
15.
Minas de febre, a
dor do vento fustiga o corpo
que é teu,
iluminada farsa do riso. Vazio interior
de lábios a
recolher um ramo de vozes alheias.
Planícies do amor
criado fora de si, um broto
de trevas,
escadas falsas. Atriz profunda, desço
a um céu de
tramas. Guardo-me ali, em um palco
sombrio, sangrado
por tua nudez voraz. Ali,
em suas águas
filtro meu espírito. Pavio de
mistérios, tuas
virtudes fecundam as formas
que sagram nossa
união através das noites:
dá-me teu ser, senão morro. Fonte abissal de
tudo quanto amo.
Leis improvisadas na carne.
Riso de fogo de
tuas visões. Sagrada farsa.
Tais cenas
laceram todo amor, fêmea absoluta.
16.
Teu rosto
ressurge de dentro do fogo,
de infinitos
seres arrancados ao espelho
da loucura. De
mares tão singrados, o sal
de tua memória.
Suas trinta e três sombras,
todas as letras
de teu nome. Os vestígios
mais remotos do
abismo que te engendra.
Ignorada meta de
encantos: prepara-te
para um próximo corpo. À beira de surdas
sombras, trêmulo
totem, desfalece o mundo:
teatro de névoas,
vazio petrificado, tear
de areias que
recolhem teus passos.
Detrás de
infinitas portas, todas as coisas
cantam. O fogo
dissolve o metal de tantas
chaves. Oh
peregrina, ressurges de tal dor.
17.
Forjas tua beleza
no fogo de minhas feridas.
Fúria de metais
ocultos na dor. Invado tua
casa de abismos,
suave coração que treme
regando as cinzas
da presença perdida. Ardor
voraz que brota
em silêncio. O peso de tanta
doçura nos
açoita. Crepitar de ossos. A luz
queima as sombras
rebeladas. Teu corpo vem
esconder-se em
meu ventre chagado, avezinha
com suas plumas
devoradas pelo sol, devassa
dor, cujo vagar
pelas noites acende suas carnes,
mundana
plenitude, drama de cinzas do amor,
morrendo ao sugar
em si o pólen da memória.
Alma doada ao
deleite de uma taça de soçobras:
um de nós rogará ao fogo sua ferida
renovada.
18.
Sinais deixados
em tua alma. Eis o que
és: o perigo de
tantos enigmas, delírica
ceia ardendo
corpo adentro, um chafariz
de águas
corrosivas. Meus versos desejam
o crime de tuas
entranhas, as torturantes
nuvens de tantas
sombras. Eis o que és:
canções do
espírito, máquinas de virtudes
vorazes. Tua dor
nos excita, em seus cristais
rompendo a noite.
Carne do mundo, carne
do amor. Tuas
formas caem no torvelinho
de uma luz que
nos flagela. Máscaras
do sol, flores da
lua. Tudo queima em ti.
Eis o que és:
deus tomando nosso corpo,
a bordo da alma
incinerada. Tu: quem: eu.
19.
Alminha, árvore
de dons a ti confiados.
Cela nua que me
recebe, os véus do vento
preparando a
dança, veneras a flor aberta,
adoras a imagem
que nasce a cada gesto.
Minha caixa de
ecos, teus mil olhos à hora
de ser em todas
as formas. Sentidos retidos.
Taça dos
mistérios que tua sede requer.
Um deus em cada
vértebra. Líquido desmaio
dos vestígios.
Flor de espectros. Em vestes frias
a solidão me
cuida as feridas. Mãe guardada
em mim que me
visita. Sirvo a tuas sombras.
Sou teu
dançarino. Todas as noites me dizem
que nunca mais a
verei, avezinha que bica
minha tristeza. O
que resta em mim do amor.
20.
Teu prato de fogo
vazio reluz. Estás aqui
uma vez mais. Ali
onde ressurges, a névoa
cria suas ruínas.
Creio nas formas que não
posso alterar.
Não me vês, porém teu olhar
me recria. Rosto
próprio ao abismo, figura
mortal que sorve
um caldo de trevas. Em seu
íntimo caos nos
encontramos. Ceia de nossos
temores
ignorados. Deusa oculta em desejos.
Livro trêmulo que
guarda tua morte. Ouro
do olhar. Resides
em todas as sombras. Nobre
terror de
máscaras no refúgio de tua refulgente
queda. Luz da
cela vazia. Onde estamos?
Quando teu fogo
se desfaz, te multiplicas
em três nomes – a
ignota perfeição do fim.
21.
