sábado, 16 de dezembro de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Nenhuma voz cabe no silêncio de outra


 

1. BAZAR DOS GRANDES INVISÍVEIS

 

Baseado em gibi homônimo de autor desconhecido.


Toca o bombardino, Mané das Quatro Roças.

Toca a pimenta de cheiro no nariz das Camélias.

Ribomba, meu sertão fingido, dá cá o peixe

que trazes dentro de tuas várzeas mais ocultas.

 

Fragmento do libreto Roçado de além-mar, apócrifo

 

A noite roçava um gosto secreto pelo inalcançável. Um verbo desencontrado de suas regências. Desfrutávamos os crustáceos afoitos e os abismos fermentados. O lugar reuniu convidados de Salpicão Quaresma, um bruxo local, que os conhecera em suas viagens a trote abissal: Bastião Catispero e Ancinho Takanota. Os vultos vistosos dos Grandes Invisíveis, bem sentados à mesa, quase nos convenciam da existência do mais improvável dos mundos. O cenário seguia à risca a cartilha do inesperado. Por vezes uns tambores retumbavam a querência mais secreta do público. Um sol negro se desmembrava em cada canto da casa. A voz em off do apresentador anunciava a querela galopada dos sábios disfarçados: – Desfrutem a quimera que eles trazem no balaio de seus improvisos.

 

 

As primeiras notícias da terra

deram com areia nos olhos.

Poeira vermelha, savana obesa,

a caixa de pecados só restolhos.

Troca-troca entre mar e sertão,

a menor das sinas interrompidas.

Teve de tudo: colheita e bordel,

no glossário faustoso dessas vidas.

 

O inferno atraca sem grande aprumo.

Troca esgares com a fé e arma sua rede.

Por mil anos nada contestam os jornais.

Os vivos retocam o sujo de cada parede.

Haníbal tropeça em cascos de Elefantes,

disfarça a queda e lhes rouba o marfim.

As perdas voltam um dia a ser ganhos.

Porém Haníbal conhece apenas um fim.

 

Até onde houver lama

a janela escuta o zunido

de almas em pranto e fuga

do ermo mais escondido.

Taxas em atraso soletram

planos da nova estalagem.

Não mais viver embutido,

mas no dorso da viagem.

 

Luzes piscavam, e ninguém sabia

do fogo maturado no aluvião.

Lótus saltando na borda do céu,

antes dela a mais plena escuridão.

Feito expresso das coisas movidas

o mar nunca sabe se vai ou fica.

Cardume de ilusões à noite respinga

e quando pensa na praia se estica.

 

O apêndice no alto do coqueiro

ninguém sabe quem pôs o diabo,

disfarçado de última esperança

maldizia a vida como um quiabo.

Toda gente olhava pro balde,

sem saber quem nele morava.

Não era Deus ou sua máscara,

só um coco que perdera a oitava.

 

Quando eu vi o mundo grande

sacudindo a poeira do vento,

pude ler no encardido que restou

as linhas saltadas do testamento.

Aquelas que garantem alforria

a bom prazo e um queijo frito,

além de céu com luzes piscantes,

para o mais degenerado cabrito.

 

Era um frasco de boa memória

onde guardava gênios e pílulas,

as melhores frases jamais ditas

e o fundo falso das cédulas.

Nenhuma trama contada se ria

mais do que os esgares afinados.

Um dia ao ensaio não veio a atriz

e a arte conheceu novos pecados.

 

O anúncio salpicado na toalha

fazia da mesa gato e sapato.

O olhar da barata sumiu devagar

do pesadelo mascando o retrato.

Quem disse o preço decerto calou

os detalhes da sopa e do refrão.

A mesa escondia sob frio mantel

quem nunca pagou um só pinhão.

 

O casarão ficou pronto

após a primeira demão.

Faça chuva ou faça sol,

não nos falta teto e chão.

Custa caro a ribalta,

muito mais o camarim.

Por ela eu daria meu dote,

por ele roubaria teu rim.

 

Muita história foi apenas dançada,

a pinho e válvulas, uva e salame.

A tal ponto que nem todo o havido

retorna como queixume ou reclame.

As noites foram de palha e pilha,

Ramalho e Adélia em canoa mágica.

Talvez apenas a alma sem lastro

torne a vida uma mobília trágica.

 

Os milagres foram ficando ralos,

casebres de degredo e papelão.

– Fosse eu um Merlin, disse Saúl,

teria dado boa chuva ao sertão…

Nesta bacia de sementes ressecas

mal posso identificar sul e norte.

Quando muito sei que ela, Adélia,

já teve um dia bem melhor porte.

 

O babado na franja do céu

é um rito encardido à espera

que o mito desfaça engodo

e tropeço no baile da ópera.

A fama nos dá de mamar

uma vida de falsa esperança.

De um grotão a outro a mais vil

ratazana desfez a semelhança.

 

o olhar vira poeira, a vida ilude.

Dobras do mar em furor titânico

forjam o pendor que o mito aturde.

Já o câmbio do penhor, este escapa

mais do que turco letrado em fugas.

As necessidades são as torpes vilãs

de enrascadas furtadas pelas rugas.

 

A verdadeira perna

nem sempre é a mais alta.

Nem mesmo a melhor morte

é a que rejeita a ribalta.

Pode ser até que a farsa

seja encenada por um pernalta.

Não importa quanto dure:

um dia nada nos fará falta.

 

Quando a noite se amiúda

perdemos os melhores dias.

Quando dados soam falsos

a casa manda lavar as pias.

O céu reclama suas nuvens,

dormidas fora de esquadro.

Duas pias de estrelas boiando,

molduras em busca do quadro.

 

Farelos de esperança cegam os olhos

de almas tão penadas quanto esguias.

Das noites resta um bordado de uivos

e o floreado carcomido das estrias.

Entre tumbas e trombas e tombos

estrelas conquistam a queda perene.

A matéria se desfaz fora de seu tempo.

Não importa qual chamego lhe acene.

 

Rangem as curvas do crepúsculo,

iludidas da volta de algum barco.

Manchas no céu não identificadas

soam como fuzarca ou um marco.

Mas podem ser um sujo na luneta

ou o olho segregando seu delírio.

Tratar com respeito a imaginação,

manter perto dela um bom colírio.

 

Eu fui ver com quantas gralhas

se destrói um livro santo.

De uma só revoada os salmos

se esconderam sob um manto.

Chego a pensar que a cigarra

é uma formiga empalhada.

E que o tropel dos quatro anjos

não passa de uma reles cilada.

 

A lua dormiu na cisterna,

evitando lençóis da ribeira.

O prato emborcado sonhou

com uma amante na prateleira.

Mamãe quando bebe não liga

se é saquê ou suco de ervas.

Passar uma noite com ela

é ser refém de minervas.

 

A última corredeira tinha um nome.

Ao escorrer seu mel era puro fogo.

O tempo passou de queda em queda.

Já ninguém lembra o último malogro.

Foram-se os verbos e junto as verbas,

mundo melado que a tudo escorrega.

Quem dera restassem fio ou pavio.

Bastava pedi-los e aguardar a entrega.

 

Os céus da pátria são de capim.

Marabu, meu jardim sabotado,

fez de um trailer três troles

e um tigre com pé enfaixado.

Tudo era treva e falsas luzes.

Menos as balas furando a tela.

O ratakatraka raspava tudo

e o olho escafedeu pela janela.

 

Pela dieta de agulhas dos camelos

eu fui passando todo o bagulho.

Ninguém desconfia de pó viajado

em saquinhos do mais puro entulho.

O ouro da fé é a urina dos degredos.

Xarrel pôs o quinto pilar no lombo

do inglês feliz com a própria força.

Para si não queria um novo quilombo.

 

Dos relicários da velha tapera

fiz um refrão pra enxotar o azar.

O Cisne Negro comeu os farelos

de esqueletos fingidos no lagamar.

Nos escombros de tanta história

fui reler o que jamais fizemos.

Para cada inquietude uma troça

e um barco no braço dos remos.

 

Armando a rede na varanda ilustre

o saxofone embaçava o uivo cafona

das migalhas de um último desastre:

bordado de mitos, sopa de mamona.

Flores programadas para murchar

antes que o vento cantasse vitória.

Quem quer que invente o próprio fim.

Aqui mal damos conta dessa história.

 

O melhor mel caía da nevasca,

o Estige nunca esteve para peixe.

Frio era o céu e quente o olhar.

Pela metade não há quem deixe

de frequentar tantas caboclas.

O anúncio é a ilusão que rima

com a prateleira das virtudes.

O mundo em baixo ou em cima.

 

Agora a confusão quer raiar o dia,

mudar depressa o bordão, tingir-se

de morta ou fazer cara de Sulamita,

dando um salsichão por imiscuir-se.

Quem terá visto o cabide onde Luzia

sorrateira deitou, feito um chapéu?

E a toalha feliz com a dona atrevida

que naquela noite papou até o céu?

 

As noites não cobram pedágio algum,

jamais importa o sonho ou o pileque.

Se acordamos em pranto ou orgasmo,

a imagem saberá ser toalha ou leque.

O teu corpo adora fingir-se sereia,

cromo esquecido no fundo do mar.

O dia todo uma noite jogou-se nela,

e o que vimos foi um desastre solar.

 

Não há uma causa que seja santa.

Crença alguma nos leva a Deus.

Tudo expira a cada ira ou suspiro.

Quem se vinga não salva os seus.

Porém Totó desconhece a lenda

e sonha com pilares que um dia

possam tornar sagrado seu xixi…

Também ele quer reino e anarquia.

 

As noites passam por dentro

do mundo que fica lá fora.

Quando um de nós se avizinha

o tempo não vai mais embora.

Rebenta a primeira das águas

no acaso já quase extinto.

Quem quer renascer muitas luas

que aprenda a colher labirintos.

 

A lei de acordo com a cuíca

tanto prende quanto solta.

Não há ilusão mais faceira

do que esperar pela volta.

Rapé algum conforta

ou sopinha caseira alimenta

quem se amarra ao pé da porta

e só de esperar se orienta.

 

O verbo deixou passar a dor requerida,

fábula adormecida, cadafalso sem uso.

Os corvos nos criam, em noites insones.

Jamais pude ler o teu silêncio confuso.

Os deuses amam o que amamos neles.

A cripta de ossos, o malogro dos fatos.

Mistério algum divide tantas páginas

com a alegação de culpa dos artefatos.

 

Um pastel de almas ao preço

de uma depenada ave de prata.

Um terço cansado de rezas,

um empório de  mitos de lata.

Do táxi vi o cordel ao vento

negociando as proezas da fé.

As ruas choravam imoladas

pela perda do estoque de rapé.

 

As lições atiradas na mesa

refletem as agonias do saber.

Quanto mais vozes escoam

mais caprichos fingem dizer.

Por onde andei, quantos sou,

um bicho da seda, um pardal,

nada importa senão que esteja

muito além do bem e do mal.

 

Cascos cutucam as gáveas insones,

indagam sobre estrelas decaídas.

Quantas vezes mortos se repetem

até que escadas não sejam traídas?

Esqueletos confabulam em sacos,

discutem sobre as vagas do porão.

O mundo reage como um micróbio,

fosse um escarro queimaria a mão.

 

Espectros burlam a ilusão de tudo,

o que sonha ficar, o que espera sair.

Horas contadas em nome do caos

engalfinhadas sem ter para onde ir.

Tatuei tua queda no busto de Nero,

pistas de um espalhafato sem igual.

Quando deixamos o tempo passar

mais nada sabia voltar ao normal.

 

Pinóquio saiu para pescar

com seu nariz tinindo de novo.

Uma revoada de lambaris

o aguardava em cada ovo.

Gertudes amou Cupertina

no arpejo de cada lorota.

A verdade enrolada na cortina,

vazias a garrafa e a compota.

 

Quero ver quem vai casar

com o Padre Jospan Pedregulho,

pode ser a lagarta Quaresma

ou a Joana que mora no entulho.

Não importa se mambo ou tango,

a cigarra é a mais afinada.

Vai expor seus dotes na festa

e depois vai ser tudo ou nada.

 

As tropas do General Quaresma

aportaram na boca do pote.

Era uma sede sangrenta a feri-los,

e o medo de morrer sem dote.

Um pelotão de bustos insultava

a decadência de qualquer império.

Quem dera fosse apenas Nero

o imperador não levado a sério.

 

Se Dom Preá pudesse contar

buracos que abriu por acaso,

saltariam diálogos do túmulo

de velhas tramas fora de prazo

enterradas no mesmo teatro

em que é encenada a pouca luz

a história confusa e prescrita

da trova que perdeu até a rima.

 

Em acidente mais afoito

a escada tropeça nas pernas,

a lua cheia era um biscoito

com duas estrelas na caserna.

Noite já finda o alazão

desertou lá do quartel.

Nem de longe imaginou

que confusão daria o mel.

 

O açougueiro sonhava com carnes

fingindo seres míticos, falastrões.

Como nuvens ou sombras no olhar

de crianças confinadas em porões.

Xarrel não guarda uma única bituca.

Tanto crê que o futuro degenera

que nem repete a cama onde dorme.

Prefere matar a morrer de espera.

 

Jandira foi pro mato, viu Porcão,

pôs a lua entre os seios, alumiou,

era um molho de deleites, ela viu,

tarda-ninho, tara feita, s’avultou.

Jandira comeu Porcão no cercado,

lambia beiços, deixou nem grão.

Depois era tarde, realidade se foi,

Porcão era Xampan, rei chapadão.

 

O amor feito entre os sacos

de farinha e ração para peixes

sorria satisfeito e invejado

pelas caixas de ferros e feixes.

Nada disso decerto era notícia

que Adélia um dia recortasse.

Nada mais teria importância

que o perfil do amado evocasse.

 

As dores mudam de fronha e cuba,

viciada em nutella a morte se empacha.

Jandyra não vê senão o breu da bola,

que rói o mito como se fosse borracha.

Deus, pra que tantas visões, tão iguais,

se o morto se esvai a cada arruela ida?

De nada vale rebobinar ou parafusar

a ilusão quando a mesma está perdida.

 

Fosse um dia posto sobre outro

pescaríamos atos e fatos na rede,

caranguejos no balde, vida farta.

Mas o tempo nada fixa na parede.

Cai por terra todo aquele que crê

que nada como um dia após outro.

Lágrimas não são pimentas magoadas.

Do furico de Cleó não sairá um potro.

 

As noites passam por aqui

com seus cascos mordidos

e assanhadas lembranças

de tempos melhores vividos.

A cadeira do doutor Xarrel

guardava um vultoso segredo

de heróis que roncam felizes

com gozos selados bem cedo.

 

Luzia experimenta dormir ao relento.

Dois goles, uma pitada e meio bife,

deixou o Doutor todo empalhadinho,

e logo voltou correndo pro esquife.

Foi o vento, reza a inveja na comarca,

dessas noites em que nada dura em pé.

Dizem que preá e capivara se aleitaram,

e nada ou ninguém pediu segredo ao Zé.

 

Ninguém confia em rito bem passado,

feito salário congelado, amor eterno

ou deusas costuradas na coxa de Zeus.

Não vivo na casa onde lavo meu terno.

Não saldo hoje as dúvidas de amanhã.

Pressa alguma para chegar ao destino.

Se morro antes não haverá como saber

quantas surpresas no ralo do intestino.

 

Dizem que Xarrel era um patrão

misterioso e muito mal pagador.

Roubava folhetos de bom cordel

para vender na boca do Arpoador.

Preso no Corte Inglês na Galiza

vestira tantas roupas em si mesmo

que parecia um ator mambembe

vivendo mil vidas, dormindo a esmo.

 

Era uma vez o mito atrás do espelho.

Ruiu o teto, desastrada, a cegonha.

Veio atender a resmungos e fuxicos,

acabou no chão com cara de pamonha.

Todo mito disfarça a própria fama.

Querendo até mata o rito de vergonha.

Se finge de régio, sacerdotal, mas avia

em hábil camarim um baú de maconha.

 

Demos a volta ao mundo

No velho mustang da igreja.

Jospan garantiu hóstia boa

a toda gente que ali esteja.

Fomos de um cercado a outro

como nuvens em pasto estelar.

