sábado, 16 de dezembro de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Museu do visionário [escrito a quatro mãos com Berta Lucía Estrada]

 


AS PORTAS DO ABISMO

 

Quando entramos no Museu do Visionário, as enormes salas estavam completamente vazias. Berta e eu, naturalmente, ficamos surpresos com o que logo percebemos que não poderia ser de outra forma. Em outras palavras, o visionário que o museu evoca é aquele que o visita. Este museu exige que sejamos visionários para que ele exista. Alimenta-se de nossa imaginação, dos vislumbres de nossos desejos, das sementes de nossas paixões mais secretas.

Já que a realidade nem sempre é o que tocamos, a visão pode mudar ao longo do dia, como acontece com as diferentes versões da Catedral de Rouen ou da Gare Saint-Lazare de Monet, ou as versões da casa de luz e sombra de Magritte. Sobre a Gare Saint-Lazare, Monet disse o seguinte: Achei que não seria trivial estudar o mesmo assunto em horários diferentes do dia e perceber os efeitos da luz que modificavam de forma perceptível, de hora em hora, a aparência e as cores do edifício. E quanto à Catedral de Rouen, expressou o seguinte: As coisas não progridem constantemente, principalmente porque a cada dia descubro algo que não tinha visto na véspera… Ao final, tento fazer o impossível.

Na realidade, o que Monet queria fazer, pintar, revelar, representar e até intuir é luz. A luz é a principal protagonista nas pinturas da catedral e da estação ferroviária. Monet queria captar, através da tela, o efêmero, queria mostrar na pintura o que uma câmera fotográfica capta, o instante único e irrepetível de luzes e sombras. Já a casa de René Magritte, O Império das Luzes, sempre surpreende, pois, dependendo da luz do dia ou da ausência dela à noite, sua fachada muda, é como se tivesse a capacidade de retirar e colocar peles dependendo de seu humor. Aparentemente, as pinturas representam uma realidade quase fotográfica. Porém, se você observar com os olhos da sensibilidade artística, poderá ver claramente uma atmosfera misteriosa, como se estivéssemos caminhando por suas salas na penumbra, sem saber muito bem o que podemos encontrar ali. O jogo de luz e sombra é uma alegoria do dia e da noite, essa dualidade que faz parte da nossa vida, mas acima de tudo de nossa interioridade, já que suas pinturas refletem quem somos como seres humanos, sempre navegando entre a luz e a sombra. A esse respeito, Magritte disse: Essa evocação da noite e do dia tem o poder de nos surpreender e encantar. Eu chamo isso de poder: poesia. Se acredito que esta evocação tem força poética é, entre outras razões, porque sempre tive o maior interesse pela noite e pelo dia, sem nunca ter sentido preferência por um ou outro.

É possível que o trompe l’oeil seja uma característica da visão, não da imagem. São os nossos olhos que mudam de acordo com a intensidade da nossa sensibilidade, e a imaginação pode brincar com a realidade a ponto de mudá-la. Portanto, quando olhamos para algo, é possível que seja a plenitude do invisível, e que lhe estejamos dando forma de acordo com nossa intuição. Henri Cartier-Bresson nos diz: Devemos treinar para olhar o tempo todo, oscilando entre o consciente e o inconsciente em uma espécie de dança, praticando o desenho imediato, automático e intuitivo.

E se nos lembramos de tudo isso é porque o Museu do Visionário é uma visita, ou uma viagem, como queiram interpretar, ao ventre de um museu onde tudo e nada acontece. Visões, imaginação, intuição, o poder do visionário, são as ferramentas do cérebro humano. Elas nos permitem entrar em um ambiente quase irreal, e ainda, graças às palavras e percepções, podemos tocar e até cheirar.

É uma obra em que passamos a duvidar de sua existência. E talvez não exista, talvez a casa vazia em que entramos seja uma ilusão de estarmos no mundo. Portanto, devemos alimentar sua alma, com móveis, personagens, tramas. Como fazemos com a própria vida. É preciso dar ao mundo uma nova perspectiva a todo momento, porque senão estaremos simplesmente repetindo o que já aconteceu.

Arte, literatura, teatro, poesia, música ou dança são ferramentas ainda mais poderosas do que o mais poderoso dos alucinógenos. A palavra e a imagem são limiares que nos permitem passar de um universo a outro, são pontes que unem a realidade à irrealidade, sem que a segunda se torne menos importante. Pelo contrário, mundos imaginários podem se tornar mundos mais importantes e verdadeiros do que a própria realidade. O poder da evocação, o poder do sono e o estado de semi-vigília podem nos conduzir por terras espinhosas e metafísicas que revelam o outro lado da existência, aquele outro lado que está sempre escondido – esmagado seria a palavra certa –, pela razão. Uma razão simbolizada pelo foco poderoso que costumamos colocar em nossas cabeças para evitar o jogo de sombras. Assim, temos a impressão de estar caminhando em terreno seguro quando, na realidade, somos eternos caminhantes na corda bamba que lutam para não cair no vazio, no nada.

De certa forma, o Museu do Visionário poderia ser uma das muitas imagens de um espelho côncavo encontradas no Museu da Inocência de Orhan Pamuk, ali onde as memórias, do passado e do futuro, encontram milhares, milhões de imagens repetidas, alguns reais e outras sonhadas ou imaginárias. No entanto, mesmo onde as coisas são mais semelhantes entre si, elas mais encontram um ponto de distinção que se alarga como um abismo à medida que nos permitimos ser engolidos por ele. O tempo e a experiência nada podem fazer por esta leitura do infinito, porque só a permanência de uma intuição aberta pode nos garantir a cada olhar com que nos descobrimos em todas as coisas. Desta forma, o Museu do Visionário é um convite permanente para representar este abismo. E não é de outra forma que Lautréamont disse que a poesia deveria ser feita por todos.

 

 

ATO I Até as últimas consequências

 

Quem quer ser protegido deve se resignar a ser protegido até as últimas consequências.

FEDERICO FELLINI

 

O badalo de Deus soa. É a hora em que o público deve se acomodar em suas cadeiras. O primeiro ato está prestes a começar. Pendurado no teto há um telefone e Chinela Alves entra em cena e começa a falar com Le Conservateur, que proclama:

 

LE CONSERVATEUR

Na Europa de Leste, durante a Guerra Fria, em muitos países existia o chamado Gabinete da Normalidade, que investigava crimes inusitados, naturalmente aqueles que prejudicavam a normalidade da Grande Comuna. Com isso em mente, imaginei um personagem chamado Astuto Dramal, que foi ao Brasil enviado pela Bielo-Rússia para identificar os surtos de normalidade e combatê-los. Astuto acaba conhecendo, ou melhor, identificando em suas mensagens criptografadas, Eusébio Ataúde, brasileiro de origem portuguesa, que tratava da contraespionagem, autor do famoso manual de criptografia The Brain in Sophistry. Esperançosamente, você mesma, Chinela, pode compor as improvisações de tal forma que o grilo da raiva não possa cantar sobre as cabeças do público.

 

CHINELA ALVES

Eu começaria com um tiro no vazio e o silêncio que o segue e o supera no mistério. Se foram presos, quem pode imaginar melhor revelar as intenções de um crime que não sabemos se aconteceu: o tiroteio ou o silêncio? É assim que a vida começa: com uma dúvida tremenda.

 

LE CONSERVATEUR

A dúvida é a razão de viver, ela nunca nos abandona. Quando isso acontece é porque já somos partículas infinitesimais, é porque já estamos vagando no ar.

 

 

NERLOCK SHOLMES

Consulte o camarada Josepe Nabo, que trabalhou em uma fábrica de armas nos arredores de Moscou. Acima de tudo, Josepe sabe distinguir entre o disparo e o silêncio.

 

LE CONSERVATEUR

O silêncio é a arma letal mais poderosa. Eles nos levaram a acreditar que Nagazaki e Hiroshima foram bombardeadas. Elas foram realmente bombardeadas pelo silêncio.

 

CHINELA ALVES

O pobre homem atingido terá morrido de susto, antes mesmo da bala o atingir. Eles não acreditam em mim? Eles não sabem que a morte acontece primeiro nos sonhos? Pelo menos ela me visitava com frequência. O que acontece é que eu sempre disse a ela que ainda não era o momento. Até que em um de seus sonhos ela me perguntou bastante irritada qual era o dia certo. Olhei para ela muito séria e respondi: – Estou tecendo uma mortalha, assim que a concluir eu lhe aviso. Ela me olhou espantada e disse: – Você está rindo de mim. Essa é a história de Amaranta. Eu ri, e lhe respondi: – Bem, também pode ser Penélope… Desde aquele dia ela não me visita mais, o que significa que não sonho mais. É terrível não sonhar, não sonhar é um verdadeiro pesadelo.

 

NERLOCK SHOLMES

A bala é mais rápida do que o som. A vítima não ouviu o tiro, nem sabe que morreu. O mesmo acontece com os vivos, que vivem sem saber que vivem.

 

JOSEPE NABO

Esperançosamente, é uma bala de prata, então poderíamos trocá-la por algumas moedas desfiguradas e algumas noites de luvas vermelhas finas.

 

ASTUTO DRAMAL

[Entra no palco de modo furtivo por uma escada.] O conceito de normalidade objetiva é muito amplo. No final, tudo é espionagem e alguns mortos emergem do túmulo do esquecimento e voltam para servir aos seus governos. Ninguém deve tocar naquele pedaço de papel amarelo cuja ponta sai do bolso da vítima. Deixe-me ler: morte ao pássaro. Está criptografado. Alguém tem o manual de Eusébio Ataúde?

 

NERLOCK SHOLMES

Rápido, Chinela. Procure na minha mesa…

 

CHINELA ALVES

Estou saindo com a luz mais rápida… [Sai.]

 

NERLOCK SHOLMES

[Cantando.] À noite que abre sua boca de estrelas…

Eu não olho para ela, eu não olho para ela, porém a amo tanto…

Tanto e tanto que me arrasta para uma cega paixão cega…

 

ASTUTO DRAMAL

[Curvado sobre o falecido.] Você tem que ter muito cuidado com aquelas mortes que lembram a normalidade da vida criminosa nas cidades. Na minha experiência internacional, tenho visto cadáveres que são como signos de outra coisa, como um jogo de aparências em que uma forma assume o significado de outra. Certa noite, em Tel Aviv, encontrei uma mulher nua no chão molhado de leite. Seu próprio corpo era a mensagem, a linguagem criptografada que, depois de muita reflexão, cheguei à conclusão de que era um indício do lugar onde ela trabalhava e que sua morte apontava – agora claro, para minha mente acostumada a tantos enigmas – o motivo e o assassino.

 

CHINELA ALVES

[Retornando.] Só encontrei um livro de cartas medicinais, então para não chegar de mãos vazias, trago uma receita de tremoço.

