A pedra de toque da poesia está em que
o verso ultrapassa o sentido.
JORGE
LUIS BORGES
A Leila Ferraz
DIGESTÃO
As doze termas do caos são teu nome escrito em
segredo
como os ossos que se multiplicam banhados pela
lama
e o mantra de que me alimento enquanto
requebro os vultos
do que sou e fui e do que nunca pude ter em
meu corpo.
Arestas da virtude e do desamparo, fui a tua
mulher sem saber
que impuseste flamas à própria razão de ser de
tua liberdade.
Justo eu que fui buscar teu nome onde sequer
havia uma letra.
Voltei de viagem com a tua sombra mascarada de
indecisões.
Os teus pecados faziam festa como uma tribuna
reempossada.
Hoje não me serves para nada, porém algumas
naus queimam
no inferno que teu nome mantém como um
glossário abjeto.
Eu fiz a tua moral criar-se, como uma
descrença no homem
que não naufragasse no próprio êxtase, ausente
do mundo
em que se oculta a loucura como uma revolta
sob encomenda.
Vem me confundir com uma múmia ou astrolábio
ou caldeirão,
eu quero que me retenhas em ti até que não
saibas quem fui.
A memória é descontínua, tanto quanto o desejo
é um esboço
e a queda uma concupiscência de tudo aquilo
que mais calamos.
Meu verbo é teu, até que me devolvas um
cenário que jamais
imaginei como parte de minha vida. Não me
envies uma carta.
Eu estou em qualquer parte e não teria como
recebê-la.
Envia-me o teu nome, não importa a forma, e
logo saberei
quantas serão as portas que terei que cruzar
para estar contigo.
NOITE
As dores abrem feridas como a
espantosa agonia da esperança.
O mar disse que eu não fosse vê-lo
antes que o dia antecipasse
seus animais arrastados ao catre da
beleza e toda a sua pressa
em livrar-se da memória. Noto que a
angústia se alimenta
do contorcionismo de tuas farsas
morais. Como as puritanas
que encharcam seu ventre de
pergaminhos ilegíveis e a ranhura
de um aquário desprezado com suas
fábulas escritas pelo lodo.
Eu vi a casa naufragar em meio a uma
orgia de crustáceos.
Ninhada de quedas desconhecidas
cavando orgasmos elétricos,
bicando a intimidade com vícios
carcomidos e gritos de luz.
O teu corpo tropeça por todos os
cômodos da casa em fuga.
Teus dedos ágeis te felicitam pelos
instantes mais lúbricos,
como uma orquestra de polvos
majestosos afinando o lápis
com o qual se escrevem a partitura de
gozos e sombras náuticas.
Guardo em mim os teus sítios mais perigosos
e a raiz severa
da pausa que nos impusemos. Retornarei
ao verbo empapado
de tuas coxas, às ameias do castelo de
sigilos de tua nuca.
Voltarei para o sobressalto de teus
dedos à porta de meus lábios,
para a soleira mais imprevisível de
tanta volúpia arquivada.
As dores timbram de caprichos o enigma
iletrado da ausência.
Não me esperes junto ao mar, pela
inumerável causa humana.
Eu te escrevo em mim, como os polvos
soletram a libertinagem
dos reflexos atraídos para a
profundeza de toda semelhança.
Bendita seja a forma de teu clitóris,
e a noite que ele consome.
RESSURREIÇÃO
Um bocado de trevas especula sobre o
anonimato dos gemidos.
Olhos fixos no abismo antes de tocá-lo
com a ponta da língua.
Sua folhagem familiar, sua mínima
quantidade de mentiras,
lebres levitando em um estrado de
pequenas dimensões, fibras
de uma coincidência jamais
experimentada. Árvores de barro.
Como te remexes dentro de mim. Como
distraio teus enganos.
Como me enfeitiças o acesso a teu
furor e o marfim incógnito
a que me submetes em desafiante porção
de óleos e pálpebras.
Invade o meu ser com as tramas mais
frondosas de teu desejo.