Foi o casório mais repleto

de tudo que se possa imaginar.

 

Os lixões guardam a cidade real,

o luxo empilhado tocando o céu.

Babel de mil vidas adulteradas

e um cardume de sonhos ao léu.

Quanto mais se farta a miséria

mais vidas se destinam ao borrão

de verbos decantados e gastura

de hóstias sem pecado e podridão.

 

Um bolo de trevas faz a festa

de quem não sabe contar…

Até onde, até quando, sai daqui,

puxa o rojão pra requebrar…

A noite inteira é uma proeza,

na roldana das Caboclas um trevo.

O nove se deita à espera do dez.

Todos sonham em ser o primevo.

 

Beba o leite mesmo amargo da negra

por ti acobertada ao fugir do hospício.

No zoo a tristeza é tanta que até mesmo

os mosquitos reconhecem o suplício.

Se vimos um dia macacos na punheta,

hoje até os leões fugiram das chácaras.

Bordeis vazios regurgitam seus gozos

e o cetim rasgado de suas máscaras.

 

– Feche a porta ao sair, dizia Xarrel.

O sábio evita o retorno, esquece a ilha,

rejeita o destino que o caça faminto

e cospe em seu nome na boca da filha.

Xarrel levou o Tejo para o São Francisco.

Não por magnânimo ato, não se iludam.

Queria apenas provar, por puro sarcasmo,

que a água fica quando os rios se mudam.

 

Bem sei que a justa sempre quer a sua,

não importa o melado ou chá vencido.

Vamos deixar o palco pronto pra noite.

Ninguém guarda o nome e sim o apelido.

Hora do silêncio ralar em seu bê-a-bá

e as sombras bailarem com as cortinas.

Caronte sabe bem com quantos teatros

o mito vaga a livrar-se de suas toxinas.

 

A vela traga a noite até o fundo

de seus queixumes empoeirados.

Nenhum gole será tão fatal

quanto os que se imaginam dados.

Da traição se quer o gume de espanto,

do saltério a nota que rasga a alma.

O público jamais deixará por menos

a trama em que a dor perde a calma.

 

A cura! A cura! A cura!

O veneno nem tem importância!

Só não ponham na quentinha

a janta pra maior distância...

Quem sabe soletrar a causa

jamais se perderá nos efeitos.

Se o rato lhe rói a língua

o feitiço logo-logo é refeito!

 

A conveniência é a última Quimera,

lojinhas cujas luzes não se apagam.

Mesmo as pecinhas transparentes

guardam segredos que amargam.

Antes de descer do metrô Pandora

chegou a pensar em tirar a calcinha,

tamanho carinho ela tem por Atenas.

Mas nada. Sorriu, e ajeitou a diabinha.

 

O bom de uma noite no paraíso

é que ali toda gente se crê eterna.

Judite, Raimundo, Ritinha, Javé,

todos trocam a fé por uma perna.

Por mil dias o rádio sempre repete

igual cantilena que lustra a alma

de quantos riam, chorem ou gozem

escolhidos por aquela voz tão calma.

 

As luzes criam falsas escuridões,

sapatos atrasam as boas trilhas.

Por instantes beatas engalfinhadas

eram como mães perdendo filhas.

Lá embaixo se ouvia rouco badalo.

Miguel havia fechado suas contas.

As ruas e as rezas se debatiam:

hábitos confusos, bênçãos tontas.

 

Sonhos não sabem senão sonhar.

Cleó insiste em amar a vida inteira.

Sua ilusão será a primeira a morrer,

antes que perceba o vício da esteira.

O mundo que um dia passou por aqui

segue encravado na unha de Cronos.

O que o rádio anuncia, em carne vazia

e gumes do espírito, são frios abonos.

 

Os fins detestam princípios,

sempre tão cegos de razão.

Iguais aos meios que iludem

na calada da noite a emoção.

Sento na coxia a esperar

que apareça um bom motivo,

uma gota d’água, um pavio

ou defunto se fingindo vivo.

 

O abismo olha para dentro de si

como se buscasse uns sutis vapores.

Sobe ladeiras de janelas abertas,

deixa o medo despir seus ardores.

Ninguém dispensa jamais o excesso.

Por onde quer que ande a vela acesa

e a teimosia atropelando a estrada,

nada confessa o abismo à última presa.

 

Não fiquem zanzando pela feira

na injúria de palanques crendo.

A fé na política é igual à da missa.

Cão que morde o rabo está vendo

a imagem anunciada em sua fome.

Se um dia pudesse calar o instinto

decerto comeria o rabo de outro,

e Xarrel diria orgulhoso: não minto.

 

Não venha agora dizendo

que o mundo está um bagaço.

O dia inteiro eu te amei,

e à noite eu fui teu palhaço.

Perdemos o chapéu na corte

e as moedas em fundo falso.

Se um dia brilhamos no trono,

hoje só nos resta o cadafalso.

 

Pelo grifo que pinga a história

desconfio que estou atrasado.

Ao ligar o skype ouço arquejos

do horizonte, destino queimado.

A cigana que leu a minha mão,

se fosse cobrar por seus erros,

já teríamos comido outra lenda,

falsos olhares fugindo aos berros.

 

Mil cascos furados o oceano engulha,

uma língua presa a outras definha.

Vi palmeiras rejeitando deixar a ilha,

a dor esmagada que ainda não tinha.

Um céu pra cada lado, um véu retinto,

a corneta do Armagedom desafinada.

Medalhas foram comidas com desgosto.

Ao final, o tio nem brada nem nada.

 

Para Gilda perdi meus humores.

Hoje me esgueiro entre horrores,

feito espada repleta de dores,

aquarela que apagou suas cores.

Com Gilda se foram meus atores,

tanta fortuna no mel dos penhores,

noite azarenta entre mil senhores.

Não sei mais como amar Dolores.

 

Quando as pérolas gemem

e garfos entortam o nariz

certamente nada mais falta,

nem mesmo mascar o verniz.

A solidão devora castelos

em suas orgias derretidas.

O alquimista não cobra tostão

por essas tendas pervertidas.

 

A tempestade tem mil patadas

prontas para ruir cada margem

de limites que firam a natureza

e embaralhem dor e miragem.

Saúl pôs uma pulga em cada cós.

As margens todas se roçavam.

Mascavam sua dieta inanimada.

Por vezes entre elas se coçavam.

 

Cada vez que a casa cai

o jardim suspira fundo,

Ciente do que deva pensar

das dores desse assunto.

O fardo de cada queda sua

decifra a miséria do mundo.

Decerto há quem faça reserva

do paradeiro de cada defunto.

 

O patuá fornido caçoou do gambá.

Não levo comigo queixa ou catinga

Nada que azede na curva do olhar.

A diaba pra espumar mija na pinga.

Com ela minha vida é na contramão.

Não passa um caldo ou raspo o tacho

que não seja na boca da Gigantona.

Dentro dela me perco e nem me acho.

 

O céu jamais se conformou

com seus cabelos pintados.

Não é que chova ou não,

ou que desabe o retocado.

Dele o que bem se espera

(ele sabe ah como ele sabe)

é que não mude nunca de cor

antes que um dia tudo acabe.

 

O inferno faz de conta que é céu

quanto mais untas teu nome ao meu.

De goma e sonho fazemos mil hóstias,

salões de espelhos e remos de Orfeu.

Não gastamos tanto verbo para nada.

De mãos vazias nem Deus retorna.

Querubim cresceu, Salomão se fez,

sem esquecer no alforje a bigorna.

 

São trevos, são pinos, são laços,

há quem veja até um cadafalso,

onde se esqueceu um dia o grito

na ferrugem da dor do espinhaço.

Querem ver com quantas dobras

Se corrige uma súbita distância?

Olhem bem o breu agora (agora)

antes que ele engula outra ânsia.

 

Para não perder o fino legado

fiz a entrega em dois bocados.

Primeiro a carcaça pelo ralo,

e em trapos embalei os pecados.

Fiz do céu um farnel de estrelas.

Viagem sem mapa ou tempero.

Quem sabe o vinho e o rosário

decifrem a rota sem desespero.

 

Um cisco no olho esquerdo

e perdi o melhor da cilada.

Quem saberia dizer por que

fugiste no melhor da estrada?

Mesmo intrigado dali não saí,

noites a fio no pé da escada,

até que o olho apagasse o cisco.

Quando o abri não havia nada.

 

Leda penteando as algas do mistério

na peruca aguarda pelo último ato.

Babo sussurra um trombone lá atrás,

a plateia se requebra, é o mecenato.

Leda faz de si inesperada omelete.

Mãe e Morte sacrificam suas filhas.

Voltem sempre, tragam amigos.

O inferno não desconta as milhas.

 

Mais vale um truque velho

que ainda recorde o recado

do que uma virtude novinha

que lembre antigo pecado.

O tempo guardado em sigilo

no cofre ou em uma bacia

não vale o arremedo do gato

ou o enguiço de uma enguia.

 

O diabo foi moendo a fenda, a lenda,

o pavio queimado, a voz ressecada.

Pouco sobrou até que a imaginação

voltasse a nutrir a totalidade de nada.

Na catraca do céu ingressos forjados,

na muralha do inferno quem se arrisca.

Por aqui passou um sacerdote sapeca,

e disse que o diabo não era boa bisca.

 

O homem jamais fez ideia

do que poderia ter sido.

Fez de Deus o seu coringa,

sempre a reclamar do pedido.

Quer ver a mulata assanhada,

fumegando diante do espelho?

Revele a idade da prata

ou as molas que apoiam o coelho.

 

 

Antes que a plateia perceba que o lero enfiado chegou ao fim, Salpicão Quaresma atravessa o fundo do palco disfarçado de cisne branco, cantarolando a coda com que havia sonhado ao convidar os dois magos da loucura.

 

Céu aberto, céu mais fino,

nuvenzinha de algodão.

Quando bate o mel no vento

vem comer na minha mão.

 

Sai de mim, te esfarela

na porteira do sertão.

Nuvenzinha mais fininha

faz do céu um sabichão.

 

 

2. MOLEQUE DOS TERNOS

 

 

Não te atrevas a dizer por onde o dia cai, pois afinal o dia apenas cai. Moleque dos Ternos acordou pensando nos guardados das últimas viagens. A pedra com um umbigo raspado em seu centro. O manuscrito do que lhe pareceu uma trama temperada a quatro mãos. A cabeça reduzida de um prosaico guerreiro. Os pergaminhos do tempo, suas cicatrizes refeitas, o império da amplitude. Moleque dos Ternos assuntou de muitas formas aqueles murmúrios da imensidão.

 

O MARMELO PERDIDO: RASCUNHO APÓCRIFO

 

Sim, a tática de sacar uma pequena tiragem inicial é neste sentido que percebeste. Hoje é o ansiado almoço com Lorde Paxá do Mecenato. Torça por nós. Quanto a um novo projeto, não havia pensado em algo para começarmos ainda hoje, mas sim, bem ao contrário do insight instantâneo da trilogia. Esqueçamos o público, pois a reação de um mesmo público em duas noites sequenciadas, ao mesmo espetáculo, quase sempre é distinta. Se o criador não tem juízo, o público tem menos ainda. Certamente continuaremos improvisando, porque somos o mais puro jazz. Mas agora o faremos a partir de uma partitura. O que chamas de plano geral. A ideia de publicação em fascículos me atrai muito, mas veja, não seriam impressos, pela simples razão de que lidaríamos com um imenso esforço em prol de um público mínimo. Desta forma, podemos criar um ambiente próprio e virtual para circulação dos fascículos. Faríamos tudo, desde o princípio, bem ilustrado com nossos truques plásticos e gráficos. Imaginemos um cenário inicial em que Octavius Mancha, o autor de toda a trama épica, encontra-se em seu estúdio, entre papéis, e de repente dele se desloca sua sombra, Bromildo, e ambos então começam a discutir sobre a ambiguidade na criação de um roteiro. Para dar ainda mais molho à cena poderá surgir de sua biblioteca o espírito de Veráclito. A partir daí começa a vir à tona a ideia da busca do Marmelo Perdido da Evolução. Dr. Dário Curtume, o Tesão Transcendente, Fiat Lux da origem de nossa espécie, começa a definir sua expedição, rotas, temas, interesses, personagens. Aproveitamos a tua sugestão na íntegra. Apenas mudei o nome do Cônsul da França por Cônsul da Franja, que seria o representante legal do Tratado de Mil Tortilhas. Vamos assim desenhando planos de fundo geral e suas táticas de ataque, para a escritura dos primeiros atos. Mas não evitemos o improviso em circunstância alguma, que é onde reside nossa maior força. O que devemos fazer é listar os casos reincidentes, ou seja, certos temas, personagens, enfoques, já utilizados na Origem da Comédia, e que aqui não devemos repetir. Podemos inserir em cena uma simpática coelhinha que come cartolas. O mágico, contrariado com a dieta infernal de sua parceira preferida, vai a uma Magic Shop comprar cartolas invisíveis, e ali descobre uma relíquia, uma cortina com cenários falsos. E na parte interna da mesma, no selo do fabricante, lê o seguinte texto: “O grande poder de um ilusionista está em sempre convencer a todos de que sua cabeça está vazia”. [

 

 

A caminho de casa, Moleque dos Ternos recordava uns pequenos textos que havia escrito a modo de editoriais de uma revista. Eram anotações do instinto. Rabiscos giratórios em torno de temas tão comuns e por vezes adulterados por pequenos delitos do cotidiano.

 

I – AS FORÇAS SECRETAS QUE MOVEM O MUNDO

 

A paisagem joga com nossa memória. Transborda seus labirintos, a escola de asas do abismo, o estojo secreto de enigmas com que nos desafiam a percorrer túneis e bosques, despenhadeiros e atalhos, minas e aguaceiros. Os truques que simulam infinidade de caminhos. A memória aturdida no centro desse ardil. De quantas maneiras, afinal, o mundo se repete em cada curva, em cada sombra surgida entre uma e outra árvore? O que lemos ontem quando passamos por ali? Ou acaso jamais aqui estivemos?

Ler parecia uma tarefa simples. Apenas reunir os sinais andarilhos da paisagem, as fontes distraídas da memória. Ao abrir-se a mão vislumbrar ali o mapa da mais sedutora de todas as quimeras. Ler o teu corpo inteiro a partir desse mínimo gesto. Ler como quem nutre o tempo de novas passagens de um estreito a outro do infinito. Sem deixar que os demais sentidos se confundam ou percam a centelha de sua entrega. Ler o imaginário requer refazer-se com ele a cada linha percorrida, a cada letra antevista em seu movimento furtivo.

A música ouve a si mesma enquanto trafega de um instrumento a outro. Manto insuspeito de peles. Pequenas estradas que se multiplicam melodia adentro. Santos que bordam ritmos, notações oníricas, fantasias do fogo. A memória masca sua delirante partitura. O que ouvimos não se repete. O insondável, no entanto, nos visita com uma intimidade de rios intensamente navegados. Fábulas do sangue dentro da noite. Os filhos que se espalham pela terra.

Há um ponto em que se irmanam as forças secretas que movem o mundo. A paisagem confunde-se com a memória em um jogo amoroso. Toda a poesia anunciada como uma hemorragia de imagens à espreita do gozo dos sentidos. Os lugares nós os identificamos, anotamos seus nomes em um mapa de vertigens: países, tradições líricas, truques renovados. Um novo continente desenha corpo e sombra do que jamais foi possível deixar de ser. Talvez o chamemos de América Hispânica apenas para melhor compreendermos seus capítulos, a artimanha de seus enredos. Porém seu nome será sempre outro. Ainda que o sangue que lhe irriga a existência seja a língua espanhola, serão distintas as virtudes colhidas, distintas as visões alcançadas a cada estação.

A terra se inflama ao descrever as contas de seus mundos percorridos, avistados, vividos, ansiados. Nada se furta a um novo domínio de sensações. Mesmo que eu passe por aqui infinitas vezes será sempre outro o lugar. Não importa que chamemos essa estalagem de Internet. O nome facilita uso e abuso das formas, inclusive o desgaste da origem. Uma fagulha de imprecisão, um desafio ao imprevisto. Que seja este o nome: Internet. Por aqui passaremos como reflexos irrepetíveis. Aqui deitaremos a semente ígnea daquele outro ponto que identificamos por América Hispânica.

