NOITE EM QUE UM ANIMAL FABULOSO
RENASCE NO NINHO DE TUAS MÃOS
As tuas mãos tateando verbetes em minha pele.
Descobrindo onde dormia o verão. Despertando
um balé profano em minhas vértebras. Anunciando um beijo a cada sensação de
desmaio.
As tuas mãos são o meu gerúndio preferido.
À noite escuto apenas o rumor das ondas de meu
mar interior.
E uma voz que reconheço ser minha descasca
outro abismo com sua gramática imprecisa: Eu sou tua, você me roubou, seu
diabo!
Os meus mamilos se multiplicam e desarvoram a
paisagem salpicada de lábios.
A sombra de tuas mãos imersa em minhas águas
primordiais simula a dissolução de tudo quanto fui.
Eu me recupero em tuas nascentes. Como
semelhante de teus sonhos.
E não vim nem mesmo para ficar. Tu me revelas
a descrição de uma lenda esquecida.
Decerto a ela retornarei.
RELATO DUVIDOSO DO QUE SE PASSOU CERTO
DIA DO QUAL NINGUÉM RECORDA UMA SÓ PALAVRA
A história foi toda escrita ao contrário.
Só assim resultaria permanentemente
desacreditada.
O tempo se arrasta como um símbolo perdido.
Um pássaro aplicado à linguagem tentando
descobrir uma função para o excesso de aspas.
Púlpitos são comprados em brechós.
A memória jamais deixou de ser abundante e
perversa, como uma escada largada na garagem.
Aos que não vivem sem um oráculo, consultem a
escada, consultem os brechós.
Há uma longa distância a atravessar entre o
que vemos e o que não conseguimos tocar.
Querem mesmo saber o que houve naquele dia?
Tudo parecia despertar deslizando na matéria
de nossa percepção.
As dádivas da perda se associando às lágrimas
como um dragão dominado pela assimilação demoníaca.
Como nunca, eu desejei ser o abismo do mundo.
O que vi foi a minha filha expirada em mim, a
minha vida tomada como uma alusão volátil, um rio de sangue e mais nada.
A eternidade nunca faz parte da cena.
A vida mói o espírito, o princípio e até mesmo
os anjos não adaptados.
Eu teria me desfeito em sangue por ela.
Deus algum saberá até onde eu fui.
Nem importará sabê-lo, pois não importa o mais
implacável de todos os destinos.
A minha filha se foi dentro de mim, consagrada
ao vazio como uma espécie perdida.
Os dias felizes são tangíveis.
ENIGMÁTICO SONHO DE ROSALÍA DE CASTRO NO
ALPENDRE DE SUA CASA EM TEMPOS VERDES
Parte do que fomos jamais conheceu outra
versão de nossos abismos.
A noite percorria com inquieta intimidade um
labirinto de sonhos que teimávamos em decifrar.
Uns pássaros rascunhavam na escuridão a
imaginária linha do horizonte,
até que o calor de teus lábios testemunhasse
nossos corpos reescrevendo suas formas.
Atrás de uma pequena coluna, cada abraço
parecia abranger um mistério propício.
Apenas o teu sonho colecionava metáforas entre
satisfeitos gemidos.
Tudo isto quando o alpendre da casa recortava
teu sorriso e com ele compunha uma trilha de inquietudes, teu olhar finalmente
decidido a incendiar-me as miragens.
Metade de teu corpo ficou presa na cama em que
nos encontrávamos.
Eu nunca pude entender como voltávamos um para
o outro e recomeçávamos a partir do que havia sobrado da noite anterior.
A outra metade acumulando sombras antes que o
sol desaparecesse.
OLHO DO CREPÚSCULO CONTEMPLA A
PAISAGEM COM SUAS FLORES CARNÍVORAS SOBRE OS OMBROS DA TORMENTA
Dedilho teu seio possível
como um castelo de larvas que preparam meu renascimento.
A terra enlouquecida geme como uma orgia de
nuvens adentrando as confidências do tempo.
A luz deságua seu vidro de essências
fantasmais e reabre as feridas para lhes ensinar alguns motivos esquecidos.
O horizonte despista as fontes que querem bebê-lo
de uma só vez ondulando uma linha de insetos que festejam o truque como uma
lâmpada em delírio.
O abismo se refaz das primeiras quedas e
descreve o dilema do labirinto embebido no ouro de óleos em cujas gotas ainda é
possível entrever um bosque desmatado em silêncio.
