sábado, 22 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória

 

 

NOITE EM QUE UM ANIMAL FABULOSO RENASCE NO NINHO DE TUAS MÃOS

 

As tuas mãos tateando verbetes em minha pele.

Descobrindo onde dormia o verão. Despertando um balé profano em minhas vértebras. Anunciando um beijo a cada sensação de desmaio.

As tuas mãos são o meu gerúndio preferido.

À noite escuto apenas o rumor das ondas de meu mar interior.

E uma voz que reconheço ser minha descasca outro abismo com sua gramática imprecisa: Eu sou tua, você me roubou, seu diabo!

Os meus mamilos se multiplicam e desarvoram a paisagem salpicada de lábios.

A sombra de tuas mãos imersa em minhas águas primordiais simula a dissolução de tudo quanto fui.

Eu me recupero em tuas nascentes. Como semelhante de teus sonhos.

E não vim nem mesmo para ficar. Tu me revelas a descrição de uma lenda esquecida.

Decerto a ela retornarei.

 

 

RELATO DUVIDOSO DO QUE SE PASSOU CERTO DIA DO QUAL NINGUÉM RECORDA UMA SÓ PALAVRA

 

A história foi toda escrita ao contrário.

Só assim resultaria permanentemente desacreditada.

O tempo se arrasta como um símbolo perdido.

Um pássaro aplicado à linguagem tentando descobrir uma função para o excesso de aspas.

Púlpitos são comprados em brechós.

A memória jamais deixou de ser abundante e perversa, como uma escada largada na garagem.

Aos que não vivem sem um oráculo, consultem a escada, consultem os brechós.

Há uma longa distância a atravessar entre o que vemos e o que não conseguimos tocar.

Querem mesmo saber o que houve naquele dia?

Tudo parecia despertar deslizando na matéria de nossa percepção.

As dádivas da perda se associando às lágrimas como um dragão dominado pela assimilação demoníaca.

Como nunca, eu desejei ser o abismo do mundo.

O que vi foi a minha filha expirada em mim, a minha vida tomada como uma alusão volátil, um rio de sangue e mais nada.

A eternidade nunca faz parte da cena.

A vida mói o espírito, o princípio e até mesmo os anjos não adaptados.

Eu teria me desfeito em sangue por ela.

Deus algum saberá até onde eu fui.

Nem importará sabê-lo, pois não importa o mais implacável de todos os destinos.

A minha filha se foi dentro de mim, consagrada ao vazio como uma espécie perdida.

Os dias felizes são tangíveis.

 

 

ENIGMÁTICO SONHO DE ROSALÍA DE CASTRO NO ALPENDRE DE SUA CASA EM TEMPOS VERDES

 

Parte do que fomos jamais conheceu outra versão de nossos abismos.

A noite percorria com inquieta intimidade um labirinto de sonhos que teimávamos em decifrar.

Uns pássaros rascunhavam na escuridão a imaginária linha do horizonte,

até que o calor de teus lábios testemunhasse nossos corpos reescrevendo suas formas.

Atrás de uma pequena coluna, cada abraço parecia abranger um mistério propício.

Apenas o teu sonho colecionava metáforas entre satisfeitos gemidos.

Tudo isto quando o alpendre da casa recortava teu sorriso e com ele compunha uma trilha de inquietudes, teu olhar finalmente decidido a incendiar-me as miragens.

Metade de teu corpo ficou presa na cama em que nos encontrávamos.

Eu nunca pude entender como voltávamos um para o outro e recomeçávamos a partir do que havia sobrado da noite anterior.

A outra metade acumulando sombras antes que o sol desaparecesse.

 

OLHO DO CREPÚSCULO CONTEMPLA A PAISAGEM COM SUAS FLORES CARNÍVORAS SOBRE OS OMBROS DA TORMENTA

 

Dedilho teu seio possível como um castelo de larvas que preparam meu renascimento.

A terra enlouquecida geme como uma orgia de nuvens adentrando as confidências do tempo.

A luz deságua seu vidro de essências fantasmais e reabre as feridas para lhes ensinar alguns motivos esquecidos.

O horizonte despista as fontes que querem bebê-lo de uma só vez ondulando uma linha de insetos que festejam o truque como uma lâmpada em delírio.

O abismo se refaz das primeiras quedas e descreve o dilema do labirinto embebido no ouro de óleos em cujas gotas ainda é possível entrever um bosque desmatado em silêncio.