Deixemos que se reconheçam nas vísceras uma da outra: paisagem e memória, que se entredevorem e se refaçam sem perder o gosto pelo abismo. Voltemos aqui uma e outra vez. Não contemos as pedras do retorno. Apenas cuidemos de não deixar de vir aqui. Também nós seremos sempre outros a cada visita. Este mundo – nosso mundo – não se esgota. [

 

II – AS FORMAS SOMOS NÓS

 

As formas se buscam no escuro, se atraem, jogam com suas essências em um bordado de ramos e veias. Confabulam suas vertigens aprendidas a pleno abismo. Cantam sempre a última canção. As formas, se não sabem ao menos intuem, intuem as preciosas, que não possuem outro corpo senão o traje único com que frequentam nossas vidas. As formas assim se sentem bem, e se empenham em ser mais nitidamente o que são. As formas falam e não nos deixam sem saber o que desejam.

É preciso localizá-las, as formas, em suas variadas maneiras de ser. Quando se risca um fósforo, toca uma pele, amordaça alguém – saem formas de toda parte. As que julgamos não nos dizerem respeito, as que esmolamos por sua atenção, as que usamos contra as demais. As cidades emergem de nosso íntimo como uma revelação. Muitas formas não necessitam plano. Os ciclos naturais com que a vida se extingue, no entanto, passam a desconfiar de sua naturalidade. O milagre também tem seus pudores, suas formas secretas.

Planejar formas tornou-se uma atividade criminal. O mito desconhece seus princípios. É de se supor que muitos não façam a menor ideia do papel que representam. Por sua vez, o homem só esquece que Deus é uma invenção sua quando necessita transferir a alguém a responsabilidade de seus atos. A ideia é exatamente esta: jogar com diversos papéis, mesclando representações, desgastando as formas.

Aos poucos as formas vão perdendo ancestralidade. Acatam ou rejeitam uma filiação de destroços. O homem converte o desastre em criação. Esta é sua obra, não importam os escombros. As formas aprendem rapidamente e sabem que o teatro da representação não dispõe de tantos lugares ou mesmo contrato para sessões infinitas. O mundo se esgota em si mesmo – máxima que se repete até apagar-se por completo.

As formas deixadas para trás o são a cada segundo. Quase todas se reagrupam, porém algumas cobram atenção pela função não cumprida. Como livrar-se delas é curiosamente uma preocupação de quem as criou. Talvez estabelecer novas regras para a representação. Talvez simplesmente esquecer tudo isto. Talvez já ninguém dê importância ao que se passa. O problema assim estaria contornado. Novas formas seriam bem vindas.

As cidades são destruídas de muitas maneiras. Por um terremoto ou uma explosão demográfica. E como muitas cidades são destruídas a cada instante, criamos uma escala de valores. O jogo é tão bem disposto que a dor de uma destruição requer para si mais atenção que a outra. Uma dor anula outra. As dores não são formas aliadas. O homem aceita a múltipla falência de órgãos, porém rejeita conciliar céu e inferno em sua barbárie irrevogável.

Os desastres possuem características próprias. O sofrimento humano é quem as define. A insistência na permanência de um governo autoritário. A sagacidade de um governo democrático em perpetuar-se em substituição de um mandatário. A distração que nos leva a crer na irrisória importância de tal crédito. As formas sem saber ao certo as regras do jogo.

As formas somos nós. O homem somos nós. Nada a Deus pertence. [

 

IIIOUÇAM NOSSOS NOMES

 

É possível que muitos nomes tenham se perdido porque não havia como atender quando foram evocados. Muitos até agora talvez desconheçam onde se encontram. A maneira com que suas vozes se contorcem dói no íntimo da noite. Ali buscamos outro nome para cada coisa perdida. A dor realimenta suas preces, porém nada evita que sejam tratados com intolerável distância. Sempre esquecemos que é justamente onde os fatos se repetem que preservamos nossa essência. Como as vozes dentro de cada nome perdido, o sofrimento que elas levam em si e se repete como uma linguagem que desaba incansavelmente.

Tudo aquilo que soletramos com todo o espírito, enquanto o presente por vezes apenas se desgasta em nossas mãos, tudo isto a que chamamos criação, não contraria essa ideia. Como se estivéssemos sempre reeducando velhas imagens, para que não deixem nunca de ser o que são. Corpos desnudos sobre a pedra quente. Formas pintadas que vão perdendo seus ângulos. Quantas vezes a aparência joga conosco para que creiamos no princípio aleatório que nos legitima! Tudo o que vemos se deforma, em nome do desejo ou da memória.

Ouçam os nossos nomes. As pedras com que vamos clareando a noite. As expressões que caminham para o tumulto de seus propósitos. O verbo se desmembrando em novas obsessões. Por onde passamos muitas coisas mais e mais se parecem com nossas sombras. Contudo, não há absurdo maior do que a semelhança. Há que descrever o abismo antes que se desfaça de suas partes mais fecundas. Pintar-lhe o retrato incansavelmente para que não se sinta sozinho. Evitar ao instinto a sensação de abandono.

Repetir os elementos para que se movam e não apodreçam. Para que não esqueçam os nomes perdidos ou suas pernas ou suas línguas. Para que os rostos apagados não sejam motivos de recuo. Não há outra maneira de entrar em casa e ali existir. Assim é que saímos por toda a parte a preparar a refeição de outros duplos e sombras que se reúnem em volta da mesma pedra. Assim revisamos intimamente os capítulos que devem ser reescritos, as vinhetas inúmeras que não devem cessar seu testemunho.

Assim o livro não se esgota nem o abismo chega ao fim. [

 

 

Deu-lhe então de recordar desafio que havia feito um amigo, o crítico Jacobino Cliptônico, quando conversaram a respeito da hora certa de Moleque dos Ternos escrever um romance. Para ele, Jacobino, nosso protagonista somava uma quando menos burlesca e soberba experiência de vida a uma fluência imaginativa que há muito vinha faltando em nossa narrativa de pequenos delitos e insossos rebuliços d’alma.

 

IVCAATINGA DREAMS

 

A experiência é meu único dever

INGMAR BERGMAN

 

A perda de um pouco de memória costuma ser gentil com a alma.

WALTER BISHOP

 

2043. O que passar por aqui será escrito. Este é um acordo secreto feito entre muitas vidas, muitas delas jamais compreenderam o motivo. 31 anos se passaram sem a mínima suspeita de que eu devesse retomar essas anotações.

 

A primeira máscara não sabia muito bem como pronunciar-se. Algo lhe dizia que evitasse os lugares comuns, porém o dilema radicava propriamente em identificá-los. Helena me havia confessado o contexto de suas dores. O espelho a perseguia com figuras que correspondiam a passagens filtradas de sua própria vida. O espelho a refletia, não há dúvida quanto a isto, porém em momento algum se encontrava diante de sua representação atual. É como se o espelho filtrasse seu passado, desatando parentescos, analogias, com parte do que vivera, fatias de uma Helena simbólica que era sempre um duplo de si mesma. O espelho não lhe cicatrizava o passado. Devorador ardiloso disposto a passar-se por passivo, o espelho reluzia uma consciência estremecida, descontínua, afetada pelos humores da ansiedade. Quando Helena começou a variar as máscaras de presença ao meu lado, percebi que ela estava desenvolvendo um perigoso atributo em nossos encontros.

– Se um dia o teu corpo disser adeus ao meu ele não saberá para onde ir.

Costumávamos rir com essas frases que surgiam entre nossas carícias. A única mobília de que me recordo agora era um sofá de todo improvável que usávamos como passagem de um mundo a outro. Não havia espelho ou qualquer preocupação com a distância. Fabulamos uma intimidade tão intensa que jamais demos pela ausência do mundo visível. Recordo uma vez, logo ao princípio, em que Helena por duas ou três vezes insistiu em falar comigo ao telefone. Vivia talvez a ilusão de que a voz conduzisse a alguma realidade, a algum argumento de personificação do que escutamos. Eu sentia o mundo desfazer-se dentro de mim a cada insistência dela. Quem eu poderia ser ao telefone?

– Não me importa o que digas. Há momentos em que necessito desvendar o sabor, o cheiro, a temperatura de tua voz. O meu corpo vive agora tão distante de mim e ao mesmo tempo eu o sinto de uma forma que jamais pude imaginar.

– Eu também não sei ao certo o que estamos fazendo. Eu não procuro ter respostas para o desejo.

– Não parece estranho que estejamos a dar corpo ao intangível? O que somos? Quando nos desconectamos, voltamos a ser exatamente o que?

Helena necessitava da prova física de uma manifestação do improvável em sua vida, esquecendo que as demais formas de comunicação à distância entre os seres repetiam, na origem, o mesmo grau momentâneo de rejeição. O orgasmo alcançado no frenesi de um teclado que fixa no desejo a mística de impulsos imediatamente correspondidos não é distinto da masturbação em sua forma clássica. A exploração do sexo à distância sempre rendeu mais argumentos bancários do que morais.

– Amor, onde estás? Eu te espero como uma louca, sem saber o que está se passando comigo. Hoje o pensamento em ti me queimava por dentro e fui ao banheiro no hospital me tocar pensando em nós. Vem me tocar.

Quais as verdadeiras atividades físicas do homem? Em essência, o que somos é reflexo do que desejamos, imaginamos, recordamos. O hábito nunca fez o monge. A idéia do sacrifício físico é uma manipulação da política. A queda bíblica que levamos a vida cavando não tem limites fixos. Se nunca estivemos aqui antes, que sentido faz recorrer a verbos cuja essência indica retorno? E se não há origem, como ao menos imaginar um sucedâneo?

– Amor, onde estás? [

 

 

Pouco tempo depois houve uma noite em que uns amigos quase naufragaram a história a recordar entre mil cervejas o destino dos desaparecidos. Era um bar na Ciudad de México, já ninguém recorda o ano. Se algo a cerveja fez desaparecer foi a data do encontro. Moleque dos Ternos deu ali um depoimento sobre a querela dos desaparecidos, que estava sendo demasiado politizado pela mesa. Começou recordando verso do poeta Luis Cardoza y Aragón: La poesía oscura deslumbra con su misteriosa claridad.

 

VLOS DESAPARECIDOS

 

Nadie es de todo fiel a la memoria de sus pérdidas. Por más que suspire la noche en medio a sus rutas vencidas, nadie inventa una torre que sea el epitafio confuso de su existencia. Todas las cosas en la tierra están más allá del pensamiento y la acción. La imagen muerde el sueño, así como el incendio rehace la casa perdida en el mapa común de los huesos. El hombre es una familia de migajuelas asombradas. Un suplicio, una esperanza, un rapto, y la casa se va a los infiernos de la duda. Yo sé que hay momentos en que la muerte no sabe más qué hacer de nosotros. ¿Qué hacer con los niños de las estrellas enmudecidas? ¿Qué hacer con la esfera quemante de nuestras ideas de nuevos pasos y el vientre preñado de las ventanas que dan para los manantiales de un modo distinto de uno perderse en la vida?

Los puentes pueden ser un litoral porfiado, una quimera reclusa, un clima sin finalidad. Los amantes son la venganza de la más sombría timidez de encontrarse con el vacío. ¿Cuántos han desaparecido antes o después de la muerte? ¿Hay un asombro guardado para cada vena y su astrolabio aprendiz? La misma imagen que desaparece frente a los ciegos es la que no puede alcanzar la navegación de los espejos. El mundo es un comedor. La sombra es un amor sin velas. Hay que hablar con el mesero sobre el origen de las carnes.

Cuando aquí llegaron los primeros desaparecidos nadie podría imaginar que la vida faltara a sus actos solemnes. La vida es un asombro compartido. La vida es un desierto hospitalario de las ventanas más sorprendentes. No hay tinta o papel suficiente para la vida. No hay miseria que frene la existencia. Por eso pasamos la página de morir sin morir. Por eso olvidamos las semillas que golpearon nuestras manos. Por eso la voz del testigo es la voz de la indiferencia. Nosotros somos los resucitados a cada día. Los desaparecidos de la libertad. Los ingenuos que creen en el abismo inefable. ¿A quién dedicar la embriaguez de nuestros olvidos?

Nadie puede creer en la razón de las guerras. Pero hay un milagro ambiguo que hace que la cura de las enfermedades pueble demasiado el mundo. La primera embriaguez nos dice que hay que matar gente. La segunda reclama que hay que enseñar a la gente a no tener hijos a cada noche. Los gobiernos más crueles son los que estimulan la multiplicidad de la especie. Dime, pobre víctima de la farsa de la muerte, ¿desde cuándo has desaparecido? La frustración hace con que desaparezcamos de nosotros mismos. La muerte no lleva a una satisfacción de tumbas. Pero ¿qué hacer con la respiración que no corresponde a la promesa de una vida nueva?

Yo quería estar donde no me das cuenta. Pero así yo mismo sería uno desaparecido de tu idea de mi amor. La vida es una fuente viuda de desaparecimiento. Hay que pensar en que métodos utilizamos para aceptar, rechazar o simplemente olvidar la autopsia cotidiana que hacemos de nuestras vidas. ¿Quién somos los desaparecidos? ¿Y somos desaparecidos de quién? Yo quiero acabar con las disidencias, con el efecto senil de las discordancias, es eso. Es lo que quiero. Así que me pongo a matar a todos que pueden representar una constancia estilística que sea en desacuerdo con la fe de mis labios.

La melodía de la muerte nos convierte en estatuas que salen a bailar por los milagros calcinados, como solemnes prodigios de la libertad. ¿Qué tiempo necesita el hombre para invadirse por completo? El límite de las cosas es una fábula que atiende a las satisfacciones personales. No hay como restituir memoria a la imaginación, no importa a cuantas máscaras nos encontremos condenados. Un libro se escribe dentro de otro hasta el infinito y no hay inquisición suficiente para cerrar las puertas a la lectura de lo esencial.

Ahora hay que preparar la materia para aceptar sus limitaciones. El empleo de la imaginación puede cegar los espejos de la dominación. No me leas hasta que descubras el sentido de tu biblioteca de infortunios. El alfabeto cautivo acumula sus líneas de cansancio, la descreencia en un buen lector que llegue para recortar las escrituras y transfigurarlas. Allí estamos, múltiples como la disciplina del abismo, rellenos de movimiento como la pátina fantástica de los ríos, fértiles como la invisibilidad de lo que se mueve en nuestro íntimo. Para que el mundo vuelva a ser imprevisto hay que creer en las profecías de lo inconciliable.

La realidad aplasta sus serpientes. Crear exige creer. El absurdo danza con sus palabras metafísicas, reviste el sueño de actos oscuros, minera las ventajas de uno sobre los demás. No importa que el absurdo se llame arte, ciencia, religión. El hombre es frecuentemente traicionado porque necesita creer. El hombre sueña con la desaparición de las coincidencias. La calidad de la vida sufre las limitaciones de su aceptación. Un cuerpo se arrastra hacia sí mismo, como se la hostilidad del mundo fuera monosilábica, invertebrada, indivisible.

La razón reposa en silencio de cuerdas flojas. La verdad de la memoria es un mundo de paisajes repetidas en su oscuridad sin fin. El lenguaje posee dos venas que se llenan de la más ficticia incertidumbre. Una de ellas cree en la alquimia, mientras la otra rescata las formas todas de las antítesis perdidas. Los párrafos desaparecidos de una infancia son como las cartas apócrifas que salvan a los personajes de ciertos vértigos de la brujería. Una intemperie. Una promiscuidad no revelada. Una dolor pulsante sin combinación con otras líneas ilegibles. ¿Cómo entender que la verdad se alimente únicamente de sus metáforas?

Lo que más quiere uno es caer e quedarse en ese movimiento hacia la negación de todo cuanto alimente su perplejidad de una existencia común. No hay como llegar a la conclusión de que el hombre no esté listo para ser otro. No está. En la navaja del sueño. En el hogar inmune de sus culpas. En las vigilias humilladas, humillantes. El hombre camina por las calles del efímero con una falsa razón en sus bolsillos. No hay como extraer vida del hombre. Este personaje hace mucho ha pasado de sus límites.