Eu penso em ti como se ainda fosse possível
voltar a perder-te, como se inquietos oásis flutuassem sobre a queima dos
carnaubais.
Eu penso em teus lagartos camuflados sob o
ossuário do que fomos.
Eu penso e as trevas ricocheteiam como
disparos desperdiçados.
Não espero que me acompanhes enquanto renasço,
embora deixe uma trilha de miolos de meu espírito, caso queiras sobreviver à
luxúria da tormenta.
UMA TARDE O ESPELHO DESATOU SEUS NÓS E
A ESCURIDÃO COMEÇOU A DEDICAR-SE À CRIAÇÃO DE OUTRA RESSONÂNCIA DE SI MESMA
A tua luz me antecipa e chega mesmo antes que
percebas.
Não havia outra luz, reconhecem todas as
frestas.
Embora o criado-mudo ainda conserve amassado
teu ofegante manuscrito: o amor não existe.
Haverá um que escape à retina das sombras.
Um ninho sem progresso, em que as idades
avançam alheias ao tempo.
Este é o gráfico em que isolo as fórmulas
gastas do destino.
Um ideograma de abismos onde toda forma de
beleza é incomparável.
A tua luz tece um mundo desconhecido cuja
simetria eu tateio na volúpia de uma silhueta amorosa.
Morte ou incesto, nenhum arcano nos afasta ou
consagra, nenhum asceta ou ermitão transcreve os circuitos de nossos instintos.
A tua luz reparte o centro de meu ser, alimenta
a caixa escura de minhas obsessões.
Eu me desenraizo para que me refaças.
Eu me revelo para que me ocultes.
A tua luz é a única forma familiar do que
ainda não vivi.
DEVANEIO CÍCLICO DO TEMPO ACENTUADO
PELAS DESCONFIANÇAS DO ACASO
Todas as línguas estão manchadas de memória.
Os livros derivam de sombras sorrateiras que
picharam o enigma por dentro.
Casulos com três ou quatro pedras alojadas
entre a perfeição e a beleza.
Eu me oriento pela transparência de teus
lábios.
Tu te esquivas dos presságios.
Quando nos vimos pela primeira vez há muito já
nos conhecíamos.
Nossas letras secretas, vultos do verbo,
penumbra dos gemidos, de incontáveis modos o mundo estava preservado e se
agitava em nós.
Segundo a lenda não somos senão essa imagem
obrigada a vagar pelas encostas do desejo.
Porém tudo o que me disseste antes de nosso
encontro não era o sopro de um signo disposto aos caprichos da harmonia divina.
Talvez fôssemos a fagulha das letras
emblemáticas que não couberam no livro santo.
Porém não queríamos senão voar.
Ante a petrificação da paisagem com suas
ordens mitológicas e seus papiros carcomidos de virtudes, tudo o que queríamos
era voar.
Eu me debato entre a fome e a saciedade de teu
espírito.
Tu te recuperas dos vapores da regeneração.
Todas as línguas são consumidas pela memória.
LOGO NA PRIMEIRA CENA DESTE SENTIDO AO
MUNDO COM TUA MÁGICA DECIDIDA A EXPANDIR A VIDA
A noite passeava por teu corpo alheia a toda
forma de abrigo,
como a imolação de um anjo ou um cataclismo
impossível de ser denunciado.
Um pouco de cada verso na lápide do mistério.
Eu te vi crescer tomada de impulsos, a tua
voragem abismada com os dias em que mal cabias na pele do desejo.
Os teus pés ainda são bem pequenos quando
começas a me escalar.
Os verbos mais singelos acreditam que podem ir
muito mais longe.
E vão, de algum modo encontram a vertente
ímpia de sua natureza errante.
Certa paisagem repleta de reentrâncias e a
exaltação de um sol por nascer.
Quando mais cremos possuir o significado do
mundo ele ainda está por vir.
Eu vi a tua noite tateando o que ela julgava
ser a balança aleatória de minha saga espiritual.
Como a tua evasão me supera e te mostras cada
vez mais íntima do mundo agitado de minha solidão?
Queres rir um pouco: da lenda, da consciência,
do espírito?
Eu me faço tua onde menos me esperas, e sou a
vértebra doméstica de tuas inquietudes.
Não é fácil, não te limitas a nada, tampouco
sei quantas sou, até mesmo os rituais se perdem, se chocam, e um número
excessivo de símbolos insiste em explicar os dias em que não nos reconhecemos.
