sábado, 22 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Breve história da magia

 

 

A pedra de toque da poesia está em que o verso ultrapassa o sentido.

JORGE LUIS BORGES

 

A Leila Ferraz

 

DIGESTÃO

 

As doze termas do caos são teu nome escrito em segredo

como os ossos que se multiplicam banhados pela lama

e o mantra de que me alimento enquanto requebro os vultos

do que sou e fui e do que nunca pude ter em meu corpo.

Arestas da virtude e do desamparo, fui a tua mulher sem saber

que impuseste flamas à própria razão de ser de tua liberdade.

Justo eu que fui buscar teu nome onde sequer havia uma letra.

Voltei de viagem com a tua sombra mascarada de indecisões.

Os teus pecados faziam festa como uma tribuna reempossada.

Hoje não me serves para nada, porém algumas naus queimam

no inferno que teu nome mantém como um glossário abjeto.

Eu fiz a tua moral criar-se, como uma descrença no homem

que não naufragasse no próprio êxtase, ausente do mundo

em que se oculta a loucura como uma revolta sob encomenda.

Vem me confundir com uma múmia ou astrolábio ou caldeirão,

eu quero que me retenhas em ti até que não saibas quem fui.

A memória é descontínua, tanto quanto o desejo é um esboço

e a queda uma concupiscência de tudo aquilo que mais calamos.

Meu verbo é teu, até que me devolvas um cenário que jamais

imaginei como parte de minha vida. Não me envies uma carta.

Eu estou em qualquer parte e não teria como recebê-la.

Envia-me o teu nome, não importa a forma, e logo saberei

quantas serão as portas que terei que cruzar para estar contigo.

 

 

NOITE

 

As dores abrem feridas como a espantosa agonia da esperança.

O mar disse que eu não fosse vê-lo antes que o dia antecipasse

seus animais arrastados ao catre da beleza e toda a sua pressa

em livrar-se da memória. Noto que a angústia se alimenta

do contorcionismo de tuas farsas morais. Como as puritanas

que encharcam seu ventre de pergaminhos ilegíveis e a ranhura

de um aquário desprezado com suas fábulas escritas pelo lodo.

Eu vi a casa naufragar em meio a uma orgia de crustáceos.

Ninhada de quedas desconhecidas cavando orgasmos elétricos,

bicando a intimidade com vícios carcomidos e gritos de luz.

O teu corpo tropeça por todos os cômodos da casa em fuga.

Teus dedos ágeis te felicitam pelos instantes mais lúbricos,

como uma orquestra de polvos majestosos afinando o lápis

com o qual se escrevem a partitura de gozos e sombras náuticas.

Guardo em mim os teus sítios mais perigosos e a raiz severa

da pausa que nos impusemos. Retornarei ao verbo empapado

de tuas coxas, às ameias do castelo de sigilos de tua nuca.

Voltarei para o sobressalto de teus dedos à porta de meus lábios,

para a soleira mais imprevisível de tanta volúpia arquivada.

As dores timbram de caprichos o enigma iletrado da ausência.

Não me esperes junto ao mar, pela inumerável causa humana.

Eu te escrevo em mim, como os polvos soletram a libertinagem

dos reflexos atraídos para a profundeza de toda semelhança.

Bendita seja a forma de teu clitóris, e a noite que ele consome.

 

 

RESSURREIÇÃO

 

Um bocado de trevas especula sobre o anonimato dos gemidos.

Olhos fixos no abismo antes de tocá-lo com a ponta da língua.

Sua folhagem familiar, sua mínima quantidade de mentiras,

lebres levitando em um estrado de pequenas dimensões, fibras

de uma coincidência jamais experimentada. Árvores de barro.

Como te remexes dentro de mim. Como distraio teus enganos.

Como me enfeitiças o acesso a teu furor e o marfim incógnito

a que me submetes em desafiante porção de óleos e pálpebras.

Invade o meu ser com as tramas mais frondosas de teu desejo.

