1. BAZAR DOS GRANDES INVISÍVEIS
Baseado em gibi homônimo de autor desconhecido.
Toca o bombardino, Mané das Quatro Roças.
Toca a pimenta de cheiro no nariz das Camélias.
Ribomba, meu sertão fingido, dá cá o peixe
que trazes dentro de tuas várzeas mais ocultas.
Fragmento do libreto Roçado de além-mar, apócrifo
A noite roçava um gosto secreto pelo inalcançável.
Um verbo desencontrado de suas regências. Desfrutávamos os crustáceos afoitos e
os abismos fermentados. O lugar reuniu convidados de Salpicão Quaresma, um
bruxo local, que os conhecera em suas viagens a trote abissal: Bastião
Catispero e Ancinho Takanota. Os vultos vistosos dos Grandes Invisíveis, bem
sentados à mesa, quase nos convenciam da existência do mais improvável dos
mundos. O cenário seguia à risca a cartilha do inesperado. Por vezes uns
tambores retumbavam a querência mais secreta do público. Um sol negro se
desmembrava em cada canto da casa. A voz em off do apresentador anunciava a
querela galopada dos sábios disfarçados: – Desfrutem a quimera que eles
trazem no balaio de seus improvisos.
∞
As
primeiras notícias da terra
deram
com areia nos olhos.
Poeira
vermelha, savana obesa,
a
caixa de pecados só restolhos.
Troca-troca
entre mar e sertão,
a
menor das sinas interrompidas.
Teve
de tudo: colheita e bordel,
no
glossário faustoso dessas vidas.
O
inferno atraca sem grande aprumo.
Troca
esgares com a fé e arma sua rede.
Por
mil anos nada contestam os jornais.
Os
vivos retocam o sujo de cada parede.
Haníbal
tropeça em cascos de Elefantes,
disfarça
a queda e lhes rouba o marfim.
As
perdas voltam um dia a ser ganhos.
Porém
Haníbal conhece apenas um fim.
Até
onde houver lama
a
janela escuta o zunido
de
almas em pranto e fuga
do
ermo mais escondido.
Taxas
em atraso soletram
planos
da nova estalagem.
Não
mais viver embutido,
mas
no dorso da viagem.
Luzes
piscavam, e ninguém sabia
do
fogo maturado no aluvião.
Lótus
saltando na borda do céu,
antes
dela a mais plena escuridão.
Feito
expresso das coisas movidas
o
mar nunca sabe se vai ou fica.
Cardume
de ilusões à noite respinga
e
quando pensa na praia se estica.
O
apêndice no alto do coqueiro
ninguém
sabe quem pôs o diabo,
disfarçado
de última esperança
maldizia
a vida como um quiabo.
Toda
gente olhava pro balde,
sem
saber quem nele morava.
Não
era Deus ou sua máscara,
só
um coco que perdera a oitava.
Quando
eu vi o mundo grande
sacudindo
a poeira do vento,
pude
ler no encardido que restou
as
linhas saltadas do testamento.
Aquelas
que garantem alforria
a
bom prazo e um queijo frito,
além
de céu com luzes piscantes,
para
o mais degenerado cabrito.
Era
um frasco de boa memória
onde
guardava gênios e pílulas,
as
melhores frases jamais ditas
e
o fundo falso das cédulas.
Nenhuma
trama contada se ria
mais
do que os esgares afinados.
Um
dia ao ensaio não veio a atriz
e
a arte conheceu novos pecados.
O
anúncio salpicado na toalha
fazia
da mesa gato e sapato.
O
olhar da barata sumiu devagar
do
pesadelo mascando o retrato.
Quem
disse o preço decerto calou
os
detalhes da sopa e do refrão.
A
mesa escondia sob frio mantel
quem
nunca pagou um só pinhão.
O
casarão ficou pronto
após
a primeira demão.
Faça
chuva ou faça sol,
não
nos falta teto e chão.
Custa
caro a ribalta,
muito
mais o camarim.
Por
ela eu daria meu dote,
por
ele roubaria teu rim.
Muita
história foi apenas dançada,
a
pinho e válvulas, uva e salame.
A
tal ponto que nem todo o havido
retorna
como queixume ou reclame.
As
noites foram de palha e pilha,
Ramalho
e Adélia em canoa mágica.
Talvez
apenas a alma sem lastro
torne
a vida uma mobília trágica.
Os
milagres foram ficando ralos,
casebres
de degredo e papelão.
–
Fosse eu um Merlin, disse Saúl,
teria
dado boa chuva ao sertão…
Nesta
bacia de sementes ressecas
mal
posso identificar sul e norte.
Quando
muito sei que ela, Adélia,
já
teve um dia bem melhor porte.
O
babado na franja do céu
é
um rito encardido à espera
que
o mito desfaça engodo
e
tropeço no baile da ópera.
A
fama nos dá de mamar
uma
vida de falsa esperança.
De
um grotão a outro a mais vil
ratazana
desfez a semelhança.
o
olhar vira poeira, a vida ilude.
Dobras
do mar em furor titânico
forjam
o pendor que o mito aturde.
Já
o câmbio do penhor, este escapa
mais
do que turco letrado em fugas.
As
necessidades são as torpes vilãs
de
enrascadas furtadas pelas rugas.
A
verdadeira perna
nem
sempre é a mais alta.
Nem
mesmo a melhor morte
é
a que rejeita a ribalta.
Pode
ser até que a farsa
seja
encenada por um pernalta.
Não
importa quanto dure:
um
dia nada nos fará falta.
Quando
a noite se amiúda
perdemos
os melhores dias.
Quando
dados soam falsos
a
casa manda lavar as pias.
O
céu reclama suas nuvens,
dormidas
fora de esquadro.
Duas
pias de estrelas boiando,
molduras
em busca do quadro.
Farelos
de esperança cegam os olhos
de
almas tão penadas quanto esguias.
Das
noites resta um bordado de uivos
e
o floreado carcomido das estrias.
Entre
tumbas e trombas e tombos
estrelas
conquistam a queda perene.
A
matéria se desfaz fora de seu tempo.
Não
importa qual chamego lhe acene.
Rangem
as curvas do crepúsculo,
iludidas
da volta de algum barco.
Manchas
no céu não identificadas
soam
como fuzarca ou um marco.
Mas
podem ser um sujo na luneta
ou
o olho segregando seu delírio.
Tratar
com respeito a imaginação,
manter
perto dela um bom colírio.
Eu
fui ver com quantas gralhas
se
destrói um livro santo.
De
uma só revoada os salmos
se
esconderam sob um manto.
Chego
a pensar que a cigarra
é
uma formiga empalhada.
E
que o tropel dos quatro anjos
não
passa de uma reles cilada.
A
lua dormiu na cisterna,
evitando
lençóis da ribeira.
O
prato emborcado sonhou
com
uma amante na prateleira.
Mamãe
quando bebe não liga
se
é saquê ou suco de ervas.
Passar
uma noite com ela
é
ser refém de minervas.
A
última corredeira tinha um nome.
Ao
escorrer seu mel era puro fogo.
O
tempo passou de queda em queda.
Já
ninguém lembra o último malogro.
Foram-se
os verbos e junto as verbas,
mundo
melado que a tudo escorrega.
Quem
dera restassem fio ou pavio.
Bastava
pedi-los e aguardar a entrega.
Os
céus da pátria são de capim.
Marabu,
meu jardim sabotado,
fez
de um trailer três troles
e
um tigre com pé enfaixado.
Tudo
era treva e falsas luzes.
Menos
as balas furando a tela.
O ratakatraka
raspava tudo
e
o olho escafedeu pela janela.
Pela
dieta de agulhas dos camelos
eu
fui passando todo o bagulho.
Ninguém
desconfia de pó viajado
em
saquinhos do mais puro entulho.
O
ouro da fé é a urina dos degredos.
Xarrel
pôs o quinto pilar no lombo
do
inglês feliz com a própria força.
Para
si não queria um novo quilombo.
Dos
relicários da velha tapera
fiz
um refrão pra enxotar o azar.
O
Cisne Negro comeu os farelos
de
esqueletos fingidos no lagamar.
Nos
escombros de tanta história
fui
reler o que jamais fizemos.
Para
cada inquietude uma troça
e
um barco no braço dos remos.
Armando
a rede na varanda ilustre
o
saxofone embaçava o uivo cafona
das
migalhas de um último desastre:
bordado
de mitos, sopa de mamona.
Flores
programadas para murchar
antes
que o vento cantasse vitória.
Quem
quer que invente o próprio fim.
Aqui
mal damos conta dessa história.
O
melhor mel caía da nevasca,
o
Estige nunca esteve para peixe.
Frio
era o céu e quente o olhar.
Pela
metade não há quem deixe
de
frequentar tantas caboclas.
O
anúncio é a ilusão que rima
com
a prateleira das virtudes.
O
mundo em baixo ou em cima.
Agora
a confusão quer raiar o dia,
mudar
depressa o bordão, tingir-se
de
morta ou fazer cara de Sulamita,
dando
um salsichão por imiscuir-se.
Quem
terá visto o cabide onde Luzia
sorrateira
deitou, feito um chapéu?
E
a toalha feliz com a dona atrevida
que
naquela noite papou até o céu?
As
noites não cobram pedágio algum,
jamais
importa o sonho ou o pileque.
Se
acordamos em pranto ou orgasmo,
a
imagem saberá ser toalha ou leque.
O
teu corpo adora fingir-se sereia,
cromo
esquecido no fundo do mar.
O
dia todo uma noite jogou-se nela,
e
o que vimos foi um desastre solar.
Não
há uma causa que seja santa.
Crença
alguma nos leva a Deus.
Tudo
expira a cada ira ou suspiro.
Quem
se vinga não salva os seus.
Porém
Totó desconhece a lenda
e
sonha com pilares que um dia
possam
tornar sagrado seu xixi…
Também
ele quer reino e anarquia.
As
noites passam por dentro
do
mundo que fica lá fora.
Quando
um de nós se avizinha
o
tempo não vai mais embora.
Rebenta
a primeira das águas
no
acaso já quase extinto.
Quem
quer renascer muitas luas
que
aprenda a colher labirintos.
A
lei de acordo com a cuíca
tanto
prende quanto solta.
Não
há ilusão mais faceira
do
que esperar pela volta.
Rapé
algum conforta
ou
sopinha caseira alimenta
quem
se amarra ao pé da porta
e
só de esperar se orienta.
O
verbo deixou passar a dor requerida,
fábula
adormecida, cadafalso sem uso.
Os
corvos nos criam, em noites insones.
Jamais
pude ler o teu silêncio confuso.
Os
deuses amam o que amamos neles.
A
cripta de ossos, o malogro dos fatos.
Mistério
algum divide tantas páginas
com
a alegação de culpa dos artefatos.
Um
pastel de almas ao preço
de
uma depenada ave de prata.
Um
terço cansado de rezas,
um
empório de mitos de lata.
Do
táxi vi o cordel ao vento
negociando
as proezas da fé.
As
ruas choravam imoladas
pela
perda do estoque de rapé.
As
lições atiradas na mesa
refletem
as agonias do saber.
Quanto
mais vozes escoam
mais
caprichos fingem dizer.
Por
onde andei, quantos sou,
um
bicho da seda, um pardal,
nada
importa senão que esteja
muito
além do bem e do mal.
Cascos
cutucam as gáveas insones,
indagam
sobre estrelas decaídas.
Quantas
vezes mortos se repetem
até
que escadas não sejam traídas?
Esqueletos
confabulam em sacos,
discutem
sobre as vagas do porão.
O
mundo reage como um micróbio,
fosse
um escarro queimaria a mão.
Espectros
burlam a ilusão de tudo,
o
que sonha ficar, o que espera sair.
Horas
contadas em nome do caos
engalfinhadas
sem ter para onde ir.
Tatuei
tua queda no busto de Nero,
pistas
de um espalhafato sem igual.
Quando
deixamos o tempo passar
mais
nada sabia voltar ao normal.
Pinóquio
saiu para pescar
com
seu nariz tinindo de novo.
Uma
revoada de lambaris
o
aguardava em cada ovo.
Gertudes
amou Cupertina
no
arpejo de cada lorota.
A
verdade enrolada na cortina,
vazias
a garrafa e a compota.
Quero
ver quem vai casar
com
o Padre Jospan Pedregulho,
pode
ser a lagarta Quaresma
ou
a Joana que mora no entulho.
Não
importa se mambo ou tango,
a
cigarra é a mais afinada.
Vai
expor seus dotes na festa
e
depois vai ser tudo ou nada.
As
tropas do General Quaresma
aportaram
na boca do pote.
Era
uma sede sangrenta a feri-los,
e
o medo de morrer sem dote.
Um
pelotão de bustos insultava
a
decadência de qualquer império.
Quem
dera fosse apenas Nero
o
imperador não levado a sério.
Se
Dom Preá pudesse contar
buracos
que abriu por acaso,
saltariam
diálogos do túmulo
de
velhas tramas fora de prazo
enterradas
no mesmo teatro
em
que é encenada a pouca luz
a
história confusa e prescrita
da
trova que perdeu até a rima.
Em
acidente mais afoito
a
escada tropeça nas pernas,
a
lua cheia era um biscoito
com
duas estrelas na caserna.
Noite
já finda o alazão
desertou
lá do quartel.
Nem
de longe imaginou
que
confusão daria o mel.
O
açougueiro sonhava com carnes
fingindo
seres míticos, falastrões.
Como
nuvens ou sombras no olhar
de
crianças confinadas em porões.
Xarrel
não guarda uma única bituca.
Tanto
crê que o futuro degenera
que
nem repete a cama onde dorme.
Prefere
matar a morrer de espera.
Jandira
foi pro mato, viu Porcão,
pôs
a lua entre os seios, alumiou,
era
um molho de deleites, ela viu,
tarda-ninho,
tara feita, s’avultou.
Jandira
comeu Porcão no cercado,
lambia
beiços, deixou nem grão.
Depois
era tarde, realidade se foi,
Porcão
era Xampan, rei chapadão.
O
amor feito entre os sacos
de
farinha e ração para peixes
sorria
satisfeito e invejado
pelas
caixas de ferros e feixes.
Nada
disso decerto era notícia
que
Adélia um dia recortasse.
Nada
mais teria importância
que
o perfil do amado evocasse.
As
dores mudam de fronha e cuba,
viciada
em nutella a morte se empacha.
Jandyra
não vê senão o breu da bola,
que
rói o mito como se fosse borracha.
Deus,
pra que tantas visões, tão iguais,
se
o morto se esvai a cada arruela ida?
De
nada vale rebobinar ou parafusar
a
ilusão quando a mesma está perdida.
Fosse
um dia posto sobre outro
pescaríamos
atos e fatos na rede,
caranguejos
no balde, vida farta.
Mas
o tempo nada fixa na parede.
Cai
por terra todo aquele que crê
que
nada como um dia após outro.
Lágrimas
não são pimentas magoadas.
Do
furico de Cleó não sairá um potro.