O OLHO MÁGICO ENCONTRADO EM UM
ANTIQUÁRIO ANUNCIADO COMO UM CATÁLOGO DE EXTRAVIOS
Eu escrevi o teu nome onde não tinhas mais
como saber sua origem.
O dia enfiado na goela da miragem e eu
esquadrinhando as ruas que passavam por meu sonho.
A imensa boca aberta precipitada sobre a
paisagem recordada no cartão postal, como se não houvesse mais nada além da
perda daquela memória em nossas vidas.
Teu corpo rascunhando dez epílogos possíveis
para o sol que há muito havia sido sacrificado.
Com tantos deuses empilhados à porta de teu
ventre não haveria sequer como enxotar dali seus fantasmas.
Um saque de cada vez: metas para o novo
milênio corrompido.
Os metais inflamados, as vantagens refeitas,
um cofre lacrado com o segredo das moléculas e das metáforas, pequenas fábulas
ardilosas como o santo sudário, eu ainda me arriscava a desvendar o paradeiro
de teus lábios.
O amor costumava ser a única catástrofe que,
uma vez emborcada, podia converter-se em outra fonte de milagres.
Quando os milagres perderam cotação no
mercado, o amor não soube mais o que fazer de si.
SEM LÓTUS OU CENTRO CLÁSSICO OS
OLHARES NÃO CORRESPONDEM SENÃO A SI MESMOS
Somos um verbo dado ao desaparecimento.
A lua se foi por um lado, o sol por outro, os
símbolos esvaziaram a casa, quase nada restou de vida humana,
a pobre mente desfeita em guias, mandatários,
ilusionistas.
Não há muito para onde regressar quando velhos
símbolos são mantidos como guardiães de toda lenda.
Como desfazer-se da representação de um
monstro tatuado na pele de nossa vertigem?
Como simplesmente aceitar que há duas rotas de
ilusão vagando pela geografia de nossa existência?
As cartas se avermelham, deixam atônitos
alguns vislumbres
e outros dissecam a ideia de uma morte
inesperada.
Não tenho como repartir contigo senão o
quadrante de alucinações,
e por ali, quanto mais me vejo dissipado na
concha dos desaparecimentos,
mais eu compreendo a morfologia de meu
espanto.
Não correspondemos a nada e uma dor nos
dilacera até que a voz se mantenha em silêncio (a pólvora inesperada de um
segredo): não há o que dizer, mal escapamos de nós,
não me escutem, não temos porque sair
daqui.
PARA QUE ME TENHAS
POR COMPLETO TERÁS QUE DESCOBRIR A LETRA QUE FALTA
O teu corpo estava exposto sobre a mesa com
seu monstruoso desgaste,
a pele recoberta de desordens comuns, como uma
imagem propensa ao sacrifício.
Os mesmos convidados de sempre reconheciam seu
lugar: os símbolos sabiam a quem pertenciam.
O teu corpo estava consagrado à repetição.
Foi vulgarizado por ela e não pela chave mágica
do excesso.
Quando te encontrei estavas nua, dedicada à
mecânica de inúmeros erros: sucessão vaidosa do clímax como uma retórica da
luxúria.
Jamais pensei em indagar teu nome.
Onde estavas me parecia suficiente, como me
tocavas, o que vivíamos…
Até que os espelhos começaram a se romper,
estrábicos, aturdidos, despedaçados em seu caráter, e dei por conta do que não
refletias.
Guardavas um menir, uma adaga, um verbo ⎼ um atributo com o qual te recusavas a sentar
na velha mesa.
TARDE EM QUE A
REALIDADE TROPEÇOU EM SI MESMA BUSCANDO UMA NOVA RAZÃO DE VIVER
Por quantos temos que esperar quando a
vertigem dá pela tarde e o sol não sabe onde se por?
Fingimos que estamos fora do mundo, por um
segundo, até que a ilusão canse de repetir-se.
Quando as escadas começam a brotar em cena
como suspiros o riso já não sabe como conter a partitura de espantos.
A inquietude busca dissolver-se em si mesma?
Quantas vezes a encontro cruzando a fronteira
dos estratos mais primitivos da imaginação.
Cai por terra, sonho, cai por mar, cai por
onde ninguém te possa alcançar.
Os espectros não pregam o olho, estão ali para
que não deixes de te sentir minha floresta.