 

NERLOCK SHOLMES

Você não abriu o livro, a capa era de cartas, para disfarçar, mas o manual era do Eusébio. E o que vou fazer com esses tremoços?

 

CHINELA ALVES

Eu posso fazer uma salada, meu senhor…

 

NERLOCK SHOLMES

Prefiro o grão-de-bico, cuja semente pode ser transformada em chá para entreter a visão. Mas agora, deixe-me ver se me lembro de cor da página que preciso… Acho que posso converter o conteúdo do pedaço de papel em números: morte ao pássaro, vamos ver: muerte al pajarito. E então: muerte al pajarito. Agora para trás: Mate o pássaro, não, Morte ao pássaro, isso, Morte ao pássaro.

 

JOSEPE NABO

Por isso mataram a pobre mulher, como se ela fosse uma espiã… É verdade, Nerlock?

 

NERLOCK SHOLMES

Quando estivemos em Maranguape lembro que recebemos uma mensagem graças a um pombo correio, na qual se lia: Morte ao pássaro, e o significado era que tínhamos que matar o pombinho, porque Eusébio Ataúde estava chegando para o jantar e seu prato favorito era pombo recheado com farinha de amendoim.

 

CHINELA ALVES

Como na Idade Média. Quando um mensageiro chegou a um palácio com más notícias, o rei o decapitou. Excelente método para apagar de uma só vez os problemas do reino ou do além-mar.

 

JOSEPE NABO

Já que não há pombo senão uma mulher, poderíamos recheá-la com farinha de amendoim, o que você acha?

 

CHINELA ALVES

Posso preparar os temperos, um molho especial com lentilhas, tomate cereja, com um pouco de licor de laranja e pera. [Coloca os dedos na boca como se já estivesse comendo.]

 

JOSEPE NABO

Vou precisar de algumas facas afiadas para limpar o corpo e raspar a boceta do cadáver.

 

CHINELA ALVES

Você pode trabalhar sem referir suas ações, seu bastardo…

 

JOSEPE NABO

Não me incomode, minha porcelana carnuda…

 

NERLOCK SHOLMES

Prepare tudo. Estou preocupado porque é assim que as coisas são no mundo da espionagem. Os criptógrafos não sabem mais decifrar mensagens. Uma bomba na catedral pode ser confundida com um conjunto de cortinas no bordel. As horas que passam podem ser lidas como a dose fatal de veneno na comida de um general. [Dirigindo-se a Chinela.]

 

De repente, um telefone começa a tocar com um barulho estridente, os personagens olham para todos os lados. Alguém se aproxima do alto-falante pendurado no teto e percebe que não há som. Os personagens estão atordoados, eles não sabem de onde vem aquele chamado. Um deles então se dirige ao fundo do palco onde está uma lata de lixo e começa a tirar papéis e restos de comida. O barulho fica cada vez mais alto, até que ele tira um dispositivo vermelho com uma buzina e um disco: um telefone antigo da década de oitenta do século XX.

 

O TELEFONE VERMELHO

Olá! Olá! Respondam… Não tenho muito tempo. Preciso falar com Le Conservateur.

 

LE CONSERVATEUR

[Nerlock Sholmes passa o telefone para Le Conservateur.] Ok, ok, eu atenderei. Dê-me esse dispositivo diabólico. [Gesticula como se a buzina estivesse queimando seus dedos. Também está suja, cheia de restos de comida. Cobre o nariz ao falar, e devolve o telefone a Nerlock Sholmes.]

 

JOSEPE NABO

Os copos do prazer estão cheios de ervas aromáticas.

Quem pode vencê-los? Ninguém, ninguém. Ninguém pode com eles…

 

 

 

NERLOCK SHOLMES

[Ao telefone.] Acabei de descobrir que nosso assistente de texto não estará mais seguindo o script. Aguardamos a chegada – a qualquer momento – de nosso homem na KGB. Como sempre, ele virá jantar conosco, como pano de fundo para uma missão. Estamos preparando um banquete para ele. [Silêncio.] Ok. Posso completar esse ato sozinho, mas vou precisar de alguém para a próxima viagem. Acho que o homem com as cartas seria uma boa escolha.

 

CHINELA ALVES

Nosso convidado já está chegando. Que bebida devo servir?

 

O homem de preto entra, com olhar desconfiado, procurando a saída de emergência. Ele não diz uma palavra. Percorre o palco e fica em frente à mesa, que tem o corpo da vítima no centro, coberto de especiarias, saladas e frutas. Pega uma faca, corta um pedaço da coxa e prova. Sua expressão é de intensa satisfação. Ele usa um guardanapo para limpar a boca, olha para todos os presentes e sai.

 

CHINELA ALVES

É isso? Só isto? O idiota nem disse boa noite.

 

JOSEPE NABO

Este é um espião?

 

NERLOCK SHOLMES

É por essa razão que eles podem se mover do céu para o inferno. Seja no Kremlin ou na Casa Branca, no Palácio da Alvorada ou no catecismo, no futebol ou na macumba… Os espiões estão por toda parte. Alguns são convidados à nossa privacidade e compartilham falsas preferências. Como sabemos quais não são espiões? Até os espelhos escondem algo.

 

CHINELA ALVES

Os espelhos devem ser sempre desconfiados, lembre-se do que aconteceu com Alice… e ela era apenas uma menina. Um dia entrei em um banheiro público e encontrei uma mulher discutindo, ela estava muito brava, gritando, gritando, eu não sabia com quem ela estava brigando. Então percebi que ela estava lutando com sua própria imagem. Aparentemente não entendia por que a outra mulher fazia os mesmos gestos que ela.

 

JOSEPE NABO

Pelo menos podemos desfrutar dessa iguaria que nos deram como um presente quase místico. Na verdade, é um elixir dos deuses. Vamos comer antes que esfrie.

 

 

ATO II Os miseráveis ​​são a besta da dança

 

A anarquia é uma estética.

HENRI CARTIER-BRESSON

 

JAVIER MANFURDO

O tarô é a ciência mais exata. Veja o que aparece em uma de suas cartas:

 

BB, a senhora que foi servida à nossa mesa, está sentada agora na escadaria do Alvorada. Ela coloca e tira sua máscara. Ela bate palmas, espiando seus pés vestindo um par de crocodilos. Com os joelhos tenta acariciar o nariz, comprido como a tromba de um elefante e que dança ao som de uma bossa nova. Ela o torce, ri e flerta com ele.

 

ANIBAL VIOLA

Esperançosamente, é possível começar algo assim. Como se a máscara o salvasse de sua própria fraqueza espiritual. Recentemente, encontrei manuscritos apócrifos em uma gaveta do guarda-roupa que revelam que muitos eram os infames que vieram ao Paraíso com uma mentira, um truque, uma carta marcada. Às vezes, o corpo é a única explicação para o abuso dos mitos. É preciso ter em mente que a realidade não vale nada. É como um drama que se repete noite após noite, um palhaço enlouquecido pela comédia e o público que costumava rir alto agora começa a sentir pena dos atores. Comi uma parte do antebraço da mulher e o gosto dela me fez voltar no tempo, me lembrei de minúcias do passado quando consegui bons papéis. Sim, tive minhas noites de glória antes de apodrecer aqui neste teatro suburbano, neste esgoto de personagens devastados pela realidade. As máscaras sempre foram um desastre em nossas vidas. Agora temos que nos livrar delas.

 

JAVIER MANFURDO

Vamos jogá-las no meio do Vesúvio, o magma vai transformá-las no silêncio dos passarinhos, enquanto os bufões pulam nas pedras em chamas, brincam com elas como se fossem malabaristas, riem da tragédia, são comediantes que exploram o centro da terra e depois jogam em nós aviões de papel. Os crocodilos de BB servem como trens de alta velocidade enquanto sobem e descem por seu nariz como uma montanha-russa. Ela está tonta, o mundo gira, tropeça, manca, o olho vesgo se equivoca de tromba, ela sente que uma força enorme a suga para o centro do vulcão.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

[Vindo diretamente do circo russo na cidade.] Um momento, um momento. Antes de jogar a rainha morta no mar, quero um pedaço. Uma coxa inteira, porque onde eu trabalho há muito pouco para comer. Um circo comunista em terras capitalistas… Felizmente para mim, sou uma engolidora de fogo, senão seria como esta pobre mulher. Claro, com menos carne do que ela. [Enquanto puxava a coxa quebrada da esfinge.] Eu ouvi o que Aníbal disse. Eu amo suas palavras e também seu olhar de tigre sonhador. Não tem vinho para molhar a conversa? E esse calor criminoso que está aqui. Talvez possamos desligar as luzes. Digo a mim mesma que a realidade é uma casa abandonada. Uma espécie de refúgio para quem não se reconhece no espelho. Aníbal, meu tigre e seu bastão, por que você não me mostra o vestuário?

 

ANIBAL VIOLA

[Abanando seu rabo de tigre e balançando sua bengala – na verdade um dos crocodilos da mulher do banquete –, com gestos ameaçadores enquanto ri, ruidosamente.] Aqui está você de novo, minha Arlequina Kracovia mais linda e horrível. A engolidora de fogo oriental que mergulha em uma bulimia permanente, ao mesmo tempo em que não despreza uma boa fatia da coxa da mulher que serve de banquete. Preparei para você um traje digno de seu feitio e que deixará um rastro de luzes além da eternidade e que percorrerá os diferentes universos. Seu tecido é feito de poeira cósmica. Aquele que caiu na última visita do Cometa Haley. É da cor do buraco na camada de ozônio e cheira a enxofre das entranhas da lua. Aquece como o centro do sol e avança como um furacão. Tem uma cauda que deixaria o mais bonito dos pavões verdes de inveja. Mas agora… não coma mais, glutona! Agora é minha vez! [E começa a comer com um apetite voraz.]

 

Nesse ritmo de gula, não haverá quase nada da falecida para jogar no Vesúvio. Cabelo, ossos, unhas, alguma gordura corporal magra. Era impossível saber o que restou da sombra dessa mulher. Quando comemos um corpo humano, comemos sua bondade e sua maldade. Mas não sabemos. Arlequina exprime com os olhos um enigma precioso: o que é que ela herdou do espírito daquele cadáver? Do público saem as palavras de uma espectadora: – Posso te ajudar… Ela é uma mulher e Arlequina a convida para subir ao palco.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Qual é o seu nome?

 

SULA MANITA

Sula Manita. Eu sei que o bom tem uma porção equivalente do mau. O que não sei é o que corresponde a essa oposição imperativa.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Não importa. Vamos ver como Aníbal se inclina sobre o cadáver. Sua ousadia logo se tornará a maneira como você trata as pessoas ao seu redor.