As
noites passam por aqui
com
seus cascos mordidos
e
assanhadas lembranças
de
tempos melhores vividos.
A
cadeira do doutor Xarrel
guardava
um vultoso segredo
de
heróis que roncam felizes
com
gozos selados bem cedo.
Luzia
experimenta dormir ao relento.
Dois
goles, uma pitada e meio bife,
deixou
o Doutor todo empalhadinho,
e
logo voltou correndo pro esquife.
Foi
o vento, reza a inveja na comarca,
dessas
noites em que nada dura em pé.
Dizem
que preá e capivara se aleitaram,
e
nada ou ninguém pediu segredo ao Zé.
Ninguém
confia em rito bem passado,
feito
salário congelado, amor eterno
ou
deusas costuradas na coxa de Zeus.
Não
vivo na casa onde lavo meu terno.
Não
saldo hoje as dúvidas de amanhã.
Pressa
alguma para chegar ao destino.
Se
morro antes não haverá como saber
quantas
surpresas no ralo do intestino.
Dizem
que Xarrel era um patrão
misterioso
e muito mal pagador.
Roubava
folhetos de bom cordel
para
vender na boca do Arpoador.
Preso
no Corte Inglês na Galiza
vestira
tantas roupas em si mesmo
que
parecia um ator mambembe
vivendo
mil vidas, dormindo a esmo.
Era
uma vez o mito atrás do espelho.
Ruiu
o teto, desastrada, a cegonha.
Veio
atender a resmungos e fuxicos,
acabou
no chão com cara de pamonha.
Todo
mito disfarça a própria fama.
Querendo
até mata o rito de vergonha.
Se
finge de régio, sacerdotal, mas avia
em
hábil camarim um baú de maconha.
Demos
a volta ao mundo
No
velho mustang da igreja.
Jospan
garantiu hóstia boa
a
toda gente que ali esteja.
Fomos
de um cercado a outro
como
nuvens em pasto estelar.
Foi
o casório mais repleto
de
tudo que se possa imaginar.
Os
lixões guardam a cidade real,
o
luxo empilhado tocando o céu.
Babel
de mil vidas adulteradas
e
um cardume de sonhos ao léu.
Quanto
mais se farta a miséria
mais
vidas se destinam ao borrão
de
verbos decantados e gastura
de
hóstias sem pecado e podridão.
Um
bolo de trevas faz a festa
de
quem não sabe contar…
Até
onde, até quando, sai daqui,
puxa
o rojão pra requebrar…
A
noite inteira é uma proeza,
na
roldana das Caboclas um trevo.
O
nove se deita à espera do dez.
Todos
sonham em ser o primevo.
Beba
o leite mesmo amargo da negra
por
ti acobertada ao fugir do hospício.
No
zoo a tristeza é tanta que até mesmo
os
mosquitos reconhecem o suplício.
Se
vimos um dia macacos na punheta,
hoje
até os leões fugiram das chácaras.
Bordeis
vazios regurgitam seus gozos
e
o cetim rasgado de suas máscaras.
–
Feche a porta ao sair, dizia Xarrel.
O
sábio evita o retorno, esquece a ilha,
rejeita
o destino que o caça faminto
e
cospe em seu nome na boca da filha.
Xarrel
levou o Tejo para o São Francisco.
Não
por magnânimo ato, não se iludam.
Queria
apenas provar, por puro sarcasmo,
que
a água fica quando os rios se mudam.
Bem
sei que a justa sempre quer a sua,
não
importa o melado ou chá vencido.
Vamos
deixar o palco pronto pra noite.
Ninguém
guarda o nome e sim o apelido.
Hora
do silêncio ralar em seu bê-a-bá
e
as sombras bailarem com as cortinas.
Caronte
sabe bem com quantos teatros
o
mito vaga a livrar-se de suas toxinas.
A
vela traga a noite até o fundo
de
seus queixumes empoeirados.
Nenhum
gole será tão fatal
quanto
os que se imaginam dados.
Da
traição se quer o gume de espanto,
do
saltério a nota que rasga a alma.
O
público jamais deixará por menos
a
trama em que a dor perde a calma.
A
cura! A cura! A cura!
O
veneno nem tem importância!
Só
não ponham na quentinha
a
janta pra maior distância...
Quem
sabe soletrar a causa
jamais
se perderá nos efeitos.
Se
o rato lhe rói a língua
o
feitiço logo-logo é refeito!
A
conveniência é a última Quimera,
lojinhas
cujas luzes não se apagam.
Mesmo
as pecinhas transparentes
guardam
segredos que amargam.
Antes
de descer do metrô Pandora
chegou
a pensar em tirar a calcinha,
tamanho
carinho ela tem por Atenas.
Mas
nada. Sorriu, e ajeitou a diabinha.
O
bom de uma noite no paraíso
é
que ali toda gente se crê eterna.
Judite,
Raimundo, Ritinha, Javé,
todos
trocam a fé por uma perna.
Por
mil dias o rádio sempre repete
igual
cantilena que lustra a alma
de
quantos riam, chorem ou gozem
escolhidos
por aquela voz tão calma.
As
luzes criam falsas escuridões,
sapatos
atrasam as boas trilhas.
Por
instantes beatas engalfinhadas
eram
como mães perdendo filhas.
Lá
embaixo se ouvia rouco badalo.
Miguel
havia fechado suas contas.
As
ruas e as rezas se debatiam:
hábitos
confusos, bênçãos tontas.
Sonhos
não sabem senão sonhar.
Cleó
insiste em amar a vida inteira.
Sua
ilusão será a primeira a morrer,
antes
que perceba o vício da esteira.
O
mundo que um dia passou por aqui
segue
encravado na unha de Cronos.
O
que o rádio anuncia, em carne vazia
e
gumes do espírito, são frios abonos.
Os
fins detestam princípios,
sempre
tão cegos de razão.
Iguais
aos meios que iludem
na
calada da noite a emoção.
Sento
na coxia a esperar
que
apareça um bom motivo,
uma
gota d’água, um pavio
ou
defunto se fingindo vivo.
O
abismo olha para dentro de si
como
se buscasse uns sutis vapores.
Sobe
ladeiras de janelas abertas,
deixa
o medo despir seus ardores.
Ninguém
dispensa jamais o excesso.
Por
onde quer que ande a vela acesa
e
a teimosia atropelando a estrada,
nada
confessa o abismo à última presa.
Não
fiquem zanzando pela feira
na
injúria de palanques crendo.
A
fé na política é igual à da missa.
Cão
que morde o rabo está vendo
a
imagem anunciada em sua fome.
Se
um dia pudesse calar o instinto
decerto
comeria o rabo de outro,
e
Xarrel diria orgulhoso: não minto.
Não
venha agora dizendo
que
o mundo está um bagaço.
O
dia inteiro eu te amei,
e
à noite eu fui teu palhaço.
Perdemos
o chapéu na corte
e
as moedas em fundo falso.
Se
um dia brilhamos no trono,
hoje
só nos resta o cadafalso.
Pelo
grifo que pinga a história
desconfio
que estou atrasado.
Ao
ligar o skype ouço arquejos
do
horizonte, destino queimado.
A
cigana que leu a minha mão,
se
fosse cobrar por seus erros,
já
teríamos comido outra lenda,
falsos
olhares fugindo aos berros.
Mil
cascos furados o oceano engulha,
uma
língua presa a outras definha.
Vi
palmeiras rejeitando deixar a ilha,
a
dor esmagada que ainda não tinha.
Um
céu pra cada lado, um véu retinto,
a
corneta do Armagedom desafinada.
Medalhas
foram comidas com desgosto.
Ao
final, o tio nem brada nem nada.
Para
Gilda perdi meus humores.
Hoje
me esgueiro entre horrores,
feito
espada repleta de dores,
aquarela
que apagou suas cores.
Com
Gilda se foram meus atores,
tanta
fortuna no mel dos penhores,
noite
azarenta entre mil senhores.
Não
sei mais como amar Dolores.
Quando
as pérolas gemem
e
garfos entortam o nariz
certamente
nada mais falta,
nem
mesmo mascar o verniz.
A
solidão devora castelos
em
suas orgias derretidas.
O
alquimista não cobra tostão
por
essas tendas pervertidas.
A
tempestade tem mil patadas
prontas
para ruir cada margem
de
limites que firam a natureza
e
embaralhem dor e miragem.
Saúl
pôs uma pulga em cada cós.
As
margens todas se roçavam.
Mascavam
sua dieta inanimada.
Por
vezes entre elas se coçavam.
Cada
vez que a casa cai
o
jardim suspira fundo,
Ciente
do que deva pensar
das
dores desse assunto.
O
fardo de cada queda sua
decifra
a miséria do mundo.
Decerto
há quem faça reserva
do
paradeiro de cada defunto.
O
patuá fornido caçoou do gambá.
Não
levo comigo queixa ou catinga
Nada
que azede na curva do olhar.
A
diaba pra espumar mija na pinga.
Com
ela minha vida é na contramão.
Não
passa um caldo ou raspo o tacho
que
não seja na boca da Gigantona.
Dentro
dela me perco e nem me acho.
O
céu jamais se conformou
com
seus cabelos pintados.
Não
é que chova ou não,
ou
que desabe o retocado.
Dele
o que bem se espera
(ele
sabe ah como ele sabe)
é
que não mude nunca de cor
antes
que um dia tudo acabe.
O
inferno faz de conta que é céu
quanto
mais untas teu nome ao meu.
De
goma e sonho fazemos mil hóstias,
salões
de espelhos e remos de Orfeu.
Não
gastamos tanto verbo para nada.
De
mãos vazias nem Deus retorna.
Querubim
cresceu, Salomão se fez,
sem
esquecer no alforje a bigorna.
São
trevos, são pinos, são laços,
há
quem veja até um cadafalso,
onde
se esqueceu um dia o grito
na
ferrugem da dor do espinhaço.
Querem
ver com quantas dobras
Se
corrige uma súbita distância?
Olhem
bem o breu agora (agora)
antes
que ele engula outra ânsia.
Para
não perder o fino legado
fiz
a entrega em dois bocados.
Primeiro
a carcaça pelo ralo,
e
em trapos embalei os pecados.
Fiz
do céu um farnel de estrelas.
Viagem
sem mapa ou tempero.
Quem
sabe o vinho e o rosário
decifrem
a rota sem desespero.
Um
cisco no olho esquerdo
e
perdi o melhor da cilada.
Quem
saberia dizer por que
fugiste
no melhor da estrada?
Mesmo
intrigado dali não saí,
noites
a fio no pé da escada,
até
que o olho apagasse o cisco.
Quando
o abri não havia nada.
Leda
penteando as algas do mistério
na
peruca aguarda pelo último ato.
Babo
sussurra um trombone lá atrás,
a
plateia se requebra, é o mecenato.
Leda
faz de si inesperada omelete.
Mãe
e Morte sacrificam suas filhas.
Voltem
sempre, tragam amigos.
O
inferno não desconta as milhas.
Mais
vale um truque velho
que
ainda recorde o recado
do
que uma virtude novinha
que
lembre antigo pecado.
O
tempo guardado em sigilo
no
cofre ou em uma bacia
não
vale o arremedo do gato
ou
o enguiço de uma enguia.
O
diabo foi moendo a fenda, a lenda,
o
pavio queimado, a voz ressecada.
Pouco
sobrou até que a imaginação
voltasse
a nutrir a totalidade de nada.
Na
catraca do céu ingressos forjados,
na
muralha do inferno quem se arrisca.
Por
aqui passou um sacerdote sapeca,
e
disse que o diabo não era boa bisca.
O
homem jamais fez ideia
do
que poderia ter sido.
Fez
de Deus o seu coringa,
sempre
a reclamar do pedido.
Quer
ver a mulata assanhada,
fumegando
diante do espelho?
Revele
a idade da prata
ou
as molas que apoiam o coelho.
∞
Antes que a plateia perceba que o lero enfiado
chegou ao fim, Salpicão Quaresma atravessa o fundo do palco disfarçado de cisne
branco, cantarolando a coda com que havia sonhado ao convidar os dois magos da
loucura.
Céu aberto,
céu mais fino,
nuvenzinha
de algodão.
Quando bate
o mel no vento
vem comer na
minha mão.
Sai de mim,
te esfarela
na porteira
do sertão.
Nuvenzinha
mais fininha
faz do céu
um sabichão.
2. MOLEQUE DOS TERNOS
Não te atrevas a
dizer por onde o dia cai, pois afinal o dia apenas cai. Moleque dos Ternos
acordou pensando nos guardados das últimas viagens. A pedra com um umbigo
raspado em seu centro. O manuscrito do que lhe pareceu uma trama temperada a
quatro mãos. A cabeça reduzida de um prosaico guerreiro. Os pergaminhos do
tempo, suas cicatrizes refeitas, o império da amplitude. Moleque dos Ternos
assuntou de muitas formas aqueles murmúrios da imensidão.
O MARMELO PERDIDO:
RASCUNHO APÓCRIFO
Sim, a
tática de sacar uma pequena tiragem inicial é neste sentido que percebeste.
Hoje é o ansiado almoço com Lorde Paxá do Mecenato. Torça por nós. Quanto a um
novo projeto, não havia pensado em algo para começarmos ainda hoje, mas sim,
bem ao contrário do insight instantâneo da trilogia. Esqueçamos o público, pois
a reação de um mesmo público em duas noites sequenciadas, ao mesmo espetáculo,
quase sempre é distinta. Se o criador não tem juízo, o público tem menos ainda.
Certamente continuaremos improvisando, porque somos o mais puro jazz. Mas agora
o faremos a partir de uma partitura. O que chamas de plano geral. A ideia de
publicação em fascículos me atrai muito, mas veja, não seriam impressos, pela
simples razão de que lidaríamos com um imenso esforço em prol de um público
mínimo. Desta forma, podemos criar um ambiente próprio e virtual para
circulação dos fascículos. Faríamos tudo, desde o princípio, bem ilustrado com
nossos truques plásticos e gráficos. Imaginemos um cenário inicial em que
Octavius Mancha, o autor de toda a trama épica, encontra-se em seu estúdio,
entre papéis, e de repente dele se desloca sua sombra, Bromildo, e ambos então
começam a discutir sobre a ambiguidade na criação de um roteiro. Para dar ainda
mais molho à cena poderá surgir de sua biblioteca o espírito de Veráclito. A
partir daí começa a vir à tona a ideia da busca do Marmelo Perdido da Evolução.
Dr. Dário Curtume, o Tesão Transcendente, Fiat Lux da origem de nossa espécie,
começa a definir sua expedição, rotas, temas, interesses, personagens.