Eu recobro em meu espírito o fulgor das
dissoluções.
Não importa quanto a clarividência ou a
decomposição soletrem a semente de suas ânsias.
Há momentos em que ninguém consegue tomar o
nome de outro; muito menos recordar o que um dia fora seu.
HÁ NOITES EM QUE A SOLIDÃO É UM SELO CEGO
E MESMO ASSIM UM MUNDO SIMBÓLICO NÃO DEIXA DE PROCRIAR-SE
Nunca se sabe ao certo onde cairá uma folha.
A paisagem da queda confunde todos os verbos
envolvidos em seu ritual.
Como a perenidade da fonte ou a ideia de
sacrifício ⎼ nunca sabemos a
qual elemento associar o inesperado.
A folha ilude a gravidade.
Como a pluma de uma ave.
Como o mais pesado dos objetos esquecidos em
sítios que desconhecemos.
Um rapto sem pedido de resgate.
Uma discordância em ambiente público que não provocou
reação alguma.
Quem de nós prevê seu declínio?
Quantos se alimentam de vislumbres de
sofrimentos ou mutilações?
Como repercute o suicídio que busca a
cumplicidade da gravidade?
Suponho que o peso de cada símbolo ou
existência atenta a si mesma busque a essência de seus laços com o mundo.
O algoritmo queimante, a maldição, o sopro da
fertilidade, a semente atada à sombra de fantasmas não identificados.
O peso como uma mortalha envolvendo a alma de
quem se encontra cada vez mais longe de um manto clarividente.
O mundo nos toma para si quando não sabemos o
que somos.
QUANDO O ADEUS É GENEROSO A HIPOCRISIA
NÃO TEM MAIS ONDE POR SUAS HÓSTIAS
Eu fiz a noite cair longe de teu olhar.
As aves sempre migram alheias ao mistério que
supomos existir em seu movimento.
Li a tua carta de despedida antes que
houvesses chegado.
Cada frase tua propunha um simulacro.
Evidente que o mundo a todo instante requer
uma cópia de si mesmo.
Mas há momentos em que não fazemos a menor
ideia de onde estamos.
Que lembranças ter de si mesmo quando o
espelho se esvai em névoa?
Como imaginar um mundo escandaloso aos olhos
de um cego?
Ou repleto de silêncio enigmático em uma
confraria de surdos?
A realidade é a fábula astuta de quem a
recorta como uma receita do acaso.
Eu vi o teu sorriso mecânico disposto a ser o
escândalo em minha vida.
A tua ciência concreta verificando os meus
esboços de uma obra sonhada.
Eu não vim aqui apenas para entender a
revelação imperativa de um mistério.
Aos pouco vamos nos libertando de quantos
somos.
O mundo aponta contra o outro, pelo simples
fato de que o refletimos.
Eu fiz a noite cair longe de teu olhar, e
ainda nem havias chegado.
Eu estou longe de casa. Eu não tenho
perspectiva alguma de vida. Eu não valho um silêncio.
A TERRA RASGAVA AS ARTÉRIAS DO SONHO
SEM COMPREENDER ONDE POUSARA A SOMBRA DO OBELISCO SONHADO
Eu li os
acidentes geográficos de teu corpo, antes que a noite cumprisse com seu mandado
de busca pelas origens de teus gemidos. As páginas saltavam como ondulações
magnéticas ou placas de um minério desconhecido. As tuas mãos tinham de memória
a escala de meus gozos. Em meio às tuas carícias o mar, o mar transpirando por
toda a Praia da Baleia, o mar com seu naipe de rochedos e o abismo transitivo
de seu retorno a toda fonte perdida. Eu li as tuas mãos enquanto elas teciam um
amuleto em minha pele: eu li os tambores das letras, as escamas do desejo, os
vultos gravados nas cavernas de cada nome. O teu cavalo-dragão não para de
renascer em mim. Quantas vezes devo ocultar-te em minha transparência? Jardins,
janelas, instrumentos imprecisos, ideogramas alucinados, percorro os atributos
de tua fábula. Mal chego a cada meridiano já tens partido. Como te escolho?
Como me escapas? Nos desfiguramos de tanto o mar rebentar em nossa ausência, o
mar paginando toda a costa da Baleia, o mar com seu gráfico de espumas e uma
peregrinação de dúvidas. Já me adivinhaste tudo. Por que não me devolves um
pouco de mim mesmo?