 

SULA MANITA

Se alguém pudesse mergulhar em seu olhar, lá em seu âmago, ele certamente encontraria a natureza do mal. Observe seu rosto petrificar. Algo dentro dele gradualmente entende o efeito de sua gula. O diabo se reconhece em nossos corpos.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

E no que fazemos, pensamos, suspeitamos.

 

SULA MANITA

Se ambas amarrássemos Aníbal e o comêssemos vivo, a noite finalmente encontraria o dia, a brancura do dia com o esplendor da noite, você sabe, como nas pinturas de Magritte. E nossos pecados seriam recompensados ​​com uma nova experiência de vida.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

O que você acha se fizermos isso?

 

SULA MANITA

[As duas mulheres amarram Aníbal deitado no chão.] Em Pathankoto, uma cidade em Punjab, adoramos os mortos. Antes de deixarem este mundo, eles comem uma ou mais partes de seus corpos, o que lhes garante uma transmutação fácil. Ao mesmo tempo, podemos nos apropriar de sua inteligência e coragem. Nãããão, não me olhe assim! Seus olhos são selvagens e isso não é bom para os zumbis ao nosso redor. Eles vão arrancá-los para colocá-los no cinto onde milhões de íris estão penduradas! Sim, já sei, todos acreditam que na Índia somos vegetarianos. Isso é para proteger as vacas. O que as pessoas não dizem é que gostamos de nos alimentar de cadáveres. Primeiro por sua carne elevada, e segundo, eu já lhe disse, para poder roubar suas virtudes e suas deficiências.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

[Virando-se para Javier Manfurdo.] Javier, coloque seu baralho de lado e fique conosco. Você se lembra do personagem do Abad Sarnento? Você poderia incorporá-lo para entender melhor o assunto do pecado.

 

JAVIER MANFURDO

Com imenso prazer. A própria ideia de encarnar um cara cujo espírito é o oposto do meu já faz parte da trama. [Agora vestido como o personagem proposto.] A ideia de buscar o poder e a fraqueza dos outros, na alimentação humana, é inconcebível para as religiões. Todas elas defendem apenas uma parte do ser, sua bondade, e consideram que o mal é algo desprezível que deve ser evitado a todo custo.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Mas todos nós também somos a representação do mal.

 

ABAD SARNENTO

Na verdade, somos a representação de nós mesmos aos olhos de Deus. E a face de Deus expressa o bem e o mal. Não importa de que religião estamos falando. O ato de devorar o outro, especialmente quando se trata de comer carne humana viva, é uma das formas mais extremas de compreender a humanidade dentro de nós.

 

 

SULA MANITA

[Ouvimos os gritos de Aníbal.] Ah, o que estava faltando, sua resistência se esvai e agora podemos comer seus gritos, que é uma das partes mais deliciosas do seu espírito. Como uma risada.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Hahahaha… Você vê? Você não pode nos impedir de dar a nós mesmos esse banquete e que nossos espíritos roubem o seu. Você pode gritar, uivar como você está fazendo, você só fará com que cada partícula de sua alma e sua inteligência, sua bondade e sua maldade, passem para nós mais rapidamente. Você sabe, o teatro e o pão-de-deus exigem diferentes sacrifícios. E este é o sacrifício supremo, o que nos permite entrar no Hades ou mais exatamente nos پرديس paerdís persas. Do que você discorda? E quem pediu a sua opinião? Cale a boca, não posso te comer enquanto estou falando! [E bate na cabeça dele.]

 

O golpe na cabeça de Aníbal também define o cenário na escuridão. O público não sabe o que pensar. Um silêncio constrangedor toma conta da cena.

 

 

ATO III Figuras atraídas pela imobilidade

 

Os arquétipos são os mais óbvios, por isso não notamos sua presença. Porque não entendemos o que é óbvio.

CARL GUSTAV JUNG

 

Uma vela é acesa no palco. E depois outra, e outra. Cinco velas acesas. Depois é possível ver o palco nu e cinco atores sentados no chão, espalhados pela cena. Os atores também estão nus e usam máscaras que cobrem o rosto. Um deles começa a falar:

 

LAGARTO

Meu nome é Lagarto. Outrora conhecido como Javier Manfurdo, experimentei certa fama como conhecedor dos mistérios ocultos nas cartas medicinais. Quando minha sombra aparece na posição oposta, alguém pode estar tendo um pesadelo. Este é o enigma mais profundo da teoria dos opostos. Essa teoria foi esquecida porque nossa compreensão do tempo está errada. Qualquer experiência de vida não dura mais do que o momento em que ocorre, nem serve para o próximo passo.

 

CHINELA ALVES

Ora, ora, ora… Lagarto, outrora Javier Manfurdo, está se saindo filosófico, o que você comeu no café da manhã para ser tão transcendental? Enfim, sonhar com você é sempre um pesadelo. É por isso que você acendeu as velas da menorá? Sim, eu sei, não grite, eu sei que você é um judeu sefardita e que aonde quer que vá, você o carrega com você. Só que esta noite você está muito melancólico.

 

SULA MANITA

Não o atormente com seus truques de feira de aldeia. Parece que hoje você prefere lançar fogos de artifício com suas palavras. Lembre-se de que você não é Arlequina Kracovia. Veja, eu danço e pulo com cada clarão que sai de sua boca. É por isso que os celebro como se fossem um antigo conciliábulo. Por algo que servi de modelo na Casa del Sordo. E agora os turistas me elogiam e me pedem feitiços toda vez que me visitam no museu do Prado.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Que noite! Sinto que outros animais saem de cada um de seus corpos. Sula Manita deve ser um canguru, mas com asas, que pode planar nas alturas atingidas por seus saltos. Seu espírito é tão único que não o encontramos em nosso jogo. Essa criatura parece ter saído de um sonho. Chinela Alves é a estranha mistura de formiga e cigarra, com seu canto paciente que viaja pela imensidão dos tempos mais remotos. É uma beleza objetiva. Mas louca, como eu, mais do que eu… Meu desafio é vocês duas tentarem adivinhar qual animal pula do meu peito quando eu respiro fundo.

 

DONINHA

Quando fecho os olhos, as luzes ainda estão no mesmo lugar onde as vi. Uma bonequinha recolhe cada um em sua bolsinha. Uma boneca imóvel, cujas luzes bruxuleantes enganam sobre sua falta de movimento. E de repente, nós a vemos esmagada por uma pisada. Justina, a governanta, repete os desastres de sua rotina diária. É por isso que tenho muito cuidado ao sair de debaixo da cama. Sou uma doninha e tudo que sei é o resultado do que roubo. Em outra época, porém, fui Abad Sarnento e meu código moral não me permitia roubar. Então, eu costumava perguntar, mas as pessoas raramente me davam alguma coisa.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Embora ninguém me tenha perguntado, devo lhes dizer que sou um habitante da noite, ou se preferir, que a noite vive no corpo que adoto quando não há lua. Na escuridão das longas noites de inverno, meu corpo se transforma em um rata-calva-voadora. Sim, eu sei que vocês não acreditam. Além do mais, cada vez que esbarro com Gregorio – que antes de ser uma barata foi Franz, o artista da fome –, ele estremece e me pergunta como pode conseguir outra metamorfose. Ele diz isso porque gostaria de voar comigo acima da cúpula do Amazonas. Ele ignora que vejo seus hormônios piscarem no escuro como se fosse uma libélula – sei que ele quer copular comigo, e isso é impossível, pelo menos por agora. Ou você já viu um inseto copulando com uma rata-calva-voadora?

 

LAGARTO

Agora vamos onde o sonho apoia a queda.

 

CHINELA ALVES

Bem longe caem as noites do topo de sua vertigem.

 

DONINHA

Procuro uma linha que seja uma nova forma de indicar a linha do horizonte na boca do mar. Não posso fazer mais um desejo, é melhor roubá-lo.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Uma noite sonhei que estava subindo uma escada em busca do céu. A certa altura, olhei para baixo e estava quase dois metros acima do solo. Continuei subindo, minutos depois olhei de novo e a distância era a mesma. Fechei os olhos e continuei subindo, por meia hora, até imaginar que finalmente havia chegado ao céu, mas o mirante do jardim ainda estava na mesma altura. E o chão ainda estava no lugar. Como é possível subir tão alto e não chegar a lugar nenhum?

 

SULA MANITA

Encontrei um manuscrito amassado que mostra como as pedras podem voar.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Certamente podemos imaginar tal voo.

 

CHINELA ALVES

Assim como podemos imaginar que somos as pedras.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Não é isso. A ideia é encontrar uma forma de superar o que se espera de nós.

 

LAGARTO

Como alimentar o sonho com pedras até que uma saciedade diferente seja descoberta.

 

DONINHA

Por fim, podemos descobrir onde encontrar outros manuscritos. E roubá-los.

 

SULA MANITA

Talvez em sonhos? Eles não são feitos de arcanos? Eles são realmente insondáveis? Talvez se passássemos um fio da lua por uma das fendas do arco-íris, pudéssemos encontrar a fórmula para que nossos corpos sejam pétreos e voem sem asas? Ou se roubarmos as asas dos dragões? Jorge conheceu um na saída da cidade. O mesmo que queria sequestrar a princesa. Se ele pudesse fazer isso com uma espada que não fosse de Arthur. Por que não podemos fazer isso? Às vezes, basta viver seus sonhos em vez de sonhá-los. Esta é a resposta da esfinge.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Ah!!!!!!!!! A esfinge… Quantas vezes o seu corpo de leão de pedra com rosto de mulher voou da Etiópia para Tebas e daí para Atenas? Cada vez que fecho meus olhos, sinto suas asas batendo em meu pescoço.

 

LAGARTO

Se Cleópatra não a tivesse traído por César, ela nunca teria que encontrar uma víbora.

 

CHINELA ALVES

Quando acordamos e descobrimos essas marcas em nosso corpo, não sabemos o que fazer com a falta de memória. Tenho muito medo de acordar em certas manhãs.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Sim, é como a vida, é melhor vivê-la do que saber dela. Não quero saber quem sou.

 

LAGARTO

Ele era um voyeur, um colecionador de imagens que via por toda parte. Os lagartos também eram pedras. Eu soube no momento em que comecei a ver o quanto que todas as formas secretamente me pareciam. Estou convencido de que somos tudo o que vemos.

 

CHINELA ALVES

E nós somos Deus.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Deuses.

 

DONINHA

Roubamos fogo para construir nossa casa no alto.

 

As três mulheres mudam de nome, pegam as sombras dos animais que ricocheteavam em seu peito. Os cinco atores tiram as máscaras e as colocam no chão. Um breve vendaval desorienta o balanço das velas. O público está em êxtase com a dança das sombras. E começa a improvisar uma música. Um solfejo na mesma velocidade das sombras. Por trás é possível ver uma parede de chamas que protege o sonho eterno de uma donzela chamada Brunhilda, ou é Arlequina Kracovia? A parede ignora que Siegfried, o imortal, será capaz de romper com a ajuda da espada que um anão forjou para ele.