Aproveitamos a tua sugestão na íntegra. Apenas mudei o nome do Cônsul da França
por Cônsul da Franja, que seria o representante legal do Tratado de Mil
Tortilhas. Vamos assim desenhando planos de fundo geral e suas táticas de
ataque, para a escritura dos primeiros atos. Mas não evitemos o improviso em
circunstância alguma, que é onde reside nossa maior força. O que devemos fazer
é listar os casos reincidentes, ou seja, certos temas, personagens, enfoques,
já utilizados na Origem da Comédia, e
que aqui não devemos repetir. Podemos inserir em cena uma simpática coelhinha
que come cartolas. O mágico, contrariado com a dieta infernal de sua parceira
preferida, vai a uma Magic Shop comprar cartolas invisíveis, e ali descobre uma
relíquia, uma cortina com cenários falsos. E na parte interna da mesma, no selo
do fabricante, lê o seguinte texto: “O grande poder de um ilusionista está em
sempre convencer a todos de que sua cabeça está vazia”. [
∞
A caminho de casa,
Moleque dos Ternos recordava uns pequenos textos que havia escrito a modo de
editoriais de uma revista. Eram anotações do instinto. Rabiscos giratórios em
torno de temas tão comuns e por vezes adulterados por pequenos delitos do
cotidiano.
I – AS FORÇAS SECRETAS QUE MOVEM O MUNDO
A paisagem
joga com nossa memória. Transborda seus labirintos, a escola de asas do abismo,
o estojo secreto de enigmas com que nos desafiam a percorrer túneis e bosques,
despenhadeiros e atalhos, minas e aguaceiros. Os truques que simulam infinidade
de caminhos. A memória aturdida no centro desse ardil. De quantas maneiras,
afinal, o mundo se repete em cada curva, em cada sombra surgida entre uma e
outra árvore? O que lemos ontem quando passamos por ali? Ou acaso jamais aqui
estivemos?
Ler parecia uma tarefa simples. Apenas reunir os sinais andarilhos da
paisagem, as fontes distraídas da memória. Ao abrir-se a mão vislumbrar ali o
mapa da mais sedutora de todas as quimeras. Ler o teu corpo inteiro a partir
desse mínimo gesto. Ler como quem nutre o tempo de novas passagens de um
estreito a outro do infinito. Sem deixar que os demais sentidos se confundam ou
percam a centelha de sua entrega. Ler o imaginário requer refazer-se com ele a
cada linha percorrida, a cada letra antevista em seu movimento furtivo.
A música ouve a si mesma enquanto trafega de um instrumento a outro.
Manto insuspeito de peles. Pequenas estradas que se multiplicam melodia
adentro. Santos que bordam ritmos, notações oníricas, fantasias do fogo. A
memória masca sua delirante partitura. O que ouvimos não se repete. O
insondável, no entanto, nos visita com uma intimidade de rios intensamente
navegados. Fábulas do sangue dentro da noite. Os filhos que se espalham pela
terra.
Há um ponto em que se irmanam as forças secretas que movem o mundo. A
paisagem confunde-se com a memória em um jogo amoroso. Toda a poesia anunciada
como uma hemorragia de imagens à espreita do gozo dos sentidos. Os lugares nós
os identificamos, anotamos seus nomes em um mapa de vertigens: países,
tradições líricas, truques renovados. Um novo continente desenha corpo e sombra
do que jamais foi possível deixar de ser. Talvez o chamemos de América
Hispânica apenas para melhor compreendermos seus capítulos, a artimanha de seus
enredos. Porém seu nome será sempre outro. Ainda que o sangue que lhe irriga a
existência seja a língua espanhola, serão distintas as virtudes colhidas,
distintas as visões alcançadas a cada estação.
A terra se inflama ao descrever as contas de seus mundos percorridos,
avistados, vividos, ansiados. Nada se furta a um novo domínio de sensações.
Mesmo que eu passe por aqui infinitas vezes será sempre outro o lugar. Não
importa que chamemos essa estalagem de Internet. O nome facilita uso e abuso
das formas, inclusive o desgaste da origem. Uma fagulha de imprecisão, um
desafio ao imprevisto. Que seja este o nome: Internet. Por aqui passaremos como
reflexos irrepetíveis. Aqui deitaremos a semente ígnea daquele outro ponto que
identificamos por América Hispânica.
Deixemos que se reconheçam nas vísceras uma da outra: paisagem e
memória, que se entredevorem e se refaçam sem perder o gosto pelo abismo.
Voltemos aqui uma e outra vez. Não contemos as pedras do retorno. Apenas
cuidemos de não deixar de vir aqui. Também nós seremos sempre outros a cada
visita. Este mundo – nosso mundo – não se esgota. [
II – AS FORMAS SOMOS NÓS
As formas se
buscam no escuro, se atraem, jogam com suas essências em um bordado de ramos e
veias. Confabulam suas vertigens aprendidas a pleno abismo. Cantam sempre a
última canção. As formas, se não sabem ao menos intuem, intuem as preciosas,
que não possuem outro corpo senão o traje único com que frequentam nossas
vidas. As formas assim se sentem bem, e se empenham em ser mais nitidamente o
que são. As formas falam e não nos deixam sem saber o que desejam.
É preciso localizá-las, as formas, em suas variadas maneiras de ser.
Quando se risca um fósforo, toca uma pele, amordaça alguém – saem formas de
toda parte. As que julgamos não nos dizerem respeito, as que esmolamos por sua
atenção, as que usamos contra as demais. As cidades emergem de nosso íntimo
como uma revelação. Muitas formas não necessitam plano. Os ciclos naturais com
que a vida se extingue, no entanto, passam a desconfiar de sua naturalidade. O
milagre também tem seus pudores, suas formas secretas.
Planejar formas tornou-se uma atividade criminal. O mito desconhece seus
princípios. É de se supor que muitos não façam a menor ideia do papel que
representam. Por sua vez, o homem só esquece que Deus é uma invenção sua quando
necessita transferir a alguém a responsabilidade de seus atos. A ideia é
exatamente esta: jogar com diversos papéis, mesclando representações,
desgastando as formas.
Aos poucos as formas vão perdendo ancestralidade. Acatam ou rejeitam uma
filiação de destroços. O homem converte o desastre em criação. Esta é sua obra,
não importam os escombros. As formas aprendem rapidamente e sabem que o teatro
da representação não dispõe de tantos lugares ou mesmo contrato para sessões
infinitas. O mundo se esgota em si mesmo – máxima que se
repete até apagar-se por completo.
As formas deixadas para trás o são a cada segundo. Quase todas se
reagrupam, porém algumas cobram atenção pela função não cumprida. Como
livrar-se delas é curiosamente uma preocupação de quem as criou. Talvez
estabelecer novas regras para a representação. Talvez simplesmente esquecer
tudo isto. Talvez já ninguém dê importância ao que se passa. O problema assim
estaria contornado. Novas formas seriam bem vindas.
As cidades são destruídas de muitas maneiras. Por um terremoto ou uma
explosão demográfica. E como muitas cidades são destruídas a cada instante,
criamos uma escala de valores. O jogo é tão bem disposto que a dor de uma
destruição requer para si mais atenção que a outra. Uma dor anula outra. As
dores não são formas aliadas. O homem aceita a múltipla falência de órgãos,
porém rejeita conciliar céu e inferno em sua barbárie irrevogável.
Os desastres possuem características próprias. O sofrimento humano é
quem as define. A insistência na permanência de um governo autoritário. A
sagacidade de um governo democrático em perpetuar-se em substituição de um
mandatário. A distração que nos leva a crer na irrisória importância de tal
crédito. As formas sem saber ao certo as regras do jogo.
As formas somos nós. O homem somos nós. Nada a Deus pertence. [
III – OUÇAM NOSSOS NOMES
É possível
que muitos nomes tenham se perdido porque não havia como atender quando foram
evocados. Muitos até agora talvez desconheçam onde se encontram. A maneira com
que suas vozes se contorcem dói no íntimo da noite. Ali buscamos outro nome
para cada coisa perdida. A dor realimenta suas preces, porém nada evita que
sejam tratados com intolerável distância. Sempre esquecemos que é justamente
onde os fatos se repetem que preservamos nossa essência. Como as vozes dentro
de cada nome perdido, o sofrimento que elas levam em si e se repete como uma linguagem
que desaba incansavelmente.
Tudo aquilo que soletramos com todo o espírito, enquanto o presente por
vezes apenas se desgasta em nossas mãos, tudo isto a que chamamos criação, não
contraria essa ideia. Como se estivéssemos sempre reeducando velhas imagens,
para que não deixem nunca de ser o que são. Corpos desnudos sobre a pedra
quente. Formas pintadas que vão perdendo seus ângulos. Quantas vezes a
aparência joga conosco para que creiamos no princípio aleatório que nos
legitima! Tudo o que vemos se deforma, em nome do desejo ou da memória.
Ouçam os nossos nomes. As pedras com que vamos clareando a noite. As
expressões que caminham para o tumulto de seus propósitos. O verbo se
desmembrando em novas obsessões. Por onde passamos muitas coisas mais e mais se
parecem com nossas sombras. Contudo, não há absurdo maior do que a semelhança.
Há que descrever o abismo antes que se desfaça de suas partes mais fecundas.
Pintar-lhe o retrato incansavelmente para que não se sinta sozinho. Evitar ao
instinto a sensação de abandono.
Repetir os elementos para que se movam e não apodreçam. Para que não
esqueçam os nomes perdidos ou suas pernas ou suas línguas. Para que os rostos
apagados não sejam motivos de recuo. Não há outra maneira de entrar em casa e
ali existir. Assim é que saímos por toda a parte a preparar a refeição de
outros duplos e sombras que se reúnem em volta da mesma pedra. Assim revisamos
intimamente os capítulos que devem ser reescritos, as vinhetas inúmeras que não
devem cessar seu testemunho.
Assim o livro não se esgota nem o abismo chega ao fim. [
∞
Deu-lhe então de recordar desafio que havia feito um amigo, o crítico
Jacobino Cliptônico, quando conversaram a respeito da hora certa de Moleque dos
Ternos escrever um romance. Para ele, Jacobino, nosso protagonista somava uma
quando menos burlesca e soberba experiência de vida a uma fluência imaginativa
que há muito vinha faltando em nossa narrativa de pequenos delitos e insossos
rebuliços d’alma.
IV – CAATINGA DREAMS
A experiência é
meu único dever
INGMAR BERGMAN
A perda de um
pouco de memória costuma ser gentil com a alma.
WALTER BISHOP
2043. O que passar
por aqui será escrito. Este é um acordo secreto feito entre muitas vidas,
muitas delas jamais compreenderam o motivo. 31 anos se passaram sem a mínima
suspeita de que eu devesse retomar essas anotações.
A
primeira máscara não sabia muito bem como pronunciar-se. Algo lhe dizia que
evitasse os lugares comuns, porém o dilema radicava propriamente em
identificá-los. Helena me havia confessado o contexto de suas dores. O espelho
a perseguia com figuras que correspondiam a passagens filtradas de sua própria
vida. O espelho a refletia, não há dúvida quanto a isto, porém em momento algum
se encontrava diante de sua representação atual. É como se o espelho filtrasse
seu passado, desatando parentescos, analogias, com parte do que vivera, fatias
de uma Helena simbólica que era sempre um duplo de si mesma. O espelho não lhe
cicatrizava o passado. Devorador ardiloso disposto a passar-se por passivo, o
espelho reluzia uma consciência estremecida, descontínua, afetada pelos humores
da ansiedade. Quando Helena começou a variar as máscaras de presença ao meu
lado, percebi que ela estava desenvolvendo um perigoso atributo em nossos
encontros.
– Se um dia o teu corpo disser adeus ao meu ele não saberá
para onde ir.
Costumávamos rir com essas frases que surgiam entre nossas
carícias. A única mobília de que me recordo agora era um sofá de todo
improvável que usávamos como passagem de um mundo a outro. Não havia espelho ou
qualquer preocupação com a distância. Fabulamos uma intimidade tão intensa que
jamais demos pela ausência do mundo visível. Recordo uma vez, logo ao
princípio, em que Helena por duas ou três vezes insistiu em falar comigo ao
telefone. Vivia talvez a ilusão de que a voz conduzisse a alguma realidade, a algum
argumento de personificação do que escutamos. Eu sentia o mundo desfazer-se
dentro de mim a cada insistência dela. Quem eu poderia ser ao telefone?
– Não me importa o que digas. Há momentos em que necessito
desvendar o sabor, o cheiro, a temperatura de tua voz. O meu corpo vive agora
tão distante de mim e ao mesmo tempo eu o sinto de uma forma que jamais pude
imaginar.
– Eu também não sei ao certo o que estamos fazendo. Eu não
procuro ter respostas para o desejo.
– Não parece estranho que estejamos a dar corpo ao
intangível? O que somos? Quando nos desconectamos, voltamos a ser exatamente o
que?
Helena necessitava da prova física de uma manifestação do
improvável em sua vida, esquecendo que as demais formas de comunicação à
distância entre os seres repetiam, na origem, o mesmo grau momentâneo de
rejeição. O orgasmo alcançado no frenesi de um teclado que fixa no desejo a
mística de impulsos imediatamente correspondidos não é distinto da masturbação
em sua forma clássica. A exploração do sexo à distância sempre rendeu mais
argumentos bancários do que morais.
– Amor, onde estás? Eu te espero como uma louca, sem saber o
que está se passando comigo. Hoje o pensamento em ti me queimava por dentro e
fui ao banheiro no hospital me tocar pensando em nós. Vem me tocar.
Quais as verdadeiras atividades físicas do homem? Em
essência, o que somos é reflexo do que desejamos, imaginamos, recordamos. O
hábito nunca fez o monge. A idéia do sacrifício físico é uma manipulação da
política. A queda bíblica que levamos a vida cavando não tem limites fixos. Se
nunca estivemos aqui antes, que sentido faz recorrer a verbos cuja essência
indica retorno? E se não há origem, como ao menos imaginar um sucedâneo?
– Amor, onde estás? [
∞
Pouco tempo depois
houve uma noite em que uns amigos quase naufragaram a história a recordar entre
mil cervejas o destino dos desaparecidos. Era um bar na Ciudad de México, já
ninguém recorda o ano. Se algo a cerveja fez desaparecer foi a data do
encontro. Moleque dos Ternos deu ali um depoimento sobre a querela dos
desaparecidos, que estava sendo demasiado politizado pela mesa. Começou recordando verso do poeta Luis
Cardoza y Aragón: La poesía oscura deslumbra con su misteriosa claridad.
V – LOS DESAPARECIDOS
Nadie es de todo fiel a la memoria de sus pérdidas. Por
más que suspire la noche en medio a sus rutas vencidas, nadie inventa una torre
que sea el epitafio confuso de su existencia. Todas las cosas en la tierra
están más allá del pensamiento y la acción. La imagen muerde el sueño, así como
el incendio rehace la casa perdida en el mapa común de los huesos. El hombre es
una familia de migajuelas asombradas. Un suplicio, una esperanza, un rapto, y
la casa se va a los infiernos de la duda. Yo sé que hay momentos en que la
muerte no sabe más qué hacer de nosotros. ¿Qué hacer con los niños de las
estrellas enmudecidas? ¿Qué hacer con la esfera quemante de nuestras ideas de
nuevos pasos y el vientre preñado de las ventanas que dan para los manantiales
de un modo distinto de uno perderse en la vida?