O DESASSOSSEGO DA FÁBULA AO DEPARAR-SE
COM A PEDRA DE JÓ E O OLHO DA GALINHA CARIJÓ
Hoje não é dia certo para coisa alguma.
Jamais descobrimos a fonte de ganância com que
um tempo invade outro.
A memória lamenta os casebres do infortúnio,
porém esquece que esteve ali, ao pé do desastre, sem que evocasse uma lágrima
em prol do outro.
O sonho desfibra o horizonte até que não lhe
reste uma agônica esperança.
Invadimos o desejo com nossos instrumentos de
medição, sem revelar um truque que seja de suas criaturas fantásticas.
Todo mapa do tempo esconde as dobras
fertilíssimas do acaso.
A lua cruzava a pele dos calendários e eu a
destacava como um verbete de alucinações.
Disse o teu nome três vezes, porém jamais te
vi por aqui.
O presente não liga a mínima para o que fomos
ou seremos.
Hoje é um dia como qualquer outro.
SETE BAILARINAS MASCANDO AS SOBRAS DE
NOSSO MISERÁVEL DESTINO
O olhar é um peixe-caniço que pesca a si
mesmo.
A lua que guarda em seu íntimo é um jogo de
escamas amontoadas como filtros com seu plano secreto de vertigens.
O peixe ali refletido com suas asas não
conhece beleza ou fealdade.
Ao tecer as visões com que alimenta o próprio
mito finca uma pluma no centro de cada forma ungida com sua saliva.
As sete cores saltam de um abismo a outro
acariciando o vento em sua nuca repleta de miragens.
O olhar é o espectro da dança que improvisa
enquanto masca a essência da metamorfose.
O reino de suas evidências é a sala de
brinquedos da inocência.
As crianças ali reunidas não distinguem quando
são peixes ou aves.
Através delas o homem desvenda a si mesmo em
meio aos vislumbres do sonho e da realidade.
Foi quando as vi dançar na praça flutuante a
velejar por entre as montanhas equatorianas que reaprendi o que sempre fui.
ANTES QUE AS NOITES SE FOSSEM E A ALMA
CEGASSE AO MERGULHAR NO SILÊNCIO DE SEUS OSSOS
As noites reclamam longe de casa, quase sempre
sem ajuda de nenhum amigo.
Elas não sabem como amparar as tempestades e
trepidam como se fossem a última temperatura do planeta.
As noites estão cobertas por uma displicência
que não raro se disfarça em dores amenas e repetidas.
Eu vejo os restos de tua sombra ajustando as
luzes para que não se percam de todo.
O mundo se desfez em um vagão irreconhecível.
Nem era tão distante assim o caminho de volta
ao milharal dos sonhos.
As noites passaram a noite acreditando em uma
quinta estação.
Muitos de nós simplesmente vegetaram,
protegidos por uma cortina de fumaça.
Outros não souberam afinar a esperança.
As noites se multiplicaram à toa, em
dissonância com seus espectros,
Todos encontramos a casa repleta de fantasmas
e o coração vazio.
Nenhum de nós soube ser Joe Cocker.
ÚLTIMA SOMBRA EXTRAVIADA E AS GAVETAS
VERTEBRADAS DE CRUZEIRO SEIXAS
A eternidade passa depressa,
como a ciência.
CRUZEIRO
SEIXAS
O homem do outro lado da rua tratava de
ressuscitar cavalos.
Nem sempre o reflexo nas colunas de vidro
estava de acordo com seus planos.
Por vezes as figuras ressurgiam retorcidas
como um sonho mastigado pela memória.
Uma sombra excessivamente alta não resistia às
exigências de equilíbrio, e a realidade era fatiada como se o vento lhe
dispersasse as páginas originais.
Não sabíamos mais identificar a mobília do
tempo.
Empilhávamos fragmentos desconexos na
expectativa de que alguma magia recompusesse futuro presente passado.
Uma metamorfose acidental embaralhou os
reinos: pedras líquidas, nuvens de carne, rios sem fôlego, cada um expandia um
estranho remorso em contato com o outro.
As cidades corriam para o fogo, com suas
escadas aflitas e a caligrafia do medo a cada linha consumindo as leis do
horizonte.
Do outro lado da rua aquele homem colava os
reflexos embaralhados na medida em que ressuscitava cavalos, em cujos olhos
embaçados era possível entrever o mundo renascendo.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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