 

 

ATO IV A floresta de segredos

 

Agora a floresta criptografada começa.

A sombra escondeu as árvores.

[…]

A vasta selva tem insônia.

RAUL BOPP

 

O palco é uma escuridão. Enquanto três figuras varrem o chão, uma tela desce do teto. As figuras saem, a escuridão se desvanece, uma floresta aparece na tela, uma paisagem animada. Os cinco animais totêmicos do ato anterior se movem pelo palco na tela. Seus movimentos mudam de acordo com as palavras de cada um.

 

DONINHA

Temos que roubar a floresta e esconder nossos segredos lá.

 

RATA-CALVA-VOADORA

Por que roubar, Doninha? É mais simples esconder os mesmos segredos na floresta sem que ela suspeite do que fizemos.

 

CANGURU COM ASAS

Mas os segredos são secretos apenas se soubermos que existem.

 

LAGARTO

Bem, então vamos deixar a floresta saber que escondemos nossos segredos nela.

 

FORMIGA-CIGARRA

Isso me parece bom, porque é assim que estamos criando uma floresta inquieta. Uma paisagem de permanente curiosidade.

 

DONINHA

Não se esqueça de Diana, a caçadora. Se ela descobrir que temos segredos escondidos em sua floresta, será o nosso fim. Cada vez que o vento levanta minha cauda, ​​sinto que ela está correndo atrás de uma represa. Nunca para, está sempre à espreita. Tenho a impressão de que suas flechas são infinitas. Quanto mais ela atira, mais tem. Ah!… e seu arco está sempre tenso.

 

FORMIGA-CIGARRA

E não se esqueça do cervo que a segue como um dócil galgo. Agora que penso sobre isso, é por causa de Diana e seu cervo que a floresta vive sem descanso. Ela sabe que nenhuma de suas criaturas está protegida de seu olhar. Onde ela coloca o olho, coloca a flecha.

 

LAGARTO

É verdade. Felizmente as árvores me fornecem esconderijos seguros, e nem mesmo seu olhar de águia pode entrar no fundo da minha caverna.

 

CANGURU COM ASAS

Bem… pensando bem, os segredos poderiam ser guardados nos ocos das árvores. Então Lagarto seria seu guardião eterno.

 

RATA-CALVA-VOADORA

Eu posso cuidar deles à noite. Diana, a caçadora, tem medo do escuro. Nunca sai antes que os longos dedos da alvorada apareçam entre os interstícios das folhas. Sim, saberei que só voo à noite.

 

CANGURU COM ASAS

Como as árvores já estão cheias de segredos, agora podem seguir pela mata, a caminho do mar…

 

FORMIGA-CIGARRA

E elas podem cantar… Que noite esplêndida, coalhada pelo som das árvores…

 

DONINHA

No entanto, nem tudo é segredo no coração de uma árvore.

 

LAGARTO

Quão horrível seria uma vida dedicada a segredos!

 

RATA-CALVA-VOADORA

As sombras não teriam mais razão de ser, porque, afinal, tudo nas sombras nada mais é do que rabiscos de segredos.

 

CANGURU COM ASAS

Um prado de mistérios!

 

FORMIGA-CIGARRA

Uma sopa de quebra-cabeças!

 

DONINHA

Eu teria que passar minha vida inteira roubando as chaves desses enigmas.

 

LAGARTO

Esse maluco só pensa em roubar…

 

RATA-CALVA-VOADORA

Com quantos gatos podemos garantir uma nova vida aleatória?

 

A floresta está toda amontoada pela agitação dos animais. O voo baixo do Canguru com Asas é sempre imprevisto. A Rata-Calva-Voadora o segue para qualquer lugar. O frenesi de ambos os impulsiona. O Lagarto improvisa pedras de onde mantém sua ilusão de controle. A Doninha desenterra a folhagem caída em busca de amuletos para sua coleção. A Formiga-Cigarra canta enquanto trabalha e parece ser o personagem mais incompreensível desta fábula das anarquias.

 

FORMIGA-CIGARRA

Eles não entendem o que eu faço, parece que me temem. Às vezes, olham com desconfiança para algumas das montanhas que fazemos todos os dias. Será que eles pensam que meus companheiros e eu poderíamos fazê-los desaparecer em menor tempo do que um galo canta? No entanto, aqui eu continuo em meu trabalho enquanto canto do nascer ao pôr do sol, por algo que os ouço dizer muitas vezes: – O canto da Formiga-Cigarra afasta a chuva. De certa forma, sou o centro meteorológico deles. Será que trabalhar e cantar são palavras inimigas?

 

BOSQUE

Meu nome é Bosque-Floresta-Selva. E apesar de ter tantos nomes, minha função principal é a mesma: proteger os animais que vivem em meu domínio. É verdade que a caçadora acredita que ela é ama e senhora de todos nós. Eu a deixo sonhar, para controlar melhor seus movimentos. Deixar de fazer isso há muito tempo teria matado todos os animais que assombram minhas árvores. É verdade o que dizem, sim, estou inquieto, inquieto por eles. De certa forma, eles são minha linhagem.

 

BÁRVORE

Pertenço a uma linhagem longa e honrada, sou o Pastor das Árvores e tenho uma sabedoria tão antiga quanto as montanhas. Eu sou tão velho quanto o mundo. Já estava aqui antes dele ser criado. O meu conhecimento da alma dos seres que me rodeiam é um poço infinito de luzes, faíscas, de ondas que gravitam no fundo dos meus olhos. Eles sabem disso, é por isso que me amam e é por isso que me temem.

 

SERTÃO

Os mitos não sabem o que fazer com a realidade de seus passos perdidos. Às vezes sentimos a dor de Anteus que não sabe voar ou a angústia de Ícaro, cuja iluminação lhe escapa no último momento de sua fuga. Acho que entender mitos é quase sempre equivocado. Quando sonhamos, as asas não nos servem mais para voar, e o que importa é a força onírica de nossos pés tão leves. As noites são a casa secreta das tempestades. Elas se alimentam de tudo que construímos ou perdemos durante o dia. As noites não conhecem a moral dos dias. E os valores noturnos são um emaranhado de desejos. É por isso que os mitos se recusam a ser uma explicação da realidade. Devem ser sempre o impulso que nos move para frente, mesmo fora de nossa própria realidade objetiva.

 

RATA-CALVA-VOADORA

O tema de tantos sonhos não é outra coisa. O olhar furtivo do nosso humor diante da fragilidade de todas as coisas. Quando durmo coloco minhas botas de viagem e sou todos os mitos que contemplam minha vida.

 

DONINHA

Eu não sonho com asas. Meus voos são baixos e sempre penso em coisas novas para roubar. Outro dia roubei um par de asas. Dédalo mora em uma floresta ao lado e, quando soube do meu roubo, me pediu as asas emprestadas para seu filho. Não sei como vender ou negociar, então deixei que ele levasse o par de asas. Agora eu sonho com as asinhas de Hermes…

 

LAGARTO

As noites são a casa secreta das tormentas – bela frase, Sertão. Um pouco de filosofia e poesia eram necessários. Muitas vezes esquecemos que graças a elas não sucumbimos às trevas.

 

FORMIGA-CIGARRA

E lá continuam… conversando, discutindo… Que festa de preguiçosos, e ainda assim eles dizem que eu sou a desocupada da Floresta. E dá-lhe com as asas… sempre com as asas. Eles não sabem que fui eu que cantei aos ouvidos de Dédalo os segredos do mel e das penas. Fui eu quem lhe disse como ele poderia escapar do labirinto. Na tarde em que ele e o filho voaram, entretive o Minotauro com minhas canções. Bem… entreter… entreter… isso quer dizer muito, a verdade é que isso o estava deixando louco…

 

RATA-CALVA-VOADORA

Agora eu entendo por que você nunca voou, Doninha. Você não apenas rouba, você permite que suas próprias invenções roubem de você. Às vezes você realmente me dá pena.

 

DONINHA

Não é verdade. O que acontece é que o roubo só é importante para os adeptos da propriedade privada. Minha coleção não é uma propriedade, é apenas uma diversão. A Formiga-Cigarra também deve ter cuidado com suas ideias de entretenimento. Porque graças a eles o mundo perdeu sua dimensão filosófica. A Floresta pode ser uma cornucópia de milagres, mas não posso roubar nada dela, porque não considera nada como sendo seu. Como você acha que se possui um milagre? O mesmo acontece com tudo ao nosso redor. Não possuímos nada. Porém, a qualquer momento, algum tolo se considera melhor do que outro. A cada momento alguém compra uma verdade só para si.

 

CANGURU COM ASAS

[Gritos.] Hora de comer, hora de matar a fome!

 

 

RATA-CALVA-VOADORA

Inferno, aquela conversa foi realmente brutal! Você está certo, Canguru. A verdade não alimenta ninguém. Até o espírito prefere uma boa salada de dúvidas.

 

BOSQUE

Você me faz rir!

 

LAGARTO

O sorriso do Bosque é um presente divino.

 

CANGURU COM ASAS

Sim, sim. Mas nada de mais desculpas. Bora comer…

 

LAGARTO

Dito dessa forma, imagino que você vai comer muitas frutas silvestres. As boias são muito difíceis de digerir, mesmo para você que é um glutão.

 

CANGURU COM ASAS

Ha ha ha ha, Você sabe… A floresta está cheia de frutas vermelhas, especialmente neste verão. Então você está convidado. Eu vi você comê-las no meio da noite, então não se faça de inocente.

 

Todos se dispersam e a escuridão gradualmente toma conta do palco.

 

 

ATO V O pavor dos outros

 

Eu juro

Meu comportamento magoado é a consequência

do medo de outros

HUMBERTO DÍAZ-CASANUEVA

 

Em um dos cantos do palco encontra-se uma mesinha com duas cadeiras, como se fosse cenário de um debate. E na outra ponta estão duas pessoas rígidas, vestidas de preto. Uma gaiola de metal está pendurada no teto. De repente, um grito é ouvido vindo da mesa.

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

Juro para você que nos meus sonhos a realidade nunca para de cair. Durante a queda, às vezes dobra suas asas. Uma metáfora à frente, e o que sonhamos parece se confundir com a realidade. Que diabos? O sonho também sabe cair, sem se deixar ferir pela realidade.

 

PASTOR LUCCHERO

Engula sua língua, pássaro do inferno! Na verdade, tudo é sonho, porque o momento não escapa de ser atingido a cada respiração.

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

Sim. Sim. Tudo isso porque não podíamos nos livrar da república das letras. Portanto, nossas ações nada mais são do que devoção ao que está escrito.

 

GAIOLA DE METAL

O sonho da razão produz monstros… Goya sabia muito sobre isso, embora pareça que você o ignora.

 

PASTOR LUCCHERO

Você ouviu isso?