Faz com que evaporem as culpas mais vistosas, os anéis do luto

e o palimpsesto agônico das máscaras grudadas em meu rosto.

Quero que invertas o meu dia sem motivo para precauções.

Que me acrescentes mil letras antes que eu esmiúce a voragem

de teu evangelho. Chove no íntimo de nós duas. No leito

de palmas com que me vislumbras as doutrinas mais solúveis.

Eu sou o teu rebanho tangido para dentro do espelho. As tuas

perdas enciumadas. O casario assombrado dos fracassos.

A miçanga feliz de tua carne durante os três intensos dias

em que parecemos uma vastidão engolida por uma audácia

de trevas. Aventuro o nome com que me rascunhas a bunda.

Pedra posta na linha do horizonte para não naufragar à noite.

Meus olhos sabem como tornar a tua crueldade obediente.

 

 

BELEZA

 

Escuto as lágrimas do urinol e o olhar desconfiado da noite.

Não te assustes seguindo o meu nome. Abro um postigo

impiedosamente em tua pele, para que não sonhes comigo

como um cadáver com as pernas doloridas. Não me importa

que ames outro ou que a tua loucura abunde em ruas negras

riscadas por estúpidas estátuas sangrentas. Escuto as vozes

de teu desapego de si, enquanto extravias a surda indiferença.

Respingas em mim a fábula perolada de tua urina, os beijos

que a realidade guarda lacrados em relógios e tabuadas.

As sombras graciosas que mudam de lugar os móveis da casa.

Os nomes esbulhados com que os demônios domésticos

se divertem às custas de tua fome de almas rivais. O pecado

sensível do gozo desperto em um toque cansado de segredo.

Quantas vezes devo recobrar a chama de tuas confidências?

Contamo-nos entre os dedos mais divertidos, como tocados

pela ânsia de saber quantos somos, dentro e fora, esta noite.

Abre o tempo para mim, compartilha as lágrimas de teu ventre.

Aceita a ordem de teus excessos, desapareço em teu bosque.

As noites não se deixam profanar pelos encontros impossíveis.

 

 

ESBOÇO

 

As asas se abrem sem que o voo seja anunciado.

Multidão de pássaros dentro do ovo.

Espelhos postos à espera de um beijo.

Silhuetas de orgasmos antes que os corpos se toquem.

Vens por mim o tanto que vou por ti, indeterminando as gretas da loucura.

Os teus mamilos convencem o tabelião de que não necessitam sangrar.

Eu não me curvo a outra evolução que não seja a tua ousadia de levitar dentro de mim.

Os teus olhos embriagados por uma direção definida.

O meu corpo concentrado em não te impedir nada.

Que o destino se resigne ao fato de que eu quero me sentir ampliada por ti antes de qualquer outra tragédia.

Mordo onde me pedes, por precaução de um crime que jamais cometerei.

Marca-me a carne com as tuas horas ocultas de levitação.

Nenhum de nós estará aqui amanhã.

Bem sei que estás plenamente convencido do anonimato do orgasmo.

 

 

MUNDO

 

Os véus eu reparto com as sombras de teu corpo, testemunho

de um beijo rejeitado ou de um infortúnio de tua virilidade.

Quando a amizade se torna um lenitivo, eu me dispo

ante a permissividade brônzea dos corpos desconhecidos.

Posso dividir meu corpo com caranguejos e leões marinhos,

porém jamais com a tua indecisão de tocar-me a imprudência.

Sou a flor que não te espera à janela, labirinto que não cerca.

Meus seios pontiagudos anotam endereços de mil tributos.

Não me ligas para uma sombra inflamada de teu prepúcio.

Onde te metes quando te elejo única testemunha do que sinto?

Me envaideço de multiplicar-te zelando por atrevimentos.

Já não caibo em montículo algum das ofensas recolhidas

como um ideário de aforismos de nossa existência incomum.