Los puentes pueden ser un litoral
porfiado, una quimera reclusa, un clima sin finalidad. Los amantes son la
venganza de la más sombría timidez de encontrarse con el vacío. ¿Cuántos han
desaparecido antes o después de la muerte? ¿Hay un asombro guardado para cada
vena y su astrolabio aprendiz? La misma imagen que desaparece frente a los
ciegos es la que no puede alcanzar la navegación de los espejos. El mundo es un
comedor. La sombra es un amor sin velas. Hay que hablar con el mesero sobre el
origen de las carnes.
Cuando aquí llegaron los primeros
desaparecidos nadie podría imaginar que la vida faltara a sus actos solemnes.
La vida es un asombro compartido. La vida es un desierto hospitalario de las
ventanas más sorprendentes. No hay tinta o papel suficiente para la vida. No
hay miseria que frene la existencia. Por eso pasamos la página de morir sin
morir. Por eso olvidamos las semillas que golpearon nuestras manos. Por eso la
voz del testigo es la voz de la indiferencia. Nosotros somos los resucitados a
cada día. Los desaparecidos de la libertad. Los ingenuos que creen en el abismo
inefable. ¿A quién dedicar la embriaguez de nuestros olvidos?
Nadie puede creer en la razón de las
guerras. Pero hay un milagro ambiguo que hace que la cura de las enfermedades
pueble demasiado el mundo. La primera embriaguez nos dice que hay que matar
gente. La segunda reclama que hay que enseñar a la gente a no tener hijos a
cada noche. Los gobiernos más crueles son los que estimulan la multiplicidad de
la especie. Dime, pobre víctima de la farsa de la muerte, ¿desde cuándo has
desaparecido? La frustración hace con que desaparezcamos de nosotros
mismos. La muerte no lleva a una satisfacción de tumbas. Pero ¿qué hacer
con la respiración que no corresponde a la promesa de una vida nueva?
Yo quería estar donde no me das cuenta.
Pero así yo mismo sería uno desaparecido de tu idea de mi amor. La vida es una
fuente viuda de desaparecimiento. Hay que pensar en que métodos utilizamos para
aceptar, rechazar o simplemente olvidar la autopsia cotidiana que hacemos de
nuestras vidas. ¿Quién somos los desaparecidos? ¿Y somos desaparecidos de
quién? Yo quiero acabar con las disidencias, con el efecto senil de las
discordancias, es eso. Es lo que quiero. Así que me pongo a matar a todos que
pueden representar una constancia estilística que sea en desacuerdo con la fe
de mis labios.
La melodía de la muerte nos convierte
en estatuas que salen a bailar por los milagros calcinados, como solemnes
prodigios de la libertad. ¿Qué tiempo necesita el hombre para invadirse por
completo? El límite de las cosas es una fábula que atiende a las satisfacciones
personales. No hay como restituir memoria a la imaginación, no importa a
cuantas máscaras nos encontremos condenados. Un libro se escribe dentro de otro
hasta el infinito y no hay inquisición suficiente para cerrar las puertas a la
lectura de lo esencial.
Ahora hay que preparar la materia para
aceptar sus limitaciones. El empleo de la imaginación puede cegar los espejos
de la dominación. No me leas hasta que descubras el sentido de tu biblioteca de
infortunios. El alfabeto cautivo acumula sus líneas de cansancio, la
descreencia en un buen lector que llegue para recortar las escrituras y
transfigurarlas. Allí estamos, múltiples como la disciplina del abismo,
rellenos de movimiento como la pátina fantástica de los ríos, fértiles como la
invisibilidad de lo que se mueve en nuestro íntimo. Para que el mundo vuelva a
ser imprevisto hay que creer en las profecías de lo inconciliable.
La realidad aplasta sus serpientes.
Crear exige creer. El absurdo danza con sus palabras metafísicas, reviste el
sueño de actos oscuros, minera las ventajas de uno sobre los demás. No importa
que el absurdo se llame arte, ciencia, religión. El hombre es frecuentemente
traicionado porque necesita creer. El hombre sueña con la desaparición de las
coincidencias. La calidad de la vida sufre las limitaciones de su aceptación.
Un cuerpo se arrastra hacia sí mismo, como se la hostilidad del mundo fuera
monosilábica, invertebrada, indivisible.
La razón reposa en silencio de cuerdas
flojas. La verdad de la memoria es un mundo de paisajes repetidas en su
oscuridad sin fin. El lenguaje posee dos venas que se llenan de la más ficticia
incertidumbre. Una de ellas cree en la alquimia, mientras la otra rescata las
formas todas de las antítesis perdidas. Los párrafos desaparecidos de una
infancia son como las cartas apócrifas que salvan a los personajes de ciertos
vértigos de la brujería. Una intemperie. Una promiscuidad no revelada. Una
dolor pulsante sin combinación con otras líneas ilegibles. ¿Cómo entender que
la verdad se alimente únicamente de sus metáforas?
Lo que más quiere uno es caer e
quedarse en ese movimiento hacia la negación de todo cuanto alimente su
perplejidad de una existencia común. No hay como llegar a la conclusión de que
el hombre no esté listo para ser otro. No está. En la navaja del sueño. En el
hogar inmune de sus culpas. En las vigilias humilladas, humillantes. El hombre
camina por las calles del efímero con una falsa razón en sus bolsillos. No hay
como extraer vida del hombre. Este personaje hace mucho ha pasado de sus
límites.
Los conceptos incuestionables son el
futuro de los errores más auténticos. No hay como conocer el mundo sin dejarse
tocar por sus escalofríos. No hay necesidad de morir, sino de comprender que el
hombre se alegra y sufre de acuerdo con nuestra realización. Un soplo. Una
danza. La impensable revolución. El hombre está por toda parte. Cuando uno que
sea desaparezca de los demás es la especie entera que no sabe qué hacer con su
destino.
Camino de casa, todo indaga: somos
desaparecidos, ¿de qué? [
∞
A suprema
alucinação de Moleque dos Ternos era descobrir um modo de anular as forças
dispersivas do tempo. Havia feito de tudo em sua pouca vida. Pastor de galinhas
e guia de surdos. Coletor de bombinhas de salão e diluidor de tintas. Um dia
publicou um livro sobre a fantasia náutica de uma série de grafites que
disseminou pelo continente. Esteve no lançamento um velho amigo da escola de
vadiagens jornalísticas e o convidou para escrever no importante varal que
então dirigia. Como havia uns trocados na pauta, mencionou apenas uma
relutância, a de que pretendia a crônica sequenciada de um lugar imaginário que
chamamos de realidade. Tudo isto é já relicário jornalístico, mas é tão curiosa
a forma como o cotidiano se engalfinha nas próprias pernas que ao reproduzir
algumas dessas crônicas não estamos senão dando corda ao tempo para que nos
acompanhe a existência.
VI – VIDA SECRETA DA REALIDADE
09. Só
pensamos em violência quando somos movidos por alguma ação violenta. Por mais
óbvio que possa parecer, não há nada que nos afete a ordem, exceto a desordem.
E há ainda uma lógica perversa: aquele que articula qualquer campanha contra a
violência, certamente acaba de sofrer alguma. O próprio conceito se mostra
deformado, limitando-se a ação a danos físicos ou financeiros. Na verdade,
somos mais cúmplices do que vítimas das articulações entre causa e efeito.
A onda de criminalidade propagada, se bem observada, é mero
efeito de nossa inação. E tal fato não ocorre no plano físico, no tiro à
queima-roupa ou na votação de emenda no Congresso. Este é tão-somente o patamar
das decorrências. Pensar que a inspiração está no cumular desigualdades é uma
tolice, ingenuidade tosca. A menos que se circunscreva a história da humanidade
aos limites de uma tábua santa onde se lê: o
homem é um animal violento.
Assim, o garoto maltrapilho com olhos esbugalhados no
semáforo constitui o padrão de violência de uma classe média encharcada de
culpa. Mas há inúmeros outros, uma vez que também esta senhora possui seus
estatutos, entre esquivos e espinhosos. Tanto é violenta a política econômica
escoada do Planalto Central quanto a falta de caráter de artistas que aderem a
campanhas políticas em busca de autopromoção. Tanto é violenta a política de
subvenção da produção artística quanto o descaso do poder público para com a
recuperação do acervo cultural do país. São estes, aliás, alguns dos
lugares-comuns da violência.
Mas há criminalidade de toda ordem, sobretudo aquela que se
pode chamar de criminalidade branca, que degrada e distorce os conceitos morais
de uma sociedade. Editoras adquirem direitos autorais de autores que não
pretendem publicar. Professores universitários promovem a má literatura que
escrevem em salas de aula. Jornalistas barram a divulgação de matérias que
constituam concorrência aos seus interesses pessoais. Mas como em nenhum caso
um ente tem o braço canivetado no semáforo, então não é violência.
Violência é quando estabelecemos uma diferença entre o que
dói em mim e o que dói no outro. As campanhas de paz, por exemplo, são flâmulas
de um mea culpa ou a sacolinha de um pastor evangélico? Ou
acaso elas são fruto de uma súbita consciência social despertada ao se ter a
filha currada em um beco?
Reflitamos: o homem só pensa na violência quando esta lhe
desaba sobre os ombros. Ou quando lhe atrai.
Quanta violência é possível gerar em nome de uma ação contra
a violência?
Disse certa vez René Magritte que a liberdade é a possibilidade de ser e não a obrigação de ser. A
violência, por sua vez, é a expressão de uma obrigação ou de uma possibilidade?
Somos violentos por natureza, por esporte, por conveniência. Sempre que
pensarmos em quanto o mundo tem andado violento, não podemos deixar de lado
nossa cumplicidade.
Somos todos violentos, inclusive os violentados que movem
campanha contra a violência. [
18. O cenário pode ser uma manhã de
sol, uma praça. Um homem caminha despreocupado de seu tempo. Não faz a mínima
ideia do que se passa à sua volta. Uns passos a mais e para diante de uma banca
de jornais. A primeira coisa que lê: “Preso o assassino de Diana Versalis”. Que
significado teria aquilo? Alguém matara uma mulher e estava sendo preso. Como o
teria feito? Seguiu lendo, por um segundo capturado pela notícia: “A mãe da
vítima a encontrou nua, o sexo dilacerado”. Há uma nítida regressão em tudo
isto. Talvez não interesse mais ao leitor a crônica dos dias sangrentos. Nem a
mim narrar os passos de um homem comum.
Diante do que nos assusta, sempre perguntamos: em que tempo
estamos vivendo? No mesmo tempo em que temos vivido sempre. O cenário pode ser
uma manhã de sol, não mais uma praça. Uma mulher se apaixona por seu cão,
leva-o consigo a toda parte. Brinda à saúde de seus momentos de gozo. Sua foto
na imprensa nos garante que nada de igual importância se passa à sua volta.
Nada no mundo equivale àquela paixão expansiva que sente por seu cão. Um pobre
diabo se irrita diante daquilo e explode uma banca de jornais. Levado pela
polícia brada seus motivos, mas ninguém quer ouvi-los. Há restos de jornais por
toda a rua.
A crônica dos dias já não nos assalta a atenção. Como
teremos chegado a isto? Sabemos apenas que o cenário poderia voltar a
repetir-se. Uma vez mais a mesma manhã de sol. Não importa em que ano ou em
qual cidade. As manchetes nos jornais costumavam desnortear a passagem do tempo.
O que tinha se passado com Cíntia, com o que sonhava Adolfo, a luta de Leda
contra o câncer. Quem mais se importa com tudo isso? Os jornais bem podiam vir
sem datas. Não haveria melhor crônica: a perda da noção dos dias. Alguém
poderia acordar no meio da noite, sufocado por uma manchete: “Um louco sobe ao
palco e atira no rosto do músico”, mesmo que na manhã seguinte o fato ainda não
houvesse ocorrido. Uma lástima.
A imprensa bem que poderia ser a nossa única garantia de que
as coisas realmente aconteceram. Ouvira mais ou menos isto da boca de uma
senhora conversando com o jornaleiro. Não tinha certeza. Tudo vinha sendo muito
vago, exceto o sol naquela manhã aparentemente a mesma desde há muito tempo.
Como parar de escrever tais crônicas imprecisas? “Maria Anita morre após
esperar 18 horas por uma vaga na UTI.” “Em seu depoimento, o traficante
Paisinho entrega senadores e empresários.” “Agora em Fracaleza Drinks tem DJ
para qualquer tipo de festa.” Lembro-me então da mãe de Milan Kundera, para
quem as peras em seu jardim tinham mais importância que os tanques russos
invadindo o país.
O que faz com que alguém leia jornais? Talvez a falta de
vida própria. A necessidade de identificar-se com alguém, talvez. Gilka
desprezava o padrasto: “Você nunca saiu no jornal!” Depois ria, com larga
demência, os olhos no recorte emoldurado: orgulhosa de si mesma, alheia à
prisão em flagrante sobre o corpo do noivo esfaqueado. Nada no mundo supera a
crônica do infortúnio. [
27. Por todos os lados, para onde
quer que o homem dirija seus sentidos, algo lhe anuncia o indesejável. E o faz
pior, tornando-o desejoso. Um apetite fraudado, um ataque sistemático ao
desejo, confundindo-o, afligindo-o.
O telefone interrompe a concentração do velho padre. Uma voz
lhe indaga sobre plano de saúde.
O que o homem pensa parte de seu desejo. Mesmo a reflexão
sobre o vazio não é senão reflexão sobre o desejo do vazio. Segundo as palavras
de Cristo, o conhecimento de si deve ser construído livremente.
Interrupções. De qualquer espécie. O telefone que volta a
tocar, a campainha, a música alta no apartamento ao lado. Padre Anselmo
queixando-se ao bom Virgílio que o aturava em sua velhice.
O que é a liberdade de um homem?
Temo que seja sua desesperação.
Uma frase como: A
verdadeira revolução está só começando, por exemplo. A palavra revolução
pode ser facilmente permutada por felicidade, liberdade etc. Um mesmo slogan nos ilude de muitas maneiras. A
base das sociedades está no slogan,
em seu anúncio convincente.
No ataque sistemático ao desejo?
É o que venho tentando dizer. Sofremos interrupções
constantes, um massacre à percepção. A razão se torna irreflexa, uma vez
perdido o diálogo com o desejo. Vem em seguida o bombardeio à irracionalidade.
Padre Anselmo é um velho arraigado a seus princípios. Irrita-se
com a vida anunciada a todo instante. Dias atrás esbarrou com uma jovem, à
saída de um supermercado, que lhe insistia para que preenchesse uma ficha de
pesquisa.
Ela estava ali trabalhando.
O trabalho de uns é incomodar os outros.
De quantas maneiras nos intrometemos na vida alheia?
Minha liberdade para aceitar ou questionar o que se
apresente à minha frente tem sido regulada por uma tabela conceitual a serviço
do anúncio. Quer uma paisagem abominável? A do cidadão refratário ao anúncio.
