(Noite fria de
11 de agosto de 1999. Teatro da Biblioteca Mário de Andrade,
BURROUGHS 1 – Não há nenhum outro lugar para
se ir
O teatro está fechado
Cortem linhas de música
Não há nenhum outro lugar para se ir
O teatro está fechado
Cortem linhas de palavra
Esmaguem as imagens de controle
Esmaguem a máquina de controle
(Burroughs 2
inicia um diálogo com Burroughs 1. Conferencista permanece arrumando seus
papéis.)
BURROUGHS 2 – Sim, a vida é
um corte. Toda vez que você caminha rua abaixo, ou mesmo olha pela janela, sua
consciência é continuamente cortada por fatores fortuitos. Tento tornar isto
explícito cortando palavras. Esta é a minha teoria sobre arte. A arte está
alertando o homem sobre si mesmo, ressaltando os fatos atuais da percepção.
BURROUGHS 1 – Mas diga-me, meu caro Burroughs,
acaso a capacidade de ver o que temos à frente é uma forma de escapar da
imagem-prisão que nos rodeia?
BURROUGHS 2 – Decididamente, sim. Porém
muito pouca gente tem esta capacidade, e cada vez serão menos, conforme passe o
tempo.
BURROUGHS 1 – Por que?
BURROUGHS 2 – Por uma razão: a absoluta
barreira de imagens a que estamos submetidos acabará por nos embotar a todos.
Recorde, em comparação, que há cem anos havia poucas imagens. As pessoas viviam
em um cenário mais simples, em um meio ambiente camponês, tropeçavam em poucas
imagens, e essas poucas eram vistas com bastante clareza. Porém se alguém é
bombardeado, sem descanso, com a propaganda inscrita nos caminhões ou táxis que
passam…
BURROUGHS 1 – …com as imagens da televisão e
dos jornais…
BURROUGHS 2 – …sim, com as imagens da
televisão e dos jornais, esse alguém acaba embotado. Forma-se uma névoa
permanente diante dos olhos e já não se vê nada.
BURROUGHS 1 – E o que se deveria ver?
BURROUGHS 2 – Que não há
nada interposto entre uma pessoa e a imagem. Um granjeiro vê suas vacas de
verdade: vê o que tem diante de si e o vê bem claro. Não é um problema de
hábito: o problema é que algo se coloque entre alguém e a imagem, de tal forma
que o impeça de vê-la. Não quero dizer que o granjeiro tenha nenhum tipo de
identificação mística com a vaca, mas sim que sabe quando a vaca não está bem.
Ele sabe tudo o que se refere à vaca, a forma com que a vaca lhe é útil e como
se encaixa em seu meio ambiente.
BURROUGHS 1 – Todo esse desejo de clareza
não entra em conflito com as infinitas possibilidades exploratórias de teu
método de criação?
BURROUGHS 2 –
Quando a gente fala de clareza na escritura, de uma forma comum, refere-se à
trama, à continuidade, à apresentação, ao nó e ao desenlace, à adesão a uma
ordem lógica. Porém as coisas não ocorrem por acomodação a uma ordem lógica.
Nenhum escritor que pretenda aproximar-se do que verdadeiramente ocorre na
mente humana e no corpo de seus personagens pode restringir-se a uma estrutura
tão arbitrária como a ordem lógica. Joyce foi acusado de ser ininteligível, e
note que se limitava a apresentar apenas um nível de fatos mentais: o monólogo
consciente sub-oral. Penso que é possível criar acontecimentos polinivelados e
personagens que o leitor possa compreender comprometendo seu ser orgânico.
(O diálogo é
interrompido pela voz de Burroughs 3, à direita.)
BURROUGHS 3 – A estrada é tortuosa e
improvável. A passagem hoje fácil é a ratoeira de amanhã. O caminho óbvio, a
maior parte das vezes, é o caminho dos tolos. E cuidado com os caminhos do
meio, os da moderação, do bom senso e do cauteloso planejamento. Contudo, isso
não quer dizer que não haja sempre tempo para a moderação, o bom senso e o
planejamento. Pode-se afirmar que qualquer plano de imortalidade que não
dependa do prolongamento da vida do corpo físico, do seu remendo e conserto,
como se faz com carros antigos, é a pior forma de planejamento que existe. É
como apostar em um favorito e dobrar a aposta quando ele perde. Em vez de uma
pessoa se separar do corpo, a pessoa passa o tempo a afundar em seu próprio
corpo, tornando-se assim cada vez mais dependente dele: dependente de cada
respiração roubada aos pulmões transplantados, de cada ejaculação do renovado
falo, de cada excreção dos intestinos novos. Só que o caminho das
transplantações atrai idiotas que se fartam. Assim é que são muito poucos os
peregrinos que chegam vivos à cidade da Última Oportunidade. Preguiça,
indulgência, álcool, vícios de toda ordem, velhice, estupidez, tudo isso são
obstáculos. Mas a falta de uma coragem especial é a principal barreira, a única
que é insuperável: a coragem de enfrentar o opositor, o inimigo final. Sem tal
coragem, nunca se chega à Última Oportunidade. Nem se consegue voltar ao
princípio. E para se sair da Última Oportunidade é necessário ser o vencedor de
um duelo travado até à morte.
BURROUGHS 1 – Quem fala?
BURROUGHS 2 – O que diabos importa?
BURROUGHS 1 – Quantos de vocês estão aqui?
BURROUGHS 2 – O que diabos importa?
BURROUGHS 1 – Quantos?
BURROUGHS 2 – Nem se consegue voltar ao
princípio.
BURROUGHS 3 – Nós, poetas e escritores,
somos muito arrumadinhos. Desaparecemos nas noites de vaga-lumes, um passeio e
um apito de trem ao longe. Vivemos dentro da empregada que descasca um ovo
cozido para alguém convalescente há muito curado. Vivemos no último e no maior
dos sonhos da humanidade.
BURROUGHS 2 – O que diabos importa?
BURROUGHS 1 – Quem fala?
BURROUGHS 3 – Eu vivia em um quarto no
bairro nativo de Tânger. Não tomava banho havia um ano, nem trocava minhas
roupas ou as tirava do corpo, exceto para espetar uma agulha de hora em hora na
carne de madeira fibrosa e cinzenta do vício terminal. Nunca limpei ou espanei
o quarto. Caixas de ampolas vazias e lixo se empilhavam até o teto. Luz e água
tinham sido cortadas havia tempo por falta de pagamento. Eu não fazia
absolutamente nada. Conseguia olhar para a ponta dos meus sapatos por oito
horas seguidas. Só me movia quando terminava a provisão de droga. Se um amigo
ia me visitar, eu ficava sentado, sem me importar que ele tivesse entrado no
meu campo visual, ou que saísse dele. Se morresse ali, na minha frente, eu ficaria
a olhar para o meu sapato, à espera de poder revistar seus bolsos. Você não?
Pois eu nunca tinha droga suficiente. Ninguém jamais tem.
BURROUGHS 2 – Eu estava simplesmente pronto
para me acabar.
BURROUGHS 1 –
Alguém raramente aparecia?
BURROUGHS 2 – Tolo.
BURROUGHS 3 – O que
restava para ser visitado?
BURROUGHS 2 – O que diabos realmente
importa?