Encerrado no
esplendor de tuas entranhas –
com a minha dor eu tomo a tua dor –, engolido
por teu fôlego
misterioso, naufrágio de raios
em teu ser, ando
sobre o fio de tua beleza. Tens
tua aterradora
flor em meus dentes. Secreta
eucaristia de tua
queda: as presenças furtivas
do fogo em tua alma assinalas. Sigilo de fúrias
na dissolução de
toda origem. Amarga via
de teu desejo, à
minha taça posso agora unir
a tua nudez. Que
livro torna a tecer nossa liana
de encantos?
Úmida areia onde a dor renasce,
deixo-me abraçar
por tuas sombras. Teu fulgor
tumular
enroscando-se em mim, oh filha do fogo.
Um ramo de
espectros vem queimar o teu nome.
22.
Em seu leito de
incêndios o canto. Teu corpo
enlaçado por
serpentes. Mãe serena dos
relâmpagos.
Indizível noite. Sou teu servo
pleno, nua
destruição de sons. Mudez
selvagem de cenas
reconhecendo a própria
dor. Tremor
sagrado da presa sob o arco
indizível da
morte. Alma destroçada e a
caminho da
tempestade. Foco de abismos.
Árvores de
cinzas. Como são antigas. Quem
ousa decifrar o
bosque de seus rumores?
Tu és a Queda. Oh
quanto esta noite é escura.
Que estranho
lamento tuas lágrimas tecem.
Fogo de lótus.
Lembrarás ainda de mim? Aqui
estão, Mãe, os
versos que despertam tua voz.
23.
Íntimo ninho de
retornos. Flor inquieta
no desmaio de
suas pétalas. Recolho tuas
formas
extraviadas. Os violados véus
de teu disfarce: pequenos princípios refazem
o mundo. Uma cidade sitiada por seus
párias. Dizem as
feridas que nossa vida
é um crime comum.
Luz de declínios.
Alma interrogada
por seus êxtases. Mimese
coroada a cada
perda: escuto teus passos
onde as sombras se escondem. As chaves
dissimuladas.
Deserto guardado em solidão.
Cárcere de vento
de teus delírios. Paixão
que regurgita
morte. Tuas pétalas caídas.
Senhas no altar
do Incriado: teus passos…
24.
…tuas sombras
imitam os pesados espelhos
da noite. Grito: – sou teu filho. As imagens
dançam. Tudo em
volta a memória destrói,
braseiro faminto.
Teu olhar me faz ler nas
areias do verbo
alguns nomes do abismo.
Figuras negras
conduzem-me à tua presença
insondável. Nudez
flamejante. Algo em teu
ser me exila para
sempre no mundo. Oh via
estreita de
fugas, que alimento somos
da vida? Alma
roída por pequenos delitos.
Mãe de todos os
sacrifícios: vertiginoso tear
de meus sonhos,
refúgio de teus ícones.
Nos braços de
tantas sombras, grito: – sou teu
filho. Nas águas de tantos espelhos derivo.
25.
Sob as areias
descubro as vogais ocultas
de teu nome.
Cinzas caem [caem] por toda
a noite. Teus
sonhos me trazem de volta
à terra. Choro
sobre um túmulo vazio.
Ris, quando o
livro se fecha: Santa Santa
Santa. Estou lendo ali todas as palavras
de tua vida: o que mais pode abalar teu
ser?
Agulhas alimentam-se de teu corpo
petrificado. Me
arrastas olho adentro. Ao
fosso de tuas
imagens sombrias, nômade
fatal. Ali estou,
novamente ungido por
teus prazeres, a
vagar por entre as ruínas:
abre toda a casa, deixa o livro tomar
seu curso. Em silêncio a alma se expande.
26.
Sigo tropeçando
em tuas árvores e seus
altares
destruídos vid vac vak ide cant
kánte civu cio
vide: nenhuma outra voz
te alcança, a não ser a minha. Queimas
a dor que me
afasta de ti. Círculo de ossos
em torno do fogo.
Mulheres queimadas.
Tua alma erosada
ecoa dentro de mim.
Em mil sombras,
tua imagem, astro negro.
Luntis, fonte de
óleos. Tremor de nossos
dias devorados
por infame solidão. Areias
gotejantes de teu
ventre. Retornas a cada
corpo, Mãe, pelas
trinta e três portas
desse deserto
místico: usa a tua língua
como chave. Jamais esqueço a tua dança.
27.
Uma vez mais
dentro do fogo, onde me vejo
todo encoberto
por tuas sombras: eis o golpe
de enlaces de nossa vida. Desci tanto para
encontrar teu
fim. Três noites um corpo
abrindo-me as
urnas do êxtase. Abismo acima
de nós suspenso,
os disfarces da agonia,
sempre irônicos.
Caem sobre mim as chamas
de tua alma,
invisível árvore cujas raízes
são meus versos.