Nenhum de nós está aqui para simplesmente gozar ou morrer.

As estátuas sangram tanto quanto os deuses mudam de lugar

e o poder se esquece de suas redondilhas de corpo maior.

Tu me abraças como um polvo, um relicário, uma tormenta.

 

 

SIMETRIA

 

Os corpos se abrem modelando em seu íntimo a memória

cortante do desejo. A casa não se atreve a duvidar dos novos

sítios onde se escondem algumas de suas sombras e vísceras.

As noites recordam um mar de corpos que ainda rangem

ensacados e perambulando como uma tarefa pendente,

uma deriva imposta pelo teorema da existência, uma avaria.

Os corpos relutam em aceitar o anátema de suas quedas.

Quantas vezes difamaram o caráter das culpas ou reabriram

o tinteiro com que negaram os motivos de crimes insolventes.

Os corpos se dobram em episódios situados nas vértebras.

Dificultam o tempo de raciocinar e despojam o espaço

de toda alegoria possível. Os corpos dão aula de perversão

ao instinto humano. Selvagens e licenciosos em seus disfarces

mais idílicos, raspam a cavidade de seus vultos e ossos

até que a lógica se torne obsoleta. Planejam a surpresa

de cada orgasmo. Esboçam uma tirania sem princípio algum.

Os corpos dilaceram o personagem que imaginamos ser.

Ruminam a presunção do imprevisto. Retalham o sonho.

Interrompo, suprimo, rasgo cada músculo adormecido,

sua estrofe de peles, franquia de nervos, o âmago delirante.

Reconheço no mar o dormitório de suas fraudes e visões.

E os ensaco até que não me detenham mais, até o limite

em que não mais necessite deles, ocultos atrás de mim.

 

 

INFERNO

 

Quando me vendaste pela primeira vez me querias feliz,

pois o gozo da inexperiência nos torna a alma suculenta.

Depois fui tua tantas vezes capturada pela escuridão

que já não sabia quem era ou de que forma me ofendias.

Aos poucos me tornei viciada em um mesmo enigma,

uma mesma carta ilegível, proibida de despertar

como uma sonâmbula refém de um pesadelo em crise.

A ideia que faço de teu rosto é um retrato frustrado,

as minhas súplicas submetidas à tua frialdade malsã.

Quantas vezes me pareço mesmo tua de onde me vês?

Como sabes que somos iguais se não nos questionamos?

Todo rogo é uma incriminação, me diz o teu silêncio.

Eu jamais me senti a tua taça, a imitação de um pecado,

a tortura de um afeto que te marca como um hieroglífico.

Quantas vezes tenho que dizer-te que não me conheces?

Que me faças tua hóstia, carma ou horror inspirado

em um passado de martírios, que me retardes a vida

e me gangrenes a inocência, sei que não me recupero.

O que mais temo é que não me causes mais medo algum,

que não saiamos jamais deste breu carente de motivo.

 

 

DISCÓRDIA

 

O teu postigo às escâncaras me exige renovar as máscaras.

Não posso adentrar teus traumas sendo sempre o mesmo.

Jamais estarias de acordo com as leis de minha permanência.

Tenho que buscar-me outro antes que te habite outra vez.

Tenho que ser muitos até que te evapores e me recries.

Ao avesso, bruscamente desfeita, os rasgos mais íntimos,

o linho na mesa em que te contorces, os véus surpresos.

Como abraças o espelho temendo perder a consciência.

Como trafegas de uma margem a outra de teu devaneio.

As tuas ancas decididas a erradicar o perdão e a glória.

Não me arranques mais de mim sem que eu diga meu nome.

Deixa-me beijar-te como quem faz reflorir nova morada.

Esvaziar a vida como quem exige para si um mínimo de mal.

Distribuir espelhos pelo mundo até que ninguém mais

se reconheça em si mesmo. E ali plantar a mentira sublime

que nos leva a crer que a astúcia é uma ilusão dada a poucos.