(Apagam-se as
luzes sobre as duas cadeiras, enquanto no centro do palco, mais ao fundo, um
filete de luz incide sobre um caixote no qual se encontra um boneco de
ventríloquo. Ouve-se então a voz de WB, em off, lendo “T’ ‘ain’t no
sin”. Enquanto isto Burroughs 3 perambula por todos os lados do palco, imitando
com deboche o jeito de WB ler. Ao final do poema, ouve-se sua própria voz,
relendo o poema de maneira bastante caricatural. Ao concluir a leitura, retorna
a seu lugar.)
(T’ ‘AIN’T NO SIN)
When you hear sweet syncopation
And the music softly moans
T’ ‘ain’t no sin to take off your skin
And dance around in your bones
When it gets too hot for comfort
And you can’t get an ice cream cone
T’ ‘ain’t no sin to take off your skin
And dance around in your bones
Just like those bamboo babies
Down in the South Sea tropic zone
T’ ‘ain’t no sin to take off your skin
And dance around in your bones
(NÃO É PECADO)
Quando você escutar
tão doce síncope
E a música
lamentar-se suavemente
Não é pecado
arrancar sua pele
E dançar ao redor
de seus ossos
Quando ficar muito
quente e desconfortável
E você não
conseguir um sorvete de casquinha
Não é pecado
arrancar sua pele
E dançar ao redor
de seus ossos
Assim como aqueles
agitados garotos
Na área tropical
dos mares do sul
Não é pecado
arrancar sua pele
E dançar ao redor
de seus ossos
(Apaga-se a luz,
permanecendo acesa apenas a luminária sobre a mesa. Tem início a primeira parte
da conferência. Quando da leitura dos trechos entre parênteses, Burroughs 2 se
movimenta em seu lugar como se fosse ele que estivesse falando. Durante toda a
conferência será projetado um vídeo com uma montagem de alguém escrevendo,
recortando, colando textos e imagens, exceto durante os trechos entre
parênteses quando o foco do projeto é coberto por uma mão.)
CONFERENCISTA – O que se passa em sua mente?
Nada comparável a isso. As ideias distintas que podemos ter acerca do mesmo
símbolo. Duas ou mais noções da origem de um mesmo objeto. Descartes havia
chamado a atenção para as ideias do sol que podemos ter em nossa mente, ou
seja, as ideias acidentais e as ideias conceituais, criadas a partir de algumas
noções que trazemos inatas em nós.
(Descobri que quando estou preparando uma página de meu álbum de
recortes, quase invariavelmente sonho à noite com alguma coisa relacionada a
essa justaposição de palavra e imagem. Na verdade, o sonho não passa de certa
justaposição de palavra e imagem. Em outras palavras, tenho me interessado
precisamente pela movimentação de palavra e imagem em linhas de associação
muito, muito complexas. Faço uma porção de exercícios naquilo que chamo de
viagem no tempo, tomando coordenadas, tal como o que fotografei no trem, o que
eu estava pensando naquele momento, o que estava lendo e o que escrevi. Tudo
isso para ver o quanto eu consigo me lançar de volta, completamente, naquele
determinado ponto do tempo.)
Segundo a astronomia, não existe matéria nova no universo, estando todas
as formas constituídas dos mesmos elementos já conhecidos por todos nós. O que
vale para classificar as estrelas talvez possa ser igualmente útil para
entender a mente humana.
(Os álbuns de recortes e a viagem no tempo são exercícios para expandir
a consciência, para me ensinar a pensar em blocos de associação mais do que
Se eu retorno a distantes ambientações de minha memória, percebo formas
idênticas à que concebo hoje, vibrando em um mesmo ritmo, o que certamente me
permite especular sobre as formas que um dia conceberei como aparentemente
novas.
(O que quero fazer é aprender a ver mais o que está lá fora, a olhar
para fora, atingir tanto quanto possível uma completa percepção do que nos
cerca. A maioria das pessoas não vê o que está acontecendo à sua volta. Esta é
a minha principal mensagem para os escritores: pelo amor de Deus, mantenham
seus olhos abertos. Percebam o que está acontecendo à sua volta.)
A criação artística alcança um estágio além do pessoal, porque depende
de um processo de ordenação que é principalmente inconsciente e, portanto, não
desejado deliberadamente pelo artista. O fato da criação artística ser um
produto do cérebro, isto não significa que deva ser voluntária. O cérebro opera
de uma maneira misteriosa que não está sob o controle voluntário. Às vezes
devemos deixá-lo em paz para que funcione ao máximo.
(Se Nova Express é um cut-up de muitos escritores? Joyce
está lá. Shakespeare, Rimbaud, alguns escritores de quem as pessoas não ouviram
falar, alguém chamado Jack Stern. Há Kerouac. Não sei, quando você começa a
fazer essas dobraduras (fold-in) e recortes (cut-up),
você perde a conta. Genet, claro, é alguém que admiro muito. Mas o que ele está
fazendo é prosa clássica francesa. Ele não é um inovador verbal. Também Kafka,
Eliot; e um dos meus favoritos é Joseph Conrad. E Richard Hughes. Quem mais?
Espere um minuto, vou checar os meus livros de coordenadas para ver se há
alguém que esqueci.)
Haveria então uma lei da causalidade, o que fundamentaria a noção de
unidade orgânica do universo. O recorte de um cérebro ou de uma estrela não se
distinguiria pela substância de que é feito, mas sim pelo movimento que
proporcionaria a tudo que estivesse à sua volta.
(Esse não é o modo como ocorrem as coisas. Sinto que a construção
aristotélica é uma das grandes algemas da civilização ocidental. Os cut-ups
são um movimento em direção à derrubada disso.)
Os arquétipos que o poeta concebe durante seus sonhos ou estados de
possessão provêm de seu próprio inconsciente, e tornam-se conscientes ao
perceber, escrever ou recordá-los.
(As pessoas me dizem, “Ah, é tudo muito bom, mas você o conseguiu por cut-up”.
Digo que isso não tem nada a ver, como eu consegui. O que é qualquer texto
senão um cut-up? Alguém tem que programar a máquina, alguém tem que
fazer o cut-up? Lembre-se de que primeiro fiz uma seleção. De centenas
de sentenças possíveis que poderia ter usado, escolhi uma.)
Como arrancar de cada coisa o julgamento que lhe afirma um sentido
único, uma espécie de dimensão funcional? A suspensão do juízo seria uma
maneira pertinente de ver uma coisa sem perceber outra, ou seja, de igualar
visão e percepção. No entanto, o homem optou por sobrecarregar cada coisa de um
sem número de sentidos, uma espécie de acumulação obsessiva de sentidos. O que
pode ser visto como um novo desafio para a imaginação: restaurar o sentido
original de cada coisa, soterrado sob demãos e demãos de ideias acidentais e
conceituais.
BURROUGHS 1 – Em tudo o que tenho ouvido, há
momentos em que percebo a presença de Burroughs. Mas em outros…
(No telão as
imagens em movimento são substituídas por uma fotografia deformada de WB.)