O anúncio da feira, o anúncio de Deus, o anúncio da
desesperação.
De volta para casa, a caixa de correios estava repleta de
papéis. Ali se vendia de tudo. E tudo em meu nome, Anselmo Esponsorte. A quem
dei meu endereço?
Mas padre, de que outra forma o homem buscaria seu
semelhante?
Virgílio ouviu o que pediu.
Acesse meu endereço eletrônico, filho. Dias atrás enviei
algumas palavras de conforto a várias pessoas. Veja o que dizem algumas: “Me
tire de sua lista”, “Isto é uma violência”, “Não lhe dou o direito de se
intrometer assim em minha vida”.
Intromissão. As marcas de todas as roupas que vestimos. A
fábrica de modulações de toda a existência humana. Estamparias de toda espécie.
O que o homem faz o homem anuncia, o homem vende.
O desejo conspurcado. A falência social por não se permitir
mais nuanças no jeito de cada um ser.
Padre, as pessoas podem não gostar da mensagem que o senhor
enviou.
O estranho é que inaugurem sua rejeição a essa presença do
indesejável justamente pela sala mais cômoda, a cadeira diante de um computador.
Trata-se de um velho sofisma. Enganam a si mesmas acerca do que não conseguem
ser. Extravasam ali o que vão acumulando em outras instâncias às quais não
reagem.
“Padre Anselmo, rogo que me dê sua bênção”, dizia o convite
que acabara de receber.
O que ainda posso dizer a essa mulher? [
36. – Partimos do seguinte: a quem
pertence o ponto de partida de uma existência? Por onde o homem começa a ser o
que se mostra adiante?
Logo uma aluna o interceptou:
– Professor, isso caberá em uma crônica?
Por um momento, Nunes pensou que poderia ter disparado a
violenta indagação: “Como explicas que caibas em tuas roupas?” Deteve-se.
– Tua dúvida nos leva a estabelecer um abismo entre essência
e capricho da existência. Até que ponto o homem cabe em si mesmo?
– Ah, essa tolice metafísica!
– Decerto, a tolice de toda uma vida…
Não era fácil reacender a percepção de que o homem estava
sendo levado a destacar momentos de sua vida, desprezando os demais. As zonas
aviltadas iriam se acumulando, criando potencialidades de ressurgimento.
Nunes tentava fazer a aluna, Clara, entender que os inúmeros
disfarces da novidade não fazem senão despistar o homem de seu caminho comum.
– Abra uma revista. Veja a cotação dos valores humanos. Não
se trata de metafísica. Um Liszt é ínfimo diante de um Brahms, tanto quanto um
Siron Franco ao lado de um Cícero Dias. O homem como que desprezou a si mesmo,
e hoje só encontra valor na moeda corrente.
– …
– Não há atração pelo abismo se rejeitamos entender uma de
suas margens. O que cabe em uma crônica, Clara?
– Cabe todo o homem, professor.
Pensou em dizer algo sedutor, tamanho o fascínio pelas
pernas da aluna. Não conseguiu.
– Então podemos voltar ao começo da aula.
Nunes entendia que a crônica havia se tornado um gênero
propício a veleidades, em pouco diferindo das colunas sociais. Indagou acerca
de algum cronista a seus alunos…
– Um nome, qualquer um.
Os que vieram à luz correspondiam a mortos e aposentados.
Claro, os alunos compreenderam a trama do professor, e citavam com ironia
alguns nomes atuais.
– Clara, a quem pertence o ponto de partida de uma
existência?
– Ah, professor, suponho que a Deus.
– Que seja. Mas aí terás que ter uma ideia de Deus.
– …Jamais rezei…
– Calma. Imagine teu corpo, tomado de gemidos, suspiros,
desejos, uma ansiedade extrema por se preencher… O que é isso?… É Deus! O vazio
pronto para ser preenchido. Tu és a única possível notícia a teu respeito. Não
tens que rezar. Tens que ser a reza. Assim é com a crônica, Clara.
Ali a aula terminara. Contudo, as coisas sobram. O relógio
apontava mais 20 minutos. Como preenchê-los?
Não é que não tenhamos que tomar aulas. Até que ponto aluno
e escola são compatíveis entre si? O que está em excesso na ideia de crônica
não é o mesmo que se aplica ao conceito de escola como um todo? O que estará
nos ensinando essa escola que temos?
– Professor, a extinção da guerra fria esgota o sentido de
espionagem?
O questionamento desmedido liquida qualquer retórica. Nunes
ficou sem fala, por segundos. De onde ela tirara aquilo?
– Claro, a guerra fria não se extinguiu. Um pequeno
deslocamento de retina ilude o mundo. O homem foi convertido em seu próprio
espião.
Nunes quis mesmo dizer que a crônica segue possuindo o
caráter de relatar ocorrências que acabarão definindo os traços da passagem do
homem pela terra.
Toca o sinal de término de aula.
– De que outra coisa nós falaríamos aqui, Clara? [
45. Todas as manhãs a editora geral
se irritava com o atraso de Bentinho, da editoria de Cidade. Dali obtinha um
termômetro que lhe permitia dirigir as demais seções. Orgulhava-se de seu
trabalho no jornal justo pelo entrosamento que supunha obter com o entorno
local.
– Pronto. Chegou o Bentinho.
– Não me olhe assim. As cartas chegaram todas à sua mesa.
Certo que deixei escapar a oportunidade de algumas perguntas… Mas havia aquele
ponto de neutralidade, um não pressionar muito… Pensa que é fácil entrevistar
um arcebispo?
– Não é o que conta. Há uma carta, em especial, que toca em
pontos que temos a discutir. O leitor alega conivência do jornal ao não arguir
acerca de determinadas declarações do chefe local da igreja.
– Não publica…
– Veja quem assina a carta. O cara é um franco-atirador. Há
anos publica em nosso jornal. Nos últimos meses está de fora graças a um
desentendimento com o editor de Variedades, não vamos discutir isso agora.
Destaquei uns trechos da carta.
A exemplo de seus
pares, em uma prática já milenar, Clemente tem um discurso pautado por
contradições. Evoca a isenção política, sem comungar com a isenção sexual.
Deduz-se daí que a Igreja deva reconhecer todos os candidatos políticos, exceto
os declaradamente homossexuais.
– Acentuamos na manchete: “Homossexualismo é defeito”, diz
dom Clemente.
– Alguém quer ler um pouco mais?
Na mesma edição do
jornal há uma nota sobre a carta que a Igreja Católica divulgou em função dos
500 anos. O documento desconsidera a presença da Inquisição no Brasil. Como há
exatos 500 anos a Igreja persegue aquelas fatias da sociedade consideradas
exceção, ingênuo seria imaginar que Clemente tratasse do assunto de forma distinta
do eufemismo que lhe dedicou: “No decorrer da história, filhos da Igreja não
foram fiéis”. Ressente-se ainda da necessidade de 150 padres em sua
arquidiocese, exemplificando Nova Assunção, no interior da região de Caatinga
Dreams, onde há apenas um único padre para 200 mil habitantes. Impossível não
concluir que a Igreja ali é a exceção.
– Sabem quem estava do outro lado, naquela matéria sobre o
Santo Ofício? Sabem! O que digo agora?
– Acho que há um exagero. Só umas bichas resmungaram…
– …Puxa, Bentinho, dá uma lida nisso:
Falaciosamente o
arcebispo rejeita o homossexualismo por não ser uma virtude. Qual será a
virtude de um discricionário? A tolerância medida é uma virtude sustentável? E
o desnível social controlado? Qual a fita métrica da virtude? Um dia Saulo se
arrependeu de haver perseguido e mandado apedrejar Estevão. Mudou o nome para
Paulo e fundou a Igreja de Clemente. Um descendente seu inventou o detector de
mentiras, para que se caia no mesmo erro duas vezes.
– Não checamos nada. Não argumentamos nada. O homem ficou a
falar o que bem queria…
– …mas foi sempre assim…
– …até aqui…
– …até o que?…
– …que estoure em cima de mim…
– …de nós…
– …de mim, que deixo escapar isso…
– …que deixa a casa assim…
– …sim, que deixo… [pausa] …justo agora, com todos esses
prêmios por nossa campanha a favor da paz…
– Publique a carta na íntegra. Dias depois ninguém se
lembrará dela. [
54. Li outro dia um artigo de um
amigo, Alfredo Aquilino, com relação a uma revista acadêmica. Abordava os
vícios do discurso acadêmico e o comportamento da escrita em seus textos,
convidando à reflexão em torno das falhas apresentadas em ambas as situações.
Dias depois houve uma réplica na imprensa, confirmando sua fala e expondo novas
preocupações em torno de uma ética do discurso acadêmico.
Uma delas é a violência recorrente da falta de argumentação,
o qual gera um abusivo lugar-comum: o deslocamento do eixo central da
discussão. Aquilino foi acusado de afoito, incompetente e leviano, sem a devida
fundamentação. Logo veio sua afiada resposta.
Ao que parece, fui
afoito por considerar aberta à sociedade a discussão em torno de que se anda
realizando dentro dos muros da Universidade; incompetente por não ter sido
didático o bastante em relação a termos como discurso, linguagem e retórica; e
leviano, pelo suposto deslocamento conceitual de uma citação de Barthes, quando
a ela recorri apenas como ilustração de uma dissensão corriqueira entre o bem
pensar e o bem escrever.
As
acusações surgiram do nada, sem sustentação textual, com vagos impropérios e o
recheio radical de um silogismo torpe: se o crítico é autodidata e os diretores
da revista colecionam títulos de PhD, então eles são deuses e o crítico não é
nada. Dá-lhe sofisma. Na verdade, fui interpelado por uma avalanche de carteiras,
todos tão afoitos em mostrar seus títulos, tão levianos ao deslocar a razão de
nossa conversa, tão incompetentes de acrescentar substância ao diálogo.
Para
quem defende uma ação multidisciplinar, fui questionado por uma articulação
binária: certo/errado, capaz/incapaz. Trata-se de um discurso refém de
evasivas, essa vulgaridade pequeno-burguesa. Mais do que pura e simplesmente
linguagem pobre, temos uma medida alienação do sentido. Não há refinamento da
linguagem, mas antes um esplendor da pose, uma contraposição irresponsável
entre realidade e linguagem.
Aquilino ainda esclareceu que havia sido procurado por um
dos diretores da revista para que escrevesse algo na imprensa, por sinal o
único artigo a sair sobre a malsinada publicação, que logo fechou suas portas.
E concluiu:
Maus poetas? Temos
de sobra. Maus políticos? Maus jornalistas? Esbanjamos situações fraudulentas.
Deveríamos estar envolvidos em uma preocupação dissociada de interesses
próprios e imediatos.
Por
trás dos equívocos editoriais, há sempre uma horda de maus escritores. Por trás
de um governo perseguindo a universidade, deve haver algo de insustentável e
inconsequente. A verdade é que nenhuma sociedade se fortalece se não aceitar
discutir suas falhas.
O
que se tem de fazer nem sempre é possível fazer hoje, mas é essencial que o
façamos com firmeza. Não podemos seguir modulando deuses de barro. Todo sentido
deve ser questionado, assim como todo discurso. Se o que temos são apenas
títulos, credenciais, passes, então nós temos de voltar ao bê-a-bá, reaprender
a viver, a ser gente.
[
63. O olhar embebido no óleo da
cena: ruas caminhando para dentro de seu corpo, inúmeras cidades da memória
congestionando a lucidez. Dedilho as vértebras daquela visão, o pesado volume
orgânico de Antero, semáforos distraídos, passantes escrachando o agônico
sorriso, demorado no rosto talvez mais do que o possível. As pernas imensas
inchadas disformes, uma robusta anomalia dançando e engolindo a fuligem do
absurdo.
Ao beijar postes e árvores entrelaça a pesada doçura a um
sacro sarcasmo que averba a palidez mundana daquela gente que lhe circunda a
existência, os que a creem desterrada, poetas ou sociólogos, políticos ou
párocos, de quem chega a rir-se, um riso iluminado pela displicência, e logo se
refaz no beijo encravado nas coxas de um bronze invisível no centro da Praça do
Carmo.
– Meu amor, tu deverias estar aqui, com teu corpo imenso e
doce, bailando fixa diante dos deuses. Eu te quero e te beijo, mesmo que ainda
não existas.
Penso, pausado e prófugo, Antero chafurda nos desastres de
origem, mija e come por ali mesmo em meio a tudo, por vezes se desculpa quando
lhe escapa um arroto – minha amada, não
posso com tudo – e não se sabe de nada, quando se mudou para aquele ninho
de improbabilidade, a deformidade dos vasos sanguíneos contrastando com a
leveza dos gestos que busca, ainda que jamais os alcance.
Entre o Carmo e a Estação, seu mundo secreto, por ali ia
algumas vezes, desenhando comigo um diálogo possível com Antero.
– Cibele, sempre minha, não te machucarei, querida. Não
temas este pendor exagerado, tão grande quanto meu amor por ti.
Uma madrugada eu o vi chorando o gozando, masturbando-se na
coxia, ínfimo e aniquilado.
Dali agarrou-se com um cesto de lixo e se pôs a dançar, o
pau ainda exposto, articulando uma melodia quebrada, entre o urro e o gemido.
Em conversas com um pretenso cineasta, diagnosticou: “Um personagem assim não
diz nada, é um desastre completo do ponto de vista literário, as falas serão
sempre idealizadas, uma produção vagabunda quando muito transformará tudo isso
em cinema de subúrbio, enfim, o que diabos esperar de alguém cuja agonia não
condiz com o manual dos suplicantes?”
Três madrugadas seguidas, em uma delas me disse Antero:
– Queria que Cibele não chorasse tanto quando me ajeito dentro
dela. [
72. A voz ao telefone: “Amor, estou
com saudade”. Três vezes em um mesmo dia. Como Juliana explicaria ao marido?
Uma conversa com a amiga a assustara:
– Há dias uma voz me persegue no trabalho: “Quantos saberão
o que fizeste?”
Quase em pânico, procurara o padre Anselmo. “Não é certo o
que estás fazendo”, lhe confessou ser esta a mensagem que vinha recebendo na
paróquia.
Juliana vivia um péssimo momento com o marido. A amiga
Fátima atravessava fase delicada no trabalho. Anselmo perdera quase todo o
rebanho para os pentecostais. O infortúnio parece ser mais paradigmático de uma
sociedade do que seu revés.
Demócrito comerciava peles. Em sua correspondência vinha
encontrando folhas soltas com letras coladas: “Estarás mesmo cumprindo teu
acordo?” O poeta Alfredo diariamente recebia em sua mala postal um e-mail: “O
que dizes será mesmo teu?”
Juliana não sabia disso. Preocupava-a apenas o marido. Por
coincidência, havia meses vivia um romance secreto, um rapaz do interior que
conhecera em um shopping. Apaixonados, talvez tivessem deixado escapar algo.
A amiga Fátima alertava:
– Algo está acontecendo com todos nós.
– E o que seria, amiga?