Los conceptos incuestionables son el futuro de los errores más auténticos. No hay como conocer el mundo sin dejarse tocar por sus escalofríos. No hay necesidad de morir, sino de comprender que el hombre se alegra y sufre de acuerdo con nuestra realización. Un soplo. Una danza. La impensable revolución. El hombre está por toda parte. Cuando uno que sea desaparezca de los demás es la especie entera que no sabe qué hacer con su destino.

Camino de casa, todo indaga: somos desaparecidos, ¿de qué? [

 

 

A suprema alucinação de Moleque dos Ternos era descobrir um modo de anular as forças dispersivas do tempo. Havia feito de tudo em sua pouca vida. Pastor de galinhas e guia de surdos. Coletor de bombinhas de salão e diluidor de tintas. Um dia publicou um livro sobre a fantasia náutica de uma série de grafites que disseminou pelo continente. Esteve no lançamento um velho amigo da escola de vadiagens jornalísticas e o convidou para escrever no importante varal que então dirigia. Como havia uns trocados na pauta, mencionou apenas uma relutância, a de que pretendia a crônica sequenciada de um lugar imaginário que chamamos de realidade. Tudo isto é já relicário jornalístico, mas é tão curiosa a forma como o cotidiano se engalfinha nas próprias pernas que ao reproduzir algumas dessas crônicas não estamos senão dando corda ao tempo para que nos acompanhe a existência.

 

VIVIDA SECRETA DA REALIDADE

 

09. Só pensamos em violência quando somos movidos por alguma ação violenta. Por mais óbvio que possa parecer, não há nada que nos afete a ordem, exceto a desordem. E há ainda uma lógica perversa: aquele que articula qualquer campanha contra a violência, certamente acaba de sofrer alguma. O próprio conceito se mostra deformado, limitando-se a ação a danos físicos ou financeiros. Na verdade, somos mais cúmplices do que vítimas das articulações entre causa e efeito.

A onda de criminalidade propagada, se bem observada, é mero efeito de nossa inação. E tal fato não ocorre no plano físico, no tiro à queima-roupa ou na votação de emenda no Congresso. Este é tão-somente o patamar das decorrências. Pensar que a inspiração está no cumular desigualdades é uma tolice, ingenuidade tosca. A menos que se circunscreva a história da humanidade aos limites de uma tábua santa onde se lê: o homem é um animal violento.

Assim, o garoto maltrapilho com olhos esbugalhados no semáforo constitui o padrão de violência de uma classe média encharcada de culpa. Mas há inúmeros outros, uma vez que também esta senhora possui seus estatutos, entre esquivos e espinhosos. Tanto é violenta a política econômica escoada do Planalto Central quanto a falta de caráter de artistas que aderem a campanhas políticas em busca de autopromoção. Tanto é violenta a política de subvenção da produção artística quanto o descaso do poder público para com a recuperação do acervo cultural do país. São estes, aliás, alguns dos lugares-comuns da violência.

Mas há criminalidade de toda ordem, sobretudo aquela que se pode chamar de criminalidade branca, que degrada e distorce os conceitos morais de uma sociedade. Editoras adquirem direitos autorais de autores que não pretendem publicar. Professores universitários promovem a má literatura que escrevem em salas de aula. Jornalistas barram a divulgação de matérias que constituam concorrência aos seus interesses pessoais. Mas como em nenhum caso um ente tem o braço canivetado no semáforo, então não é violência.

Violência é quando estabelecemos uma diferença entre o que dói em mim e o que dói no outro. As campanhas de paz, por exemplo, são flâmulas de um mea culpa ou a sacolinha de um pastor evangélico? Ou acaso elas são fruto de uma súbita consciência social despertada ao se ter a filha currada em um beco?

Reflitamos: o homem só pensa na violência quando esta lhe desaba sobre os ombros. Ou quando lhe atrai.

Quanta violência é possível gerar em nome de uma ação contra a violência?

Disse certa vez René Magritte que a liberdade é a possibilidade de ser e não a obrigação de ser. A violência, por sua vez, é a expressão de uma obrigação ou de uma possibilidade? Somos violentos por natureza, por esporte, por conveniência. Sempre que pensarmos em quanto o mundo tem andado violento, não podemos deixar de lado nossa cumplicidade.

Somos todos violentos, inclusive os violentados que movem campanha contra a violência. [

 

18. O cenário pode ser uma manhã de sol, uma praça. Um homem caminha despreocupado de seu tempo. Não faz a mínima ideia do que se passa à sua volta. Uns passos a mais e para diante de uma banca de jornais. A primeira coisa que lê: “Preso o assassino de Diana Versalis”. Que significado teria aquilo? Alguém matara uma mulher e estava sendo preso. Como o teria feito? Seguiu lendo, por um segundo capturado pela notícia: “A mãe da vítima a encontrou nua, o sexo dilacerado”. Há uma nítida regressão em tudo isto. Talvez não interesse mais ao leitor a crônica dos dias sangrentos. Nem a mim narrar os passos de um homem comum.

Diante do que nos assusta, sempre perguntamos: em que tempo estamos vivendo? No mesmo tempo em que temos vivido sempre. O cenário pode ser uma manhã de sol, não mais uma praça. Uma mulher se apaixona por seu cão, leva-o consigo a toda parte. Brinda à saúde de seus momentos de gozo. Sua foto na imprensa nos garante que nada de igual importância se passa à sua volta. Nada no mundo equivale àquela paixão expansiva que sente por seu cão. Um pobre diabo se irrita diante daquilo e explode uma banca de jornais. Levado pela polícia brada seus motivos, mas ninguém quer ouvi-los. Há restos de jornais por toda a rua.

A crônica dos dias já não nos assalta a atenção. Como teremos chegado a isto? Sabemos apenas que o cenário poderia voltar a repetir-se. Uma vez mais a mesma manhã de sol. Não importa em que ano ou em qual cidade. As manchetes nos jornais costumavam desnortear a passagem do tempo. O que tinha se passado com Cíntia, com o que sonhava Adolfo, a luta de Leda contra o câncer. Quem mais se importa com tudo isso? Os jornais bem podiam vir sem datas. Não haveria melhor crônica: a perda da noção dos dias. Alguém poderia acordar no meio da noite, sufocado por uma manchete: “Um louco sobe ao palco e atira no rosto do músico”, mesmo que na manhã seguinte o fato ainda não houvesse ocorrido. Uma lástima.

A imprensa bem que poderia ser a nossa única garantia de que as coisas realmente aconteceram. Ouvira mais ou menos isto da boca de uma senhora conversando com o jornaleiro. Não tinha certeza. Tudo vinha sendo muito vago, exceto o sol naquela manhã aparentemente a mesma desde há muito tempo. Como parar de escrever tais crônicas imprecisas? “Maria Anita morre após esperar 18 horas por uma vaga na UTI.” “Em seu depoimento, o traficante Paisinho entrega senadores e empresários.” “Agora em Fracaleza Drinks tem DJ para qualquer tipo de festa.” Lembro-me então da mãe de Milan Kundera, para quem as peras em seu jardim tinham mais importância que os tanques russos invadindo o país.

O que faz com que alguém leia jornais? Talvez a falta de vida própria. A necessidade de identificar-se com alguém, talvez. Gilka desprezava o padrasto: “Você nunca saiu no jornal!” Depois ria, com larga demência, os olhos no recorte emoldurado: orgulhosa de si mesma, alheia à prisão em flagrante sobre o corpo do noivo esfaqueado. Nada no mundo supera a crônica do infortúnio. [

 

27. Por todos os lados, para onde quer que o homem dirija seus sentidos, algo lhe anuncia o indesejável. E o faz pior, tornando-o desejoso. Um apetite fraudado, um ataque sistemático ao desejo, confundindo-o, afligindo-o.

O telefone interrompe a concentração do velho padre. Uma voz lhe indaga sobre plano de saúde.

O que o homem pensa parte de seu desejo. Mesmo a reflexão sobre o vazio não é senão reflexão sobre o desejo do vazio. Segundo as palavras de Cristo, o conhecimento de si deve ser construído livremente.

Interrupções. De qualquer espécie. O telefone que volta a tocar, a campainha, a música alta no apartamento ao lado. Padre Anselmo queixando-se ao bom Virgílio que o aturava em sua velhice.

O que é a liberdade de um homem?

Temo que seja sua desesperação.

Uma frase como: A verdadeira revolução está só começando, por exemplo. A palavra revolução pode ser facilmente permutada por felicidade, liberdade etc. Um mesmo slogan nos ilude de muitas maneiras. A base das sociedades está no slogan, em seu anúncio convincente.

No ataque sistemático ao desejo?

É o que venho tentando dizer. Sofremos interrupções constantes, um massacre à percepção. A razão se torna irreflexa, uma vez perdido o diálogo com o desejo. Vem em seguida o bombardeio à irracionalidade.

Padre Anselmo é um velho arraigado a seus princípios. Irrita-se com a vida anunciada a todo instante. Dias atrás esbarrou com uma jovem, à saída de um supermercado, que lhe insistia para que preenchesse uma ficha de pesquisa.

Ela estava ali trabalhando.

O trabalho de uns é incomodar os outros.

De quantas maneiras nos intrometemos na vida alheia?

Minha liberdade para aceitar ou questionar o que se apresente à minha frente tem sido regulada por uma tabela conceitual a serviço do anúncio. Quer uma paisagem abominável? A do cidadão refratário ao anúncio.

O anúncio da feira, o anúncio de Deus, o anúncio da desesperação.

De volta para casa, a caixa de correios estava repleta de papéis. Ali se vendia de tudo. E tudo em meu nome, Anselmo Esponsorte. A quem dei meu endereço?

Mas padre, de que outra forma o homem buscaria seu semelhante?

Virgílio ouviu o que pediu.

Acesse meu endereço eletrônico, filho. Dias atrás enviei algumas palavras de conforto a várias pessoas. Veja o que dizem algumas: “Me tire de sua lista”, “Isto é uma violência”, “Não lhe dou o direito de se intrometer assim em minha vida”.

Intromissão. As marcas de todas as roupas que vestimos. A fábrica de modulações de toda a existência humana. Estamparias de toda espécie. O que o homem faz o homem anuncia, o homem vende.

O desejo conspurcado. A falência social por não se permitir mais nuanças no jeito de cada um ser.

Padre, as pessoas podem não gostar da mensagem que o senhor enviou.

O estranho é que inaugurem sua rejeição a essa presença do indesejável justamente pela sala mais cômoda, a cadeira diante de um computador. Trata-se de um velho sofisma. Enganam a si mesmas acerca do que não conseguem ser. Extravasam ali o que vão acumulando em outras instâncias às quais não reagem.

“Padre Anselmo, rogo que me dê sua bênção”, dizia o convite que acabara de receber.

O que ainda posso dizer a essa mulher? [

 

36. – Partimos do seguinte: a quem pertence o ponto de partida de uma existência? Por onde o homem começa a ser o que se mostra adiante?

Logo uma aluna o interceptou:

– Professor, isso caberá em uma crônica?

Por um momento, Nunes pensou que poderia ter disparado a violenta indagação: “Como explicas que caibas em tuas roupas?” Deteve-se.

– Tua dúvida nos leva a estabelecer um abismo entre essência e capricho da existência. Até que ponto o homem cabe em si mesmo?

– Ah, essa tolice metafísica!

– Decerto, a tolice de toda uma vida…

Não era fácil reacender a percepção de que o homem estava sendo levado a destacar momentos de sua vida, desprezando os demais. As zonas aviltadas iriam se acumulando, criando potencialidades de ressurgimento.

Nunes tentava fazer a aluna, Clara, entender que os inúmeros disfarces da novidade não fazem senão despistar o homem de seu caminho comum.

– Abra uma revista. Veja a cotação dos valores humanos. Não se trata de metafísica. Um Liszt é ínfimo diante de um Brahms, tanto quanto um Siron Franco ao lado de um Cícero Dias. O homem como que desprezou a si mesmo, e hoje só encontra valor na moeda corrente.

– …

– Não há atração pelo abismo se rejeitamos entender uma de suas margens. O que cabe em uma crônica, Clara?

– Cabe todo o homem, professor.

Pensou em dizer algo sedutor, tamanho o fascínio pelas pernas da aluna. Não conseguiu.

– Então podemos voltar ao começo da aula.

Nunes entendia que a crônica havia se tornado um gênero propício a veleidades, em pouco diferindo das colunas sociais. Indagou acerca de algum cronista a seus alunos…

– Um nome, qualquer um.

Os que vieram à luz correspondiam a mortos e aposentados. Claro, os alunos compreenderam a trama do professor, e citavam com ironia alguns nomes atuais.

– Clara, a quem pertence o ponto de partida de uma existência?

– Ah, professor, suponho que a Deus.

– Que seja. Mas aí terás que ter uma ideia de Deus.

– …Jamais rezei…

– Calma. Imagine teu corpo, tomado de gemidos, suspiros, desejos, uma ansiedade extrema por se preencher… O que é isso?… É Deus! O vazio pronto para ser preenchido. Tu és a única possível notícia a teu respeito. Não tens que rezar. Tens que ser a reza. Assim é com a crônica, Clara.

Ali a aula terminara. Contudo, as coisas sobram. O relógio apontava mais 20 minutos. Como preenchê-los?

Não é que não tenhamos que tomar aulas. Até que ponto aluno e escola são compatíveis entre si? O que está em excesso na ideia de crônica não é o mesmo que se aplica ao conceito de escola como um todo? O que estará nos ensinando essa escola que temos?

– Professor, a extinção da guerra fria esgota o sentido de espionagem?

O questionamento desmedido liquida qualquer retórica. Nunes ficou sem fala, por segundos. De onde ela tirara aquilo?

– Claro, a guerra fria não se extinguiu. Um pequeno deslocamento de retina ilude o mundo. O homem foi convertido em seu próprio espião.

Nunes quis mesmo dizer que a crônica segue possuindo o caráter de relatar ocorrências que acabarão definindo os traços da passagem do homem pela terra.

Toca o sinal de término de aula.

– De que outra coisa nós falaríamos aqui, Clara? [

 

45. Todas as manhãs a editora geral se irritava com o atraso de Bentinho, da editoria de Cidade. Dali obtinha um termômetro que lhe permitia dirigir as demais seções. Orgulhava-se de seu trabalho no jornal justo pelo entrosamento que supunha obter com o entorno local.

– Pronto. Chegou o Bentinho.

– Não me olhe assim. As cartas chegaram todas à sua mesa. Certo que deixei escapar a oportunidade de algumas perguntas… Mas havia aquele ponto de neutralidade, um não pressionar muito… Pensa que é fácil entrevistar um arcebispo?

– Não é o que conta. Há uma carta, em especial, que toca em pontos que temos a discutir. O leitor alega conivência do jornal ao não arguir acerca de determinadas declarações do chefe local da igreja.

– Não publica…

– Veja quem assina a carta. O cara é um franco-atirador. Há anos publica em nosso jornal. Nos últimos meses está de fora graças a um desentendimento com o editor de Variedades, não vamos discutir isso agora. Destaquei uns trechos da carta.

 

A exemplo de seus pares, em uma prática já milenar, Clemente tem um discurso pautado por contradições. Evoca a isenção política, sem comungar com a isenção sexual. Deduz-se daí que a Igreja deva reconhecer todos os candidatos políticos, exceto os declaradamente homossexuais.

 

– Acentuamos na manchete: “Homossexualismo é defeito”, diz dom Clemente.

– Alguém quer ler um pouco mais?

 

Na mesma edição do jornal há uma nota sobre a carta que a Igreja Católica divulgou em função dos 500 anos. O documento desconsidera a presença da Inquisição no Brasil. Como há exatos 500 anos a Igreja persegue aquelas fatias da sociedade consideradas exceção, ingênuo seria imaginar que Clemente tratasse do assunto de forma distinta do eufemismo que lhe dedicou: “No decorrer da história, filhos da Igreja não foram fiéis”. Ressente-se ainda da necessidade de 150 padres em sua arquidiocese, exemplificando Nova Assunção, no interior da região de Caatinga Dreams, onde há apenas um único padre para 200 mil habitantes. Impossível não concluir que a Igreja ali é a exceção.