CONFERENCISTA – Não se trata apenas de uma
mudança deliberada de estilo. Estamos tendo sempre que rastrear todos os casos
em que se perdeu o contato com o autor. Mas quem é de fato o autor? Com que
profusão sangra sobre um texto o espírito do autor? Com que intermitência? Eu
lhes digo, rapazes, já ouvi muito papo furado, mas ninguém pode se aproximar de
um autor iludido pelo conhecimento de sua obra? Diante da abundância da vida,
não se pode mais considerar as noções de roubo e autoria. Em certa ocasião nos
disse John Cage: “muitas coisas, onde quer que se esteja, o que quer que se
faça, acontecem ao mesmo tempo. Elas estão no ar. Pertencem a todos nós.” E em
outra oportunidade, disse ainda: “nossa poesia agora é a consciência de que não
possuímos nada”. Então alguém indagaria: o que teria Burroughs com Cage, tão
distantes, segundo se pensa. Mas que ligação possuía ou queria possuir
Burroughs com os beatniks? Acaso seu desconstrucionismo não o
identificaria mais com o poeta e compositor John Cage? Ou seria um absurdo ver
em ambos uma confluência? O próprio Burroughs chegou a considerar a
experimentação musical de Cage a mais radical utilização do cut-up
dentro daquela linguagem. Em outro momento disse não haver afinidade estética
entre sua obra e os integrantes da Beat Generation. Mesmo que The soft
machine seja, no dizer de Burroughs, uma expansão de suas experiências
sul-americanas, com prolongamentos surrealistas. Mesmo assim. Montado e
remontado obsessivamente, este romance deixava claro que Burroughs não se
interessava pelo espontaneísmo isolado que cultivava Kerouac. O autor de On
the road rejeitava o uso da técnica, considerando apenas a emoção. Defendia
que a única coisa que ele e sua arte tinham a oferecer era a verdadeira
história daquilo que viu, e como viu. Kerouac não achava que Burroughs houvesse
produzido algo de atraente, exceto por The naked lunch, embora este
livro o colocasse na condição de o maior escritor satírico desde Jonathan
Swift. Para ele, Burroughs abusava da fragmentação. Dizia que o cut-up
não passava de um velho truque Dadá, um tipo de colagem literária. Dizia
Kerouac: "Apesar disso, ele consegue bons resultados. Gosto dele quando é
elegante e lógico, e por isso não gosto do cut-up, que tenta nos ensinar
que a mente é fragmentada." Sim, e também considerava Junkie um
clássico. Segundo ele, melhor do que Hemingway. Junkie não era bem um
livro, dizia Burroughs, que via como insatisfatórios os resultados de sua escrita.
A Burroughs interessava, tanto quanto a Cage, a introdução de elementos ao
acaso, desde que ensaiados à exaustão. Pensavam igual no que diz respeito à
necessidade de se sugerir um certo desmazelo. É o que se verifica nos escritos
de Cage ou na música de Frank Zappa, por exemplo. Um desmazelo elegante e
lógico, se me permitem. E não haveria também um desmazelo elegante e lógico nos
improvisos inseridos nas partituras de Duke Ellington? Uma mescla de ritmos
periódico e aperiódico, desde que observado que este pode incluir aquele e
nunca o contrário. Era o que defendia Cage, ressaltando que o que importa não é
desligar o relógio, mas sim eliminar a forma como o usamos. Não há, portanto,
cerebralismo excessivo em Cage em relação a Burroughs. Todos os espaços
preenchidos com sua arte são consequências de um método semelhante. Anotações
sobre ritmos, proporções, sonhos, simetrias, percepções. Corte, montagem,
edição rigorosa dos elementos constitutivos. Arte combinatória. A virulência
poética de Zappa tem a mesma origem, basta ver como combina música erudita,
jazz, fragmentos do teatro do absurdo. Segundo Zappa, a arte afirma-se na
citação, na referência, na maneira de abordar realidades preexistentes. Em
todos eles, verifica-se uma mescla eficaz de invenção e provocação.
(O projetor é
desligado.)
BURROUGHS 1 – E os beats?
CONFERENCISTA – (Não me associo com eles.
Trata-se de uma simples justaposição, mais do que de uma verdadeira conjunção
de estilos literários ou de objetivos gerais. Kerouac, Ginsberg e Corso são
três bons amigos meus, há muitos anos, porém não fazemos a mesma literatura nem
compartilhamos os mesmos pontos de vista. Eu diria que a importância literária
do movimento beatnik não é talvez tão determinante como sua importância
sociológica, que certamente mudou o mundo e o povoou de beatniks.
Derrubou todo tipo de barreiras sociais e se converteu em um fenômeno mundial
de terrível importância.)
BURROUGHS 3 – Ouçam as batidas de meu
coração.
CONFERENCISTA – Evidente que Burroughs não queria que sua obra fosse
confundida com uma estética beat ou
surrealista. Sentia a necessidade de individualizá-la, destacando-a entre a de
seus pares. Também não participava do idealismo messiânico de Allen Ginsberg,
ao qual opunha um corrosivo niilismo. De qualquer maneira, não se mostrava
interessado nessa polêmica entre escritores. Ao contrário, recriminava que
Breton tivesse dedicado parte de sua vida às cartas de insulto a outros
escritores, considerando perda de tempo as discussões literárias, polêmicas, manifestos
etc. O mesmo em relação ao que Kerouac havia chamado de abuso da fragmentação.
Burroughs estava consciente de seus riscos e acreditava manter controle
absoluto da situação. Recorria ao exemplo do Finnegans Wake, de Joyce,
quando queria abordar a armadilha em que pode cair a literatura experimental
quando se converte em puramente experimental. Tal observação é válida,
sobretudo, para aqueles que pensam que toda a obra de Burroughs, a partir de The
naked lunch, se encontra definida unicamente pelo cut-up, ou seja,
que tenha recorrido tão-somente a essa técnica. Burroughs soube mesclar a
costura aleatória de imagens à narrativa linear convencional, aplicando vários
métodos e técnicas, em um processo experimental consistente.
BURROUGHS 3 – Vamos, ouçam. Ouçam as batidas
de meu coração.
BURROUGHS 2 – Se vamos demasiado longe em
uma direção, o que ocorre é que não se pode voltar e então ficamos ali em
perfeito isolamento, como aquele antropólogo que desperdiçou os últimos 20 anos
de sua vida na controvérsia sobre as batatas, que consistia em saber se as
batatas eram originárias do Novo Mundo ou se haviam chegado da Indonésia
flutuando. Isto durou 20 anos, durante os quais escreveu cartas mordazes a
várias publicações antropológicas especializadas atacando aqueles que se
opunham ao seu ponto de vista em tal controvérsia. Enquanto isto, todos
acabamos esquecendo qual era mesmo a sua tese sobre as malditas batatas.
BURROUGHS 3 – Nunca refutar
ou dar resposta às afirmações da crítica, por mais absurdo que seja o que se
escreveu nela. Nunca dar ao crítico azo a ensinar-nos a nós, vigários, o
padre-nosso. Ou, como se diz em gíria tauromáquica, não deixar a crítica
ensinar ao matador como se faz uso da muleta. Em circunstância nenhuma se
deverá investir contra o casaco da crítica, mesmo que ele tenha sido tecido com
o fio das distorções desmoralizadoras e das falsidades. A arte de escrever
críticas desmoralizadoras é um exercício de magia negra aplicada. Quem as
escreve pode perfeitamente provocar à toa associações desagradáveis que
comprometam o livro, ao insinuar que ele não é importante, mas sem dizer
exatamente porquê. E, ao fazê-lo, evitar muito cuidadosamente a evocação no
leitor de quaisquer imagens ou ideias claras e distintas que possam, elas sim,
captar toda a sua atenção.
CONFERENCISTA – São truques em trânsito,
recorrentes, esgueirando-se para dentro da percepção atrofiada do leitor. Não
constituem um exercício crítico, mas antes um equívoco construído.