A seiva, um sexo dissolvido
em minhas mãos.
Beleza docemente deixada
no espelho. As
palavras que me queimam.
Por tantos ruídos
guardada, refaz a morte
seus perfis de
sal. Mãe perdendo os filhos:
deixe sempre o livro com uma página
marcada.
28.
Teu nome é
ausência, vertigem da memória,
flecha de ouro
cujo percurso desvenda
uma submersa
utopia. Ascensão ao inferno,
contigo nas
emanações do vazio. Vapores
do caos sopram
que tua morte é meu asilo
primordial. Um a
um os fantasmas virão
depor: recolho as cinzas de teu refúgio
em meu corpo. Estranho mar de sentidos:
tua imagem paciente, oh Incriado, teia
que nos torna uma tribo de vícios. Tremor
de visões daquela
que guarda a chave
em seu leito.
Materiais de risco. Fogueira
de sonhos.
Sentenças isoladas na torre
dos delírios. Mãe
infundada. Este é o corpo.
29.
Continuas caindo
[caindo], o corpo ao meu
amarrado, olhos
perfurados, cósmica ilusão:
pretendia caminhar contigo por toda a
noite. Estranha casa de tremores. Livro
que me recolhe em
suas páginas. Confesso
meu cansaço.
Noite pesada sobre tudo
o que falamos. Em
seu lago recebe, imóvel,
caindo, não sei
mais quem és (espelho,
deusa, inseto).
As formas que tomei
em ti: falhas,
gretas, horror, vazio de tantas
sombras. Refúgio
da queda: escoas tua
dor no estuário de minha morte. Pobre
louca irmã de
meus tormentos. Sangras
em mim. Fenda de
tuas raízes. Continuas.
30.
Almavagava além
dos cortes pelo corpo.
É tua chama
envolta pela noite que amo,
a pele do céu
lacrando suas dores, imagem
imersa em tudo o
que escrevo: toma para ti
meu espírito. Teu rosto súbito desenhado
em folhas secas.
Gema de vertigens. O sol
refletido no
olhar petrificado. Árvore
abrasada. Diante
dela, ajoelhado, choro.
Choro: em que leito escuro ressurgirá teu ser?
Um homem e outro
e outro. O mesmo ninho
de declínios.
Túnel de muitas mortes: o nome,
a casa, o amor.
Desvario de cinzas. A pedra
com suas quedas
escritas. Mímica de mim.
Abandono teu
corpo: falta-nos a oferenda.
31.
Porque não
podemos errar entre guetos.
Noite de adagas
cegas. Ordem perversa do
desapego,
entrevista em antigos relatos.
Porque não
podemos buscar abrigo no abismo.
A pele não ama
sua imagem. Aos pés do que
me dói, o
desamparo vela um pomar de odes.
Temos sido apenas
queda e escuridão corrente.
Um mar de salmos.
Porque não podemos
com a áspera
nudez dos lamentos. Tua carne
reconhece a
própria erosão. Eis a oferenda.
Pouco além da
agonia individual, o silêncio
desperta o sabor
da ausência, pobre filha
do presente, em
cujo corpo não há nada
[a verdade] além
de uma sátira de escrúpulos.
32.
Tua vida no calor
dos sóis. Caminho sobre
teu ventre. Três
vezes em silêncio repito
as vogais de teu
nome. Enigma sereno das
sombras.
Conservas o perfume. Sou teu homem
do fogo,
vagabundo perene pelas ruas de
tantos versos.
Dor de areias mastigando seios
lábios tendões.
Restos da árvore de teu ser.
Espelhos
dissecados. Mãe da tribo, de nossas
palavras
enterradas nos monturos do tempo.
Calmo caminho
sobre as tábuas escritas
por teu corpo.
Não há outra terra. Santuário
de vertigens. Uma
mesma ferida repercute
no abismo da
eternidade. Litanias do fogo.
Ossuário da
queda. O vento O verbo O amor.
33.
Ali onde
encontramos sempre uma névoa
de gritos
derramados. Eterno ardil da serpente.
Taça em que o
poema dissolve suas sílabas,
com seu vulto
iluminado pelo mistério
mais antigo,
catálogo de cinzas. Escombros
de tantas
palavras escritas no céu. Ali onde
esgotamos o corpo
deste livro, louco esforço
de lucidez,
improvável sem o furor de suas
areias. Tuas
formas também se dissolvem,
ousadas ainda.
Arrasta-se a noite. Ali onde
tuas línguas
tocam-me a alma, toda ausência
indaga o que a
morte celebra: a tua palavra
fatigada e imprudente é ainda a única
que me contenta. Pobre trapo. Perco teu nome.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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