 

– Sabem quem estava do outro lado, naquela matéria sobre o Santo Ofício? Sabem! O que digo agora?

– Acho que há um exagero. Só umas bichas resmungaram…

– …Puxa, Bentinho, dá uma lida nisso:

 

Falaciosamente o arcebispo rejeita o homossexualismo por não ser uma virtude. Qual será a virtude de um discricionário? A tolerância medida é uma virtude sustentável? E o desnível social controlado? Qual a fita métrica da virtude? Um dia Saulo se arrependeu de haver perseguido e mandado apedrejar Estevão. Mudou o nome para Paulo e fundou a Igreja de Clemente. Um descendente seu inventou o detector de mentiras, para que se caia no mesmo erro duas vezes.

 

– Não checamos nada. Não argumentamos nada. O homem ficou a falar o que bem queria…

– …mas foi sempre assim…

– …até aqui…

– …até o que?…

– …que estoure em cima de mim…

– …de nós…

– …de mim, que deixo escapar isso…

– …que deixa a casa assim…

– …sim, que deixo… [pausa] …justo agora, com todos esses prêmios por nossa campanha a favor da paz…

– Publique a carta na íntegra. Dias depois ninguém se lembrará dela. [

 

54. Li outro dia um artigo de um amigo, Alfredo Aquilino, com relação a uma revista acadêmica. Abordava os vícios do discurso acadêmico e o comportamento da escrita em seus textos, convidando à reflexão em torno das falhas apresentadas em ambas as situações. Dias depois houve uma réplica na imprensa, confirmando sua fala e expondo novas preocupações em torno de uma ética do discurso acadêmico.

Uma delas é a violência recorrente da falta de argumentação, o qual gera um abusivo lugar-comum: o deslocamento do eixo central da discussão. Aquilino foi acusado de afoito, incompetente e leviano, sem a devida fundamentação. Logo veio sua afiada resposta.

 

Ao que parece, fui afoito por considerar aberta à sociedade a discussão em torno de que se anda realizando dentro dos muros da Universidade; incompetente por não ter sido didático o bastante em relação a termos como discurso, linguagem e retórica; e leviano, pelo suposto deslocamento conceitual de uma citação de Barthes, quando a ela recorri apenas como ilustração de uma dissensão corriqueira entre o bem pensar e o bem escrever.

As acusações surgiram do nada, sem sustentação textual, com vagos impropérios e o recheio radical de um silogismo torpe: se o crítico é autodidata e os diretores da revista colecionam títulos de PhD, então eles são deuses e o crítico não é nada. Dá-lhe sofisma. Na verdade, fui interpelado por uma avalanche de carteiras, todos tão afoitos em mostrar seus títulos, tão levianos ao deslocar a razão de nossa conversa, tão incompetentes de acrescentar substância ao diálogo.

Para quem defende uma ação multidisciplinar, fui questionado por uma articulação binária: certo/errado, capaz/incapaz. Trata-se de um discurso refém de evasivas, essa vulgaridade pequeno-burguesa. Mais do que pura e simplesmente linguagem pobre, temos uma medida alienação do sentido. Não há refinamento da linguagem, mas antes um esplendor da pose, uma contraposição irresponsável entre realidade e linguagem.

 

Aquilino ainda esclareceu que havia sido procurado por um dos diretores da revista para que escrevesse algo na imprensa, por sinal o único artigo a sair sobre a malsinada publicação, que logo fechou suas portas. E concluiu:

 

Maus poetas? Temos de sobra. Maus políticos? Maus jornalistas? Esbanjamos situações fraudulentas. Deveríamos estar envolvidos em uma preocupação dissociada de interesses próprios e imediatos.

Por trás dos equívocos editoriais, há sempre uma horda de maus escritores. Por trás de um governo perseguindo a universidade, deve haver algo de insustentável e inconsequente. A verdade é que nenhuma sociedade se fortalece se não aceitar discutir suas falhas.

O que se tem de fazer nem sempre é possível fazer hoje, mas é essencial que o façamos com firmeza. Não podemos seguir modulando deuses de barro. Todo sentido deve ser questionado, assim como todo discurso. Se o que temos são apenas títulos, credenciais, passes, então nós temos de voltar ao bê-a-bá, reaprender a viver, a ser gente. [

 

63. O olhar embebido no óleo da cena: ruas caminhando para dentro de seu corpo, inúmeras cidades da memória congestionando a lucidez. Dedilho as vértebras daquela visão, o pesado volume orgânico de Antero, semáforos distraídos, passantes escrachando o agônico sorriso, demorado no rosto talvez mais do que o possível. As pernas imensas inchadas disformes, uma robusta anomalia dançando e engolindo a fuligem do absurdo.

Ao beijar postes e árvores entrelaça a pesada doçura a um sacro sarcasmo que averba a palidez mundana daquela gente que lhe circunda a existência, os que a creem desterrada, poetas ou sociólogos, políticos ou párocos, de quem chega a rir-se, um riso iluminado pela displicência, e logo se refaz no beijo encravado nas coxas de um bronze invisível no centro da Praça do Carmo.

– Meu amor, tu deverias estar aqui, com teu corpo imenso e doce, bailando fixa diante dos deuses. Eu te quero e te beijo, mesmo que ainda não existas.

Penso, pausado e prófugo, Antero chafurda nos desastres de origem, mija e come por ali mesmo em meio a tudo, por vezes se desculpa quando lhe escapa um arroto – minha amada, não posso com tudo – e não se sabe de nada, quando se mudou para aquele ninho de improbabilidade, a deformidade dos vasos sanguíneos contrastando com a leveza dos gestos que busca, ainda que jamais os alcance.

Entre o Carmo e a Estação, seu mundo secreto, por ali ia algumas vezes, desenhando comigo um diálogo possível com Antero.

– Cibele, sempre minha, não te machucarei, querida. Não temas este pendor exagerado, tão grande quanto meu amor por ti.

Uma madrugada eu o vi chorando o gozando, masturbando-se na coxia, ínfimo e aniquilado.

Dali agarrou-se com um cesto de lixo e se pôs a dançar, o pau ainda exposto, articulando uma melodia quebrada, entre o urro e o gemido. Em conversas com um pretenso cineasta, diagnosticou: “Um personagem assim não diz nada, é um desastre completo do ponto de vista literário, as falas serão sempre idealizadas, uma produção vagabunda quando muito transformará tudo isso em cinema de subúrbio, enfim, o que diabos esperar de alguém cuja agonia não condiz com o manual dos suplicantes?”

Três madrugadas seguidas, em uma delas me disse Antero:

– Queria que Cibele não chorasse tanto quando me ajeito dentro dela. [

 

72. A voz ao telefone: “Amor, estou com saudade”. Três vezes em um mesmo dia. Como Juliana explicaria ao marido? Uma conversa com a amiga a assustara:

– Há dias uma voz me persegue no trabalho: “Quantos saberão o que fizeste?”

Quase em pânico, procurara o padre Anselmo. “Não é certo o que estás fazendo”, lhe confessou ser esta a mensagem que vinha recebendo na paróquia.

Juliana vivia um péssimo momento com o marido. A amiga Fátima atravessava fase delicada no trabalho. Anselmo perdera quase todo o rebanho para os pentecostais. O infortúnio parece ser mais paradigmático de uma sociedade do que seu revés.

Demócrito comerciava peles. Em sua correspondência vinha encontrando folhas soltas com letras coladas: “Estarás mesmo cumprindo teu acordo?” O poeta Alfredo diariamente recebia em sua mala postal um e-mail: “O que dizes será mesmo teu?”

Juliana não sabia disso. Preocupava-a apenas o marido. Por coincidência, havia meses vivia um romance secreto, um rapaz do interior que conhecera em um shopping. Apaixonados, talvez tivessem deixado escapar algo.

A amiga Fátima alertava:

– Algo está acontecendo com todos nós.

– E o que seria, amiga?

Nossas vidas foram concentradas em um único roteiro, trama artificiosa que nos leva a crer que o surpreendente não passa de uma figura de retórica. Estamos ao inteiro dispor da previsibilidade. Todos, sobretudo os que se sentem distintos do resto do mundo.

Ao atender ao telefone, o marido de Juliana ouvia a mesma voz: “Amor, estou com saudade”. O patrão de Fátima esbugalhara os olhos ao ouvir: “Quantos saberão o que fizeste?” O arcebispo Clemente também recebera algo dirigido a Anselmo: “Não é certo o que estás fazendo”. A insegurança alheia bem nos cabe. Os papéis trocados são a condição risível de nossa aventura existencial.

Assim como o “Não é comigo” tornou-se a reza comum de uma sociedade que perdeu o sentido de responsabilidade compartilhada por todos os atos…

– Perdeu ou se desfez?

– …Quem indaga? Estarei eu também a receber os sopros do inevidente?

– Perdeu ou se desfez?

Nada é comigo. Não sou deste mundo. Acabei de chegar. Não sei o que se passa aqui. Melhor voltar amanhã. Deve haver um engano.

Na mesma proporção em que se dá essa dissimulação de responsabilidades, nos convertemos em uma casa de tolerância.

Talvez Juliana tenha se separado, Fátima perdido o emprego, Anselmo sido excomungado. As frases enviadas aludem a uma condição despersonalizada de todos nós. Posso amanhã mesmo retomar o processo, remetendo essa torpe fórmula de arrancar de cada um de nós sua máscara mais fétida.

Preocupados com a pequena esfera de um deslize moral, as vítimas dessa violação de direitos ao crime sem testemunha não perceberam a outra mensagem transmitida pelos meios disponíveis: “O que fizeste de tua vida?”

O curioso é que a surpresa tenha sido convertida em algo indesejável, quase como garantia de uma falha de caráter que não pode ser ventilada sob o risco de comprometer a boa crônica dos dias.

Em todos os meios, uma imperceptível mensagem se reproduz alheia à sua eficácia: “Vivemos no mais completo sigilo”. [

 

81. – Quantas vezes o meu amor será tomado de mim?

O choro inconsolável de Armênia desconcertava a tarde tão ritmada em seu vício urbano. Milhares de pessoas passavam por ali, alheias a pedintes, ambulantes, cantadores. A praça é um veículo da impossibilidade de encontro entre as pessoas.

– O que me pareceu é que a pobre moça havia descoberto que seu namorado a traíra como se fosse uma qualquer.

– Essas raparigas ficam zoando por aí à procura de um trouxa que se comova.

– Não sei o que leva uma pessoa a se expor assim.

Confesso minha curiosidade acerca desses muxoxos existenciais. Não, não me refiro à pobre moça em seu lamento fora de lugar. Interessa-me esse capítulo de telenovela em que convertemos nossas vidas, os comentários de rua, como se todos fôssemos alheios ao que marca a vida de cada um de nós.

– Quantas vezes meu amor será tomado de mim?

O que levaria alguém a sentar-se em um banco de praça, desaguar-se em choro e repetir sofregamente uma mesma pergunta? Primeiro passo para entender o que se passa é por outra pergunta no lugar. Imaginemos um garoto chorando e indagando por sua mãe ou um passante qualquer se dizendo roubado e pedindo ajuda.

– O moleque vem chorar todo dia, recebe uns trocados e vai repartir com a puta da mãe.

– A prefeitura poderia cuidar melhor desses espaços públicos.

– Quando vamos parar com isso?

A espécie humana deve ser fruto de um capricho divino. Nada a explica melhor. Reagimos como se nada no mundo nos dissesse respeito. Estamos numa fábula de ações isoladas. No entanto, em todo momento se exige coerência, a unilateral coerência de uma sociedade demente.

– Quantas vezes meu amor será tomado de mim?

Jamais pude conversar com Armênia, mas sei que ela estava possuída por uma agonia muito especial. Repetia a indagação a perder o fôlego, a cabeça em movimentos sincronizados. Algo maior do que uma dor de amor a estava consumindo.

– É uma fraqueza de espírito debitar da conta todo revés.

– Com mil diabos, essas piranhas não valem a trepada que cobram.

– Não creio que Deus nos permita tanto mal.

Em nada resultou alterar a natureza da pergunta. Isso quer dizer que estamos afeitos ao fluxo de insensibilidade que define a sociedade em que vivemos. Penso em que ponto extremo um dia nós chegaremos.

– Quantas vezes meu amor será tomado de mim?

Terei que ser Armênia ou ela terá que entrar em minha vida com uma força cuja ausência me doa muito. Nossa ideia de mundo é nossa miséria de vida. Não somos senão reflexos da mediocridade em que nos tornamos. A todo instante há filas de gente buscando solução para problemas que foram gerados por esse princípio de não estar nem aí para nada. É possível que grande parte do drama social que vivemos hoje tenha sua raiz em tal comportamento.

Sento-me a seu lado e tento lhe dizer que não faço ideia do que lhe aconteceu, mas… Movia parte de seu corpo como se fora uma gangorra, impenetrável pêndulo. De quem estaríamos tomando seu amor? Era isso? Logo a polícia a tiraria dali, da praça sortida de gente alguma.

– Quantas vezes meu amor será tomado de mim? [

 

90. Quatro escritores. Conversávamos em uma ensolarada manhã, entre vinhos e chopes. O diálogo transcorria no único fórum eficaz no país: a mesa de bar, lugar sagrado onde a imaginação transpira quase promíscua. Um deles não era dali e acabara de ser apresentado ao outro, que tinha em suas mãos um maço de fotografias, revelando os vários ângulos de um cadáver.

– Deixe que ele veja também. Depois dirá se não tenho razão.

– Qual nada! Não deverias te meter nisso, Fabo.

Olhei as fotos com o luminoso interesse do espanto. Mesmo com a deformação do corpo, o identifiquei. Entornei a tulipa de uma vez só e acendi um cigarro.

– É impossível ficar alheio ao assunto.

– Não disse que não há importância, mas sim que não cabe a nós encontrar solução.

– A denúncia é uma forma de solução e revela o caráter de quem se arrisca a firmá-la.

Eu seguia repassando as imagens, mais impressionado com a natureza do diálogo. Olhei para Fabo – maneira carinhosa com que era tratado Fabrício Cruz de Alencar – e indaguei acerca da origem das fotos.

– Durante anos recolhi documentos. Sei quem foi o mandante do crime e seu executor. Tenho fotografias, conversas gravadas, eu mesmo acompanhei o facínora em alguns trabalhos, antes de compreender seus princípios. Reuni tudo em um livro e quero publicá-lo…

O garçom vinha com uma tábua de frios, enquanto Fabo mastigava apaixonadamente seus motivos.

– Não encontro editor que tenha a coragem de editá-lo. Claro que há conivência entre intelectualidade e poder…

– Aqui mesmo… Meus queridos Antonio e Adriano, justamente eles querem me dissuadir da necessidade de se publicar o livro. Estamos criando uma deformidade conceitual, um abismo entre arte e consciência social.

– Fabo, o poder está onde sempre esteve. Não representa a reação. O artista, o intelectual, o criador, antes mesmo da compreensão de uma estética, já se manifestava como insurgente acerca de toda forma de abuso ao humano.

– Não aceito essa velada covardia de uma classe que se julga transparente e combativa.

– Nossa intelectualidade esteve e está inteiramente a reboque de projetos pessoais, cuja indignação não vai além dos engodos burocráticos na prestação de contas com seus direitos autorais.

– Sabes quem é aquele cadáver?

– Antes disso, Fabo. Teus amigos aqui estão em sua rotina, logo vamos almoçar e atualizar fofocas literárias, suprir a sensação de estar no mundo. Claro que sei quem é o morto, e te digo mais: Adriano e Antonio são cúmplices do crime.

A mesa acendeu um alvoroço, um quando muito deixa isso para outra hora. O chope talvez não estivesse suficientemente na pressão.