BURROUGHS 3 – A lei de Poetzel diz que o
imaginário onírico exclui a percepção consciente enquanto favorece a percepção
pré-consciente. A hipótese freudiana de que o caráter neutro da percepção
pré-consciente a permite disfarçar material que, em condições normais, não
escaparia à atenção do organismo censor dos sonhos leva a que os afetos
desagradáveis sejam atraídos pela percepção pré-consciente. Há de fato uma
correlação entre evocação pré-consciente e cume do desagradável. Charles
Fischer afirma que os sonhos têm tendência para escolher os pormenores
insignificantes do estado de vigília.
BURROUGHS 1 – Entendida a criação artística
como um sonho involuntário, não haveria aí um risco de tornar interessante todo
e qualquer sonho, toda e qualquer escolha de pormenores insignificantes à luz
da vigília? O que seria arte? E o que não seria?
CONFERENCISTA – Mas não se trata de
definição. Pode-se até dizer que a arte é a concentração das dissimilitudes
conceituais do que seja insignificante à luz do sonho e da vigília. Porque a
arte é irredutível a uma maneira pela qual o mundo é percebido. Ela é a soma de
todas as percepções.
BURROUGHS 3 – Completamente perdida está a
noção de tempo.
CONFERENCISTA – Não importa que esteja
completamente perdida a noção de tempo.
BURROUGHS 3 – Completamente.
BURROUGHS 1 – Não importa que o homem tenha
sido quebrado em sua maneira de ver, ler, enfim, de perceber o que está à sua
volta?
CONFERENCISTA – Não no sentido de uma
temeridade de encarar o que se tem pela frente. O homem é também o porteiro do
Inferno que idealizou. Na verdade, um inferninho de subúrbio.
BURROUGHS 3 – É óbvio que o porteiro,
irlandês da gema, fica ressentido com a insinuação de que alguém possa sequer
admitir que ele tenha deixado entrar no prédio um cão sem licença. Afinal, ele
é o porteiro.
BURROUGHS 1 – Não entendi. O que isto tem a
ver?
CONFERENCISTA – O que?
BURROUGHS 1 – Pode repetir?
BURROUGHS 2 – Não sei para onde a ficção
normalmente se dirige, mas estou me dirigindo deliberadamente para toda aquela
área do que chamamos sonho. O que é um sonho precisamente? Certa justaposição
de palavra e imagem. Leio em um jornal alguma coisa que me lembra ou que tem
relação com alguma coisa que escrevi. Então recorto a fotografia ou o artigo e
colo em um álbum de recortes. Em certo sentido, o uso especial de palavras e
imagens pode conduzir ao silêncio. O que quero fazer é aprender a ver mais o
que está lá fora, olhar para fora, atingir tanto quanto possível uma completa
percepção do que nos cerca. Samuel Beckett quer ir para dentro. Antes ele
estava em uma garrafa e agora está na lama. Eu aponto na outra direção: para
fora.
CONFERENCISTA – Eis o que busca
deliberadamente Burroughs: a percepção do que nos cerca.
BURROUGHS 3 – O escritor só pode escrever
sobre uma coisa: o que está diante de seus sentidos no momento em que ele
escreve. Sou um aparelho de gravação. Não pretendo impor história, enredo,
continuidade a ninguém. Na medida em que obtiver sucesso nesta gravação direta
de certas áreas do processo psíquico, poderei ter uma função limitada. Não pretendo
entreter ninguém.
BURROUGHS 1 – Quando você já tem a mescla ou montagem, o que faz? Segue
as sugestões que lhe oferece o texto ou o ajusta ao que quer dizer?
BURROUGHS 3 – Ele.
(Burroughs 3
aponta para Burroughs 2.)
BURROUGHS 1 – Sem dúvida. Ele.
BURROUGHS 3 – Psiu.
BURROUGHS 2 – Diria que sigo as sugestões
que me oferece o novo arranjo do texto. Esta é a função mais importante do cut-up.
Às vezes pego uma página, fragmento-a e consigo uma ideia totalmente nova para
uma narração linear, prescindindo do material fragmentado, ou pode ser que
apenas aproveite uma ou duas frases.
BURROUGHS 1 – Inconscientemente?
BURROUGHS 2 – Não tem nada de inconsciente;
é uma operação muito precisa. O sistema mais simples é pegar uma página,
cortá-la vertical e horizontalmente pela metade e depois recompor as quatro
partes. Agora, é uma forma de cut-up bastante ingênua e simples, que
serve apenas para obter alguma ideia de recomposição das palavras da página
BURROUGHS 3 – É um homem metódico e de
memória fotográfica.
BURROUGHS 2 – Claro que, pensando bem, The
waste land foi a primeira grande colagem cut-up, e Tristan Tzara
também tinha feito alguma coisa nesse sentido. John dos Passos usou a mesma ideia
nas sequências de The camera eye. A construção aristotélica é uma das
grandes algemas da civilização ocidental. Os cut-ups são um movimento em
direção à derrubada disso.
BURROUGHS 1 – Não seria uma obsessão sua por
fundar alguma coisa? Uma obsessão pela inovação verbal?
BURROUGHS 3 – Quanto tempo leva um homem até
aprender que não pode nem quer desejar o que quer? É preciso estar no inferno
para se poder ver o céu. Vislumbres, clarões de alegria serena e intemporal,
uma alegria tão velha como o sofrimento e o desespero. O velho escritor já não
conseguia escrever porque tinha chegado ao fim das palavras, ao fim daquilo que
pode ser feito com palavras. E depois?
BURROUGHS 1 – E depois?
BURROUGHS 3 – E depois, Burroughs?
(Apagam-se as
luzes sobre as cadeiras. Burroughs 2 dirige-se a um caixote sobre o qual se
encontra uma máquina de escrever. Pega uma cadeira jogada em um canto do palco,
ao fundo, senta-se e começa a martelar a máquina. Enquanto isto, Burroughs 1
sobe ao palco e acende algumas velas espalhadas por várias partes. Ao falar,
segue se movimentando de um canto a outro. Apaga-se a luminária sobre a mesa.
Logo os quatro Burroughs iniciam um rápido diálogo.)
CONFERENCISTA – Acaso as palavras não são
objetos secretos e intocáveis?
BURROUGHS 1 – A linguagem é essencialmente
mistificação.
BURROUGHS 2 – Serei um polvo?
BURROUGHS 3 – As palavras não são sagradas.
CONFERENCISTA – O que fazer com tudo isso?
BURROUGHS 1 – As palavras são necessárias.
BURROUGHS 2 – Eu sou o que sou / O que sou
eu sou.
BURROUGHS 3 – Tudo
depende do resultado.
CONFERENCISTA – Eu sou o artista
BURROUGHS 1 – Por que estamos aqui?
BURROUGHS 2 – Serei um polvo?
BURROUGHS 3 – Eu
sou a palavra apagada.
CONFERENCISTA – Tu não és senão um livro que
foge de si mesmo.
BURROUGHS 1 – A barata de Kafka fugiu
apavorada.
BURROUGHS 2 – Sinto que vou dar à luz um
horrível inseto.
BURROUGHS 3 – Tudo
depende do resultado.
CONFERENCISTA – Tu és o livro invisível.
BURROUGHS 1 – Eu sou tua alma.
BURROUGHS 2 – Eu sou o que sou / O que sou
eu sou.
BURROUGHS 3 – Tudo
depende do resultado.
(Uma trilha de
rangidos se mescla ao barulho das teclas da máquina de escrever. O telão
apresenta sequência de recortes, jogo de palavras, sobreposição de textos. Logo
Burroughs 2 tira uma folha de papel da máquina. Novo diálogo entre eles.)
BURROUGHS 1 – O que estamos fazendo aqui?
Qual a continuidade disso?