Eu penso em ti como se ainda fosse possível voltar a perder-te, como se inquietos oásis flutuassem sobre a queima dos carnaubais.

Eu penso em teus lagartos camuflados sob o ossuário do que fomos.

Eu penso e as trevas ricocheteiam como disparos desperdiçados.

Não espero que me acompanhes enquanto renasço, embora deixe uma trilha de miolos de meu espírito, caso queiras sobreviver à luxúria da tormenta.

 

 

UMA TARDE O ESPELHO DESATOU SEUS NÓS E A ESCURIDÃO COMEÇOU A DEDICAR-SE À CRIAÇÃO DE OUTRA RESSONÂNCIA DE SI MESMA

 

A tua luz me antecipa e chega mesmo antes que percebas.

Não havia outra luz, reconhecem todas as frestas.

Embora o criado-mudo ainda conserve amassado teu ofegante manuscrito: o amor não existe.

Haverá um que escape à retina das sombras.

Um ninho sem progresso, em que as idades avançam alheias ao tempo.

Este é o gráfico em que isolo as fórmulas gastas do destino.

Um ideograma de abismos onde toda forma de beleza é incomparável.

A tua luz tece um mundo desconhecido cuja simetria eu tateio na volúpia de uma silhueta amorosa.

Morte ou incesto, nenhum arcano nos afasta ou consagra, nenhum asceta ou ermitão transcreve os circuitos de nossos instintos.

A tua luz reparte o centro de meu ser, alimenta a caixa escura de minhas obsessões.

Eu me desenraizo para que me refaças.

Eu me revelo para que me ocultes.

A tua luz é a única forma familiar do que ainda não vivi.

 

 

DEVANEIO CÍCLICO DO TEMPO ACENTUADO PELAS DESCONFIANÇAS DO ACASO

 

Todas as línguas estão manchadas de memória.

Os livros derivam de sombras sorrateiras que picharam o enigma por dentro.

Casulos com três ou quatro pedras alojadas entre a perfeição e a beleza.

Eu me oriento pela transparência de teus lábios.

Tu te esquivas dos presságios.

Quando nos vimos pela primeira vez há muito já nos conhecíamos.

Nossas letras secretas, vultos do verbo, penumbra dos gemidos, de incontáveis modos o mundo estava preservado e se agitava em nós.

Segundo a lenda não somos senão essa imagem obrigada a vagar pelas encostas do desejo.

Porém tudo o que me disseste antes de nosso encontro não era o sopro de um signo disposto aos caprichos da harmonia divina.

Talvez fôssemos a fagulha das letras emblemáticas que não couberam no livro santo.

Porém não queríamos senão voar.

Ante a petrificação da paisagem com suas ordens mitológicas e seus papiros carcomidos de virtudes, tudo o que queríamos era voar.

Eu me debato entre a fome e a saciedade de teu espírito.

Tu te recuperas dos vapores da regeneração.

Todas as línguas são consumidas pela memória.

 

LOGO NA PRIMEIRA CENA DESTE SENTIDO AO MUNDO COM TUA MÁGICA DECIDIDA A EXPANDIR A VIDA

 

A noite passeava por teu corpo alheia a toda forma de abrigo,

como a imolação de um anjo ou um cataclismo impossível de ser denunciado.

Um pouco de cada verso na lápide do mistério.

Eu te vi crescer tomada de impulsos, a tua voragem abismada com os dias em que mal cabias na pele do desejo.

Os teus pés ainda são bem pequenos quando começas a me escalar.

Os verbos mais singelos acreditam que podem ir muito mais longe.

E vão, de algum modo encontram a vertente ímpia de sua natureza errante.

Certa paisagem repleta de reentrâncias e a exaltação de um sol por nascer.

Quando mais cremos possuir o significado do mundo ele ainda está por vir.

Eu vi a tua noite tateando o que ela julgava ser a balança aleatória de minha saga espiritual.

Como a tua evasão me supera e te mostras cada vez mais íntima do mundo agitado de minha solidão?

Queres rir um pouco: da lenda, da consciência, do espírito?

Eu me faço tua onde menos me esperas, e sou a vértebra doméstica de tuas inquietudes.

Não é fácil, não te limitas a nada, tampouco sei quantas sou, até mesmo os rituais se perdem, se chocam, e um número excessivo de símbolos insiste em explicar os dias em que não nos reconhecemos.