Faz com que evaporem as culpas mais
vistosas, os anéis do luto
e o palimpsesto agônico das máscaras
grudadas em meu rosto.
Quero que invertas o meu dia sem
motivo para precauções.
Que me acrescentes mil letras antes
que eu esmiúce a voragem
de teu evangelho. Chove no íntimo de
nós duas. No leito
de palmas com que me vislumbras as
doutrinas mais solúveis.
Eu sou o teu rebanho tangido para
dentro do espelho. As tuas
perdas enciumadas. O casario
assombrado dos fracassos.
A miçanga feliz de tua carne durante
os três intensos dias
em que parecemos uma vastidão engolida
por uma audácia
de trevas. Aventuro o nome com que me
rascunhas a bunda.
Pedra posta na linha do horizonte para
não naufragar à noite.
Meus olhos sabem como tornar a tua
crueldade obediente.
BELEZA
Escuto as lágrimas do urinol e o olhar
desconfiado da noite.
Não te assustes seguindo o meu nome.
Abro um postigo
impiedosamente em tua pele, para que
não sonhes comigo
como um cadáver com as pernas
doloridas. Não me importa
que ames outro ou que a tua loucura
abunde em ruas negras
riscadas por estúpidas estátuas
sangrentas. Escuto as vozes
de teu desapego de si, enquanto
extravias a surda indiferença.
Respingas em mim a fábula perolada de
tua urina, os beijos
que a realidade guarda lacrados em
relógios e tabuadas.
As sombras graciosas que mudam de
lugar os móveis da casa.
Os nomes esbulhados com que os
demônios domésticos
se divertem às custas de tua fome de
almas rivais. O pecado
sensível do gozo desperto em um toque
cansado de segredo.
Quantas vezes devo recobrar a chama de
tuas confidências?
Contamo-nos entre os dedos mais
divertidos, como tocados
pela ânsia de saber quantos somos,
dentro e fora, esta noite.
Abre o tempo para mim, compartilha as
lágrimas de teu ventre.
Aceita a ordem de teus excessos,
desapareço em teu bosque.
As noites não se deixam profanar pelos
encontros impossíveis.
ESBOÇO
As asas se abrem sem que o voo seja anunciado.
Multidão de pássaros dentro do ovo.
Espelhos postos à espera de um beijo.
Silhuetas de orgasmos antes que os corpos se
toquem.
Vens por mim o tanto que vou por ti,
indeterminando as gretas da loucura.
Os teus mamilos convencem o tabelião de que
não necessitam sangrar.
Eu não me curvo a outra evolução que não seja
a tua ousadia de levitar dentro de mim.
Os teus olhos embriagados por uma direção
definida.
O meu corpo concentrado em não te impedir
nada.
Que o destino se resigne ao fato de que eu
quero me sentir ampliada por ti antes de qualquer outra tragédia.
Mordo onde me pedes, por precaução de um crime
que jamais cometerei.
Marca-me a carne com as tuas horas ocultas de
levitação.
Nenhum de nós estará aqui amanhã.
Bem sei que estás plenamente convencido do
anonimato do orgasmo.
MUNDO
Os véus eu reparto com as sombras de
teu corpo, testemunho
de um beijo rejeitado ou de um
infortúnio de tua virilidade.
Quando a amizade se torna um lenitivo,
eu me dispo
ante a permissividade brônzea dos
corpos desconhecidos.
Posso dividir meu corpo com
caranguejos e leões marinhos,
porém jamais com a tua indecisão de
tocar-me a imprudência.
Sou a flor que não te espera à janela,
labirinto que não cerca.
Meus seios pontiagudos anotam
endereços de mil tributos.
Não me ligas para uma sombra inflamada
de teu prepúcio.
Onde te metes quando te elejo única
testemunha do que sinto?
Me envaideço de multiplicar-te zelando
por atrevimentos.
Já não caibo em montículo algum das
ofensas recolhidas
como um ideário de aforismos de nossa
existência incomum.
Nenhum de nós está aqui para
simplesmente gozar ou morrer.