BURROUGHS 2 – Que merda é essa?
BURROUGHS 3 – Possessão é como isso é
chamado. Algumas vezes, uma entidade salta dentro do corpo. Os contornos
estremecem em uma geleia amarelo-alaranjada, e mãos se movem para estripar a
prostituta que passa ou estrangular a criança do vizinho, na esperança de
amenizar uma crise habitacional crônica. Como se eu estivesse normalmente aqui,
mas sujeito a sumir uma que outra vez. Mentira! Eu nunca estou aqui!
BURROUGHS 1 – Vocês nunca estão em parte
alguma…
BURROUGHS 3 – Escritores mencionam o
doce-doente cheiro da morte, enquanto qualquer viciado poderá dizer que a morte
não tem cheiro. Ao mesmo tempo, um cheiro que corta a respiração e detém a
circulação do sangue. Incolor não-cheiro de morte. Ninguém pode respirá-lo e
cheirá-lo através de róseas circunvoluções e filtros de sangue negro. O cheiro
da morte é, definitivamente, um cheiro, e a completa ausência de cheiro… A
ausência de cheiro fere o olfato em primeiro lugar, porque toda a vida orgânica
tem cheiro. Sente-se a suspensão do cheiro como os olhos sentem a escuridão, os
ouvidos, o silêncio, o sentido de equilíbrio e de orientação, o cansaço e a
falta de peso.
BURROUGHS 2 – Que merda é essa?
BURROUGHS 3 – Eu cuspo em cima do Deus dos
Cristãos. Quando o Deus Branco chegou à América, trazido pelos espanhóis, os
índios acorreram com oferendas de fruta e bolos de milho e chocolate. Em
retribuição, o Deus Branco decepou-lhes as mãos. Não foi Ele o responsável
pelas ações dos conquistadores cristãos? É claro que foi! Todo o Deus que se
preza é responsável por aquilo que fazem seus adoradores e fiéis.
(Acende-se a luz
da luminária. Enquanto Conferencista lê essa primeira fala, Burroughs 1 segue
apagando todas as velas. Em seguida, retorna a seu lugar indefinido na plateia.
Durante essa primeira fala, Burroughs 3 se agita em sua cadeira, como se fosse
ele que estivesse falando.)
CONFERENCISTA – (Afinal foi descoberto que
Deus não queria que nós fôssemos todos iguais. | Estas foram más notícias para
os governos do mundo que pareciam em oposição à doutrina da servidão separada e
controlada. A humanidade deveria ser feita mais uniformemente. Se o futuro
funcionasse. | Vários caminhos foram procurados para que ficássemos todos ao
mesmo nível. Mas infelizmente a igualdade não foi conseguida. | Foi por esta
altura que alguém veio com a ideia da criminalização total, baseada no
princípio de que se todos nós éramos delinquentes poderíamos finalmente ficar
iguais, até certo grau, aos olhos da lei. | Os nossos legisladores calcularam
sagazmente que a maioria das pessoas era demasiado preguiçosa para praticar um
verdadeiro crime. Por isso, novas leis foram feitas para tornar possível a
qualquer um violá-las a qualquer hora do dia ou da noite, e uma vez
desrespeitadas as leis nós seríamos todos do mesmo grande e feliz clube, ali
mesmo, junto ao presidente, os mais glorificados industriais e as grandes
cabeças do clero de todas as vossas religiões preferidas. | Criminalidade total
foi o maior ideal do seu tempo e foi grandemente popular, exceto para aquelas
pessoas que não quiseram ser delinquentes ou criminosas. | Por isso,
naturalmente tinham de ser todos levados a isso por truques… O que é uma das
razões pela qual a arte foi finalmente declarada ilegal.)
(Todas as velas
já se encontram apagadas. Tem início a segunda parte da conferência. Surge no
telão, apenas durante esta primeira fala, outra foto deformada de WB.)
CONFERENCISTA – Burroughs defendia não haver
uma descrição acurada de um livro. Sempre há maneiras diferentes de olhar a
mesma coisa, justificava. Uma prova disto é que as críticas feitas a The
naked lunch, de que se trata de uma escritura pornográfica, jamais se
aplicariam à obra de Hieronimus Bosch, embora o próprio Burroughs considere
íntima a similitude entre o que descreve em seu livro e o que pinta Bosch. Além
disso, não julgava demasiado importante o tema ou as condições em que se
escreve. Ou se tem êxito ou não se tem. O produto artístico, como dizia,
sustenta-se ou não tão-somente por aquilo que é. Escrever sob o efeito de
drogas não deve ser motivo de julgamento acerca do valor de uma obra. O mesmo
em relação ao assunto de que trata. Certa vez declarou que jamais escreveria em
função do leitor, e que continuaria a escrever mesmo diante da absoluta certeza
de não haver leitor. Continuaria a escrever por companhia, por estar criando um
mundo imaginário – sempre imaginário – no qual gostaria de viver.
(Breve silêncio.
Burroughs 2 se levanta, e se dirige ao Conferencista, pondo-lhe seu chapéu na
cabeça e postando-se de pé, às suas costas. Um gemido distorcido da guitarra
acompanha esse movimento. Ao cessar, Conferencista retoma sua fala, sempre
antecedido de um grito de Burroughs 1, vindo de várias partes do palco.)
BURROUGHS 1 – 1953: Junky.
CONFERENCISTA – Viciados adoram ver
televisão. Billie Holiday disse que sabia que estava largando as drogas quando
deixou de gostar de ver TV. Ou então eles se sentam e lêem um jornal ou uma
revista e, por Deus, o lêem de ponta a ponta. Conheci um velho drogado
BURROUGHS 1 – 1959: The Naked Lunch.
CONFERENCISTA – Na verdade, ele foi escrito
principalmente em Tânger, depois de eu haver me curado com o Dr. Dent, em
Londres, em 1957. Voltei a Tânger e comecei a trabalhar sobre um monte de
anotações que tinha feito em um período de anos. A maior parte do livro foi
escrita nessa época. O submundo marginal foi exatamente o que pretendi criar.
Um tipo de folclore bunda, de botequim, de cidade pequena, do meio-oeste, muito
a minha própria formação. Esse mundo era uma parte integral da América e não
existia em nenhum outro lugar, pelo menos não da mesma forma.
BURROUGHS 1 – 1960: Minutes to go.
CONFERENCISTA – Minutes to go, que
incorporou pela primeira vez os experimentos de cut-ups, converteu-se em
um livro profético. É evidente que há algo de errado com o próprio conceito de
dinheiro. Cada vez custa mais comprar menos. O dinheiro é como a droga. A dose
que basta para a terça-feira não será suficiente na quarta. Uma vez, o herdeiro
de uma conhecida estirpe de banqueiros me contou um segredo de família. Quando
um jovem banqueiro alcança certo estado de responsabilidade e conhecimento, é
conduzido a um quarto tomado de retratos familiares em cujo centro há um
banheiro dourado. Terá que ir ali todos os dias para defecar até que se dê
conta de que o dinheiro é merda. E o que come a máquina monetária para
transformá-lo em merda? Come a espontaneidade, a vida, a juventude, a beleza,
e, sobretudo, come a capacidade de criar. Come qualidade e caga quantidade.
Houve um tempo em que a máquina comia com moderação de uma despensa bem
surtida, e o que comia era substituído. Agora a máquina devora mais depressa, e
muito mais depressa do que se pode substituir o que come. Esta é a razão porque
o dinheiro, por sua própria natureza, vale menos cada dia. Chegará um dia em
que o dinheiro não será nada, porque não restará nada para que o dinheiro
compre. O dinheiro eliminará a si mesmo.