 

 

O OLHO MÁGICO ENCONTRADO EM UM ANTIQUÁRIO ANUNCIADO COMO UM CATÁLOGO DE EXTRAVIOS

 

Eu escrevi o teu nome onde não tinhas mais como saber sua origem.

O dia enfiado na goela da miragem e eu esquadrinhando as ruas que passavam por meu sonho.

A imensa boca aberta precipitada sobre a paisagem recordada no cartão postal, como se não houvesse mais nada além da perda daquela memória em nossas vidas.

Teu corpo rascunhando dez epílogos possíveis para o sol que há muito havia sido sacrificado.

Com tantos deuses empilhados à porta de teu ventre não haveria sequer como enxotar dali seus fantasmas.

Um saque de cada vez: metas para o novo milênio corrompido.

Os metais inflamados, as vantagens refeitas, um cofre lacrado com o segredo das moléculas e das metáforas, pequenas fábulas ardilosas como o santo sudário, eu ainda me arriscava a desvendar o paradeiro de teus lábios.

O amor costumava ser a única catástrofe que, uma vez emborcada, podia converter-se em outra fonte de milagres.

Quando os milagres perderam cotação no mercado, o amor não soube mais o que fazer de si.

 

 

SEM LÓTUS OU CENTRO CLÁSSICO OS OLHARES NÃO CORRESPONDEM SENÃO A SI MESMOS

 

Somos um verbo dado ao desaparecimento.

A lua se foi por um lado, o sol por outro, os símbolos esvaziaram a casa, quase nada restou de vida humana,

a pobre mente desfeita em guias, mandatários, ilusionistas.

Não há muito para onde regressar quando velhos símbolos são mantidos como guardiães de toda lenda.

Como desfazer-se da representação de um monstro tatuado na pele de nossa vertigem?

Como simplesmente aceitar que há duas rotas de ilusão vagando pela geografia de nossa existência?

As cartas se avermelham, deixam atônitos alguns vislumbres

e outros dissecam a ideia de uma morte inesperada.

Não tenho como repartir contigo senão o quadrante de alucinações,

e por ali, quanto mais me vejo dissipado na concha dos desaparecimentos,

mais eu compreendo a morfologia de meu espanto.

Não correspondemos a nada e uma dor nos dilacera até que a voz se mantenha em silêncio (a pólvora inesperada de um segredo): não há o que dizer, mal escapamos de nós,

não me escutem, não temos porque sair daqui.

 

 

PARA QUE ME TENHAS POR COMPLETO TERÁS QUE DESCOBRIR A LETRA QUE FALTA

 

O teu corpo estava exposto sobre a mesa com seu monstruoso desgaste,

a pele recoberta de desordens comuns, como uma imagem propensa ao sacrifício.

Os mesmos convidados de sempre reconheciam seu lugar: os símbolos sabiam a quem pertenciam.

O teu corpo estava consagrado à repetição.

Foi vulgarizado por ela e não pela chave mágica do excesso.

Quando te encontrei estavas nua, dedicada à mecânica de inúmeros erros: sucessão vaidosa do clímax como uma retórica da luxúria.

Jamais pensei em indagar teu nome.

Onde estavas me parecia suficiente, como me tocavas, o que vivíamos…

Até que os espelhos começaram a se romper, estrábicos, aturdidos, despedaçados em seu caráter, e dei por conta do que não refletias.

Guardavas um menir, uma adaga, um verbo ⎼ um atributo com o qual te recusavas a sentar na velha mesa.

 

 

TARDE EM QUE A REALIDADE TROPEÇOU EM SI MESMA BUSCANDO UMA NOVA RAZÃO DE VIVER

 

Por quantos temos que esperar quando a vertigem dá pela tarde e o sol não sabe onde se por?

Fingimos que estamos fora do mundo, por um segundo, até que a ilusão canse de repetir-se.

Quando as escadas começam a brotar em cena como suspiros o riso já não sabe como conter a partitura de espantos.

A inquietude busca dissolver-se em si mesma?

Quantas vezes a encontro cruzando a fronteira dos estratos mais primitivos da imaginação.

Cai por terra, sonho, cai por mar, cai por onde ninguém te possa alcançar.

Os espectros não pregam o olho, estão ali para que não deixes de te sentir minha floresta.