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

É o que estou tentando dizer a você: o sonho tem muitas faces. Às vezes ele até manca, rasteja e acaba exausto. Ele se levanta, tateia seu caminho… É nesse preciso momento que os morcegos tocam nossas testas.

 

PASTOR LUCCHERO

[Para si.] Não tenho lápis nem caderno / escrevo este poema na minha cabeça / para não esquecer o pesadelo da minha existência

 

Enquanto um dos personagens do outro lado do palco murmura:

 

Sou uma raflésia / não tenho raízes / sou um parasita / meu cheiro espanta / os que se dizem meus amigos / atrai necrófagos

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

[Funga com uma cara de nojo.] Qual é o cheiro?

 

PASTOR LUCCHERO

Deve ser o cheiro das luzes deste antigo teatro. É por isso que começo a criar na memória, porque o verdadeiro criador não deve ter nada. Sua criação deve viajar livre de tudo, até mesmo da devoção ao deus-pai.

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

Será? É um cheiro do inferno. Bem, de qualquer modo você está certo, mesmo que o motivo não seja bom para compartilhar com ninguém. No universo das religiões, a criatura tende a se apegar tanto ao pai que subverte a ordem da criação e se torna vítima, como se houvesse um deus que a criou à sua imagem.

 

PASTOR LUCCHERO

Seu nariz não deve ser nada bom, porque você repete tudo o que eu digo.

 

Enquanto outro personagem do outro lado do palco grita:

 

Eu sou a febre que cura todos os males / Venha ver o que resta de mim / enquanto eu acabo de curar os últimos penitentes

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

Nisso tens razão, nós, homens, consideramo-nos deuses e ao mesmo tempo vítimas. Somos divindades quando detemos o poder, não importa se é de um porteiro ou de um governante… E então somos vítimas quando caímos na armadilha desse poder que acreditávamos ser abrangente.

 

PASTOR LUCCHERO

Veja… É por isso que, apesar de tantas diferenças que aparentemente nos separam, ainda somos amigos. Sempre encontramos o vértice que nos permite nos unir, ainda que seja por um milésimo de segundo.

 

GAIOLA DE METAL

Vou provar em uma semana, e em cada uma das suas noites, minha cota de ódio. Lá estão eles, conversando e bebendo. Eles, sem saber, seguem os passos de Malcolm Lowry.

 

PASTOR LUCCHERO

Você ouviu isso? Acho que estou alucinando…

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

Sempre alucinamos, mesmo que todos os holofotes estejam sobre nós

 

Enquanto um dos personagens do outro lado do palco murmura:

 

Somos criaturas tortuosas / tortuosas / vagamos perdidos / em um inverno polar eterno

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

Mas o que acontece! De repente, sinto uma onda de frio gelado [E começa a tremer.]

 

É possível ver algo saindo das barras da gaiola, trilhas de gelo quase invisíveis no chicote do vento gelado lançado em direção a Caminho de Poucas Luzes.

 

PASTOR LUCCHERO

Não sinto nada. Minha alucinação está ouvindo. Talvez seja assim mesmo. Ninguém alucina em todos os sentidos. Cada um desmorona por uma porta, como uma espécie de ponto de fuga singular. O que somos deixa de ser enquanto produzimos um híbrido que é a soma dos axiomas gastos.

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

Como a torre em que perdemos os passos de nossa descoberta do mundo?

 

PASTOR LUCCHERO

Exatamente. E isso porque damos as costas ao outro. O outro é o que nos faz entender que não estamos sozinhos no mundo.

 

Enquanto o outro personagem no fundo grita:

 

As dores não vão embora / uma nova onda de sofrimento sobe de cada corpo retorcido / Eu preciso encontrar a raiz da minha dor

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

Somos seres gregários, ou pelo menos é o que nos dizem o tempo todo, e eu gostaria de acreditar. Porque quando você pensa sobre isso, percebe que fazemos todo o possível para destruir o que comumente chamamos de tribo. Olha onde vivemos… em arranha-céus que parecem um copinho em cima do outro e outro e outro… assim… até o infinito. Os franceses têm uma palavra muito adequada: entassés. E quando menos imaginamos, um furacão ou uma tempestade está chegando, e os arranha-céus, que acreditávamos sólidos e construídos para resistir ao passar dos séculos, desabam como se fossem castelos de cartas.

 

PASTOR LUCCHERO

É verdade o que você diz: vivemos em mundos imaginários, frágeis como a asa de uma borboleta. Talvez seja por isso que seu bater em uma extremidade do mundo gera uma enxurrada de ventos no outro lado do planeta. É quando descobrimos que somos apenas fantoches dos longos dedos do Senhor das Tempestades. Ele brinca conosco como o gato com o rato. Ele precisa que verifiquemos se sua respiração ainda é forte e se tem outros mil anos de existência pela frente. Sem nós ele estaria perdido.

 

GAIOLA DE METAL

[Murmurando.] Vocês são babélicos, idiotas bíblicos que acreditam na vida eterna. No entanto, morrem de medo da morte.

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

Qual Senhor? Ah, o Acaso! É verdade que esse louco faz de nós gatos e sapatos. Mas também é verdade que a contribuição humana para a cena de destruição é imensa. O grupo Guns n’ Roses tem até uma música intitulada Appetite for destroy, que é um retrato perfeito da total falta de consequências de nossas ações.

 

PASTOR LUCCHERO

Esquecemos a cada momento que somos os arquitetos de nosso próprio destino. E o que é pior, derrubamos a única casa que nos serve de refúgio.

 

GAIOLA DE METAL

[Zangado.] Eles montam nos cavalos do Apocalipse e depois reclamam porque caem no centro da terra.

 

Enquanto um dos personagens do outro lado do palco murmura:

 

Sentados na orla do universo / nada contemplam / um furacão domina seus próprios espectros / fogem do fogo / ignoram que são descendentes de Prometeu

 

GAIOLA DE METAL

E não podemos fazer nada pela espécie humana. As exceções sobreviverão, mas sem força para agir. Quando a primeira pessoa da Palavra é substituída pela terceira pessoa, na casa do eufemismo, o homem não aceita suas responsabilidades. Muitos permanecem ancorados na república das letras. Onde fazem ninho as trevas da hipocrisia.

 

PASTOR LUCCHERO

Quem teve a ideia de trazer esta gaiola para a nossa conversa?

 

CAMINHO DE POUCAS LUZES

Quem diria! E essas duas estátuas negras? Talvez estejamos neste palco por muito tempo. Que tal ir para uma cerveja em outro lugar?

 

Enquanto outro personagem do fundo grita:

 

As melhores risadas são aquelas que devolvem o mundo aos seus amantes / é por isso que sempre rimos / principalmente quando muita gente começa a chorar

 

Quando as luzes se apagam, os personagens desaparecem de cena.

 

 

ATO VI Senhor das tempestades

 

O desabamento de um antigo prédio desabitado sem a provocação do homem ou a intervenção do vento tem todas as características de um suicídio pelo tédio.

ANIBAL MACHADO

 

O palco está totalmente escuro. Uma voz é ouvida:

 

Tem alguém aí?

 

Mais uma vez:

 

Tem alguém aí?

 

De repente começa a ouvir-se uma espécie de gemido, aos poucos vai aumentando de intensidade, vai tomando conta do palco, é um grito que parece vir do além.

O palco ainda está vazio.

Uma galinha viva assustada é jogada no palco. Ela tem uma pequena luz pregada em uma de suas pernas. Graças a esta luz podemos ver seus movimentos no palco que permanece no escuro.

A galinha percorre todo o cenário com seu olhar, aos poucos ela recupera a calma. Respira fundo, levanta uma asa, depois a outra, depois uma perna e depois a perna onde a lamparina está fixada, e ela começa a iluminar diferentes partes do palco até iluminar diferentes ângulos dos espectadores. Então ela levanta uma asa novamente e pergunta a eles:

 

SRA. KNORR

Há quanto tempo os homens amordaçados vêm aqui para ver uma galinha? Vocês não sabem que desde a revolução na fazenda não os aceitamos mais? Agora recuperamos a nossa dignidade, não servimos a ninguém e não aceitamos que os nossos ovos e outros acabem no seu prato.

 

O telefone toca no escuro e ninguém sabe onde está. Toca repetidamente e a cada toque ouvimos o som vindo de um lugar diferente no palco.

 

SRA. KNORR

Este telefone aprendeu a voar? Será uma zombaria dos deuses. Por que não posso voar? A última vez que fiz isso foi em Rangoon, e foi para sempre.

 

Finalmente, ele decide usar a lâmpada em sua perna como um telefone.

 

SRA. KNORR

Olá? Sim, sou eu, Sra. Knorr. Que diz? Quer que eu faça caldo de galinha para você? Bem, você deve estar louco. Em que galáxia você mora?

 

Risos são ouvidos no palco e também algumas vaias. O público definitivamente quer ir embora. Como aguentar uma galinha falante e um telefone voador? E essa galinha maluca que afirma ter voado em Mianmar! Agora falta o telefone dizer que quer comprar um terreno nos fundos do palco.

 

O TELEFONE VERMELHO

Não me trate como uma mulher. Eu sou o Telefone Vermelho e preciso de informações sobre os preços desses terrenos vazios nos bastidores. Quero construir barracas para que os governos consultem o teatro quando quiserem colocar um pé em suas mãos.

 

SRA. KNORR

O telefone vermelho que está dormindo há trinta anos no depósito de lixo com vista para o deserto onde os viciados em papoula se refugiam? Bem, é um prazer ouvi-lo novamente. O que acontece é que essas terras não estão à venda. Não, não grite. O que acontece é que o homem que se chama presidente vem todas as noites fumar um charuto de Havana com os amigos, e lá ele geralmente passa a noite.

 

O TELEFONE VERMELHO

Lavas crescem em todos os lugares em antecipação aos vulcões. A fumaça dos charutos El Laguito tem um componente que faz a realidade assumir formas inesperadas. Algo me diz que esse presidente vai morrer asfixiado pelo veneno de sua própria língua.

 

A Sra. Knorr começa a tremer de excitação. Como se alguém finalmente estivesse dizendo o que pensa.

 

SRA. KNORR

Acredito que a escuridão brutal que encontramos no palco é o sinal mais completo de que todos desejam que este homem morra.

 

Ao final, aplausos e vivas à sra. Knorr. A luz em sua perna se apaga e o palco fica escuro novamente.

O que vemos agora é uma cena de fantasma entregue nos braços da maior escuridão. O silêncio também é intenso a ponto de você ouvir a respiração inquieta do público. Quanto tempo as pessoas vão suportar esse silêncio constrangedor? Se a paciência permitir, logo chegará a hora do presidente aparecer para fumar seu charuto.

 

SRA. KNORR

Quantas pessoas saíram?