BURROUGHS 1 – 1961: The Soft Machine.
CONFERENCISTA – O corpo humano, na
realidade, tem duas metades. As duas metades não são iguais. O lado esquerdo e
o direito não são iguais, não somente porque a maioria das pessoas utilize mais
a mão direita. O lado direito do cérebro, se a pessoa é destra, está
praticamente
(Burroughs 2
toma seu chapéu da cabeça do Conferencista e retorna a seu lugar. Um gemido
distorcido da guitarra acompanha esse movimento. Ao cessar, Burroughs 1 irrompe
com uma pergunta.)
BURROUGHS 1 – O que sente pelas mulheres?
BURROUGHS 3 – Um personagem de Joseph Conrad
as definiu melhor do que ninguém. Diz ele que as mulheres são uma perfeita
calamidade. Creio que foram um erro básico e que todo o universo dualista
nasceu a partir desse erro. As mulheres já não são necessárias para a
reprodução.
BURROUGHS 1 – Não foi Artaud quem disse que
a sexualidade é uma barreira que impede a aproximação do homem e da mulher?
BURROUGHS 3 – Não me interessa essa
aproximação. Não a vejo como barreira. Creio que toda a orientação anti-sexual
de nossa sociedade está basicamente manipulada por interesses femininos. Porque
manter submersa a sexualidade faz parte de seus interesses. São os interesses
das mulheres que são anti-sexuais.
CONFERENCISTA – The naked lunch
chegou a ser considerado por Norman Mailer como um trabalho alucinatório
escrito por um gênio. Por sua vez, Burroughs admite que jamais o teria escrito
sem haver passado por aquele incidente da morte de sua mulher. Certa vez
declarou sentir-se forçado à conclusão apavorante de que nunca teria se tornado
um escritor sem a morte de Joan. Disse então: "Vivo sob a ameaça constante
de possessão, uma necessidade constante de escapar da possessão, do controle.
De maneira que a morte de Joan me pôs em contato com o invasor, com o espírito
feio, que me manobra em uma luta vitalícia na qual não tenho a escolha de não
participar."
BURROUGHS 2 – Bill, você se interessa por
insetos?
BURROUGHS 3 – O velho escritor vivia em um
vagão reconvertido ao pé do rio, em um depósito de lixo. O lixo na realidade
era um ferro-velho pertencente a uma companhia para a qual ele trabalhava na
condição de guarda. Comandante de um depósito de ferro-velho. Por vezes punha
um boné de velejador. O escritor já não escrevia. Tinha um bloqueio mental.
Acontece.
(Durante toda a
fala que segue o telão reproduz uma foto-biografia de WB.)
CONFERENCISTA – 11 de agosto de 1997. Poucos
minutos atrás ouvi as notícias sobre a morte de William Burroughs. Nascido em
fevereiro de 1914, Burroughs cresceu
BURROUGHS 3 – O velho escritor disse.
CONFERENCISTA – Como disse?
BURROUGHS 2 – Toda a minha obra é dirigida
contra aqueles que estão determinados, por estupidez ou por desígnio, a fazer
explodir o planeta ou torná-lo inabitável.
CONFERENCISTA – Como o pessoal da
publicidade…
BURROUGHS 2 – Como o pessoal da publicidade…
estou interessado na precisa manipulação da palavra e da imagem para criar uma
ação, não a de sair para comprar uma coca-cola, mas a de provocar uma mudança
na consciência do leitor.
BURROUGHS 3 – Eu trabalho para o buraco
negro
Onde nenhuma lei é válida.
BURROUGHS 2 – Os velhos romancistas, como
Walter Scoth, passavam o tempo a escrever para se livrarem das dívidas…
louvável… em um escritor a tenacidade é atributo precioso. Por isso que Bill
desata a escrever para se livrar da morte.
BURROUGHS 1 – Da morte?
BURROUGHS 2 – A morte, segundo ele, equivale
a uma declaração de falência espiritual… Tem de se ter o cuidado de evitar esse
crime que é o encobrimento de fundos e rendimentos… Um inventário
suficientemente detalhado mostra muitas vezes que os fundos, os rendimentos e
os valores colaterais são consideráveis e que a declaração de falência afinal
não se justifica. Um escritor tem sempre de ser meticuloso e escrupuloso no que
respeita às suas dívidas.
BURROUGHS 1 – E qual tem sido seu trabalho?
BURROUGHS 3 – Eu trabalho para o buraco
negro
Onde nenhuma lei é válida.
Trabalhando para o buraco
Eu faço uma mula parir
Sou espião não convidado
Alma errante sem dado
Irrompo aqui
Irrompo ali
Não tenho meta humana
Sou singular
Não tenho eu humano
Humano algum paga meus impostos
Ou liberta meu eu
Sou fechadura sem chave
Uma singularidade
Eu trabalho para o buraco negro
Onde nenhuma lei é válida.
BURROUGHS 1 – Em que consiste tal
singularidade?
BURROUGHS 3 – Há trinta anos Burroughs
escreveu um livro intitulado O rapaz que esculpia animais de madeira. A
história dizia respeito a um rapaz aleijado que esculpia animais de madeira e
lhes dava vida através de certos rituais masturbatórios. Quando as criaturas
voltaram a ser de madeira, então conseguiu dar-lhes uma vida final através de
sua própria morte. Os animais fugiram e espalharam-se. O livro o tornou famoso.
Foi cruelmente atacado e extravagantemente elogiado. Burroughs nunca mais
escreveu.
BURROUGHS 1 – Nunca mais?
BURROUGHS 3 – O velho escritor já não
conseguia escrever porque tinha chegado ao fim das palavras, ao fim daquilo que
pode ser feito com palavras.
BURROUGHS 2 – Nunca se possui verdadeira
coragem antes de se perder a coragem. Mas perder de modo abjeto, completo…
desatado a fugir, rastejar. E não há alteração que se compare à da coragem
reconquistada. E por isso é que é quase sempre fatal.
BURROUGHS 1 – E como se transcende?
CONFERENCISTA – E se não há mais nada para
se transcender, por que então perambular por aí, à espera do quê?
BURROUGHS 1 – Como?
CONFERENCISTA – É o que diz precisamente um
trecho de seu romance As terras do poente…
BURROUGHS 3 – Psiu…
BURROUGHS 2 – Nunca se luta frontalmente
contra o terror. Essa de termos de nos dominar é uma grande merda. Quanto mais
nos dominamos, piores as coisas se tornam. Deixem o medo entrar e observem-no:
de que cor é? Que forma possui? Que nos encharque e se despeje. Dar um passo
atrás, isso sim. Fingir que não o vemos. Agir normalmente, como se fosse banal.
CONFERENCISTA – Não resta dúvida de que o
terror agudo e o aborrecimento mortal são duas coisas incompatíveis.
BURROUGHS 2 – [virando-se para Burroughs 3]
Quer fazer esse merda se calar.
BURROUGHS 3 – [virando-se para
Conferencista, põe um dedo na boca, pedindo silêncio.]
BURROUGHS 2 – Há imensas maneiras de nos
distanciarmos do medo. O melhor é ficar calado e deixar o medo falar. A morte
não gosta de ser vista de tão perto. A morte tem sempre de extrair
reconhecimento surpresa: “Tu?!” É a última pessoa que se esperava ver e, simultaneamente,
quem mais poderia ser?