Nossas vidas foram concentradas em um único roteiro, trama
artificiosa que nos leva a crer que o surpreendente não passa de uma figura de
retórica. Estamos ao inteiro dispor da previsibilidade. Todos, sobretudo os que
se sentem distintos do resto do mundo.
Ao atender ao telefone, o marido de Juliana ouvia a mesma
voz: “Amor, estou com saudade”. O patrão de Fátima esbugalhara os olhos ao
ouvir: “Quantos saberão o que fizeste?” O arcebispo Clemente também recebera
algo dirigido a Anselmo: “Não é certo o que estás fazendo”. A insegurança
alheia bem nos cabe. Os papéis trocados são a condição risível de nossa
aventura existencial.
Assim como o “Não é comigo” tornou-se a reza comum de uma
sociedade que perdeu o sentido de responsabilidade compartilhada por todos os
atos…
– Perdeu ou se desfez?
– …Quem indaga? Estarei eu também a receber os sopros do
inevidente?
– Perdeu ou se desfez?
Nada é comigo. Não sou deste mundo. Acabei de chegar. Não
sei o que se passa aqui. Melhor voltar amanhã. Deve haver um engano.
Na mesma proporção em que se dá essa dissimulação de
responsabilidades, nos convertemos em uma casa de tolerância.
Talvez Juliana tenha se separado, Fátima perdido o emprego,
Anselmo sido excomungado. As frases enviadas aludem a uma condição
despersonalizada de todos nós. Posso amanhã mesmo retomar o processo, remetendo
essa torpe fórmula de arrancar de cada um de nós sua máscara mais fétida.
Preocupados com a pequena esfera de um deslize moral, as
vítimas dessa violação de direitos ao crime sem testemunha não perceberam a
outra mensagem transmitida pelos meios disponíveis: “O que fizeste de tua
vida?”
O curioso é que a surpresa tenha sido convertida em algo
indesejável, quase como garantia de uma falha de caráter que não pode ser
ventilada sob o risco de comprometer a boa crônica dos dias.
Em todos os meios, uma imperceptível mensagem se reproduz
alheia à sua eficácia: “Vivemos no mais completo sigilo”. [
81. – Quantas vezes o meu amor será
tomado de mim?
O choro inconsolável de Armênia desconcertava a tarde tão
ritmada em seu vício urbano. Milhares de pessoas passavam por ali, alheias a
pedintes, ambulantes, cantadores. A praça é um veículo da impossibilidade de
encontro entre as pessoas.
– O que me pareceu é que a pobre moça havia descoberto que
seu namorado a traíra como se fosse uma qualquer.
– Essas raparigas ficam zoando por aí à procura de um trouxa
que se comova.
– Não sei o que leva uma pessoa a se expor assim.
Confesso minha curiosidade acerca desses muxoxos
existenciais. Não, não me refiro à pobre moça em seu lamento fora de lugar.
Interessa-me esse capítulo de telenovela em que convertemos nossas vidas, os
comentários de rua, como se todos fôssemos alheios ao que marca a vida de cada
um de nós.
– Quantas vezes meu amor será tomado de mim?
O que levaria alguém a sentar-se em um banco de praça,
desaguar-se em choro e repetir sofregamente uma mesma pergunta? Primeiro passo
para entender o que se passa é por outra pergunta no lugar. Imaginemos um
garoto chorando e indagando por sua mãe ou um passante qualquer se dizendo
roubado e pedindo ajuda.
– O moleque vem chorar todo dia, recebe uns trocados e vai
repartir com a puta da mãe.
– A prefeitura poderia cuidar melhor desses espaços
públicos.
– Quando vamos parar com isso?
A espécie humana deve ser fruto de um capricho divino. Nada
a explica melhor. Reagimos como se nada no mundo nos dissesse respeito. Estamos
numa fábula de ações isoladas. No entanto, em todo momento se exige coerência,
a unilateral coerência de uma sociedade demente.
– Quantas vezes meu amor será tomado de mim?
Jamais pude conversar com Armênia, mas sei que ela estava
possuída por uma agonia muito especial. Repetia a indagação a perder o fôlego,
a cabeça em movimentos sincronizados. Algo maior do que uma dor de amor a
estava consumindo.
– É uma fraqueza de espírito debitar da conta fé todo revés.
– Com mil diabos, essas piranhas não valem a trepada que
cobram.
– Não creio que Deus nos permita tanto mal.
Em nada resultou alterar a natureza da pergunta. Isso quer
dizer que estamos afeitos ao fluxo de insensibilidade que define a sociedade em
que vivemos. Penso em que ponto extremo um dia nós chegaremos.
– Quantas vezes meu amor será tomado de mim?
Terei que ser Armênia ou ela terá que entrar em minha vida
com uma força cuja ausência me doa muito. Nossa ideia de mundo é nossa miséria
de vida. Não somos senão reflexos da mediocridade em que nos tornamos. A todo
instante há filas de gente buscando solução para problemas que foram gerados
por esse princípio de não estar nem aí para nada. É possível que grande parte
do drama social que vivemos hoje tenha sua raiz em tal comportamento.
Sento-me a seu lado e tento lhe dizer que não faço ideia do
que lhe aconteceu, mas… Movia parte de seu corpo como se fora uma gangorra,
impenetrável pêndulo. De quem estaríamos tomando seu amor? Era isso? Logo a
polícia a tiraria dali, da praça sortida de gente alguma.
– Quantas vezes meu amor será tomado de mim? [
90. Quatro escritores.
Conversávamos em uma ensolarada manhã, entre vinhos e chopes. O diálogo
transcorria no único fórum eficaz no país: a mesa de bar, lugar sagrado onde a
imaginação transpira quase promíscua. Um deles não era dali e acabara de ser
apresentado ao outro, que tinha em suas mãos um maço de fotografias, revelando
os vários ângulos de um cadáver.
– Deixe que ele veja também. Depois dirá se não tenho razão.
– Qual nada! Não deverias te meter nisso, Fabo.
Olhei as fotos com o luminoso interesse do espanto. Mesmo
com a deformação do corpo, o identifiquei. Entornei a tulipa de uma vez só e
acendi um cigarro.
– É impossível ficar alheio ao assunto.
– Não disse que não há importância, mas sim que não cabe a
nós encontrar solução.
– A denúncia é uma forma de solução e revela o caráter de
quem se arrisca a firmá-la.
Eu seguia repassando as imagens, mais impressionado com a
natureza do diálogo. Olhei para Fabo – maneira carinhosa com que era tratado
Fabrício Cruz de Alencar – e indaguei acerca da origem das fotos.
– Durante anos recolhi documentos. Sei quem foi o mandante
do crime e seu executor. Tenho fotografias, conversas gravadas, eu mesmo
acompanhei o facínora em alguns trabalhos, antes de compreender seus
princípios. Reuni tudo em um livro e quero publicá-lo…
O garçom vinha com uma tábua de frios, enquanto Fabo
mastigava apaixonadamente seus motivos.
– Não encontro editor que tenha a coragem de editá-lo. Claro
que há conivência entre intelectualidade e poder…
– Aqui mesmo… Meus queridos Antonio e Adriano, justamente
eles querem me dissuadir da necessidade de se publicar o livro. Estamos criando
uma deformidade conceitual, um abismo entre arte e consciência social.
– Fabo, o poder está onde sempre esteve. Não representa a
reação. O artista, o intelectual, o criador, antes mesmo da compreensão de uma
estética, já se manifestava como insurgente acerca de toda forma de abuso ao
humano.
– Não aceito essa velada covardia de uma classe que se julga
transparente e combativa.
– Nossa intelectualidade esteve e está inteiramente a
reboque de projetos pessoais, cuja indignação não vai além dos engodos
burocráticos na prestação de contas com seus direitos autorais.
– Sabes quem é aquele cadáver?
– Antes disso, Fabo. Teus amigos aqui estão em sua rotina,
logo vamos almoçar e atualizar fofocas literárias, suprir a sensação de estar
no mundo. Claro que sei quem é o morto, e te digo mais: Adriano e Antonio são
cúmplices do crime.
A mesa acendeu um alvoroço, um quando muito deixa isso para outra hora. O chope
talvez não estivesse suficientemente na pressão.
– O cadáver de tuas fotos, Fabo, é a dignidade de nossa
cultura, a identidade que lhe permite dialogar com outras e consigo mesma. Não
há novidade quanto a déspotas que violentam essa integridade. Em nosso caso, a
reação é sempre circunstancial, sem distinção entre esposados e desposados.
Nosso vislumbre de existência nos leva a concordar com teus amigos. Não por
estarmos em um bar, mas pelo fato de jamais termos saído dessa mesa. [
∞
Moleque dos Ternos
criou uma espécie de fabulinha fabulosa, a exemplo de um de seus mestres,
Millôr Fernandes. A rigor, assim como o mundo era tudo menos algo pequeno, a
memória se engalfinhava com o desejo e juntos urdiam o maior espetáculo da
terra: a arte. Nosso infatigável protagonista, que um dia se confessou
apaixonado por seu alter ego, ia e vinha no tempo, nos guetos e labirintos da
História, refletindo sobre o ilusionismo da evolução. A seus amigos
historiadores costumava dizer que deixassem de tratar o passado como carne
morta. Em muitos casos o futuro é mais uma página virada do que a memória que
temos dele.
VI – CARAVAGGIO
Ao
instalar-se na Europa o Tribunal do Santo Ofício, entre outras condenáveis
estratégias, irradiou-se uma concepção de vínculo entre beleza e opulência, ou
seja, a de que o clero e a nobreza deveriam promover uma verdadeira
orquestração de pompa e grandiosidade, de tal maneira que os súditos
experimentassem uma igualmente dupla sensação: respeito e êxtase. Este seria um
primeiro momento de um artifício hoje fartamente conhecido: a espetacularização
da vida.
A
beleza deveria provocar, sob todos os aspectos, uma verdadeira comoção. Veio
exatamente deste período da história o equívoco de que a arte deve ir onde o povo está, ou seja, a falácia estabelecida
entre dimensão humana e populismo. Claro está que a Companhia de Jesus não
buscava identificar-se com o povo, mas antes subjugá-lo. Como parte de seu
plano instituiu os santinhos,
geralmente distribuídos às crianças durante a obrigatória catequese. Alguns
historiadores chegaram a confundir esta imposição com as propostas de
consubstanciação dos aspectos sagrados e profanos que regiam a existência
defendida por Giordano Bruno. Outro lamentável equívoco: Bruno salientou a
essencialidade dessa compreensão unificada de duas forças complementares, e
pagou com a própria vida, enquanto que à Contra Reforma interessava tão-somente
uma vulgarização destes mesmos aspectos.
Entre os artistas coniventes com tal atitude, havia uma
família italiana de pintores: os Carraci. Estes facilitadores dos princípios
jesuíticos, cuja pintura massificava-se através dos santinhos, foram corresponsáveis, em pleno século XVI, por uma
cultura do adorno, instância que assumiu, ao largo da história, inúmeras
titulações, do beletrismo parnasiano à bestial degeneração que atende hoje por
pós-vanguarda.
Em meio a este cenário preparado para a submissão, surge um
insurrecto nato: Michelangelo Merisi (1573-1610), que
adotaria posteriormente o nome de sua cidade natal – Caravaggio –, na Lombardia (Itália). Em
sua época, Caravaggio trilhou o caminho mais difícil, como sempre cabe a todo
artista, opondo-se à banalização sistêmica da arte promovida pelo Santo Ofício.
Dedicou-se à ampliação de uma técnica já introduzida, um século antes, por
Leonardo da Vinci (1451-1519) – o chiaroscuro (claro-escuro) –, que
originalmente consistia na incisão de luz sobre determinadas áreas escuras, de
maneira a destacar na tela as formas surgidas a partir do contraste.
Se toda grande arte reside exatamente nesse entendimento do
contraste, Caravaggio, contudo, não se limitou a um
tratamento formal, dando ao mesmo uma notável complexidade dramática. Sua
pintura ambienta a miséria humana, atribuindo-lhe o indispensável aspecto
ontológico. Criava assim uma atmosfera tenebrosa que influenciaria a pintura de
Rembrandt (1606-1669) e Velázquez (1599-1660), entre outros. A
idealização da figura humana proposta por Caravaggio contrapunha-se a uma
grandiosidade defendida por Michelangelo Buonarroti (1475-1564). Se este
igualava o homem a Deus, Caravaggio ressaltava a condição humana em todos os
seus aspectos mundanos. O homem era seu grande modelo, sem que isto propiciasse
a feitura de uma arte miserável.
Caravaggio não desvinculou a arte dos
aspectos divinos da existência humana, mas antes buscou ambientar tal
existência à sua complexidade real, recorrendo ao claro-escuro como uma forma
de revelação sutil do sofrimento humano. Além disto, sua exposição de detalhes
formais era precisa e sugeria que não há detalhe sem importância em uma obra de
arte. A textura de uma tela assume a conotação do verbo em um poema. A
luminosidade define a ambientação e também o clima psicológico. Mais do que
simplesmente dessacralizar os abusos conceituais da arte que lhe era contemporânea,
o pintor italiano propunha uma carnalidade insurrecta, uma irreverência do
homem a favor de si mesmo.
Caravaggio era um cristão que se insurgia
contra a degradação do cristianismo levada a cabo pela Igreja em sua época.
Suas obras foram em grande parte renegadas e viveu uma vida de boêmia e
descrédito. Quase não há registros de suas técnicas de trabalho. Embora
conhecido como um naturalista, o pintor barroco tem sua importância maior na
releitura que fez da Renascença, imprimindo-lhe uma ontologia indispensável.
Morto em circunstâncias pouco aclaradas, acometido de uma
febre, provavelmente malária, a importância de sua arte foi sepultada até o
final do século XIX. Vê-lo agora no Brasil propicia vários aspectos: da
importância de sua contribuição técnica à rediscussão da essencialidade de uma
arte desvinculada das inúmeras formas de servilismo. Em um momento em que a
arte encontra-se inteiramente a cargo dos interesses mercadológicos, Caravaggio traz para todos nós uma vez
mais a lição de que o artista só refletirá criticamente a época em que vive se
não for subalterno de suas instâncias de poder. Em definitivo: não há arte para
o povo. [
∞
A versão que cabe
afirmar ou contestar é silogismo que nos faz engulhar em terra seca. De nada
adiantou planejar um solário de virtudes. Verdade seja dita: o homem reluta em
ser bom. Talvez em seu íntimo encontre mais justificativa na traquinagem do que
no gesto solidário. Moleque dos Ternos já nos disse que nada no homem quer
esgotar-se em si mesmo. O homem necessita apenas prazer suficiente para não
desfigurar-se. No entanto, nada o impede de desfigurar o outro como se fosse um
verme divino. Não se pode decompor a existência sem fazer parte dela. Essas
frases todas peregrinam sem autoria. Ninguém as quer. Muitos artistas fazem da
arte um sistema de coleta de obviedades.