– O cadáver de tuas fotos, Fabo, é a dignidade de nossa cultura, a identidade que lhe permite dialogar com outras e consigo mesma. Não há novidade quanto a déspotas que violentam essa integridade. Em nosso caso, a reação é sempre circunstancial, sem distinção entre esposados e desposados. Nosso vislumbre de existência nos leva a concordar com teus amigos. Não por estarmos em um bar, mas pelo fato de jamais termos saído dessa mesa. [

 

 

Moleque dos Ternos criou uma espécie de fabulinha fabulosa, a exemplo de um de seus mestres, Millôr Fernandes. A rigor, assim como o mundo era tudo menos algo pequeno, a memória se engalfinhava com o desejo e juntos urdiam o maior espetáculo da terra: a arte. Nosso infatigável protagonista, que um dia se confessou apaixonado por seu alter ego, ia e vinha no tempo, nos guetos e labirintos da História, refletindo sobre o ilusionismo da evolução. A seus amigos historiadores costumava dizer que deixassem de tratar o passado como carne morta. Em muitos casos o futuro é mais uma página virada do que a memória que temos dele.

 

VICARAVAGGIO

 

Ao instalar-se na Europa o Tribunal do Santo Ofício, entre outras condenáveis estratégias, irradiou-se uma concepção de vínculo entre beleza e opulência, ou seja, a de que o clero e a nobreza deveriam promover uma verdadeira orquestração de pompa e grandiosidade, de tal maneira que os súditos experimentassem uma igualmente dupla sensação: respeito e êxtase. Este seria um primeiro momento de um artifício hoje fartamente conhecido: a espetacularização da vida.

A beleza deveria provocar, sob todos os aspectos, uma verdadeira comoção. Veio exatamente deste período da história o equívoco de que a arte deve ir onde o povo está, ou seja, a falácia estabelecida entre dimensão humana e populismo. Claro está que a Companhia de Jesus não buscava identificar-se com o povo, mas antes subjugá-lo. Como parte de seu plano instituiu os santinhos, geralmente distribuídos às crianças durante a obrigatória catequese. Alguns historiadores chegaram a confundir esta imposição com as propostas de consubstanciação dos aspectos sagrados e profanos que regiam a existência defendida por Giordano Bruno. Outro lamentável equívoco: Bruno salientou a essencialidade dessa compreensão unificada de duas forças complementares, e pagou com a própria vida, enquanto que à Contra Reforma interessava tão-somente uma vulgarização destes mesmos aspectos.

Entre os artistas coniventes com tal atitude, havia uma família italiana de pintores: os Carraci. Estes facilitadores dos princípios jesuíticos, cuja pintura massificava-se através dos santinhos, foram corresponsáveis, em pleno século XVI, por uma cultura do adorno, instância que assumiu, ao largo da história, inúmeras titulações, do beletrismo parnasiano à bestial degeneração que atende hoje por pós-vanguarda.

Em meio a este cenário preparado para a submissão, surge um insurrecto nato: Michelangelo Merisi (1573-1610), que adotaria posteriormente o nome de sua cidade natal – Caravaggio –, na Lombardia (Itália). Em sua época, Caravaggio trilhou o caminho mais difícil, como sempre cabe a todo artista, opondo-se à banalização sistêmica da arte promovida pelo Santo Ofício. Dedicou-se à ampliação de uma técnica já introduzida, um século antes, por Leonardo da Vinci (1451-1519) – o chiaroscuro (claro-escuro) –, que originalmente consistia na incisão de luz sobre determinadas áreas escuras, de maneira a destacar na tela as formas surgidas a partir do contraste.

Se toda grande arte reside exatamente nesse entendimento do contraste, Caravaggio, contudo, não se limitou a um tratamento formal, dando ao mesmo uma notável complexidade dramática. Sua pintura ambienta a miséria humana, atribuindo-lhe o indispensável aspecto ontológico. Criava assim uma atmosfera tenebrosa que influenciaria a pintura de Rembrandt (1606-1669) e Velázquez (1599-1660), entre outros. A idealização da figura humana proposta por Caravaggio contrapunha-se a uma grandiosidade defendida por Michelangelo Buonarroti (1475-1564). Se este igualava o homem a Deus, Caravaggio ressaltava a condição humana em todos os seus aspectos mundanos. O homem era seu grande modelo, sem que isto propiciasse a feitura de uma arte miserável.

Caravaggio não desvinculou a arte dos aspectos divinos da existência humana, mas antes buscou ambientar tal existência à sua complexidade real, recorrendo ao claro-escuro como uma forma de revelação sutil do sofrimento humano. Além disto, sua exposição de detalhes formais era precisa e sugeria que não há detalhe sem importância em uma obra de arte. A textura de uma tela assume a conotação do verbo em um poema. A luminosidade define a ambientação e também o clima psicológico. Mais do que simplesmente dessacralizar os abusos conceituais da arte que lhe era contemporânea, o pintor italiano propunha uma carnalidade insurrecta, uma irreverência do homem a favor de si mesmo.

Caravaggio era um cristão que se insurgia contra a degradação do cristianismo levada a cabo pela Igreja em sua época. Suas obras foram em grande parte renegadas e viveu uma vida de boêmia e descrédito. Quase não há registros de suas técnicas de trabalho. Embora conhecido como um naturalista, o pintor barroco tem sua importância maior na releitura que fez da Renascença, imprimindo-lhe uma ontologia indispensável.

Morto em circunstâncias pouco aclaradas, acometido de uma febre, provavelmente malária, a importância de sua arte foi sepultada até o final do século XIX. Vê-lo agora no Brasil propicia vários aspectos: da importância de sua contribuição técnica à rediscussão da essencialidade de uma arte desvinculada das inúmeras formas de servilismo. Em um momento em que a arte encontra-se inteiramente a cargo dos interesses mercadológicos, Caravaggio traz para todos nós uma vez mais a lição de que o artista só refletirá criticamente a época em que vive se não for subalterno de suas instâncias de poder. Em definitivo: não há arte para o povo. [

 

 

A versão que cabe afirmar ou contestar é silogismo que nos faz engulhar em terra seca. De nada adiantou planejar um solário de virtudes. Verdade seja dita: o homem reluta em ser bom. Talvez em seu íntimo encontre mais justificativa na traquinagem do que no gesto solidário. Moleque dos Ternos já nos disse que nada no homem quer esgotar-se em si mesmo. O homem necessita apenas prazer suficiente para não desfigurar-se. No entanto, nada o impede de desfigurar o outro como se fosse um verme divino. Não se pode decompor a existência sem fazer parte dela. Essas frases todas peregrinam sem autoria. Ninguém as quer. Muitos artistas fazem da arte um sistema de coleta de obviedades.

 

VIIO SCRIPT EM CARNE VIVA

 

O que necessitamos está bem diante dos olhos, porém foi perdendo forma, cor, substância, noção de suas particularidades, e logo fomos nós a ir perdendo o mesmo em partes iguais, o cenário se desfazendo de tal maneira que hoje é um espaço vazio sem a consciência de si. Com a desculpa de que o mundo se converteu em um lugar de sobrevivência, fomos tragando tudo à nossa volta, acumulando componentes descartáveis, reservas de mercado falido, prateleiras de biodegradáveis, amores vencidos. Desprezamos o ouro do instante, propagamos nossa miséria de espírito como uma nova joia, a doutrina do nada mais me importa. Graças a ela podemos desamparar, esquecer, desprezar, sonegar, matar, ocultar pistas, considerar a inocência um truque.

Na verdade, o espaço vazio é a nossa melhor técnica de sobrevivência, a ilusão de um mundo que a todo instante muda de forma, regra, conceito, sabor, tablado de metamorfoses perenes cujo princípio é converter paraíso em inferno e vice-versa, desorientar a mínima ideia do que é certo ou errado, estontear as vítimas, garantir esse manto de neblina sobre todos os crimes. Burlar-se, enganar, subornar, fingir, despistar, sempre o cinismo como ortodoxia ou fundamentalismo. Já não importa que a mão por trás seja da religião, da arte, da política, da ciência, da lei.

E a dor, a dor sinistra por detrás de tudo, a dor maiúscula que foi perdendo suas dimensões, culpa, vergonha, consciência, respeito próprio, a dor incapaz de uma reação, a pior de todas as desculpas, a dor das coisas se perdendo, o medo da dor aumentar, o crime em nome do medo, a traição em nome do medo, o assalto em nome do medo, a corrupção pelo medo, a quebra de sigilo, a falência múltipla de sentidos, metástase do espírito. A dor como único vilão levado a júri, inocentado apesar do perjúrio, livre para voltar ao palco.

Este curioso personagem ainda se chama homem. Não se sabe mais o que representa. É um script sem deuses, mitos, princípios, moral de espécie alguma, apenas o espaço vazio. Nem mesmo uma cadeira. Não há como levar a mão à cabeça e chorar. Uma gota de silêncio e já é possível notar o sorriso cínico nascendo na linha de seus lábios. Voltará a chamar a tudo isto de instinto de sobrevivência. Não conhece outro argumento. Tratará de mobiliar o espaço vazio com novos pontos de ilusão, os velhos ardis da eternidade. Multiplicará vítimas por todo o cenário. É só o que sabe fazer. Está ciente de que não veio ao mundo para outra coisa.

O que necessitamos permanece diante dos olhos. [

 

 

A verdade – mas, desde quando a alguém lhe preocupa os retorcidos dessa deusa imprópria? – é que chegamos até aqui pensando em dar uma mínima ideia da existência de Moleque dos Ternos. Até onde sabemos andarilhou por todo o continente americano e chegou mesmo a apagar seu nome que foi riscado em uma rocha nos Pirineus por uma namorada. Planejou amiudadamente montar um negócio internacional de fornecimento de ovos de cangurus, porém tal empresa resultou impossível por não haver conseguido convencer um único canguru a mudar seu hábito de procriação. As memórias de sua infância ele as recortou com exatidão profana de uma novela, Sobras de Deus, fascinado pela existência de seu protagonista, Pequeno Ansioso. A realidade é uma conjugação de fatos que por vezes não sabem onde se inserem. O que por vezes aparenta ser um sacramento pode ser uma dissolução. O meio sempre rejeitou ser a mensagem. O homem não se ressente do fato de ser um fantoche nas mãos dos símbolos. Ao que parece, urdiu até a última vírgula dessa tramoia, de modo a não se responsabilizar pelos próprios atos. E se veio até aqui, seu método não será deixado de lado. Quantas noites nós dormimos dentro de um mesmo sonho? Quantos nos sentimos ser a cada vez que encontramos na rua alguém com quem parecemos? Em um mesmo dia, em distintas situações, ambientes, horas, todos me recordam a mim mesmo… O que sou? A realidade nunca ligou a mínima para o que somos. Somos o sonho uns de outros. O capricho com que faço birra para me manter em paz. A ilusão de que amanhã qualquer luz ou sombra terá um sentido distinto. A realidade nos ilude ou somos nós sua ilusão proscrita? Vamos ver. Vamos ver. Até que ponto nós cabemos no capricho que sonhamos para nós mesmos. Querem mesmo um último recorte? Uma moral? Em 2005 a revista mexicana Blanco Móvil comemorava seus 20 anos de existência. Seu editor convidou os principais colaboradores a escrever algo que estampasse relação com essa data. Moleque dos Ternos escreveu então sobre uma curiosa relação: uma garota de 20, a televisão e a dieta militar, cujos 20 anos de idade mantinham insólita coerência. Ao reler estes escritos, verificou-se com espanto sua implacável atualidade.

 

VIIIUM DESVARIO INFLUENTE

 

O rosto na televisão lhe chamou a atenção. Via a si mesma, na mulher cujo noticiário conferia uma e outra vez os crimes que havia cometido ao lado de outros. Assustava-se com a semelhança do olhar. Era como se toda a representação de um mundo se revelasse e algo arrebatador justificasse a emoção. Incontroláveis imagens golpeavam a memória, cenas de crimes justo antes de serem enumerados no telejornal – minúcias do que não podia suportar.

Quem era aquela mulher tão dentro de si? E que estranha passagem se manifestava, quase corpórea, como um mobiliário trágico e tão íntimo? Era resgatada através de velhos dilemas. Misteriosa se retorcia dentro daquele olhar que não conseguia identificar. Parecia como se os dois rostos de tornassem um só.

– ¿Dónde estoy, en lo íntimo de aquello que desconozco? Esta mujer me atrae por todo aquello que no creo que sea parte de mí. ¿Cómo apuñalar a tanta gente y bailar alrededor de los cadáveres?

Costumava ver televisão acompanhada de papéis, enquanto anotava a ambiguidade de realidade e ficção onde a vida humana foi melhorando. Já estamos bem próximos do instante em que vislumbraremos nosso sorriso no espelho sem saber com exatidão de que rimos, em contraste com a dor que sentimos por dentro. Criada por seus avós, aquelas anotações eram consideradas um capricho da criança dedicada a seus estudos, que vivia um pouco solitária, porém era simplesmente carinho.

– La muerte no nos deja ninguna pista del camino que traza dentro de nosotros, ni aún sabe con certeza si puede contar con nosotros para asegurar la existencia.

O avô ria daqueles pedaços de reflexão. No entanto, em meio a tantas anotações nos cadernos é impossível não considerar que a morte sempre esteve conectada com a filha. O desvario conhece seus pontos débeis.

Quem era aquele rosto na televisão? Ela se encontrava sozinha em casa e não houve forma de gravar para depois indagar aos avós.

– Hace 20 años una mujer fue condenada por crímenes brutales y ahora una retrospectiva en la televisión muestra escenas de la prisión y del juicio. ¿Qué tengo que ver con esta mujer?

Desde então a memória foi alinhavando desavenças, e o noticiário continua implacável com a decisão de inutilizar a vida humana. Qualquer coisa que sonhe ou queira gozar. O prazer é uma ameaça constante ao cotidiano.

– Hace 20 años se interrumpió un largo proceso dictatorial en el país. No se inició por el hecho de querer obtener el poder, sino por un profundo sentido de protección a las ideas vigentes. Al acercarse, tampoco se comprobó alguna conquista, sino más bien se comprendió que tales ideales estaban a salvo.

Todos os crimes são idênticos. Chegará um ponto em que a indecisão anulará toda perspectiva de liberdade? Não cabe dúvida que há uma hierarquia de modelos.

– La concentración de riqueza se ha enunciado como un gran enemigo de las democracias. Ésta es, sin duda, una distorsión célebre y bastante funcional. El principio de la masificación suprime cualquier libertad individual. Una simple tarjeta de crédito tiraniza la vida mucho más de lo que uno se imagina. En cualquier diccionario encontramos que dictadura es: “Forma de gobierno en donde todos los poderes se concentran en las manos de un individuo, de un grupo, de una asamblea, de un partido o de una clase”. Sin embargo, todos los poderes siempre han estado concentrados en las manos de alguno de esos elementos durante toda la historia de la humanidad. ¿La soberanía popular es una falacia? Sin embargo, ¿en su nombre no estamos soportando las distorsiones más violentas?

Há páginas e páginas repletas de veracidade…

– Un país que conmemora 20 años de liberación de un régimen militar ha sido tragado por una ola de corrupción que no conocemos del todo como cuál es el alcance de la fe en la especie humana. Al mismo tiempo, este mismo país ha sido castigado por un proceso de inercia sistemática.

Não se encontrava ninguém quando a polícia invadiu a casa. O rosto daquela mulher condenada que aparecia na televisão deu pistas suficientes para que se entenda que o ideal perdido dificilmente se recupera. O mundo da memória é um mundo fora do tempo. O tempo, a extradição da memória. Todas as guerras são cínicas.

Onde encontrar agora o olhar dentro do olhar que lhe aclarara tantas coisas? Seguindo os passos de sua mãe? Por que escreveu tanto sobre fraudes do sistema?

– La incriminación es el más poderoso de los artificios. Cometer un crimen es un acto menos comprometedor, de menor interés social. La forma más práctica de deshabilitar a alguien es incriminarlo, indiscriminadamente.

Não abrirei mais parágrafos para este caso. Aceitei anotá-lo desde que a suspeitosa me procurou. Segue foragida, embora se comunique comigo, confia em mim, não, não trairei minha intuição.

– Todo lo que voy a relatar tiene que ver con el día de hoy, el presente en la vida de todos nosotros, la forma en que somos frenados frente a acontecimientos que sucedieron y pueden influir en nuestra vida, marcarnos, por así decirlo, de tal manera que no seamos todo lo que debemos ser sin la incómoda presencia de esas ranuras del pasado.