BURROUGHS 3 – A
morte…
BURROUGHS 1 – Quem
é?
BURROUGHS 2 – Quem
mais poderia ser?
(Apagam-se as
luzes sobre as cadeiras, acende-se o filete de luz sobre o boneco de
ventríloquo. Ouve-se então, em off, a voz de Burroughs lendo “That’s the
way”.)
(THAT’S THE WAY)
That’s the way the
stomach rumbles
That’s the way the
bee bumbles
That’s the way the
needle pricks
That’s the way the
glue sticks
That’s the way the
potato mashes
That’s the way the
pan flashes
That’s the way the
market crashes
That’s the way the
whip lashes
That’s the way the
teeth gnashes
That’s the way the
gravy stains
That’s the way the
moon wanes
CONFERENCISTA – É assim que a lua míngua
É assim que o molho mancha
É assim que os dentes rangem
É assim que o chicote açoita
É assim que o mercado quebra
É assim que a frigideira chia
É assim que a batata amassa
É assim que a cola gruda
É assim que a agulha pica
É assim que a abelha zumbe
É assim que a barriga ronca
(Apaga-se a luz,
permanecendo acesa apenas a luminária sobre a mesa. Luz sobre as duas cadeiras,
uma de cada vez, na medida em que os atores retomam a fala. Ouve-se a voz de
Burroughs 1, de distintos lugares da plateia.)
BURROUGHS 1 – Isso é um cut-up!
BURROUGHS 3 – Por que esta imbecil fica
pulando de um galho para outro da escuridão?
BURROUGHS 1 – Fala, Burroughs, o que é um cut-up?
BURROUGHS 2 – É a droga de uma técnica como
outra qualquer. Pode ser útil em alguns casos e em outros, não. Depende do que
você está fazendo. Agora, se você está querendo retratar uma consciência urbana
confusa, então é uma técnica muito útil.
BURROUGHS 3 – É uma máquina de perturbação
da ordem semântica.
BURROUGHS 1 – E de onde tiraste essa ideia de que a escritura leva 50
anos de atraso em relação à pintura?
BURROUGHS 2 – O pintor pode tocar e
manipular seus materiais, coisa que o escritor não pode. O escritor não sabe o
que são as palavras. Opera com abstrações surgidas das palavras. As possibilidades
do pintor para tocar e manipular seus materiais lhe conduziram às técnicas de
montagem há 60 anos. É de se esperar que a divulgação das técnicas cut-ups
tornem viáveis experimentos verbais mais terminantes, encurtando esta desfase e
dando à escritura toda uma nova dimensão. Essas técnicas podem ensinar ao
escritor o que são as palavras pondo-o em comunicação tátil com seus materiais
e possibilitando o acesso a uma ciência exata das palavras que demonstrará como
combinações concretas de palavras produzem efeitos concretos sobre o sistema
nervoso humano.
BURROUGHS 1 – Por que você escreve?
BURROUGHS 2 – Porque é o meu negócio.
Escrever é o meu sustento. Eu sei fazer isto. Você pode perguntar o mesmo a um
advogado ou a um policial, a resposta será a mesma. Isso é o que eles sabem
fazer. O que eles fazem profissionalmente.
BURROUGHS 1 – Para onde estamos indo?
BURROUGHS 2 – No momento, sinto que não
estamos indo para lugar nenhum. Quanto ao que tenho escrito, já disse: estou me
dirigindo deliberadamente para toda aquela área do que chamamos sonho. 70% do
que escrevo eu obtenho de meus sonhos.
BURROUGHS 3 – Mas que diabos de pergunta…
BURROUGHS 1 – Para onde?
BURROUGHS 2 – Os sonhos são uma coisa
necessária, são uma necessidade biográfica. Os deuses são uma necessidade
biológica. São parte integral do homem. Vejamos o caso dos faraós. A presença
deles era divina. Desempenhavam tarefas notáveis de força e destreza.
Conseguiam ler a mente e os corações dos súditos, prever o futuro. Tornaram-se
deuses. Ser deus significa por vezes ter de aplicar sanções terríveis: cortar a
mão de um ladrão ou os lábios a um perjuro.
BURROUGHS 1 – Escritores são deuses?
BURROUGHS 2 – Um trapaceiro é mais um
diretor de cinema do que um escritor.
BURROUGHS 3 – Agora, imaginemos que um
acadêmico, intelectual e mau católico, humanista, chegue um dia a tornar-se…
deus. Não consegue, pura e simplesmente, infligir sofrimento de qualquer
espécie. O que acontece? Nada. Não há acidentes horríveis… Nem sequer uma
velhinha morta no incêndio, em seu quarto alugado. Não há furacões, nem
ciclones. Não há oposição, nem dor, nem decadência. Nem mesmo morte.
BURROUGHS 2 – [dirigindo-se a Burroughs 1 na
plateia] Ei, você que fica pulando de um ponto a outro de seu horrível
desempenho. O homem perdeu de vez a véspera de sua destruição.
BURROUGHS 3 – Muitos sujeitos são
vulneráveis à humilhação sexual. Nudez, estímulo com afrodisíacos e supervisão
constante para embaraçá-lo e impedir o alívio da masturbação. O barato de
hipnotizar um padre e dizer que ele está consumando uma união hipostática com o
Cordeiro – e em seguida enfiar-lhe no cu uma ovelha velha e dissoluta.
BURROUGHS 2 – Um escritor pode obter algo de
onde outra pessoa nada consegue. Por mais desagradáveis que sejam as
experiências. Minha experiência como um viciado foi muito útil para o que sou
como escritor. Me deu muito material. A verdade é que o vício nos põe em
contato com alguns fundamentos. Nos dá uma sensação de realidade que talvez
você não teria sem isso.
BURROUGHS 3 – Já lhe contei a respeito de um
homem que ensinou o cu dele a falar? A barriga inteira mexia para cima e para
baixo, entende?, peidando as palavras. Era algo diferente de tudo o que já
ouvi. Esse papo do cu tinha uma espécie de frequência visceral. Batia direto lá
embaixo, com uma espécie de soco. Sabe quando o velho cólon dá uma cutucada e
você sente um friozinho por dentro, e sabe que tudo o que tem a fazer é se
afrouxar? Bem, esse papo batia exato ali embaixo, um som embolhado grosso
estagnante, um som que você podia cheirar. Esse cara trabalhava em um circo,
entende?, e para começar era uma novidade como ventríloquo. Realmente
engraçado, no começo. Ele fazia um número chamado “O melhor buraco” que era uma
doideira, juro mesmo. Eu me esqueço da maior parte, mas era muito inteligente.
Algo como: “Oh, você ainda está aí embaixo, coisa velha?” / “Não! tive que ir
me aliviar.” Depois de algum tempo, o cu começou a falar por conta própria. Ele
entrava em cena sem nada preparado, e o cu improvisava, respondia às piadas com
outras o tempo todo. Aí, o cu desenvolveu uma espécie de ganchinhos curvados e
ásperos, à maneira de dentes, e começou a comer. Ele achou isso engraçadinho, e
bolou um número em função da coisa, mas o cu abria caminho pelas calças e
começou a falar na rua, berrando que queria igualdade de direitos. Tomava
porres e tinha crises e choro do tipo ninguém me ama. Queria ser beijado como
qualquer boca. No final, o negócio falava o tempo todo, dia e noite, você podia
ouvi-lo por quarteirões berrando ao cu que se calasse e batendo nele com o
punho, enfiando velas nele. Mas coisa nenhuma adiantava, e o cu disse para ele:
“É você que vai se calar no fim. Não eu. Porque nós não precisamos mais de você
por aí. Posso falar e comer e cagar.”