VII – O SCRIPT EM CARNE VIVA
O que
necessitamos está bem diante dos olhos, porém foi perdendo forma, cor, substância,
noção de suas particularidades, e logo fomos nós a ir perdendo o mesmo em
partes iguais, o cenário se desfazendo de tal maneira que hoje é um espaço
vazio sem a consciência de si. Com a desculpa de que o mundo se converteu em um
lugar de sobrevivência, fomos tragando tudo à nossa volta, acumulando
componentes descartáveis, reservas de mercado falido, prateleiras de
biodegradáveis, amores vencidos. Desprezamos o ouro do instante, propagamos
nossa miséria de espírito como uma nova joia, a doutrina do nada mais
me importa. Graças a ela podemos desamparar, esquecer, desprezar, sonegar,
matar, ocultar pistas, considerar a inocência um truque.
Na verdade, o espaço vazio é a nossa melhor técnica de sobrevivência, a
ilusão de um mundo que a todo instante muda de forma, regra, conceito, sabor,
tablado de metamorfoses perenes cujo princípio é converter paraíso em inferno e
vice-versa, desorientar a mínima ideia do que é certo ou errado, estontear as
vítimas, garantir esse manto de neblina sobre todos os crimes. Burlar-se,
enganar, subornar, fingir, despistar, sempre o cinismo como ortodoxia ou
fundamentalismo. Já não importa que a mão por trás seja da religião, da arte,
da política, da ciência, da lei.
E a dor, a dor sinistra por detrás de tudo, a dor maiúscula que foi
perdendo suas dimensões, culpa, vergonha, consciência, respeito próprio, a dor
incapaz de uma reação, a pior de todas as desculpas, a dor das coisas se
perdendo, o medo da dor aumentar, o crime em nome do medo, a traição em nome do
medo, o assalto em nome do medo, a corrupção pelo medo, a quebra de sigilo, a
falência múltipla de sentidos, metástase do espírito. A dor como único vilão
levado a júri, inocentado apesar do perjúrio, livre para voltar ao palco.
Este curioso personagem ainda se chama homem. Não se sabe mais o que
representa. É um script sem deuses, mitos, princípios, moral
de espécie alguma, apenas o espaço vazio. Nem mesmo uma cadeira. Não há como
levar a mão à cabeça e chorar. Uma gota de silêncio e já é possível notar o
sorriso cínico nascendo na linha de seus lábios. Voltará a chamar a tudo isto
de instinto de sobrevivência. Não conhece outro argumento. Tratará de mobiliar
o espaço vazio com novos pontos de ilusão, os velhos ardis da eternidade.
Multiplicará vítimas por todo o cenário. É só o que sabe fazer. Está ciente de
que não veio ao mundo para outra coisa.
O que necessitamos permanece diante dos olhos. [
∞
A verdade – mas,
desde quando a alguém lhe preocupa os retorcidos dessa deusa imprópria? – é que
chegamos até aqui pensando em dar uma mínima ideia da existência de Moleque dos
Ternos. Até onde sabemos andarilhou por todo o continente americano e chegou
mesmo a apagar seu nome que foi riscado em uma rocha nos Pirineus por uma
namorada. Planejou amiudadamente montar um negócio internacional de
fornecimento de ovos de cangurus, porém tal empresa resultou impossível por não
haver conseguido convencer um único canguru a mudar seu hábito de procriação.
As memórias de sua infância ele as recortou com exatidão profana de uma novela,
Sobras de Deus, fascinado pela existência de seu
protagonista, Pequeno Ansioso. A realidade é uma conjugação de fatos que por
vezes não sabem onde se inserem. O que por vezes aparenta ser um sacramento
pode ser uma dissolução. O meio sempre rejeitou ser a mensagem. O homem não se
ressente do fato de ser um fantoche nas mãos dos símbolos. Ao que parece, urdiu
até a última vírgula dessa tramoia, de modo a não se responsabilizar pelos
próprios atos. E se veio até aqui, seu método não será deixado de lado. Quantas
noites nós dormimos dentro de um mesmo sonho? Quantos nos sentimos ser a cada
vez que encontramos na rua alguém com quem parecemos? Em um mesmo dia, em
distintas situações, ambientes, horas, todos me recordam a mim mesmo… O que
sou? A realidade nunca ligou a mínima para o que somos. Somos o sonho uns de
outros. O capricho com que faço birra para me manter em paz. A ilusão de que
amanhã qualquer luz ou sombra terá um sentido distinto. A realidade nos ilude
ou somos nós sua ilusão proscrita? Vamos ver. Vamos ver. Até que ponto nós
cabemos no capricho que sonhamos para nós mesmos. Querem mesmo um último
recorte? Uma moral? Em 2005 a revista mexicana Blanco Móvil comemorava seus 20 anos de existência. Seu
editor convidou os principais colaboradores a escrever algo que estampasse
relação com essa data. Moleque dos Ternos escreveu então sobre uma curiosa
relação: uma garota de 20, a televisão e a dieta militar, cujos 20 anos de
idade mantinham insólita coerência. Ao reler estes escritos, verificou-se com
espanto sua implacável atualidade.
VIII – UM DESVARIO INFLUENTE
O rosto
na televisão lhe chamou a atenção. Via a si mesma, na mulher cujo noticiário
conferia uma e outra vez os crimes que havia cometido ao lado de outros.
Assustava-se com a semelhança do olhar. Era como se toda a representação de um
mundo se revelasse e algo arrebatador justificasse a emoção. Incontroláveis
imagens golpeavam a memória, cenas de crimes justo antes de serem enumerados no
telejornal – minúcias do que não podia suportar.
Quem era aquela mulher tão dentro de si? E que estranha
passagem se manifestava, quase corpórea, como um mobiliário trágico e tão
íntimo? Era resgatada através de velhos dilemas. Misteriosa se retorcia dentro
daquele olhar que não conseguia identificar. Parecia como se os dois rostos de
tornassem um só.
– ¿Dónde estoy, en lo íntimo de aquello
que desconozco? Esta mujer me atrae por todo aquello que no creo que sea parte
de mí. ¿Cómo apuñalar a tanta gente y bailar alrededor de los cadáveres?
Costumava ver televisão acompanhada de papéis, enquanto
anotava a ambiguidade de realidade e ficção onde a vida humana foi melhorando.
Já estamos bem próximos do instante em que vislumbraremos nosso sorriso no
espelho sem saber com exatidão de que rimos, em contraste com a dor que sentimos
por dentro. Criada por seus avós, aquelas anotações eram consideradas um
capricho da criança dedicada a seus estudos, que vivia um pouco solitária,
porém era simplesmente carinho.
– La muerte no nos deja ninguna pista
del camino que traza dentro de nosotros, ni aún sabe con certeza si puede
contar con nosotros para asegurar la existencia.
O avô ria daqueles pedaços de reflexão. No entanto, em meio
a tantas anotações nos cadernos é impossível não considerar que a morte sempre
esteve conectada com a filha. O desvario conhece seus pontos débeis.
Quem era aquele rosto na televisão? Ela se encontrava
sozinha em casa e não houve forma de gravar para depois indagar aos avós.
– Hace 20 años una mujer fue condenada
por crímenes brutales y ahora una retrospectiva en la televisión muestra
escenas de la prisión y del juicio. ¿Qué tengo que ver con esta mujer?
Desde então a memória foi alinhavando desavenças, e o
noticiário continua implacável com a decisão de inutilizar a vida humana.
Qualquer coisa que sonhe ou queira gozar. O prazer é uma ameaça constante ao
cotidiano.
– Hace 20 años se interrumpió un largo
proceso dictatorial en el país. No se inició por el hecho de querer obtener el
poder, sino por un profundo sentido de protección a las ideas vigentes. Al
acercarse, tampoco se comprobó alguna conquista, sino más bien se comprendió
que tales ideales estaban a salvo.
Todos os crimes são idênticos. Chegará um ponto em que a
indecisão anulará toda perspectiva de liberdade? Não cabe dúvida que há uma
hierarquia de modelos.
– La concentración de riqueza se ha enunciado como un gran
enemigo de las democracias. Ésta es, sin duda, una distorsión
célebre y bastante funcional. El principio de la masificación suprime cualquier
libertad individual. Una simple tarjeta de crédito tiraniza la vida mucho más
de lo que uno se imagina. En cualquier diccionario encontramos que dictadura
es: “Forma de gobierno en donde todos los poderes se concentran en las manos de
un individuo, de un grupo, de una asamblea, de un partido o de una clase”. Sin
embargo, todos los poderes siempre han estado concentrados en las manos de
alguno de esos elementos durante toda la historia de la humanidad. ¿La
soberanía popular es una falacia? Sin embargo, ¿en su nombre no estamos
soportando las distorsiones más violentas?
Há páginas e páginas repletas de veracidade…
– Un país que conmemora 20 años de
liberación de un régimen militar ha sido tragado por una ola de corrupción que
no conocemos del todo como cuál es el alcance de la fe en la especie humana. Al
mismo tiempo, este mismo país ha sido castigado por un proceso de inercia
sistemática.
Não se encontrava ninguém quando a polícia invadiu a casa. O
rosto daquela mulher condenada que aparecia na televisão deu pistas suficientes
para que se entenda que o ideal perdido dificilmente se recupera. O mundo da
memória é um mundo fora do tempo. O tempo, a extradição da memória. Todas as
guerras são cínicas.
Onde encontrar agora o olhar dentro do olhar que lhe
aclarara tantas coisas? Seguindo os passos de sua mãe? Por que escreveu tanto
sobre fraudes do sistema?
– La incriminación es el más poderoso
de los artificios. Cometer un crimen es un acto menos comprometedor, de menor
interés social. La forma más práctica de deshabilitar a alguien es
incriminarlo, indiscriminadamente.
Não abrirei mais parágrafos para este caso. Aceitei anotá-lo
desde que a suspeitosa me procurou. Segue foragida, embora se comunique comigo,
confia em mim, não, não trairei minha intuição.
– Todo lo que voy a relatar tiene que
ver con el día de hoy, el presente en la vida de todos nosotros, la forma en
que somos frenados frente a acontecimientos que sucedieron y pueden influir en
nuestra vida, marcarnos, por así decirlo, de tal manera que no seamos todo lo
que debemos ser sin la incómoda presencia de esas ranuras del pasado.
Enquanto gravava a declaração não podia deixar de pensar em
meu país, na situação que enfrentamos hoje, em uma realidade forjada com
poderes concentrados em um congresso que desafia a todos. O que esta jovem
garota descreveu é toda uma relação de crimes. Não sabemos onde estão seus
avós. Ela não nega a autoria dos crimes que cometeu. Sobre alguns corpos
costumava deixar páginas de seu diário. O noticiário é uma fonte de indícios,
pistas, porém, quais as relevantes? Quais as verídicas? Eu mesmo não sei qual
papel represento aqui. Será que ela está certa?
Da mesma forma, considerar que tenha se identificado como a
filha de uma assassina em série e que deveria, 20 anos depois, seguir a loucura
de sua mãe, um distúrbio, sim, porém dirigido a ser encarnado. Tudo em nós está
repleto disto. Algumas causas se tornam enormes quando não passam de exploração
da ignorância alheia. E agora essa jovem sentindo-se como alguém inspirada pelo
mistério de continuar o caminho daquele olhar astuto na televisão.
O mundo não deixa de ser apenas uma falsa ilusão. De tal
forma que quando o delegado me procurou para entregar-me uma carta dirigida a
mim, ao abri-la, duvidei por completo de sua legitimidade.
Ao seguir as indicações, confirmamos os três lugares onde,
esquartejados, foram encontrados os corpos dos avós. No entanto, aquele
manuscrito não era dela. O tipo da escritura era idêntico, porém tudo me
indicava que o autor não era ela.
– Los tres poderes desacreditados son
como cuerpos descuartizados cuyas tajadas no vuelven jamás a encajar. Al
confundir a la patria con la imagen-madre, ¿cómo no mutilarla cuando quiere
absorbernos, nada más?
Imaginei encontrar algo, uma página do diário que
esclarecesse o cenário tripartido. Rascunhei sobre o que poderia ser o
desenvolvimento da causa. Uma confusão, sim, porém algo me dizia que algo havia
sido adulterado: uma pista falsa, a artimanha da incriminação.
–
Incriminaos los unos a otros. Ninguna
verdad debe sobrevivir.
O charuto de delegado também ajudava a dissipar algum
raciocínio. Insistia em que eu lhe desse o paradeiro de meu cliente, p0rém se a
metêssemos na cadeia, sem dúvida, as remissões se perderiam, os vínculos entre
situações apenas aparentemente desconexas. A mãe formava parte de um grupo
rebelde de anarquistas idiotas, figuras patéticas que amontoavam vítimas ao
acaso, observando apenas a classe social a que pertenciam. Defendiam paz e amor
sem restrição, e aniquilavam as disposições em contrário.
– Todo poder es cancerígeno. La
realidad humana se destruye de una forma u otra. Lo que llamamos vida no deja
de ser una actividad extrema de sobrevivencia. Esto no quiere decir que se
tenga que salir a matar gente todo el tiempo. Sin embargo, para eliminar
ciertos riesgos sistémicos, se hace inevitable liquidar los focos de infección.
Vivemos em sociedades competitivas, desde criança somos
treinados em táticas de competição, eliminação e conquista. Onde estaria ela
agora? O maldito charuto me dispersa e o imbecil do delegado não pensa senão em
desfazer-se dessa tarefa. O crime é mera burocracia sob a ótica da polícia. A
justiça se detém na astúcia e entende melhor de manhas e perversidades, talvez
por administrar outro tipo de rotina. No fundo, trata-se apenas de uma relação
entre flexível e inflexível. O que todos fazemos é seguir padrões. Matar é um
caso extremo? Não, já não, temo o que digo, porém o inaceitável hoje é romper
um padrão. O crime pode ocasionalmente ser visto como flexibilidade das
relações sociais.
– Estos muertos son indispensables.
Estamos anestesiados por la democracia. El país a la pobreza. La casta
intelectual, una suma de nuestra miseria. Los pequeños focos de resistencia son
retrógrados. Ya no hay hijos. Urge
dispensar formalidades de etiqueta.
O telejornal expunha o montão de corpos, dirigentes na
câmara, no senado, entidades de classe, grupos opostos ao governo, ministros. A
nação praticamente acéfala. Eu não posso com ela. Sei que jamais mataria os
avós, porém já não posso aceitar isto. Ao desistir do caso, disse ao delegado
que fumava seu charuto:
Em que se parecem estes 20 anos de democracia com o modo em
que ela foi esquecida por seus pais? Onde estão? A reação frente ao rosto de
sua mãe na televisão é a mesma cara de uma nação apaziguada por debilidades.
Não se espera que se repitam transgressões ingênuas do passado. Um de nós
amadureceu. Não tenho a menor ideia de quem sejam eles. Quem iniciou esse
grande abismo? A quantos senhores serve a inocência daquela mãe? Tão ingênua
que, da prisão, recorre a foragidos de seu bando de imbecis para matar os pais.