 

 

ESPELHO

 

De algum modo somos criados por um insensato pesadelo.

Verificamos a pele, como ela se esconde ou se transforma.

Já a alma nós a mantemos secreta tratando de evitar-se.

Os tormentos portadores de toda libertinagem, o arraial

de culpas que nos escava insônia e medo, o puritano lacre

da vergonha. Nossas formas de comunicação com Deus.

O pandeiro nos observa em conluio com o gel, o vídeo,

um cheiro, um trago, a desgraça anônima da piedade,

ruas cercadas por uma simpatia assustada, nome perdido,

ah como me apego a ti, meu anjo, sem que me reconheças.

As minhas pernas são tuas, o desmazelo de minhas noites.

Não me castigues jamais por inocência ou susto ou cobiça.

Sei como desapareço, embora não recorde quem regresse.

Mudamos de forma ou desgraça tanto quanto de gênero.

Eu te vejo em mim me perseguindo através de orgasmos.

Eu te ergo em vultos que soletram a imobilidade de gozos.

Jamais te encontrei idêntica a meus sonhos em um espelho.

Desde cedo aprendemos a não confiar tanto na realidade.

O que somos é essa fatura do assombro, facção imprevista,

o modo de um dia não sermos mais do que nós mesmos.

 

 

DIA

 

Não sei em quantas me desfaço para ser quem sou.

Convenço-me toda do anonimato para que um dia

quem sabe se revele esse bosque ungido pelo sangue

das formas imprecisas. A minha alma te aguarda

desfeita por três dias, a lua desprendida da cama.

Mas tens que me encontrar sem saber quem somos.

Como dois corpos que se entregam o sexo alternado.

O que tens em mim quando me tocas é uma reza

por fora que roça o íntimo até que o livro se abre.

A grande miséria de Deus não cria volume em nós.

As carnes extraviam o roçado abundante da viagem.

Buscamos o descompasso e o exílio, uma brisa louca

de pálpebras que leem ramos de auréolas e prepúcios,

e onde quero finalmente que estejas sequer soluças.

Continuas dormindo dentro de mim a desmatar-me

os reflexos mais vagabundos, as cicatrizes dormentes

de um sonho, os tímpanos floridos de nosso desejo.

Esgueiro-me todo pelo grande círculo de tuas plantas.

Jamais soube em quantas me refaço para ser quem és.

 

 

ASTÚCIA

 

Arranco teu corpo da imaginação em que ele se depura.

Estamos em um plano de entusiasmo em que as estátuas

se movem e fustigam a indecisão, sem que haja prova

da ocorrência desse crime. Colo a tua nudez por todos

os bancos de uma praça ciente de que não há fronteiras.

Cada migalha de tua pele me olha com seu humor frio,

como uma farsa dedicada à literatura, intriga contagiosa

que se converte em genocídio e implode o montículo

onde se deixam acuar as lágrimas citadas por descuido.

Vultos de lama, sombras curiosas, voos petrificados…

A melancolia com que recorro a teu corpo transtorna

a história e suas cartas borradas e suas camas ardilosas.

Apenas tu és a minha índia, o meu negro, o meu feitor.

O abutre triturado pela injustiça, o açoite afortunado

com que relato as três dimensões de tuas cinzas,

a memória coagulada talvez à espreita da vingança.

Longe da discórdia eu não saberia o que fazer contigo.

 

 

MOTIVO

 

Quantas vezes na mesma página a sombra intermitente.

O mito de tuas plumas e pelos criando meus navegantes.

Por onde me rasgas eu te serpenteio e completo a saga

dos membros salpicados pelo furor de órbitas comovidas.

Um dia eu quis ser apenas imprudente e cobiçar teu gozo.

No instante seguinte eu me despedia de ti, queria outra,

porém que fosse a consequência do mesmo erro inseguro.

Cansei de escalpelar os teus vultos em minhas visões.