Eu recobro em meu espírito o fulgor das dissoluções.

Não importa quanto a clarividência ou a decomposição soletrem a semente de suas ânsias.

Há momentos em que ninguém consegue tomar o nome de outro; muito menos recordar o que um dia fora seu.

 

 

HÁ NOITES EM QUE A SOLIDÃO É UM SELO CEGO E MESMO ASSIM UM MUNDO SIMBÓLICO NÃO DEIXA DE PROCRIAR-SE

 

Nunca se sabe ao certo onde cairá uma folha.

A paisagem da queda confunde todos os verbos envolvidos em seu ritual.

Como a perenidade da fonte ou a ideia de sacrifício ⎼ nunca sabemos a qual elemento associar o inesperado.

A folha ilude a gravidade.

Como a pluma de uma ave.

Como o mais pesado dos objetos esquecidos em sítios que desconhecemos.

Um rapto sem pedido de resgate.

Uma discordância em ambiente público que não provocou reação alguma.

Quem de nós prevê seu declínio?

Quantos se alimentam de vislumbres de sofrimentos ou mutilações?

Como repercute o suicídio que busca a cumplicidade da gravidade?

Suponho que o peso de cada símbolo ou existência atenta a si mesma busque a essência de seus laços com o mundo.

O algoritmo queimante, a maldição, o sopro da fertilidade, a semente atada à sombra de fantasmas não identificados.

O peso como uma mortalha envolvendo a alma de quem se encontra cada vez mais longe de um manto clarividente.

O mundo nos toma para si quando não sabemos o que somos.

 

 

QUANDO O ADEUS É GENEROSO A HIPOCRISIA NÃO TEM MAIS ONDE POR SUAS HÓSTIAS

 

Eu fiz a noite cair longe de teu olhar.

As aves sempre migram alheias ao mistério que supomos existir em seu movimento.

Li a tua carta de despedida antes que houvesses chegado.

Cada frase tua propunha um simulacro.

Evidente que o mundo a todo instante requer uma cópia de si mesmo.

Mas há momentos em que não fazemos a menor ideia de onde estamos.

Que lembranças ter de si mesmo quando o espelho se esvai em névoa?

Como imaginar um mundo escandaloso aos olhos de um cego?

Ou repleto de silêncio enigmático em uma confraria de surdos?

A realidade é a fábula astuta de quem a recorta como uma receita do acaso.

Eu vi o teu sorriso mecânico disposto a ser o escândalo em minha vida.

A tua ciência concreta verificando os meus esboços de uma obra sonhada.

Eu não vim aqui apenas para entender a revelação imperativa de um mistério.

Aos pouco vamos nos libertando de quantos somos.

O mundo aponta contra o outro, pelo simples fato de que o refletimos.

Eu fiz a noite cair longe de teu olhar, e ainda nem havias chegado.

Eu estou longe de casa. Eu não tenho perspectiva alguma de vida. Eu não valho um silêncio.

 

 

A TERRA RASGAVA AS ARTÉRIAS DO SONHO SEM COMPREENDER ONDE POUSARA A SOMBRA DO OBELISCO SONHADO

 

Eu li os acidentes geográficos de teu corpo, antes que a noite cumprisse com seu mandado de busca pelas origens de teus gemidos. As páginas saltavam como ondulações magnéticas ou placas de um minério desconhecido. As tuas mãos tinham de memória a escala de meus gozos. Em meio às tuas carícias o mar, o mar transpirando por toda a Praia da Baleia, o mar com seu naipe de rochedos e o abismo transitivo de seu retorno a toda fonte perdida. Eu li as tuas mãos enquanto elas teciam um amuleto em minha pele: eu li os tambores das letras, as escamas do desejo, os vultos gravados nas cavernas de cada nome. O teu cavalo-dragão não para de renascer em mim. Quantas vezes devo ocultar-te em minha transparência? Jardins, janelas, instrumentos imprecisos, ideogramas alucinados, percorro os atributos de tua fábula. Mal chego a cada meridiano já tens partido. Como te escolho? Como me escapas? Nos desfiguramos de tanto o mar rebentar em nossa ausência, o mar paginando toda a costa da Baleia, o mar com seu gráfico de espumas e uma peregrinação de dúvidas. Já me adivinhaste tudo. Por que não me devolves um pouco de mim mesmo?