 

O TELEFONE VERMELHO

Todos, exceto seus amigos de La Amapola. Sem ele, eles seriam órfãos, especialmente não teriam uma maneira de iluminar o deserto com suas alucinações.

 

SRA. KNORR

Essas pessoas nem faziam parte do público. Lá eles foram colocados por ordem expressa do presidente para poderem ouvir o que dizem a seu respeito. Quando ele finalmente chega, todos se reúnem no palco. A casa é assaltada pela violência de sua presença no mundo. Não há luz ainda, porque este é um tempo de trevas. As vozes também não são compreendidas. Existe uma confusão de significados. As reações só podem ser aceitação tácita ou arrependimento pelo curso da história.

 

O PRESIDENTE

[Vem de trás, fumando um charuto.] Minhas palavras querem acompanhar minhas ações. Porém, há momentos em que uma coisa não sabe onde está a outra. Talvez essa humilhação venha do fato de não ser possível deixar a imaginação tão livre, ou seja, os telefones não voam, as galinhas não falam. E esta terra foi amaldiçoada por livre arbítrio. Tudo isso deve acabar.

 

O Senhor das Tempestades ruge e a lava da última explosão do Oka-Toka inunda o palco. O presidente derrete e os espectadores aplaudem. Dona Galinha está de parabéns, mesmo que o homenzinho que já é lava tenha dito que ela não fala.

 

SRA. KNORR

Esta é a primeira destruição do mundo causada pelo tédio. Este pode ser um novo tipo de catástrofe a que teremos que nos acostumar ou estar preparados para enfrentar.

 

Nova onda de silêncio. O silêncio no palco só é quebrado pelo toque do telefone.

 

Tem alguém aí?

 

ATO VII O culto distorce o mito

 

A arte é garantia de saúde mental.

LOUISE BOURGEOIS

 

A cena se passa na sala de um hospital psiquiátrico, é de noite e atrás das janelas há uma enorme fogueira em torno da qual dançam sombras carnavalescas. Na verdade, é um pandemônio que acontece na enfermaria do hospital.

 

LE CONSERVATEUR

Enfim estamos todos reunidos no único lugar que nossa loucura merece! O fogo nos redimirá, e o que é mais importante ainda: graças a ele nossos corpos gravitarão para todo o sempre acima da estratosfera. Nossas cinzas se tornarão as micropartículas que irão navegar de galáxia em galáxia. Seremos eternos. Faremos parte de um segundo, terceiro, quarto big bang. Cada vez que isso acontecer, vamos nos transformar em sujeitos necessários para os novos universos.

 

SRA. KNORR

Seremos divindades?

 

LE CONSERVATEUR

Não, as divindades não são eternas. Hoje ninguém adora Zeus, Atenas, Chia, Baco ou… nem adianta continuar citando os milhões de deuses que foram esquecidos. Faremos parte da criação permanente do cosmos.

 

O TELEFONE VERMELHO

Sem culto! Sem culto!

 

SERTÃO

O culto distorce o mito.

 

GAIOLA DE METAL

[Sobre uma mesa e com algumas fotos em seu interior.] Sertão teme que um dia vá virar mar. Seu destino é sua maldição. É por isso que ele despreza todos os cultos, que são estritamente formas de destruir mitos.

 

O TELEFONE VERMELHO

Sem culto! Sem culto!

 

O BOSQUE

E agora o idiota daquele telefone está tocando como uma buzina quebrada. Eu sei como as falhas humanas podem ser repetidas. O dogma sempre corrompe o instinto.

 

NERLOCK SHOLMES

Seria preciso lembrar Diógenes, ninguém como ele tão lúcido. Saia daí, que me cobres o sol! Você se lembra dessa frase? O culto esconde o sol, impede que a luz do conhecimento ilumine nossos caminhos. Portanto, sempre acreditamos que caminhamos nas sombras. O culto nos empobrece como seres vivos. Você já viu o Lagarto ajoelhar-se diante de alguém? Os animais não têm deuses. Nem mesmo lobos ou orangotangos, que vivem em sociedades tão complexas, o inventaram.

 

O TELEFONE VERMELHO

Sem culto! Sem culto!

 

PERSONAGEM NEGRO 1 / PERSONAGEM NEGRO 2

[Em uníssono.] Que se dane o Telefone Vermelho. Parece até que não tem mais nada a dizer.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Nem mesmo na minha outra vida, onde me chamam de Rata-Calva-Voadora, adoro alguém. E embora existam os velhos ratos calvos, sabemos bem que não são deusas e, mesmo que controlem a entrada do ninho de toda a tribo antes que a luz do sol nasça nas profundezas do horizonte, são apenas guias e devemos respeito uns aos outros.

 

O TELEFONE VERMELHO

E aquelas duas colunas negras que falam apenas graças ao senso de humor de Deus!

 

ABAD SARNENTO

Não fique bravo com eles, Telefone! Mesmo que suas mensagens cheguem quase sempre atrasadas, é importante manter em casa a ilusão de que podemos nos comunicar com o mundo.

 

SULA MANITA

[Vai até a mesa com a gaiola de metal e retira uma das fotos, mostrando a todos.] Nada nessa vida me impressiona tanto quanto essas descobertas que fizemos do passado de algumas pessoas. Deem uma olhada neste palhaço vagando pelas ruas da cidade enquanto recebe subornos nas lojas por onde passa. Quem poderia dizer que um dia seria presidente!

 

O PRESIDENTE

[Engolindo um charuto em estado de choque.] O que diabos é isso! Como essa foto chegou aqui? É mentira!

 

SULA MANITA

Sim, eu sei. Todo o seu passado é uma mentira!

 

LE CONSERVATEUR

Você construiu uma vida sustentada por alguns pontos de interrogação. Ninguém acredita no que você diz. Seus gritos não assustam mais ninguém. Então, alguns deles desaparecem mais tarde naquele jogo de artimanhas que você faz toda vez que tira a máscara com a qual pensa que protege sua vida. Você é apenas um desenho animado que se esgueira pelos dedos da história. Sim, aquela história que tanto lhe assusta, mesmo que você diga que não liga para o que ela vai dizer a seu respeito daqui a cinquenta ou cem anos. Sei que diante da narração dela você se caga de susto. Sim, não abra esses olhos que saltam das órbitas e sujam o chão para nós. Repito: diante da história você se caga de susto, você e seus filhotes.

 

JAVIER MANFURDO

Eu pelo menos rastejo no chão e estou ciente disso. Você, por outro lado, rasteja mesmo se achar que está de pé. Você é um réptil pré-histórico e, ao dizê-lo, insulto meus ancestrais. Portanto, faça o inventário certo. Lembre-se, no fundo da minha toca eu mantenho os arcanos de todos nós. A floresta me ajuda a preservá-los.

 

O BOSQUE

Javier, o que suas cartas médicas dizem sobre o crocodilo?

 

JAVIER MANFURDO

Que se viva o mais longe dos sentimentos turvos desse tipo de animal. Sempre que ele fala conosco é como se dissesse algo que nos escapou, mas na realidade é um jogo, ele quer que façamos um disparate. Quando se move, ele leva um pequeno bando de fanáticos com ele. Sempre será melhor não confiar nele.

 

BÁRVORE

Eu me pergunto como pode ser a vida para alguém com tantos infortúnios.

 

O PÚBLICO

Não importa! Não importa! Morrer! Morrer!

 

PERSONAGEM NEGRO 1 / PERSONAGEM NEGRO 2

[Em uníssono.] Cercados por resquícios do oceano / jogam roleta russa com seu amigo suicida / caminham mais uma vez na corda bamba / esqueceram a vara necessária para se equilibrar

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Você ouviu isso? O verdadeiro suicida de todos nós é o presidente. De minha parte, tentei muitas vezes e sempre falhei. Em vez disso, o presidente comete suicídio a cada segundo, renasce, se metamorfoseia e comete suicídio novamente, e assim por diante… ad infinitum. Como disse Melquíades: O tempo gira e gira. Assim acontece conosco neste mito eterno que é o pandemônio.

 

ASTUTO DRAMAL

[O espião sai de debaixo da mesa onde estava escondido.] O suicídio segue uma linha que sai dos cobertores. Quem comete suicídio morre convencido de seu fracasso. Já soprei nos ouvidos de muitos perdedores que era impossível recuperar a imaginação.

 

EUSÉBIO ATAÚDE

Aqui está a chave para o enigma dos suicídios: o lugar secreto onde a imaginação não pode alcançar. Enviei esta mensagem criptografada a muitos governos na esperança de que as sílabas não perdessem o significado do aforismo: Quem se suicida tem uma imaginação poderosa. Uma ilusão que raramente funcionava.

 

SRA. KNORR

Quantos presidentes cometeram suicídio até o momento? E o que fazer com quem já deveria ter feito?

 

CHINELA ALVES

Acho que a melhor solução é postar nas redes sociais e mandar à imprensa e instituições uma mensagem de condolências pelo suicídio do presidente. Vamos fazer isso?

 

O PÚBLICO

Morrer! Morrer!

 

O público começa a enviar o texto sugerido por Chinela Alves. Em menos de cinco minutos, a notícia se espalhou pelo mundo. Novamente a cobra mordendo o rabo. Antes, era Orson Welles anunciando pelo rádio que alienígenas haviam chegado a Nova York. Agora as pessoas dão gritos de alegria e algumas choram ou fingem chorar.

 

O PRESIDENTE

Meus pobres animais de estimação se rebelam de vez em quando, como n’A revolução dos bichos. Porém, em tempo menor do que leva um galo para cantar, eu pego as cordas com que conduzo o carnaval de que vocês participam todos os dias. Vocês seguem cegamente o papel que dei a cada um. Pobres idiotas! Pensaram que eram donos de suas vidas? Ainda acreditam em livre arbítrio? Que seja! Dancem, dancem a dança macabra: logo irão todos cair!

 

O PÚBLICO

Morrer! Morrer!

 

 

ATO VIII A mesma coisa

 

A pintura é a imagem amada que entra pelos olhos e escorre pela ponta do pincel, e o amor é a mesma coisa!

SALVADOR DALÍ

 

Palco vazio, apenas dois atores caminham da direita para a esquerda e voltam.

 

ANIBAL VIOLA

As noites são para o teatro o que os dançarinos são para a luz. O teatro está para a comédia assim como a vida está para a tragédia. Ou é o contrário? Onde a realidade põe sua mão, o mito esquece seu nome. O que nos faz pensar nas margens perigosas que expomos em cada história que inventamos. Este teatro se perde na torrente de suas lágrimas fugazes. Embora em algumas cenas sejam lágrimas de riso. A dor é o triunfo da imaginação como os cordeiros são o pecado. O que podemos fazer quando os porcos rejeitam as pérolas? Teatro. Isso é tudo que podemos fazer.