As estátuas sangram tanto quanto os
deuses mudam de lugar
e o poder se esquece de suas
redondilhas de corpo maior.
Tu me abraças como um polvo, um
relicário, uma tormenta.
SIMETRIA
Os corpos se abrem modelando em seu
íntimo a memória
cortante do desejo. A casa não se
atreve a duvidar dos novos
sítios onde se escondem algumas de
suas sombras e vísceras.
As noites recordam um mar de corpos
que ainda rangem
ensacados e perambulando como uma
tarefa pendente,
uma deriva imposta pelo teorema da
existência, uma avaria.
Os corpos relutam em aceitar o anátema
de suas quedas.
Quantas vezes difamaram o caráter das
culpas ou reabriram
o tinteiro com que negaram os motivos
de crimes insolventes.
Os corpos se dobram em episódios
situados nas vértebras.
Dificultam o tempo de raciocinar e
despojam o espaço
de toda alegoria possível. Os corpos
dão aula de perversão
ao instinto humano. Selvagens e
licenciosos em seus disfarces
mais idílicos, raspam a cavidade de
seus vultos e ossos
até que a lógica se torne obsoleta.
Planejam a surpresa
de cada orgasmo. Esboçam uma tirania
sem princípio algum.
Os corpos dilaceram o personagem que
imaginamos ser.
Ruminam a presunção do imprevisto.
Retalham o sonho.
Interrompo, suprimo, rasgo cada
músculo adormecido,
sua estrofe de peles, franquia de
nervos, o âmago delirante.
Reconheço no mar o dormitório de suas
fraudes e visões.
E os ensaco até que não me detenham
mais, até o limite
em que não mais necessite deles, ocultos
atrás de mim.
INFERNO
Quando me vendaste pela primeira vez
me querias feliz,
pois o gozo da inexperiência nos torna
a alma suculenta.
Depois fui tua tantas vezes capturada
pela escuridão
que já não sabia quem era ou de que
forma me ofendias.
Aos poucos me tornei viciada em um
mesmo enigma,
uma mesma carta ilegível, proibida de
despertar
como uma sonâmbula refém de um
pesadelo em crise.
A ideia que faço de teu rosto é um
retrato frustrado,
as minhas súplicas submetidas à tua
frialdade malsã.
Quantas vezes me pareço mesmo tua de
onde me vês?
Como sabes que somos iguais se não nos
questionamos?
Todo rogo é uma incriminação, me diz o
teu silêncio.
Eu jamais me senti a tua taça, a
imitação de um pecado,
a tortura de um afeto que te marca
como um hieroglífico.
Quantas vezes tenho que dizer-te que
não me conheces?
Que me faças tua hóstia, carma ou
horror inspirado
em um passado de martírios, que me
retardes a vida
e me gangrenes a inocência, sei que
não me recupero.
O que mais temo é que não me causes
mais medo algum,
que não saiamos jamais deste breu
carente de motivo.
DISCÓRDIA
O teu postigo às escâncaras me exige
renovar as máscaras.
Não posso adentrar teus traumas sendo
sempre o mesmo.
Jamais estarias de acordo com as leis
de minha permanência.
Tenho que buscar-me outro antes que te
habite outra vez.
Tenho que ser muitos até que te
evapores e me recries.
Ao avesso, bruscamente desfeita, os
rasgos mais íntimos,
o linho na mesa em que te contorces,
os véus surpresos.
Como abraças o espelho temendo perder
a consciência.
Como trafegas de uma margem a outra de
teu devaneio.
As tuas ancas decididas a erradicar o
perdão e a glória.
Não me arranques mais de mim sem que
eu diga meu nome.
Deixa-me beijar-te como quem faz
reflorir nova morada.
Esvaziar a vida como quem exige para
si um mínimo de mal.
Distribuir espelhos pelo mundo até que
ninguém mais
se reconheça em si mesmo. E ali
plantar a mentira sublime
que nos leva a crer que a astúcia é
uma ilusão dada a poucos.