Enquanto gravava a declaração não podia deixar de pensar em meu país, na situação que enfrentamos hoje, em uma realidade forjada com poderes concentrados em um congresso que desafia a todos. O que esta jovem garota descreveu é toda uma relação de crimes. Não sabemos onde estão seus avós. Ela não nega a autoria dos crimes que cometeu. Sobre alguns corpos costumava deixar páginas de seu diário. O noticiário é uma fonte de indícios, pistas, porém, quais as relevantes? Quais as verídicas? Eu mesmo não sei qual papel represento aqui. Será que ela está certa?

Da mesma forma, considerar que tenha se identificado como a filha de uma assassina em série e que deveria, 20 anos depois, seguir a loucura de sua mãe, um distúrbio, sim, porém dirigido a ser encarnado. Tudo em nós está repleto disto. Algumas causas se tornam enormes quando não passam de exploração da ignorância alheia. E agora essa jovem sentindo-se como alguém inspirada pelo mistério de continuar o caminho daquele olhar astuto na televisão.

O mundo não deixa de ser apenas uma falsa ilusão. De tal forma que quando o delegado me procurou para entregar-me uma carta dirigida a mim, ao abri-la, duvidei por completo de sua legitimidade.

Ao seguir as indicações, confirmamos os três lugares onde, esquartejados, foram encontrados os corpos dos avós. No entanto, aquele manuscrito não era dela. O tipo da escritura era idêntico, porém tudo me indicava que o autor não era ela.

– Los tres poderes desacreditados son como cuerpos descuartizados cuyas tajadas no vuelven jamás a encajar. Al confundir a la patria con la imagen-madre, ¿cómo no mutilarla cuando quiere absorbernos, nada más?

Imaginei encontrar algo, uma página do diário que esclarecesse o cenário tripartido. Rascunhei sobre o que poderia ser o desenvolvimento da causa. Uma confusão, sim, porém algo me dizia que algo havia sido adulterado: uma pista falsa, a artimanha da incriminação.

– Incriminaos los unos a otros. Ninguna verdad debe sobrevivir.

O charuto de delegado também ajudava a dissipar algum raciocínio. Insistia em que eu lhe desse o paradeiro de meu cliente, p0rém se a metêssemos na cadeia, sem dúvida, as remissões se perderiam, os vínculos entre situações apenas aparentemente desconexas. A mãe formava parte de um grupo rebelde de anarquistas idiotas, figuras patéticas que amontoavam vítimas ao acaso, observando apenas a classe social a que pertenciam. Defendiam paz e amor sem restrição, e aniquilavam as disposições em contrário.

– Todo poder es cancerígeno. La realidad humana se destruye de una forma u otra. Lo que llamamos vida no deja de ser una actividad extrema de sobrevivencia. Esto no quiere decir que se tenga que salir a matar gente todo el tiempo. Sin embargo, para eliminar ciertos riesgos sistémicos, se hace inevitable liquidar los focos de infección.

Vivemos em sociedades competitivas, desde criança somos treinados em táticas de competição, eliminação e conquista. Onde estaria ela agora? O maldito charuto me dispersa e o imbecil do delegado não pensa senão em desfazer-se dessa tarefa. O crime é mera burocracia sob a ótica da polícia. A justiça se detém na astúcia e entende melhor de manhas e perversidades, talvez por administrar outro tipo de rotina. No fundo, trata-se apenas de uma relação entre flexível e inflexível. O que todos fazemos é seguir padrões. Matar é um caso extremo? Não, já não, temo o que digo, porém o inaceitável hoje é romper um padrão. O crime pode ocasionalmente ser visto como flexibilidade das relações sociais.

– Estos muertos son indispensables. Estamos anestesiados por la democracia. El país a la pobreza. La casta intelectual, una suma de nuestra miseria. Los pequeños focos de resistencia son retrógrados. Ya no hay hijos. Urge dispensar formalidades de etiqueta.

O telejornal expunha o montão de corpos, dirigentes na câmara, no senado, entidades de classe, grupos opostos ao governo, ministros. A nação praticamente acéfala. Eu não posso com ela. Sei que jamais mataria os avós, porém já não posso aceitar isto. Ao desistir do caso, disse ao delegado que fumava seu charuto:

Em que se parecem estes 20 anos de democracia com o modo em que ela foi esquecida por seus pais? Onde estão? A reação frente ao rosto de sua mãe na televisão é a mesma cara de uma nação apaziguada por debilidades. Não se espera que se repitam transgressões ingênuas do passado. Um de nós amadureceu. Não tenho a menor ideia de quem sejam eles. Quem iniciou esse grande abismo? A quantos senhores serve a inocência daquela mãe? Tão ingênua que, da prisão, recorre a foragidos de seu bando de imbecis para matar os pais. Um crime-imagem, sim, porém imagem falsa que apenas incrimina sem atentar contra a essência. O usufruto do símbolo é o que nos está destruindo.

Indago se me entrego ou não. Crer em um julgamento justo é a pior das ingenuidades. Julgar o outro ou julgar a si mesmo é um ato essencialmente injusto. Devo entregar-me ou seguir amontoando corpos?

Durante toda a semana, a imprensa não tocava em outro assunto. A constante não era simplesmente a morte. Os corpos anunciavam a causa do crime tanto no estilo dos golpes como nas folhas de um diário, quase sempre deixadas sobre eles. Voz dissonante da situação a que chegou o regime democrático em nosso país? Voz consciente dos riscos de credibilidade de seu discurso? Não fosse pela agitação de distúrbios entre um extremo e outro da astúcia, nada passaria de uma página da crônica policial. Para qualquer repórter é fascinante lidar com a delicadeza incendiária do tema. Os olhos saltam. Sim. No entanto, tudo isto é assunto morto para a direção dos jornais. Há muito que escrevo sobre esportes, pois de outra forma estaria me desgastando na profissão, sempre em pleito com a administração.

Li em outro jornal um detalhe sobre a matança realizada pela jovem de 20 anos, cuja vida ia por um bom caminho, educada pelos avós, dedicada aos estudos e de repente um anúncio televisivo a desperta para cometer uma onda de crimes. A partir da furtiva transmissão cria um padrão de reação que difere das mortes cometidas pela mãe, somente porque às suas imputavam uma crença política. O assassinato convertido em represália. A coincidência do intervalo entre dois pontos fundamentais: a mãe criminosa que a abandona para que seja criada por seus avós; o país fictício que evoca e que viveu um período idêntico acossado por uma falsa constância. De um momento para outro quer recuperar a verdade sobre as duas malogradas conjunturas. Descobre assim que a verdade é a perfídia institucionalizada. Para onde encaminhar uma alma assim? O mundo será, em essência, um desastre total? Sinais de corrupção, exílio, dano existencial… Tampouco necessitamos de seu diário extraviado sobre as vítimas.

Quantos somos dentro de cada uma delas? Quem muda isto? O que ela acredita haver recordado? Quantos saberão identificar o país a que ela se refere? Qual? Onde ela está? Onde está aquele olhar dentro de mim? Quem me escreve? Quantos se confundem nas mesmas anotações? Quem nos detém? Quem nos julga?

Não cortem o sinal. O que houve? Alguém responda. O sinal se foi… A conexão…

O personagem vai se desmaterializando na medida em que reflete sobre uma dupla confusão refém do tempo. As vozes se mesclam de tal forma, dentro e fora de si, que já não se arrisca a entendê-las nesse ambiente. É provável que enlouquecesse ainda mais ao delinear o tempo de origem dos fantasmas que lhe assaltam. Quem a manda cometer os crimes? Serão múltiplas as vozes. Já não nos vemos diante de nada.

– Quiero dejar de matar. No puedo continuar la vida entera cumpliendo un capricho del destino. Residuos insanos de lo que he estado cometiendo se hacen cada vez más frecuentes, sin que me acuerde de una sola escena completa.

Há alguns dias um militar da reserva declarou que era impossível ter uma ideia geral da insurgência em suas inúmeras facetas.

Íamos acomodando os objetivos através da informação que re3cebíamos. Não deixávamos escapar nada, porém a cada instante surgia uma nova denúncia. Era uma operação incansável e os corpos se amontoavam no vazio, pois tínhamos instruções de não deixar nenhuma pista. Como dizer agora que uma louca influenciou os atos de uma filha que não chegou a conhecer e fez dela uma assassina em série cujas vítimas são mostras que nos incriminam? Nossos mortos não são frutos de uma loucura. Defendíamos a nação de um perigo enorme. O governo se via infiltrado por uma demência ideológica. A ordem se perdia entre manobras falazes. Era necessário atuar, deter aquela infiltração, sim, desfazer-se de tantos rebeldes, gente incompreensível.

O general falava em meio a uma explosão de retinas onde os corpos apunhalados na instância criminal se convertiam em despojos de um regime de exceção. Quando havia algum ruído, um sinal de dúvida, surgia uma tábua virtual que, em sua indagação, concentrava todo o sarcasmo do mundo: quem fala? Porém todos nós falamos sem abrir a boca e o que dizemos sai sempre dos lábios de outro. Para onde iremos ao sair daqui? Para outra comemoração, outros 20 anos de alguma virtude perdida. A repeti-lo tudo, sempre. Alguém liga a televisão no momento em que se anuncia o desaparecimento dos integrantes de uma comissão que se encarregara de investigar os subornos na esfera governamental. Na semana seguinte os membros do Congresso receberam correspondência com a fotografia de um dedo. Diferentes dedos para cada um, todos os dedos da comissão cujo paradeiro permanecia desconhecido.

– Jamás encendería la televisión. No sé a qué especia de fatalismo recurría mi madre. ¿Llegará un punto en el que la indecisión anule toda perspectiva de libertad? No cabe duda de que hay una jerarquía de modelos. Mis abuelos me decían el bien por encima de todo, pero, ¿quién asimila una herencia tan vaga? Si los vivos ya no se entienden, sólo el exterminio los identifica.

Este é o inferno para todos, os que vivem celebrando datas, pautar a vida a expensas de pequenos vícios vulgares, crenças simplórias sobre o mito da experiência. Será sempre assim, a mesma cena. Em pleno estado de repouso. Nenhuma estática. Nenhum êxtase. Todos nós. Como ventríloquos uns de outros. [

 

 

Minutos após a publicação, na seção “Carta vazada”, do blog Atração Fatal, estampou o seguinte comentário, da pena de um leitor do Camelódromo, que se firmava Zomar Kardan:

 

 Moleque!… Um final bem atual, empenhado na História das Raízes do Milênio 21, a Origem do Mundo Informático em que vivemos… e que começa, justamente com a invenção, pela Dieta Militar, da Televisão Brasil Grande!… A data do artigo é importante pra mostrar tua lucidez ao perceber o que estava pra vir, e que no final, a própria Dieta não sabia.

A realidade não passa disto. Uma permanente fonte de transferência de ilusões. A razão deu ao homem uma impossibilidade, de compartilhar sua existência, com o outro. Tudo no homem é concorrência, ao ponto de tramar quanto ao expurgo de sua própria imagem no espelho.

Mas a realidade não passa disto. E o espelho permanece intocável.

Moleque dos Ternos teve negado, pela terceira vez, seu visto de saída do espaço comum a todos os mistérios.

Já não sabemos onde encontrá-lo, porém uma coisa resta como certa, provavelmente: jamais houve uma última quimera.

 

 

 

3. O BARCO NU

 

No centro do palco está um banco alto. Nele se encontra amarrada uma corda que conduz a uma parte fechada do palco, na lateral. Entra uma mulher, em direção oposta à da corda, e se dirige ao banco, cantarolando uma canção. Ela usa um vestido bem solto e em farrapos. Está descalça. Senta-se no banco e continua cantando, sem perceber a corda.

 

mientras la noche silabea sus trucos

entre el desierto y el mar tenebroso

miro en tu cuerpo ese barco desnudo

siempre a guiarme en silencio profundo

 

vuelve al mar, vuelve el mar

al desierto que fuimos un día

y allá en sus besos salados

vuelve el sueño a escribir su canción

 

vuelve al mar, vuelve el mar

en sus manos nos fuimos un día

y allá en sus dunas calientes

vuelve el mar a escribir su pasión

 

Enquanto canta ela agita os braços docemente, onduladamente, até que uma mão toca a corda. Interrompe a canção e faz um gesto de curiosidade em relação ao que encontrou.

 

Li certa vez que o amor de Deus é como o amor de Dois. É como uma noite que se vai, de tão ambígua e querendo ser tudo acaba por nada ser. Talvez como esse mar da canção que não sabe bem aonde voltar, sem que, no entanto, pare de ir e vir. Se acaso eu puxar essa corda, trarei o mar para perto de mim? O mar que descansa em nossa pele ou o mar agitado com as suas escadas que sobem e descem em pleno vazio? O mar é uma espécie de vestimenta do acaso. Está sempre ali, não há como não vê-lo. No entanto, nunca sabemos o que nos trará: um amor, o esqueleto de um pássaro, uma caixa vazia. Talvez de todas as incógnitas da vida o mar seja a mais devota da surpresa.

 

Um silêncio e ela olha para o público.

 

Puxo esta corda ou não? E se não for o mar? De qualquer forma eu posso criar a ilusão de um mar, e qualquer coisa que venha com a corda seja um presente desse mar desejado. Não é assim que fazemos com a vida a todo instante? Até mesmo as coisas que saltam do passado à nossa memória são um desejo de mar. Esse mesmo mar que quase sempre não nos dá o que dele queremos.

 

Começa a puxar a corda. Seu olhar oscila entre o público e o que trará a corda.

 

Vocês sabem. A vida é esta sensação de fortuna que sempre está por vir. Não necessita ser o mar. Nós transformamos nossos dias em uma metáfora oscilante, o pão, a estrada, a cama, não sonhamos com muito mais coisas do que esse trio de sargaços. O alimento, a metamorfose, o apetite sexual. Deve ser isto o que me trará essa corda.

 

Surge então o mistério ao final da corda. Um balde. Quando ela o percebe puxa mais rápido e o traz às suas mãos.

 

O que será isto? Será o que vejo? O destino não teria nada melhor guardado para mim? Um balde? Fecho e reabro os olhos, incrédulos. Se nem meus olhos podem crer, o que devo dizer? Será este o mistério de uma vida? Um balde? A sombra cínica de um deus que quer acabar conosco? Ou o próprio diabo que não desprega da cruz mesmo depois do renascimento do outro? Este balde será a minha cruz?

 

Agora com o balde nas mãos, ela tenta livrá-lo da corda.

 

O que a vida espera de mim quando nos encontramos ao pé da revelação e ela não se mostra senão na forma de um balde? É como ter diante de si o inferno e seguir acreditando que o mundo pode mudar. Um balde? O que devo perceber que não estou vislumbrando? O mistério do continente ou do conteúdo? O balde é o que me permite encontrar em seu interior ou é a caixa que nos desafia a olhar o mundo fora dela?

 

Solta finalmente a corda do balde e o ergue acima da cabeça.

 

O que haverá dentro dele? Talvez a loucura que reluto em aceitar. Um vestido novo? O sonho retorcido em que volto a ser a mulher que nunca fui. Ah esse balde é a mesma praga de sempre: o reconforto de uma ilusão. Mas… e se não for isto? Se eu estive me apressando em julgar o mistério? O mistério voltará algum dia? Talvez descontente com a minha ansiedade o mistério nunca mais me procure. Talvez o mundo esteja repleto de gente assim, que perdeu as graças do mistério. Mas tudo isto por um balde? Porque não decifrei o enigma de um balde? Deve ser isto. Um balde não deve nunca ser um balde. Mesmo quando colocamos água nele para regar as plantas. Mesmo quando o usamos para recolher as folhas secas varridas em um jardim. Ou quando o enchemos de merda ou vômito. Quando simplesmente o transformamos em um rito de passagem de um mundo vazio para um mundo cheio. Não importa qual seja o seu conteúdo.

 

Silêncio para uma nova reflexão.

 

Mas até onde um simples balde pode me valer um bilhete para sair do que sou a caminho de uma nova distração?

 

Ela se levanta do banco e coloca o balde em seu lugar. Passeia pelo palco.