Não imprimas em mim o patíbulo terrível de teu olhar.

Eu me arrasto como quem sabe o fulgor da fatalidade,

e ainda te adoro como a sombra repugnante de meu ser.

Quando te abraço diante do espelho não estás refletida.

Ao rabiscar teu nome em minha pele ele se impacienta

e não deixa secar as raízes de um vislumbre improvável.

No entanto, ali estás, e te repetes até que eu reconheça

que fui tantas vezes o abandono piedoso de teu castelo

que já não sei retomá-lo senão por ríspido argumento.

Dá-me o idioma que necessito para vagar sem rumo

ao ermo em que o espelho não reflete mais nada, lugar

em que o inferno já não se sente protegido, oh dá-me.

 

 

LIMITE

 

Anoto alguns segredos de tuas ninharias, sublimes

revelações de seios e tornozelos, fronte e axilas.

O modo como inventas signos em minha pele

ou como as letras sopram a chama de uma vela,

que deixo pousar entre tuas coxas como uma seita.

Decifro a tatuagem de tantos lívidos mistérios.

Montanhas que se movem, voos que beijam o sol,

tarefas especulativas da matéria ao mudar de forma.

Eu jamais resistiria às tuas influências, olhos fixos

em mim enquanto me torno legível em teu íntimo.

Despimos a existência de seus vícios rarefeitos.

Nossas pernas conjugam tratados e dramas

em uma simetria que soma todas as frases do abismo.

 

 

TORMENTA

 

O espanto é feito de repetição. Reage a tudo que se arraste

tentando suplantá-lo. O que ele move dentro de si

é sua excelsa agonia. O espanto cabe menos nele mesmo

do que qualquer outra abstração. Desconhece tanto

as regras que não combina sequer com seu reflexo.

O espanto é um império do que se está por fazer. Não há

substância mais pura e no entanto não há por que sacralizá-lo.

O espanto multiplica nossos corpos até o orgasmo infinito.

Como deslizam as imagens a caminho da impossibilidade

da contagem de sombras e um pátio ardoroso de vísceras

que são as regras que desmatamos a cada sagração da volúpia.

O mundo não guarda rancor por nossos esforços

em nos ausentarmos de suas virtudes ocasionais, ou destrói

o piano quando o improviso está a ponto de sangrar.

Imaginemos uma existência de corpos nus.

A comunhão, os 100 metros com barreira, um assalto.

O calvário do espanto soletrou os aforismos da culpa,

de tal modo que já não evocamos a nós mesmos

quando nos movimentamos dentro do que imaginamos ser.

A todo instante pisoteados pela graça do espanto.

Multipliquemos os corpos, os jogos, a comida, as inscrições,

os nódulos felizes de cada entidade que vislumbramos.

Não somos senão o que absorvemos de nós mesmos.

Corpos sangrando lá fora, veleidades, tumultos residuais.

Não restou nada para suportar o mundo senão idealizá-lo.

 

 

ANONIMATO

 

Reconheço a morada fixa de teus dentes

quando recuo no tempo a buscar as formas

acumuladas entre cortinas e janelas cegas.

Uma pequena touceira de ossos ramosos

espreita o sermão de teus afrescos borrados.

A memória se debatendo contra o vento

mal poderia imaginar onde enterramos

as consequências de nosso amor infligido

pela derradeira anarquia de pincéis e ócio.

Como omitir a ressurreição dos mosaicos

salpicados de sangue, o horror encurralado

e o teu corpo desprovido de asas e cascos?

A dor que me causaste se ergue sem esforço,

retalha o significado de suas vítimas lentas

e sai de cena antes que seja identificada.

Ninguém sabe quanto mal nos causamos.

Tampouco haverá hora propícia ao verbo

para correção ou denúncia, decoro ou pena,

em meio a cores gastas e borrões impulsivos,

rasgão em telas que retratavam o que fomos.

Tais quedas sempre se portaram muito mal.