 

JOSEPE NABO

Você não acha que as noites também se preocupam com as migalhas de nossos atos desfigurados? Quantas vezes temos que representar aqui essa agonia errante que continua a destruir nossos sonhos? De quantas cenas precisamos para convencer o público de que está tudo bem? Esta tem sido a minha vida, escondido no teatro, abrigando o ardor às vezes incongruente da imaginação.

 

ANIBAL VIOLA

Somos todos atores dessa farsa que é a existência, vivemos quando pensamos que sonhamos e sonhamos quando pensamos que vivemos. A vida é um labirinto de espelhos onde nos perdemos nas inúmeras imagens que refletem nossos rostos e nossos gestos. Ariadne se perdeu com Teseu, ou melhor ainda, Teseu a abandonou em uma ilha inexistente. É por isso que ela não pode nos mostrar a saída do túnel.

 

JOSEPE NABO

E o Minotauro se esconde. A última coisa que eu soube é que em um descuido de Dédalo, a besta terrível comeu o mel com que pretendia colar as penas de suas asas e das de Ícaro. Meu informante garantiu-me que, em desespero, ele astuciosamente atraiu seu filho para a beira do precipício. E quando este olhou para o horizonte, acreditando que finalmente haveria uma fuga, seu pai o jogou no vazio.

 

Uma grande tela desce do teto na parte de trás do palco e quando está na altura certa, começa a mostrar um vídeo com as ondas do mar, em permanente repetição.

 

ANIBAL VIOLA

Na verdade, muitos dos personagens que retratamos são rápidos em declarar que se sentiam muito próximos de nós. Os espelhos conspiram seus enredos, confundindo nossa natureza, seus espectadores. Quem és tu? Tu és eu. E retocamos a maquilhagem para sermos outros.

 

JOSEPE NABO

A vida é uma armadilha infinita, e o crepúsculo um abismo que ruge como ondas furiosas, de modo que nunca o ouvimos. Um abismo que nos atrai como se fosse um ímã. Dirigimo-nos a ele como se fôssemos uma manada de búfalos fugindo de uma multidão de caçadores.

 

Enquanto os dois personagens caminham de um lado a outro do palco, os atores entram de todos os lados e se sentam no chão. Alguns ouvem atentamente o diálogo, outros se deliciam com o vídeo das ondas do mar ondulando em eterno balanço.

 

ANIBAL VIOLA

Um labirinto é uma flor. As linhas de uma flor são como uma espiral. Ou como as linhas em nossas mãos, que não levam a lugar nenhum. Ou abusamos da crença de que um dia poderemos voltar ao passado ou sucumbimos à obsessão de que o futuro vai bater à nossa porta.

 

JOSEPE NABO

As noites são como pequenas pedras atiradas à superfície do lago. Os círculos que aparecem no espelho d'água colidem entre si e impossibilitam tocar o centro invisível de cada um. Esta noite tive um sonho com o mar dando as costas à terra. As ondas cresceram em direção ao centro dos oceanos, formando grandes cadeias de montanhas. Era possível ver tudo isso, mas não havia como tocar. Assim é nossa relação com o tempo.

 

ANIBAL VIOLA

O tempo não é apenas efêmero, mas inexistente, como nos sonhos. Navegamos por ele como se fossem as ondas que você menciona para depois perceber que nunca nos movemos, que permanecemos ancorados como se fôssemos as raízes de uma sequoia tão velha quanto o universo. Aqui estamos há milênios, sentados sob um sol escaldante e sempre com sede. Não sabemos que estamos a mil vidas da fonte da água que acalmaria nossas gargantas.

 

JOSEPE NABO

Ontem à noite fui visitado por alguém que amo desde a minha infância. Eu estava na cozinha, naquela tarefa infantil e doméstica de lavar louça, enquanto ficava olhando pela janela o tempo todo, e de repente ele aparece diante de mim com o chapéu que sempre usava quando cavalgava para se proteger do sol. Ele estava sorrindo e fiquei fascinado com suas palavras. Estava suspenso do outro lado da janela. Veio até mim como se em vez de braços tivesse asas. Ele parecia muito confortável e eu estava olhando para ele como se nunca tivesse partido. Naquele momento acordei e não consegui voltar a dormir. Você sabe, o sonho é o único país onde eu poderia encontrá-lo novamente.

 

ANIBAL VIOLA

Como Einstein já disse, o tempo achatado nada mais é do que uma relíquia que acabaríamos esquecendo em uma caixinha se não fosse a nossa obsessão em controlar a ilusão de nossa existência.

 

JOSEPE NABO

Einstein disse isso?

 

ANIBAL VIOLA

Não tenho nem ideia. Possivelmente não. Mas vejamos como isso se torna importante se pensarmos que saiu da boca de um homem irrefutável. Acabamos acreditando não na mensagem, mas no mensageiro. A assinatura vale mais do que o texto. Graças a isso, a academia tem engordado seus perus de Natal.

 

JOSEPE NABO

Como se uma coisa fosse sempre outra?

 

ANIBAL VIOLA

Não, como se todas as coisas fossem sempre iguais.

 

Todos os atores riem e o público ri. Por alguns momentos, o vídeo emite o som do mar ondulante em um volume muito alto. Até que as risadas diminuem, o silêncio volta e os dois personagens continuam conversando, como se nada tivesse acontecido.

 

JOSEPE NABO

É verdade, neste mundo estúpido, onde só contam as aparências, não importa se o que alguém diz que leu, ouviu ou viu é verdade ou não. Vivemos e recriamos a sociedade do espetáculo, como diria Bourdieu. Em outras palavras, o que dramaturgos ou homens como nós – eternos atores vindos do nada – bem sabemos, que a vida é um teatro permanente. Shakespeare entendeu muito bem. Uma coisa eram as suas obras escritas e outra completamente diferente quando representadas no teatro onde todos os espectadores interrompiam as cenas e os diálogos, dependendo da emoção de que eram presas.

 

ANIBAL VIOLA

Sim, lembro-me da encenação de 1789 daquela grande mulher que é Ariane Mnouchekine. Os atores se misturaram com os espectadores. Todos acabaram fazendo parte da Revolução Francesa. Por algo que ela diz: – O teatro, por algumas horas, é uma utopia. O que a maioria das pessoas ignora é que todos fazemos parte do grande teatro que é a existência humana, e que este mundo em que vivemos, nosso lar verdadeiro, é o único sonho possível. Todo o resto foi levado pelo furacão.

 

JOSEPE NABO

Só no teatro as pessoas podem fazer parte das revoluções. Porém, mesmo no teatro, o público tem que pagar para se divertir com a verdade que, fora do palco, não quer aceitar. Talvez a humanidade ainda acredite na física tradicional, onde há um lado interno e um lado externo. A humanidade só aprendeu a considerar a ambiguidade no abismo que criou entre a fala e a ação. Ora, isso não é ambiguidade, mas sim hipocrisia.

 

ANIBAL VIOLA

A pobre humanidade que se apoia em anátemas vulgares: A corda sempre se quebra no lado mais fraco. / Deus protege o honesto. / O pior cego é aquele que não quer ver. Quanta pobreza espiritual!

 

JOSEPE NABO

Você fala em anátemas?

 

ANIBAL VIOLA

Claro, porque as coisas acabam sendo iguais na ordem inversa. O problema não é que o mal sempre volte, mas que nunca saiu de onde está.

 

JOSEPE NABO

Bem e mal, yin e yang. Os gregos entenderam muito bem, o anátema era o excluído, o amaldiçoado. A religião judaico-cristã assume isso como um possível sinônimo de condenação. É por isso que falam de excomunhão ou anátema. Tudo o que sai fora do rebanho é excluído. O que me faz pensar nos tecidos das mulheres Navajo, elas sempre deixam uma mancha. Elas entendem algo que os cristãos negam, não há perfeição sem imperfeição. Os gregos sabiam que não há existência sem o lado negro. Ou seja, sem o exílio que cada um de nós constrói ao longo da vida.

 

ANIBAL VIOLA

Paulo inventou o mito da vida pela metade. Os cristãos aceitam apenas metade do átomo, seu próprio Deus é um Deus que está faltando uma parte. O diabo, sua outra metade, é o grande anátema da religião. É o mundo do princípio do isolamento existencial. Uma espécie de quarentena que não precisa de vírus, um exílio de si mesmo. O maior pecado cristão é não reconhecer a imperfeição como parte de sua própria existência.

 

JOSEPE NABO

Mas o que diabos é isso? Você está repetindo a mesma coisa que eu disse?

 

ANIBAL VIOLA

Sim, mas tudo é igual. Mesmo se eu disser algo diferente, permanecerá o mesmo.

 

JOSEPE NABO

Você é um cínico! Cada pessoa tem seus próprios pensamentos e naturalmente dizemos coisas diferentes para nós mesmos.

 

ANIBAL VIOLA

Talvez essa seja outra palavra. Talvez a pequena exposição de um conceito. Os dicionários estão cheios de sinônimos e isso nos leva a crer que as coisas mudam.

 

Enquanto os dois personagens se olham, em uma espécie de desafio mental, os demais atores que estavam sentados no chão começam a recitar vários versos, uma espécie de coro polifônico, embora não necessariamente vinculados entre si.

 

– Parece que Aníbal Viola e Josepe Nabo ignoram os segredos que se escondem nas tulipas de lápis-lazúli.

 

– Eles se escondem do terceiro olho do furacão. Eles viram as costas para a morada da divindade de lugar nenhum.

 

– Fiquem quieto! Eles me impedem de ouvir a música dos insetos.

 

– E eu não consigo ouvir a queda lenta da neve.

 

– É por isso que nos esquecemos de decifrar o canto dos pardais.

 

– Nossos pulmões não se lembram do ar do Himalaia. Esquecemos as canções dos bonzos do Tibete.

 

– O silêncio parece fugir de nossos ouvidos e o barulho da hecatombe é uma broca no meio de nossa testa.

 

– Acreditamos habitar espaços insondáveis ​​quando o verdadeiro espaço, a verdadeira distância, está entre uma pétala e outra, entre uma onda e outra, entre uma nuvem e outra, entre uma árvore e outra.

 

– Esquecemos que a sombra de Bárvore nos dá abrigo. É por isso que temos sombra ruim.

 

– Se você não conhece o ninho de um condor você não pode entender o universo.

 

– Os cavalos correm rapidamente por vales e montanhas. A primavera galopa em suas crinas. Eles ignoram que suas disputas fecham as portas da eternidade e os precipitam no vazio.

 

– As águas do ventre de minha mãe serviam de hidroscópio. Lá aprendi a decifrar o enigma da existência e aprendi os segredos do meu destino.

 

As frases são substituídas por murmúrios, sussurros, gemidos… Os dois personagens, porém, continuam a gesticular, silenciosamente, como se nada percebessem. A tela escurece até que o mar desapareça completamente. Logo ela é suspensa até o teto. Os dois personagens saem para um lado do palco. Os atores continuam sua tagarelice e deitam-se no chão. O palco escurece enquanto eles estão em silêncio.