 

Quantas noites posso percorrer em um descampado imaginário? Vagar pelas ruas sem saber ao certo o que a noite terá ainda para me mostrar. Ouço o som da chuva, sobre os telhados, o plástico das lixeiras e os baldes emborcados nos quintais. Mas não sinto a chuva em meu corpo. Quantos de vocês já não terão passado por alguma experiência que o corpo não percebe? Deve ser isto o que pressinto agora. Quando me afasto um pouco do balde o vejo em seu púlpito, talvez tenha uma mensagem para mim. Para nós? Um deus-balde que sonhe com a nossa aceitação de sua revelação. Não sei se me ponho de joelhos diante dele ou se simplesmente o expulso daqui, de nosso palco sagrado onde o mistério só tem valor se não quer impor um devaneio.

 

Fica em silêncio um pouco.

 

Talvez seja a hora de imaginar o revés da existência. Como se fosse inevitável ouvir as duas versões médicas sobre o câncer. Evidente que o balde não traz em si um câncer, mas pode ser ele mesmo a cortina que fará desse teatro uma zona de enfermidade. Uma zona de exceção. Um calvário. A experiência de ir ao teatro pode nos levar a essa estação final da compreensão do mundo? Não estou bem certa se viajei tanto para vir até aqui e dizer a todos que não devam mais crer em seus devaneios, que devam se entregar aos dissabores, que a vida é uma porcaria sem fim. Ao mesmo tempo, não me vejo como a rainha do vazio a ser preenchido, a deusa que pode levar a todos a ocupar suas rezas com alimentos melhores. Mas que papel represento agora diante de vocês? Não imagino que tenha vindo aqui para encontrar esse balde vazio. Alguém poderia me ajudar nisto?

 

Silêncio no público.

 

Sim. É mais fácil condicionar a vida ao silêncio. Quando nos encontramos diante de um perigo: nossa gatinha Luzerna com sua pata presa no galho mais alto de uma árvore, a bombinha contra a asma que acabou quando passamos a fronteira de país e ali não se pode comprar sem receita médica, o cartão de crédito vencido na hora de pagar o plano de saúde. Alguém sabe disto? A vida é a mesma para todos nós? Eu penso que sofro a mesma agonia disfarçada em parcelas a vencer de todos vocês. Quando vim até aqui não sabia que diante de mim encontraria esse trio fortuito: banco, balde e corda. Viajo por todas partes para falar algo sobre teatro. Quando cheguei aqui me disseram que eu tinha que vestir essa roupa, e logo me perguntei: que personagem me espera quando as luzes se acenderem? Vocês sentiram as luzes se acendendo como se quisessem dizer algo diferente? As luzes são uma estripulia do acaso. Nunca vão nos dizer nada. Quantas vezes viemos para cá na esperança de que alguém no palco nos ensine algo, um caminho, uma estrofe iluminada com a qual possamos ir para casa, cantarolando, e ali nos revele uma verdade oculta. Nada. Não há nada oculto. Nós somos um dilema irresoluto, uma pendência cósmica, a dor de terra que falta sobre nossos pés. Talvez alguém que queira nos dizer que um dia nos perdemos de nós e no outro dia, o dia seguinte, um fantasma, uma mácula, uma sombra qualquer, nos mostre que é possível encontrar outro alguém que sejamos nós mesmos. Talvez uma canção nos diga algo assim:

 

Pasa la luna por tu piel

Por tus espejos pasa el sueño

Y lo que ves es mi querer

Llenar de abismos tu vivir

 

Pasa el miedo por tu sombra

Los fantasmas y el gemido

Y lo que veo es tu querer

En mi espanto más temido

 

Pasa la noche rellena

Con sus encantos más locos

Y los misterios del mundo

Por tu mirada se escriben

 

Ante tu rostro enceguecen

Todas las luces celestes

Y lo que veo es abismo

A soportar tu inmensidad

 

Quedan en peligro los ojos

Que te miran con temores

Y los espantos del alma

Sin piedad soplan sus cantos

 

Silêncio.

 

Nunca se sabe, porque uma canção costuma enlaçar as mil margens do acaso. Quem poderia imaginar uma canção como algo que coubesse dentro de um balde e que quando ali encostamos o ouvido o que presenciamos é um mundo repleto dos espantos da alma? Eu queria tanto que alguém me indagasse sobre as vertigens do mapa desse buraco sem fundo que vejo agora no balde. Mas quem de vocês subiria aqui para indagar algo? Talvez tenha que ser eu mesma a cobrir meu desejo com as inquietudes de um enigma. Pensem comigo. Um balde onde ele está, por que razões estaria? Ele não fala, não se move, depende de mim para tudo. Pode ser o receptáculo de toda agonia ou fortuna. Que tenha chegado assim puxado por uma corda não pode significar algo em vão. E que esteja eu aqui esta noite, quando em outras o palco é ocupado por distintas atividades… Nunca pensamos na vida assim. Só nos vemos aos pedaços. Vamos ao teatro, sexo grupal na floresta, noites de blues ao redor da fogueira… Ah como é bom ter o acaso sempre ao cuidado de nossas idades! Eu cuido de mim quando estou fora daqui. Vocês bem podem imaginar que adoro vir aqui, a cena, essa personagem que vocês não acreditam que seja eu mesma. Mas vocês não são exatamente o que pensam ser. Ou que se mostram como a pessoa mais nítida na escola, na rua, na festa. Nós estamos aqui quase que na mesma intensidade do ser, eu posso encarnar um personagem, cantar uma canção, mas vocês também abrem uma espécie de abismo onde se mesclam nossas mais diversas formas de ser. E esse balde, o que ele pode querer nos dizer?

 

Vira e revira o balde.

 

Não sei quantas vezes uma imagem possa tirar de nós o proveito de uma metáfora. Eu me ponho sentada a teu lado, ela se põe sobre mim, outro busca um copo ao alcance de sua mão. São três cenas. Cada uma delas pode gerar um ambiente múltiplo. Quando tenho diante de mim um objeto ele pode ser o ativador de uma cena, um abridor-de-garrafas, um coelho empalhado, uma garrafa de cerveja. E para vocês, quando a vida desperta?

 

Ninguém responde.

 

Eu não toco nenhum instrumento. Venho aqui e canto, improviso boa parte do que digo a vocês. Eu penso que olhando as coisas se moverem elas acabem me movendo também. Eu sempre pensei que o mundo é uma espécie de coordenada inesgotável de tudo o que vemos, somos, imaginamos. Vir aqui e me encontrar com essa surpresa de um balde que que silencia, que não quer dizer nada, e que sabe mais do que eu que caberá a mim encontrar as suas imagens e palavras reveladoras, ah sim, isto sim, será o seu favor feito aos deuses do acaso. Um balde. Vamos pensar nisto. O que cabe em si, o que não se suporta, o que pode reter a volúpia de alguma identidade. Vamos voltar ao nada o tempo todo. Podemos imaginar alguma situação risível. Ou descobrir no público um sentimento nostálgico que o leve a chorar. Eu quero cair de mim e não sei onde poderei encontrar alguém que me diga o que eu poderia ter sido de outro modo. Não haverá um outro modo de ser. Nenhum outro jeito de cair. Quando toco as perspectivas voláteis de um balde eu desconfio que tanto podemos entrar ou sair de sua imaginação assumindo formas que de um lado não sejam percebidas como fontes de outra imagem. Mas quantos de nós podem aceitar a ideia desse balde sem fim, como uma espécie de mar que não para de abençoar a si mesmo pelas ondas voluptuosas com que recria a paisagem praieira. O balde que persiste. Quer ser entendido. Eu desconfio que não há motivo no mundo para ele ser aceito. O que lhe cabe dentro ou fora. O lugar que move ou a sensação de isolamento. Um assassino serial pode ser interessar por ele tanto quanto um governo. A chuva corrói os restos de um telhado vago. Quem poderá nos matar se não imaginamos alguém que nos queira matar? Tudo é isto. O espaço que se ocupa de nossas indecisões. Talvez seja lindo estar aqui, esta noite entre vocês, eu gosto do que faço, mas vocês querem mais, e eu adoro que vocês queiram mais, a noite coberta de mistério, essa sombra que ainda não conseguimos perceber a quem pertence, ah, um mistério, uma noite, esse corpo sem nome, parece uma série sanguenta de um corpo sem nome, mas nós sabemos o nome. Nós sabemos o que estamos fazendo aqui, a noite, esse telhado que não identificamos, o balde, ah sim, aqui estamos, o bendito balde, o que ela nos traz. Penso que devo mandá-lo de volta para o lugar onde, onde o que, onde nada, onde diabos… balde ou corda?

 

Um silêncio. Ela brinca com o balde, suas inúmeras posições.

 

Eu creio que talvez seja indolente imaginar um mundo em que a perspectiva do que está dentro e fora seja a razão única de seguir vivendo. Uma variação infinita entre todas as formas que se apresentam como um modo distinto de amar ou desafiar a nova forma de qualquer um de nós. Ninguém quer ser assim. Aquela festa em que nos encontramos com todos e ninguém nos reflete mais nada. Não importa isto. Aquilo com que uma vez mais pensamos que fosse o mundo se refazendo, isto não é mais possível. A corte chegou ao fim. A noite não chega ao fim. O fim tem um desejo que oculta sobre todas as noites. Um jeito de amar e saltar o mais longe possível de todos os saltos.

 

Deixa o balde sobre o banco e caminha pelo palco refletindo...

 

O que eu poderia fazer com esse balde? Já sei. Poderia enchê-lo de nuvens. Ah mas isso não teria fim. Escuto o que deveria ser impensável, a batida de meu coração vinda do interior do balde. Com que propósito? Lembrar-me que ele é parte de mim? Que afinal ele inexiste, como a ideia do abstrato, considerando que o mundo em definitivo é algo concreto? O balde entrará em mim e deixará tudo fora de lugar. A loucura será apenas medo de que ele me roube a identidade. Se ele desaparecer com meu coração, quem eu ainda poderei ser? O desespero do cérebro que teme a confusão da mente. A caixa preta com sua revelação inaudível. Quer saber uma coisa, balde? Vou contar algo que eu jamais disse a alguém. Não te livrarás de mim tão fácil. Não serei o teu brinquedo. A pedra no sapato. O pássaro cego.

Eu até posso imaginar as histórias que serão contadas a meu respeito:

Lá vem a doida do balde. Dizem que ela rouba crianças na rua e as enfia dentro do balde. À noite ela faz o balde crescer e dorme nele. A doida água no rio para se banhar. Dizem que um dia o balde cresceu e ela foi brincar de barquinho, o balde era o mundo dela e a doida acabou desaparecendo com balde e tudo. Mas há outra versão, alguém espalhou pelas ruas que ela brigou com o balde e o largou em um beco. Depois se arrependeu e foi buscar o balde de volta, porém ele já não era o mesmo. Havia algo diferente em seu interior. Ela quis plantar uma muda de canabis que pudesse ser a fonte de seus delírios, porém o balde imaginava agora as possibilidades de um mundo sem ela.

Mas nada disso será verdade. Eu jamais me perguntaria como seria a minha vida dentro de um balde? Tampouco eu te enfiaria em minha cabeça, como se quisesse fugir do mundo.

 

Pega o balde e o joga para o alto, logo o apanhando de volta.

 

E se este for o único balde do mundo? Ou talvez o último, que por alguma razão tenha vindo parar em minhas mãos… meus sonhos se ramificam pelas noites sem fim, como se eu vivesse ali uma outra vida, como se as noites pertencessem a uma realidade paralela. Um mundo de algum modo perto e distante, onde, curiosamente, não encontro balde algum. Nem mesmo o banco, a corda, vocês. Em meus sonhos eu estou em outro cenário. Talvez o lugar mais próximo de uma realidade desejada. Sim, por isto que são chamamos de sonhos. Os truques de uma cena impossível. Porém o teatro também é assim. O que realizamos aqui é o improvável. Mas então a imaginação é irrealizável? Eu posso usar toda a minha imaginação para ser real? Vocês estão me vendo como uma forma real ou não passo de um vulto intrometido da imaginação de vocês. Em algum momento nós teremos que tomar esta decisão: o que vemos é o que somos ou o que desejamos ser?

 

Olha fixamente no interior do balde.

 

A miragem será o melhor oráculo. Indago à natureza profunda de um balde o que ele pode me dizer acerca de mim mesma. Não é isto o que fazemos? Quando lemos as folhas de chá do zodíaco, ou nos deliciamos com nosso próprio corpo, ou quando o analista nos indaga o que nos levou até ele… talvez estejamos irremediavelmente perdidos. E preenchemos o vazio de nossas vidas com a voz roufenha de um oráculo de ocasião. A voz que agora escuto vir do interior desse maldito balde. O desespero de não me encontrar em parte alguma. Uma sentença ou maldição. Eu me procuro nas assertivas do I Ching. Nada de mim e, no entanto, algo nessa ilusão me reconforta. Chego a crer que finalmente posso contar com meu eu mais verdadeiro. Bom, mas quantos serão mesmos? Este balde precisaria conter o infinito para que apenas uma parte de mim pudesse ser visível. Não creio. Melhor deixar tudo isto de fora. O balde talvez seja o corpo da noite, ou um balde-barco sempre a nos guiar em silêncio profundo.

 

Joga o balde o mais longe possível. Respira profundamente. Os olhos fechados. Começa a entoar uma canção.

 

mientras la noche silabea sus trucos

entre el desierto y el mar tenebroso

miro en tu cuerpo ese barco desnudo

siempre a guiarme en silencio profundo

 

vuelve al mar, vuelve el mar

al desierto que fuimos un día

y allá en sus besos salados

vuelve el sueño a escribir su canción

 

vuelve al mar, vuelve el mar

en sus manos nos fuimos un día

y allá en sus dunas calientes

vuelve el mar a escribir su pasión

 

Ela então se curva sobre si mesma. Não há cortina. O público imagina que chegou ao fim. Ela ergue novamente o corpo.

 

Agora não sei se devo sair ou não. As horas sempre murcham anunciando o fim de algo, porém a realidade não tem fim ou propósito. Ela está sempre agarrada em nossa pele. Eu posso me desfazer do balde, porém alguns fantasmas são os primeiros a saltar do barco à deriva. De longe olhamos o balde do qual imaginamos ter nos livrado. Ele ainda está lá. Talvez seja uma poltrona na sala, o abraço enternecido de um amigo, o álcool e suas curvas fechadas. No fundo sabemos que as estações são mais do que a pequenez de seus arquétipos, que o símbolo brinca conosco nos fazendo crer que não passa de um significado espantoso que nos fascina e nos leva a seu encontro. O círculo fonético das palavras que trapaceiam com a nossa necessidade de acreditar em algo. As miniaturas dos elementos sagrados que recolhemos em nossas mãos. A espiga e o espinho, a multiplicidade de truques que nos fazem confundir a angústia e o êxtase. O balde poderia ser uma descida aos infernos ou a simples analogia de um amor desfeito. Quando olhamos para as cores pela primeira vez na vida não sabemos seus nomes. Tampouco podemos lhes dar nome. Aos poucos aprendemos que o azul é azul é a mais profunda das cores e que seus aposentos estão repletos de suavidade e divagação, que o azul só é tempestuoso quando escurece. Não trocamos ideias com os símbolos, apenas nos adaptamos às suas aplicações em nossa vida. Aquele mar que a princípio pensamos que a vestimenta do acaso, no fundo é um domo espelhado que nos ilude com suas luzes numerosas. O mar é a própria raiz do obscuro. Reproduz em nós o mundo informe que encontramos no balde. Experimentem chegar em casa e olhar para o fundo de um balde vazio. Verão ali a própria decomposição da existência humana. Apontem uma luz para o interior do balde e sua irradiação dará uma nova ordenação ao caos. Um silêncio manifesto que aos poucos ilude a nossa retina e as sombras vão surgindo para um baile de oferendas e influências. Vão logo, vão para casa. Esta rua onde estamos deve permanecer vazia. Não há mais balde. Sacrifiquei o símbolo para ter um pouco de paz. Este é o meu sétimo dia. Estou pronta para adivinhar um novo barco no horizonte. Vão para casa. O balde não dará mais um passo até que todos tenham saído daqui.

 

FIM


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

 

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