Jamais reconheceram nosso melhor esboço.

 

 

ENCONTRO

 

A pedra recolhe teu movimento,

enquanto me esgueiro para provar que caibo em tua floração de enigmas.

Fomos inscritos em tuas pequenas moradas lúbricas.

Um mundo de finalidade incerta,

manada de casulos cujo futuro nenhum cronista pode antever.

A tua alma imersa no mel de meus haveres.

O ajuste concupiscente de nossas cruzadas, as torres ávidas por um significado, o exemplo soberbo

de teus ângulos impossíveis.

O esforço da pedra por não deixar-se influenciar

por teus falsos desmaios e horas de espera

enquanto mudavas de cor.

Pequena moita onde o mundo rege a língua que nos dominará.

Pedra erguida acima de tua nudez como fábulas descritas por um sonho que se multiplica em saltos.

O movimento se despe aos olhos da câmara.

Uma rede de impulsos arrasta teu corpo até que reproduzas o sol em teu orgasmo.

Eu leio as tuas frestas arbóreas e o núcleo

de cada ação que emites em direção à minha cobiça.

Os teus enigmas cinzelados olham para mim com uma beleza entusiasmadamente retorcida.

 

 

CRUELDADE

 

Quantas vezes queres ler o mesmo segredo

que deixo escapar de meus suspiros, ou simular

uma frequência de estímulos inundando o ar,

cena possuída por vozes e sombras agachadas?

Quantas? Um sorteio ilimitado de diagramas,

um estoque de incêndios enquanto o fogo

recupera seus promontórios e te curvas

com todas as efemérides de teu orgasmo,

até que se possa ler no urinol o nome outro

com que batizas a pertença de todo o alheio.

Quantas vezes o mesmo lençol e a voragem

de escombros domésticos fingindo cenário?

Quantos rostos queres até me reconhecer?

Por mais que alcance a saliência de teus vultos

mais me suga o anonimato de tuas ínsulas.

Não me importa a hierarquia dos excessos

quando te multiplicas em terras à vista

e a névoa é a única extravagância possível

até que me sintas a tua própria ressurreição.

 

 

CLITÓRIS

 

Começamos hoje bem cedo a recortar

máscaras e espelhos, fugas e anseios,

paisagens em dúvida e objetos indivisíveis.

Tudo no mundo é motivo para a tesoura

abrigar novas mutações e superar a dicção consumida pela repetição.

Cada alma posta no mundo sabe

com quantas anomalias

se chega ao corpo perfeito e seus deuses esféricos.

Recortamos como quem recorda a alma buscando outra fonte pública de refeições.

A alma faminta que se desdobra em lábios

e reescreve a paisagem deixada para trás

por abutres gordos e a imundície do desejo aniquilado.

Árvores, pedras, mar ⎼ o teu corpo se debruça

sempre a um passo do abismo,

queixoso de que não o atinja a tesoura do acaso.

O teu corpo amanhece possuído pelo desejo

de ser a tesoura, o corte e a figura.

As demais aparições que aguardem, até que desperte a cola

de sua noite íngreme e de seus sonhos proféticos.

 

 

PORTAS

 

Ao me debruçar cansado sobre o cume da escalada

um grupo de árvores veio me receber e toda a cena

eu atribuí ao sol refletido no suor, ao palco confuso

em que vultos indistintos repassaram o roteiro que eu

desconhecia por completo. A minha sombra abismada

se deslocava de uma árvore a outra, apalpando

o princípio carnal daquelas formas servis evocadas.

Deslizei o ventre aguçado pela rampa de umas meias,

ergui um joelho até a altura de um ardiloso nariz,

deixei meus seios serem cascalho e nuvem, pó e raiz.

Cheguei a crer na semelhança, antes da noite posta.

Os espectros saltam de um galho a outro e por vezes

esquecemos que apenas devoramos carne e mais carne,

e quando o mundo se refaz é apenas a nossa digestão.

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

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