ESPELHO
De algum modo somos criados por um
insensato pesadelo.
Verificamos a pele, como ela se
esconde ou se transforma.
Já a alma nós a mantemos secreta
tratando de evitar-se.
Os tormentos portadores de toda
libertinagem, o arraial
de culpas que nos escava insônia e
medo, o puritano lacre
da vergonha. Nossas formas de
comunicação com Deus.
O pandeiro nos observa em conluio com
o gel, o vídeo,
um cheiro, um trago, a desgraça
anônima da piedade,
ruas cercadas por uma simpatia
assustada, nome perdido,
ah como me apego a ti, meu anjo, sem
que me reconheças.
As minhas pernas são tuas, o desmazelo
de minhas noites.
Não me castigues jamais por inocência
ou susto ou cobiça.
Sei como desapareço, embora não
recorde quem regresse.
Mudamos de forma ou desgraça tanto
quanto de gênero.
Eu te vejo em mim me perseguindo
através de orgasmos.
Eu te ergo em vultos que soletram a
imobilidade de gozos.
Jamais te encontrei idêntica a meus
sonhos em um espelho.
Desde cedo aprendemos a não confiar
tanto na realidade.
O que somos é essa fatura do assombro,
facção imprevista,
o modo de um dia não sermos mais do
que nós mesmos.
DIA
Não sei em quantas me desfaço para ser
quem sou.
Convenço-me toda do anonimato para que
um dia
quem sabe se revele esse bosque ungido
pelo sangue
das formas imprecisas. A minha alma te
aguarda
desfeita por três dias, a lua
desprendida da cama.
Mas tens que me encontrar sem saber
quem somos.
Como dois corpos que se entregam o
sexo alternado.
O que tens em mim quando me tocas é
uma reza
por fora que roça o íntimo até que o
livro se abre.
A grande miséria de Deus não cria
volume em nós.
As carnes extraviam o roçado abundante
da viagem.
Buscamos o descompasso e o exílio, uma
brisa louca
de pálpebras que leem ramos de
auréolas e prepúcios,
e onde quero finalmente que estejas
sequer soluças.
Continuas dormindo dentro de mim a
desmatar-me
os reflexos mais vagabundos, as
cicatrizes dormentes
de um sonho, os tímpanos floridos de
nosso desejo.
Esgueiro-me todo pelo grande círculo
de tuas plantas.
Jamais soube em quantas me refaço para
ser quem és.
ASTÚCIA
Arranco teu corpo da imaginação em que
ele se depura.
Estamos em um plano de entusiasmo em
que as estátuas
se movem e fustigam a indecisão, sem
que haja prova
da ocorrência desse crime. Colo a tua
nudez por todos
os bancos de uma praça ciente de que
não há fronteiras.
Cada migalha de tua pele me olha com
seu humor frio,
como uma farsa dedicada à literatura,
intriga contagiosa
que se converte em genocídio e implode
o montículo
onde se deixam acuar as lágrimas
citadas por descuido.
Vultos de lama, sombras curiosas, voos
petrificados…
A melancolia com que recorro a teu
corpo transtorna
a história e suas cartas borradas e
suas camas ardilosas.
Apenas tu és a minha índia, o meu
negro, o meu feitor.
O abutre triturado pela injustiça, o
açoite afortunado
com que relato as três dimensões de
tuas cinzas,
a memória coagulada talvez à espreita
da vingança.
Longe da discórdia eu não saberia o
que fazer contigo.
MOTIVO
Quantas vezes na mesma página a sombra
intermitente.
O mito de tuas plumas e pelos criando
meus navegantes.
Por onde me rasgas eu te serpenteio e
completo a saga
dos membros salpicados pelo furor de
órbitas comovidas.
Um dia eu quis ser apenas imprudente e
cobiçar teu gozo.
No instante seguinte eu me despedia de
ti, queria outra,
porém que fosse a consequência do
mesmo erro inseguro.
Cansei de escalpelar os teus vultos em
minhas visões.