(Apagam-se as
luzes sobre as cadeiras, acende-se a luminária sobre a mesa. Tem início a
terceira parte da conferência.)
CONFERENCISTA – Os negócios do sexo são de
grande atração em todo o mundo. Os negócios do sexo. Os negócios das drogas. Há
uma ideologia insidiosa desvirtuando o desejo, valorizando as ilusões. Uma
grande loja de distúrbios. Este é o alcance político que nos une a todos, a
verdadeira dimensão ontológica da existência humana: o negócio das ilusões. Não
há prestígio maior que o da extrema ausência de valores humanistas. Não há
autoritarismo ou repressão sexual como um fim
[Pausa]
Os negócios dos valores intrínsecos, pequena loja de peças de reposição.
Um dissabor gasto pode ser rapidamente restaurado. Uma crise nervosa
interrompida pode ser rebobinada sem maior custo. Há empórios que recebem o
relato em troca de um pequeno estojo de devassidão. Há campanhas eletrônicas
que dão a cada desilusão um destino literário e transmissões diárias de amores
impossíveis convertidos em sublimes momentos de resignação pública. Sob um
controle tão excêntrico do desejo, não há naturalmente mais vida íntima. São
recomendadas ações punitivas contra aqueles que se recusem a divulgar os novos
métodos de circulação das desilusões.
[Pausa]
Os negócios de títulos e cerimônias. Uma pedra Beat, negociada no
mercado paralelo, deve valer, com sorte, dois brasões cobertos de azinhavre de
uma linhagem mística. Tais ideias de contato direto há muito caíram
[Pausa]
Talvez Burroughs tenha pensado, em algum momento de sua vida, que todo este
cenário um dia retornasse às páginas de uma fábula pouco lembrada pelos filhos
dos filhos dos filhos. Não creio. O velho Bill teimava contra seu tempo, mas
antes teimava contra si mesmo. Não importava se por regressão ou expansão, seu
diálogo obsessivamente buscado era com o enunciado à entrada de uma zona dada
como neutra. A placa dizia: há um monte de safados lá fora. A zona ainda hoje é
conhecida como comunidade literária. É bastante visitada. Em seus pardieiros
moram gordos zeladores. Muitos deles parceiros discretos nos negócios de caixa,
senhores no submundo das desilusões. Artistas. São conhecidos assim. Azeitam as
máquinas do paradoxo progressivo. São extensões invisíveis dos estimulantes
sexuais e outras formas minúsculas de emoção barata. Houve um tempo
BURROUGHS 2 – As visões e todas as verdades
não podem mais ser consideradas como fatos eternos e objetivos, mas como
projeções plásticas do emissor e de sua linguagem. Por isso, ninguém mais pode
continuar se preocupando apaixonadamente com efeitos, por mais aparentemente
reais que sejam, sabendo que por dentro todas as visões e verdades são, ao
final das contas, vazias. Assim, o passo seguinte é o exame da causa desses
efeitos, o veículo das visões, o produtor da verdade, ou seja: palavras. A
própria linguagem é a matéria prima. Assim, o próximo passo é: como escrever
poesia sobre poesia, empregando um método radical que elimine o próprio tema.
CONFERENCISTA – Boa chance. Talvez ainda
válida. Os objetivos foram convertidos em nuvens de esgotamento. Toda forma de
abismo foi declarada inconsciente. A criatividade é uma percepção diante do
vazio. Um estalo diante do nada. Não uma interpretação de fatos externos. Os
negócios amaciaram tudo. Em uma mesma prateleira encontramos visões,
estimulantes sexuais, manuais de argumentos inverossímeis sobre a nulidade do
ser, saquinhos fantásticos e kit de reflexão sobre a percepção comum. Não há
como não se sentir bloqueado. No entanto, os negócios do bloqueio faturam
milhões. Não são uma ameaça. São a naturalidade. Os negócios deste e de outro
mundo. Negócios do personagem que mergulha na alteridade e dela retorna
pioneiro sem uma sombra de si. Suas alucinações são alheias. Seus regozijos,
orgasmos, coceiras, embolias. Um merda capado de si mesmo. Este é o modo de
conhecer o homem toupeira do homem. O modo de aturar as merdas decorrentes de
creditar na arte toda a forma de salvação do homem. Uns bostas se aproveitam
disso. É um desgaste decorrente da expulsão do homem do centro de si mesmo. A
Religião não tem nada com isso.
BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 – Não.
CONFERENCISTA – A Ciência não tem nada com
isso.
BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 – Não.
CONFERENCISTA – A Arte não tem nada com
isso.
BURROUGHS 2/BURROUGHS 3 – Não.
CONFERENCISTA – O serviço secreto dos
negócios da desilusão é, de fato, uma instituição. Porém não se encontram seus
membros filiados aos quadros moralistas de nenhuma dessas casas de tolerância.
Os governos já não existem. À porta da velha noção de pluralismo encontramos o
aviso de “não perturbe”. Não há expansão de consciência em praças de
alimentação
[Pausa]
Estamos caindo
[Pausa]
Olhem bem. Olhem bem. A palavra é um espirro. O vírus é um espírito. O
que sai fácil não entra como se
(Burroughs 2
dirige-se ao caixote onde está a máquina de escrever e começa a teclá-la, como
se estivesse redigindo a fala de Burroughs 3.)
BURROUGHS 3 – Escutem minhas últimas
palavras, não importa que mundo. Escutem, conselheiros de sindicatos e governos
da terra. E vocês, potências poderosas detrás de seus negócios sujos realizados
em banheiros, a fim de segurar o que não lhes pertence. Para vender a terra sob
os pés dos que ainda não nasceram. Escutem. O que tenho a dizer é para todos os
homens, não importa onde estejam. Ninguém é excluído. Que tudo seja gratuito
para todos aqueles que pagam. Gratuito para todos aqueles que seguram o
trabalho duro. O que lhes fez temer tanto entrar no tempo? O que lhes fez temer
retornar ao corpo? Agora escutem minhas últimas palavras, as palavras do velho
Bill. Escutem, olhem ou se caguem para sempre. O que é que lhes amedronta
entrando no tempo? Entrando em seus corpos? Na merda? Eu lhes direi. O verbo. O
você-verbo. No você-princípio estava o verbo. Vocês amedrontaram a todos
entrando na merda para sempre. Saiam para sempre. Saiam do tempo-verbo-sempre.
Saiam do você-verbo-sempre. Saiam do verbo merda sempre. Saiam todos do tempo e
entrem no espaço para sempre. Alguma coisa não é um temor. Alguma coisa no
espaço. É tudo o velho Bill. Algum verbo não é temor. Não há verbo. É tudo
todos o velho. Se vocês me anulam as palavras, as suas palavras também serão
anuladas para sempre. E os verbos do velho Bill também me anulam. Através de
todo o céu vejam a escritura silenciosa do velho. A escritura do espaço. A
escritura do silêncio. Escutem. Escutem. Escutem.
(O som da
máquina de escrever de Burroughs 2 começa a ser mesclado com o som gravado de
outra máquina de escrever, que vai se tornando ensurdecedor. No decorrer da
audição, o Conferencista recolhe seus papéis, apaga a luz e se retira. Ao final
da fala de Burroughs 3, este se retira, seguido por Burroughs 2. Silêncio
brusco. Acendem-se as luzes da plateia.)
FIM
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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