 

 

O DESASSOSSEGO DA FÁBULA AO DEPARAR-SE COM A PEDRA DE JÓ E O OLHO DA GALINHA CARIJÓ

 

Hoje não é dia certo para coisa alguma.

Jamais descobrimos a fonte de ganância com que um tempo invade outro.

A memória lamenta os casebres do infortúnio, porém esquece que esteve ali, ao pé do desastre, sem que evocasse uma lágrima em prol do outro.

O sonho desfibra o horizonte até que não lhe reste uma agônica esperança.

Invadimos o desejo com nossos instrumentos de medição, sem revelar um truque que seja de suas criaturas fantásticas.

Todo mapa do tempo esconde as dobras fertilíssimas do acaso.

A lua cruzava a pele dos calendários e eu a destacava como um verbete de alucinações.

Disse o teu nome três vezes, porém jamais te vi por aqui.

O presente não liga a mínima para o que fomos ou seremos.

Hoje é um dia como qualquer outro.

 

SETE BAILARINAS MASCANDO AS SOBRAS DE NOSSO MISERÁVEL DESTINO

 

O olhar é um peixe-caniço que pesca a si mesmo.

A lua que guarda em seu íntimo é um jogo de escamas amontoadas como filtros com seu plano secreto de vertigens.

O peixe ali refletido com suas asas não conhece beleza ou fealdade.

Ao tecer as visões com que alimenta o próprio mito finca uma pluma no centro de cada forma ungida com sua saliva.

As sete cores saltam de um abismo a outro acariciando o vento em sua nuca repleta de miragens.

O olhar é o espectro da dança que improvisa enquanto masca a essência da metamorfose.

O reino de suas evidências é a sala de brinquedos da inocência.

As crianças ali reunidas não distinguem quando são peixes ou aves.

Através delas o homem desvenda a si mesmo em meio aos vislumbres do sonho e da realidade.

Foi quando as vi dançar na praça flutuante a velejar por entre as montanhas equatorianas que reaprendi o que sempre fui.

 

 

ANTES QUE AS NOITES SE FOSSEM E A ALMA CEGASSE AO MERGULHAR NO SILÊNCIO DE SEUS OSSOS

 

As noites reclamam longe de casa, quase sempre sem ajuda de nenhum amigo.

Elas não sabem como amparar as tempestades e trepidam como se fossem a última temperatura do planeta.

 

As noites estão cobertas por uma displicência que não raro se disfarça em dores amenas e repetidas.

Eu vejo os restos de tua sombra ajustando as luzes para que não se percam de todo.

O mundo se desfez em um vagão irreconhecível.

Nem era tão distante assim o caminho de volta ao milharal dos sonhos.

 

As noites passaram a noite acreditando em uma quinta estação.

Muitos de nós simplesmente vegetaram, protegidos por uma cortina de fumaça.

Outros não souberam afinar a esperança.

 

As noites se multiplicaram à toa, em dissonância com seus espectros,

Todos encontramos a casa repleta de fantasmas e o coração vazio.

 

Nenhum de nós soube ser Joe Cocker.

 

 

ÚLTIMA SOMBRA EXTRAVIADA E AS GAVETAS VERTEBRADAS DE CRUZEIRO SEIXAS

 

A eternidade passa depressa,

como a ciência.

CRUZEIRO SEIXAS

 

O homem do outro lado da rua tratava de ressuscitar cavalos.

Nem sempre o reflexo nas colunas de vidro estava de acordo com seus planos.

Por vezes as figuras ressurgiam retorcidas como um sonho mastigado pela memória.

Uma sombra excessivamente alta não resistia às exigências de equilíbrio, e a realidade era fatiada como se o vento lhe dispersasse as páginas originais.

Não sabíamos mais identificar a mobília do tempo.

Empilhávamos fragmentos desconexos na expectativa de que alguma magia recompusesse futuro presente passado.

Uma metamorfose acidental embaralhou os reinos: pedras líquidas, nuvens de carne, rios sem fôlego, cada um expandia um estranho remorso em contato com o outro.

As cidades corriam para o fogo, com suas escadas aflitas e a caligrafia do medo a cada linha consumindo as leis do horizonte.

Do outro lado da rua aquele homem colava os reflexos embaralhados na medida em que ressuscitava cavalos, em cujos olhos embaçados era possível entrever o mundo renascendo.

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

 

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