Não imprimas em mim o patíbulo
terrível de teu olhar.
Eu me arrasto como quem sabe o fulgor
da fatalidade,
e ainda te adoro como a sombra
repugnante de meu ser.
Quando te abraço diante do espelho não
estás refletida.
Ao rabiscar teu nome em minha pele ele
se impacienta
e não deixa secar as raízes de um
vislumbre improvável.
No entanto, ali estás, e te repetes
até que eu reconheça
que fui tantas vezes o abandono
piedoso de teu castelo
que já não sei retomá-lo senão por
ríspido argumento.
Dá-me o idioma que necessito para
vagar sem rumo
ao ermo em que o espelho não reflete
mais nada, lugar
em que o inferno já não se sente
protegido, oh dá-me.
LIMITE
Anoto alguns segredos de tuas
ninharias, sublimes
revelações de seios e tornozelos,
fronte e axilas.
O modo como inventas signos em minha
pele
ou como as letras sopram a chama de
uma vela,
que deixo pousar entre tuas coxas como
uma seita.
Decifro a tatuagem de tantos lívidos
mistérios.
Montanhas que se movem, voos que
beijam o sol,
tarefas especulativas da matéria ao
mudar de forma.
Eu jamais resistiria às tuas
influências, olhos fixos
em mim enquanto me torno legível em
teu íntimo.
Despimos a existência de seus vícios
rarefeitos.
Nossas pernas conjugam tratados e
dramas
em uma simetria que soma todas as
frases do abismo.
TORMENTA
O espanto é feito de repetição. Reage a tudo
que se arraste
tentando suplantá-lo. O que ele move dentro de
si
é sua excelsa agonia. O espanto cabe menos
nele mesmo
do que qualquer outra abstração. Desconhece
tanto
as regras que não combina sequer com seu
reflexo.
O espanto é um império do que se está por
fazer. Não há
substância mais pura e no entanto não há por
que sacralizá-lo.
O espanto multiplica nossos corpos até o
orgasmo infinito.
Como deslizam as imagens a caminho da
impossibilidade
da contagem de sombras e um pátio ardoroso de
vísceras
que são as regras que desmatamos a cada
sagração da volúpia.
O mundo não guarda rancor por nossos esforços
em nos ausentarmos de suas virtudes
ocasionais, ou destrói
o piano quando o improviso está a ponto de
sangrar.
Imaginemos uma existência de corpos nus.
A comunhão, os 100 metros com barreira, um
assalto.
O calvário do espanto soletrou os aforismos da
culpa,
de tal modo que já não evocamos a nós mesmos
quando nos movimentamos dentro do que
imaginamos ser.
A todo instante pisoteados pela graça do
espanto.
Multipliquemos os corpos, os jogos, a comida,
as inscrições,
os nódulos felizes de cada entidade que
vislumbramos.
Não somos senão o que absorvemos de nós
mesmos.
Corpos sangrando lá fora, veleidades, tumultos
residuais.
Não restou nada para suportar o mundo senão
idealizá-lo.
ANONIMATO
Reconheço a morada fixa de teus dentes
quando recuo no tempo a buscar as formas
acumuladas entre cortinas e janelas
cegas.
Uma pequena touceira de ossos ramosos
espreita o sermão de teus afrescos
borrados.
A memória se debatendo contra o vento
mal poderia imaginar onde enterramos
as consequências de nosso amor
infligido
pela derradeira anarquia de pincéis e
ócio.
Como omitir a ressurreição dos
mosaicos
salpicados de sangue, o horror
encurralado
e o teu corpo desprovido de asas e
cascos?
A dor que me causaste se ergue sem
esforço,
retalha o significado de suas vítimas
lentas
e sai de cena antes que seja
identificada.
Ninguém sabe quanto mal nos causamos.
Tampouco haverá hora propícia ao verbo
para correção ou denúncia, decoro ou
pena,
em meio a cores gastas e borrões
impulsivos,
rasgão em telas que retratavam o que
fomos.
Tais quedas sempre se portaram muito
mal.