 

 

ATO IX Símbolos do futuro

 

As palavras dos símbolos do futuro estão embutidas nesta parede.

MARIA LÚCIA DAL FARRA

 

SULA MANITA

As sombras estão associadas à queda de todas as coisas. Lie-tse sonhou com o dia em que a sombra fosse um reflexo da espontaneidade. No entanto, nem mesmo o teatro de sombras que surgiu na Indonésia poderia tornar a sombra confiável. Embora seja uma segunda natureza humana, a sombra às vezes é liberada e reflete uma aparência diferente dos atos que nutrem a vida.

 

SRA. KNORR

[Ciscando o chão como uma galinha.] Você quer dizer que as sombras podem tomar uma direção diferente dos movimentos humanos? Era por isso que os gregos faziam sacrifícios aos mortos ao meio-dia?

 

SULA MANITA

Certamente. A hora sem sombra é a única em que o homem é livre para evitar que suas ações sejam distorcidas pelos reflexos da luz…

 

CHINELA ALVES

E nossas sombras, quando voamos ou morremos, para onde vão?

 

SULA MANITA

Você se lembra de Junichiro Tanizaki? Ninguém como ele para fazer o elogio da sombra. Enquanto para os ocidentais o importante é a luz e a perfeição, para os japoneses o jogo de sombras e a imperfeição de uma parede nua ou a solidão de um lugar secreto são a nata do requinte. Tanizaki enfatiza que o mais importante é poder apreciar os objetos desde sua beleza natural, de uma certa forma primitiva, sem nenhum tipo de artifício. Ele ainda afirma que no Ocidente buscamos o centro da luz. É por isso que não nos importamos de ficar sob o foco poderoso de uma lâmpada. Embora os japoneses estejam cientes de que as sombras mascaram a realidade, eles sugerem, não ensinam, não ditam um único conceito ou impõem uma verdade revelada. A sombra é, de certa forma, o único caminho que devemos percorrer.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

As sombras nos permitem duvidar. A dúvida deve ser a bússola de nossa existência. Deve ser o centro de todo pensamento filosófico. Não é de surpreender que a ciência se baseie nisso.

 

SRA. KNORR

Pode-se dizer que nossos pensamentos, ou mesmo nossa energia cósmica, estariam embutidos nas paredes? Quer dizer que nas sombras estaria a chave de nosso devir no mundo? É algum tipo de oráculo? Sempre tivemos Delfos diante desse lugar secreto e não sabíamos disso? Agora entendo por que cada vez que me tranco nele, as estradas se tornam mais transitáveis.

 

CHINELA ALVES

E eu que acreditava que as sombras eram apenas uma espécie de feitiço. É por isso que eu tremia cada vez que enfrentava minha própria sombra.

 

SULA MANITA

Talvez o que acontece com a sombra aconteça com o fogo: a impossibilidade de purificá-lo. Já que não há como queimar a sombra, ela só pode render-se a si mesma. E sua agilidade não lhe permite iluminar-se. Além disso, existe uma sombra que está acima de todas as outras, que é a sombra oculta, a sombra de uma sombra.

 

CHINELA ALVES

Agora você está me confundindo. Se as sombras são alimentadas por luzes, seu interior deve estar totalmente iluminado, certo? As religiões se alimentam de espíritos caídos, então elas estão podres por dentro.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

A sombra é o grande mito da descontinuidade. A Sra. Matsuko Morita, terceira esposa de Junichiro Tanizaki, abriu as portas de sua casa para qualquer pessoa que buscasse um suprimento espiritual. A todos ela disse: – Quando você está bem, é um sinal de que sua sombra se dissipou. Matsuko pode não saber, mas ela estava criando um teatro sublime.

 

SRA. KNORR

A casa da sombra sublime e seu duplo.

 

CHINELA ALVES

Uma casa só para as sombras?

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Sim, o lar dos mistérios essenciais. Lugar sagrado onde a catarse reconhece seu poder sobre todos os seres vivos. No teatro, podemos podar nossas sombras e diminuir as luzes para seu fracasso.

 

SULA MANITA

Podar nossas sombras… uma casa para as sombras… Bela definição de teatro. Nós, atores, sabemos muito bem que ninguém pode escapar de si mesmo. É por isso que os exilados carregam consigo a melancolia, a saudade impregnada na pele, ou é antes impregnada na sombra? Na sombra estão escritos nossos próprios pesadelos, fracassos, medos. A sombra é uma enorme cicatriz que nos lembra a fragilidade da existência. Lembra-nos que o mundo não é perfeito, que se move precisamente entre um terreno de luzes e sombras.

 

ARLEQUINA KRACOVIA

Dizem que quando Alexandre, o Grande era apenas uma criança, ele acompanhou o treinador de cavalos de seu pai, que tentou inutilmente domar um cavalo selvagem. Alexandre observou o animal por dias, até que uma manhã ele decidiu montá-lo. Bucéfalo, aquele que temia sua própria sombra, rendeu-se a Alexandre quando o obrigou a cavalgar com os olhos voltados para o sol. Quando ele desceu do monte, Filipe II da Macedônia, seu pai, lhe disse: – Encontre outro reino, filho, porque a Macedônia não é grande o suficiente para você.

 

As quatro mulheres começam a cantar, improvisadas:

 

SULA MANITA

Quando as sombras nos olham

Destes trapos humanos

 

CHINELA ALVES

Nós vemos a luz acesa

Que é fruto da decepção

 

SRA. KNORR

As luzes que importam são negras

E elas não precisam de suas sombras

 

ARLEQUINA KRACOVIA

As sombras são luzes de um farol

Que carregamos em nossos corações

 

SULA MANITA E CHINELA ALVES

Quantos nomes deixamos para trás

Com suas vozes sempre esquecidas

Quantas luzes que temem suas sombras

E o fogo que nunca acendemos

 

SRA. KNORR E ARLEQUINA KRACOVIA

As luzes que dançam seus nomes

nós as ouvimos no escuro

Trevos queimados na alma

refazem o abismo aos nossos pés

 

SULA MANITA, CHINELA ALVES, LADY KNORR E ARLEQUINA KRACOVIA

Luzes, luzes, luzes, o que elas fizeram com nossas sombras?

Sombras angustiadas devoram o mantra aflito

Quantas horas passamos no fogo cozinhando as dores

E agora não vemos nenhum traço do que restou de nós

 

O que restou de nós

O que restou de nós

 

 

ATO X Não há como voltar para o fim

 

A pintura é poesia silenciosa; a poesia, pintura cega.

LEONARDO DA VINCI

 

Palco vazio. Folhas de papel estampado com guache começam a cair do teto. Existem apenas dois personagens, ambos negros. Um deles tenta apanhar os desenhos.

 

PERSONAGEM NEGRO 1

Olhe para esta bicicleta com os dentes à mostra, foi desenhada por Doninha.

 

PERSONAGEM NEGRO 2

Os desenhos estão assinados?

 

PERSONAGEM NEGRO 1

Sim. Este reproduz o momento exato em que uma gota de sangue cai em um copo d'água. Está assinado como Lagarto.

 

PERSONAGEM NEGRO 2

E aquele outro?

 

PERSONAGEM NEGRO 1

Uma casa sem telhado. Quando olhamos para dentro, o piso é tão profundo que parece um abismo.

 

PERSONAGEM NEGRO 2

Quem assina?

 

PERSONAGEM NEGRO 1

Ah, tinha que ser ela! A Rata da Cracóvia!

 

Personagem Negro 1 continua a mostrar mais duas fotos:

 

PERSONAGEM NEGRO 2

O que aconteceu com todos eles?

 

PERSONAGEM NEGRO 1

Não sei. Talvez tenham sido comidos pelo mar na tela grande. Ou eles caíram em um espelho esquecido no chão. Nunca sabemos o que aconteceu com o futuro.

 

PERSONAGEM NEGRO 2

Meu passado pode ser o futuro de outra pessoa. Como você sabe? Não é à toa que a história é uma cobra que morde o rabo.

 

PERSONAGEM NEGRO 1

O espelho é o abismo em que os atores caem, e os atores são, por sua vez, o abismo em que caem os espectadores. Eles se engolfam. Eles se odeiam e se amam. Eles procuram e se repelem. Eles se curvam e se flagelam.

 

PERSONAGEM NEGRO 2

O palco é o espelho onde são contempladas as centenas de personagens mascarados que se sentam à sua frente e, embora não saibam, os atores mimam seus gestos, repetem suas frases, copiam ou desenham suas vidas. Quando um ator sobe ao palco, é para desnudar os pedaços miseráveis ​​da vida dos espectadores. É por isso que o público os detesta. Eles colocam você diante da fragilidade humana.

 

PERSONAGEM NEGRO 1

Os atores, mesmo depois de passarem pelos espelhos, continuam a respirar o mundo que abandonaram. Eles são as pegadas daqueles que eles deixaram para trás. É por isso que o passado e o futuro são apenas ideias que são inspiradas ou expiradas quando os bonecos à sua frente pensam que respiram. Ignoram que estão apenas mortos, sombras que vagueiam nos túneis dos multiversos.

 

PERSONAGEM NEGRO 2

O que mais podemos dizer? Essa luz é um rugido na carne do tempo, por onde passam as sombras. Os sonhos são as faíscas elétricas da vigília. As coisas se misturam. Porém, a confusão está nos olhos de quem não permite que o mar entre em suas casas. Estamos pintando o universo com as cores de um vento errante que tudo move.

 

PERSONAGEM NEGRO 1

A destruição nos protege do que não queremos ver. A pintura cega dos cupins. A colheita visionária de símbolos que só conhecem simetria no absurdo. Temos que engolir o vento.

 

PERSONAGEM NEGRO 2

Sim, temos que engolir o vento.

 

O palco escurece de repente. Silêncio. Uma pequena luz incide em seu centro. Alguém da plateia se aproxima dele. Há uma folha de papel presa à luz, onde pode ser lida (a pessoa mostra o papel aberto ao público):

 

CORTINA






 


BERTA LUCÍA ESTRADA (Colômbia, 1955). Poeta, dramaturga, crítica literária e de arte, autora do blog El Hilo de Ariadna do jornal El Espectador (Colômbia). Membro do PEN Internacional/Colômbia. Ela é uma livre-pensadora, feminista, ateia e defensora da alteridade. Publicou treze livros, entre eles La route du miroir (poesía, 2012), Náufraga Perpetua (ensaio poético, 2012), Trilogía de la agonía (comprende las siguientes obras: El museo del Visionario, Naufragios del Tiempo y Las sombras suspensas –escritas a quatro mãos com Floriano Martins, 2021).

 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

 

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