Jamais reconheceram nosso melhor
esboço.
ENCONTRO
A pedra recolhe teu movimento,
enquanto me esgueiro para provar que caibo em
tua floração de enigmas.
Fomos inscritos em tuas pequenas moradas
lúbricas.
Um mundo de finalidade incerta,
manada de casulos cujo futuro nenhum cronista
pode antever.
A tua alma imersa no mel de meus haveres.
O ajuste concupiscente de nossas cruzadas, as
torres ávidas por um significado, o exemplo soberbo
de teus ângulos impossíveis.
O esforço da pedra por não deixar-se
influenciar
por teus falsos desmaios e horas de espera
enquanto mudavas de cor.
Pequena moita onde o mundo rege a língua que
nos dominará.
Pedra erguida acima de tua nudez como fábulas
descritas por um sonho que se multiplica em saltos.
O movimento se despe aos olhos da câmara.
Uma rede de impulsos arrasta teu corpo até que
reproduzas o sol em teu orgasmo.
Eu leio as tuas frestas arbóreas e o núcleo
de cada ação que emites em direção à minha
cobiça.
Os teus enigmas cinzelados olham para mim com
uma beleza entusiasmadamente retorcida.
CRUELDADE
Quantas vezes queres ler o mesmo
segredo
que deixo escapar de meus suspiros, ou
simular
uma frequência de estímulos inundando
o ar,
cena possuída por vozes e sombras
agachadas?
Quantas? Um sorteio ilimitado de
diagramas,
um estoque de incêndios enquanto o
fogo
recupera seus promontórios e te curvas
com todas as efemérides de teu
orgasmo,
até que se possa ler no urinol o nome
outro
com que batizas a pertença de todo o
alheio.
Quantas vezes o mesmo lençol e a
voragem
de escombros domésticos fingindo
cenário?
Quantos rostos queres até me
reconhecer?
Por mais que alcance a saliência de
teus vultos
mais me suga o anonimato de tuas
ínsulas.
Não me importa a hierarquia dos
excessos
quando te multiplicas em terras à
vista
e a névoa é a única extravagância
possível
até que me sintas a tua própria
ressurreição.
CLITÓRIS
Começamos hoje bem cedo a recortar
máscaras e espelhos, fugas e anseios,
paisagens em dúvida e objetos indivisíveis.
Tudo no mundo é motivo para a tesoura
abrigar novas mutações e superar a dicção
consumida pela repetição.
Cada alma posta no mundo sabe
com quantas anomalias
se chega ao corpo perfeito e seus deuses
esféricos.
Recortamos como quem recorda a alma buscando
outra fonte pública de refeições.
A alma faminta que se desdobra em lábios
e reescreve a paisagem deixada para trás
por abutres gordos e a imundície do desejo
aniquilado.
Árvores, pedras, mar ⎼ o teu corpo se debruça
sempre a um passo do abismo,
queixoso de que não o atinja a tesoura do
acaso.
O teu corpo amanhece possuído pelo desejo
de ser a tesoura, o corte e a figura.
As demais aparições que aguardem, até que
desperte a cola
de sua noite íngreme e de seus sonhos
proféticos.
PORTAS
Ao me debruçar cansado sobre o cume da
escalada
um grupo de árvores veio me receber e
toda a cena
eu atribuí ao sol refletido no suor,
ao palco confuso
em que vultos indistintos repassaram o
roteiro que eu
desconhecia por completo. A minha
sombra abismada
se deslocava de uma árvore a outra,
apalpando
o princípio carnal daquelas formas
servis evocadas.
Deslizei o ventre aguçado pela rampa
de umas meias,
ergui um joelho até a altura de um
ardiloso nariz,
deixei meus seios serem cascalho e
nuvem, pó e raiz.
Cheguei a crer na semelhança, antes da
noite posta.
Os espectros saltam de um galho a
outro e por vezes
esquecemos que apenas devoramos carne
e mais carne,
e quando o mundo se refaz é apenas a
nossa digestão.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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