Um crime-imagem, sim, porém imagem falsa que apenas incrimina sem atentar
contra a essência. O usufruto do símbolo é o que nos está destruindo.
Indago se me entrego ou não. Crer em um julgamento justo é a
pior das ingenuidades. Julgar o outro ou julgar a si mesmo é um ato
essencialmente injusto. Devo entregar-me ou seguir amontoando corpos?
Durante toda a semana, a imprensa não tocava em outro
assunto. A constante não era simplesmente a morte. Os corpos anunciavam a causa
do crime tanto no estilo dos golpes como nas folhas de um diário, quase sempre
deixadas sobre eles. Voz dissonante da situação a que chegou o regime
democrático em nosso país? Voz consciente dos riscos de credibilidade de seu
discurso? Não fosse pela agitação de distúrbios entre um extremo e outro da
astúcia, nada passaria de uma página da crônica policial. Para qualquer
repórter é fascinante lidar com a delicadeza incendiária do tema. Os olhos
saltam. Sim. No entanto, tudo isto é assunto morto para a direção dos jornais.
Há muito que escrevo sobre esportes, pois de outra forma estaria me desgastando
na profissão, sempre em pleito com a administração.
Li em outro jornal um detalhe sobre a matança realizada pela
jovem de 20 anos, cuja vida ia por um bom caminho, educada pelos avós, dedicada
aos estudos e de repente um anúncio televisivo a desperta para cometer uma onda
de crimes. A partir da furtiva transmissão cria um padrão de reação que difere
das mortes cometidas pela mãe, somente porque às suas imputavam uma crença política.
O assassinato convertido em represália. A coincidência do intervalo entre dois
pontos fundamentais: a mãe criminosa que a abandona para que seja criada por
seus avós; o país fictício que evoca e que viveu um período idêntico acossado
por uma falsa constância. De um momento para outro quer recuperar a verdade
sobre as duas malogradas conjunturas. Descobre assim que a verdade é a perfídia
institucionalizada. Para onde encaminhar uma alma assim? O mundo será, em
essência, um desastre total? Sinais de corrupção, exílio, dano existencial…
Tampouco necessitamos de seu diário extraviado sobre as vítimas.
Quantos somos dentro de cada uma delas? Quem muda isto? O
que ela acredita haver recordado? Quantos saberão identificar o país a que ela
se refere? Qual? Onde ela está? Onde está aquele olhar dentro de mim? Quem me
escreve? Quantos se confundem nas mesmas anotações? Quem nos detém? Quem nos
julga?
Não cortem o sinal. O que houve? Alguém responda. O sinal se
foi… A conexão…
O personagem vai se desmaterializando na medida em que
reflete sobre uma dupla confusão refém do tempo. As vozes se mesclam de tal
forma, dentro e fora de si, que já não se arrisca a entendê-las nesse ambiente.
É provável que enlouquecesse ainda mais ao delinear o tempo de origem dos fantasmas
que lhe assaltam. Quem a manda cometer os crimes? Serão múltiplas as vozes. Já
não nos vemos diante de nada.
– Quiero dejar de matar. No puedo
continuar la vida entera cumpliendo un capricho del destino. Residuos insanos
de lo que he estado cometiendo se hacen cada vez más frecuentes, sin que me
acuerde de una sola escena completa.
Há alguns dias um militar da reserva declarou que era
impossível ter uma ideia geral da insurgência em suas inúmeras facetas.
Íamos acomodando os objetivos através da informação que
re3cebíamos. Não deixávamos escapar nada, porém a cada instante surgia uma nova
denúncia. Era uma operação incansável e os corpos se amontoavam no vazio, pois
tínhamos instruções de não deixar nenhuma pista. Como dizer agora que uma louca
influenciou os atos de uma filha que não chegou a conhecer e fez dela uma
assassina em série cujas vítimas são mostras que nos incriminam? Nossos mortos
não são frutos de uma loucura. Defendíamos a nação de um perigo enorme. O
governo se via infiltrado por uma demência ideológica. A ordem se perdia entre
manobras falazes. Era necessário atuar, deter aquela infiltração, sim,
desfazer-se de tantos rebeldes, gente incompreensível.
O general falava em meio a uma explosão de retinas onde os
corpos apunhalados na instância criminal se convertiam em despojos de um regime
de exceção. Quando havia algum ruído, um sinal de dúvida, surgia uma tábua
virtual que, em sua indagação, concentrava todo o sarcasmo do mundo: quem fala?
Porém todos nós falamos sem abrir a boca e o que dizemos sai sempre dos lábios
de outro. Para onde iremos ao sair daqui? Para outra comemoração, outros 20
anos de alguma virtude perdida. A repeti-lo tudo, sempre. Alguém liga a
televisão no momento em que se anuncia o desaparecimento dos integrantes de uma
comissão que se encarregara de investigar os subornos na esfera governamental.
Na semana seguinte os membros do Congresso receberam correspondência com a
fotografia de um dedo. Diferentes dedos para cada um, todos os dedos da
comissão cujo paradeiro permanecia desconhecido.
– Jamás encendería la televisión. No sé
a qué especia de fatalismo recurría mi madre. ¿Llegará un punto en el que la
indecisión anule toda perspectiva de libertad? No cabe duda de que hay una
jerarquía de modelos. Mis abuelos me decían el bien por encima de todo, pero,
¿quién asimila una herencia tan vaga? Si los vivos ya no se entienden, sólo el
exterminio los identifica.
Este é o inferno para todos, os que vivem celebrando datas,
pautar a vida a expensas de pequenos vícios vulgares, crenças simplórias sobre
o mito da experiência. Será sempre assim, a mesma cena. Em pleno estado de
repouso. Nenhuma estática. Nenhum êxtase. Todos nós. Como ventríloquos uns de
outros. [
∞
Minutos após a
publicação, na seção “Carta vazada”, do blog Atração Fatal,
estampou o seguinte comentário, da pena de um leitor
do Camelódromo, que se firmava Zomar Kardan:
– Moleque!… Um final bem atual, empenhado na
História das Raízes do Milênio 21, a Origem do Mundo Informático em que
vivemos… e que começa, justamente com a invenção, pela Dieta Militar, da
Televisão Brasil Grande!… A data do artigo é importante pra mostrar tua lucidez
ao perceber o que estava pra vir, e que no final, a própria Dieta não
sabia.
A realidade não
passa disto. Uma permanente fonte de transferência de ilusões. A razão deu ao
homem uma impossibilidade, de compartilhar sua existência, com o outro. Tudo no
homem é concorrência, ao ponto de tramar quanto ao expurgo de sua própria
imagem no espelho.
Mas a realidade
não passa disto. E o espelho permanece intocável.
Moleque dos Ternos
teve negado, pela terceira vez, seu visto de saída do espaço comum a todos os
mistérios.
Já não sabemos
onde encontrá-lo, porém uma coisa resta como certa, provavelmente: jamais houve
uma última quimera.
3. O BARCO NU
No centro do palco está um banco alto. Nele se encontra
amarrada uma corda que conduz a uma parte fechada do palco, na lateral. Entra
uma mulher, em direção oposta à da corda, e se dirige ao banco, cantarolando
uma canção. Ela usa um vestido bem solto e em farrapos. Está descalça. Senta-se
no banco e continua cantando, sem perceber a corda.
mientras la noche silabea sus trucos
entre el desierto y el mar tenebroso
miro en tu cuerpo ese barco desnudo
siempre a guiarme en silencio profundo
vuelve al mar, vuelve el mar
al desierto que fuimos un día
y allá en sus besos salados
vuelve el sueño a escribir su canción
vuelve al mar, vuelve el mar
en sus
manos nos fuimos un día
y allá en
sus dunas calientes
vuelve el
mar a escribir su pasión
Enquanto canta ela agita os braços docemente, onduladamente,
até que uma mão toca a corda. Interrompe a canção e faz um gesto de curiosidade
em relação ao que encontrou.
Li certa vez que o amor de Deus
é como o amor de Dois. É como uma noite que se vai, de tão ambígua e querendo
ser tudo acaba por nada ser. Talvez como esse mar da canção que não sabe bem
aonde voltar, sem que, no entanto, pare de ir e vir. Se acaso eu puxar essa
corda, trarei o mar para perto de mim? O mar que descansa em nossa pele ou o
mar agitado com as suas escadas que sobem e descem em pleno vazio? O mar é uma
espécie de vestimenta do acaso. Está sempre ali, não há como não vê-lo. No
entanto, nunca sabemos o que nos trará: um amor, o esqueleto de um pássaro, uma
caixa vazia. Talvez de todas as incógnitas da vida o mar seja a mais devota da
surpresa.
Um silêncio e ela olha para o público.
Puxo esta corda ou não? E se não
for o mar? De qualquer forma eu posso criar a ilusão de um mar, e qualquer
coisa que venha com a corda seja um presente desse mar desejado. Não é assim
que fazemos com a vida a todo instante? Até mesmo as coisas que saltam do
passado à nossa memória são um desejo de mar. Esse mesmo mar que quase sempre
não nos dá o que dele queremos.
Começa a puxar a corda. Seu olhar oscila entre o público e o
que trará a corda.
Vocês sabem. A vida é esta
sensação de fortuna que sempre está por vir. Não necessita ser o mar. Nós
transformamos nossos dias em uma metáfora oscilante, o pão, a estrada, a cama,
não sonhamos com muito mais coisas do que esse trio de sargaços. O alimento, a
metamorfose, o apetite sexual. Deve ser isto o que me trará essa corda.
Surge então o mistério ao final da corda. Um balde. Quando
ela o percebe puxa mais rápido e o traz às suas mãos.
O que será isto? Será o que
vejo? O destino não teria nada melhor guardado para mim? Um balde? Fecho e
reabro os olhos, incrédulos. Se nem meus olhos podem crer, o que devo dizer?
Será este o mistério de uma vida? Um balde? A sombra cínica de um deus que quer
acabar conosco? Ou o próprio diabo que não desprega da cruz mesmo depois do
renascimento do outro? Este balde será a minha cruz?
Agora com o balde nas mãos, ela tenta livrá-lo da corda.
O que a vida espera de mim
quando nos encontramos ao pé da revelação e ela não se mostra senão na forma de
um balde? É como ter diante de si o inferno e seguir acreditando que o mundo
pode mudar. Um balde? O que devo perceber que não estou vislumbrando? O
mistério do continente ou do conteúdo? O balde é o que me permite encontrar em
seu interior ou é a caixa que nos desafia a olhar o mundo fora dela?
Solta finalmente a corda do balde e o ergue acima da cabeça.
O que haverá dentro dele? Talvez
a loucura que reluto em aceitar. Um vestido novo? O sonho retorcido em que
volto a ser a mulher que nunca fui. Ah esse balde é a mesma praga de sempre: o
reconforto de uma ilusão. Mas… e se não for isto? Se eu estive me apressando em
julgar o mistério? O mistério voltará algum dia? Talvez descontente com a minha
ansiedade o mistério nunca mais me procure. Talvez o mundo esteja repleto de
gente assim, que perdeu as graças do mistério. Mas tudo isto por um balde?
Porque não decifrei o enigma de um balde? Deve ser isto. Um balde não deve
nunca ser um balde. Mesmo quando colocamos água nele para regar as plantas.
Mesmo quando o usamos para recolher as folhas secas varridas em um jardim. Ou
quando o enchemos de merda ou vômito. Quando simplesmente o transformamos em um
rito de passagem de um mundo vazio para um mundo cheio. Não importa qual seja o
seu conteúdo.
Silêncio para uma nova reflexão.
Mas até onde um simples balde
pode me valer um bilhete para sair do que sou a caminho de uma nova distração?
Ela se levanta do banco e coloca o balde em seu lugar.
Passeia pelo palco.
Quantas noites posso percorrer
em um descampado imaginário? Vagar pelas ruas sem saber ao certo o que a noite
terá ainda para me mostrar. Ouço o som da chuva, sobre os telhados, o plástico
das lixeiras e os baldes emborcados nos quintais. Mas não sinto a chuva em meu
corpo. Quantos de vocês já não terão passado por alguma experiência que o corpo
não percebe? Deve ser isto o que pressinto agora. Quando me afasto um pouco do
balde o vejo em seu púlpito, talvez tenha uma mensagem para mim. Para nós? Um
deus-balde que sonhe com a nossa aceitação de sua revelação. Não sei se me
ponho de joelhos diante dele ou se simplesmente o expulso daqui, de nosso palco
sagrado onde o mistério só tem valor se não quer impor um devaneio.
Fica em silêncio um pouco.
Talvez seja a hora de imaginar o
revés da existência. Como se fosse inevitável ouvir as duas versões médicas
sobre o câncer. Evidente que o balde não traz em si um câncer, mas pode ser ele
mesmo a cortina que fará desse teatro uma zona de enfermidade. Uma zona de
exceção. Um calvário. A experiência de ir ao teatro pode nos levar a essa
estação final da compreensão do mundo? Não estou bem certa se viajei tanto para
vir até aqui e dizer a todos que não devam mais crer em seus devaneios, que
devam se entregar aos dissabores, que a vida é uma porcaria sem fim. Ao mesmo
tempo, não me vejo como a rainha do vazio a ser preenchido, a deusa que pode
levar a todos a ocupar suas rezas com alimentos melhores. Mas que papel
represento agora diante de vocês? Não imagino que tenha vindo aqui para
encontrar esse balde vazio. Alguém poderia me ajudar nisto?
Silêncio no público.
Sim. É mais fácil condicionar a
vida ao silêncio. Quando nos encontramos diante de um perigo: nossa gatinha
Luzerna com sua pata presa no galho mais alto de uma árvore, a bombinha contra
a asma que acabou quando passamos a fronteira de país e ali não se pode comprar
sem receita médica, o cartão de crédito vencido na hora de pagar o plano de
saúde. Alguém sabe disto? A vida é a mesma para todos nós? Eu penso que sofro a
mesma agonia disfarçada em parcelas a vencer de todos vocês. Quando vim até
aqui não sabia que diante de mim encontraria esse trio fortuito: banco, balde e
corda. Viajo por todas partes para falar algo sobre teatro. Quando cheguei aqui
me disseram que eu tinha que vestir essa roupa, e logo me perguntei: que
personagem me espera quando as luzes se acenderem? Vocês sentiram as luzes se
acendendo como se quisessem dizer algo diferente? As luzes são uma estripulia
do acaso. Nunca vão nos dizer nada. Quantas vezes viemos para cá na esperança
de que alguém no palco nos ensine algo, um caminho, uma estrofe iluminada com a
qual possamos ir para casa, cantarolando, e ali nos revele uma verdade oculta.
Nada. Não há nada oculto. Nós somos um dilema irresoluto, uma pendência
cósmica, a dor de terra que falta sobre nossos pés. Talvez alguém que queira
nos dizer que um dia nos perdemos de nós e no outro dia, o dia seguinte, um
fantasma, uma mácula, uma sombra qualquer, nos mostre que é possível encontrar
outro alguém que sejamos nós mesmos. Talvez uma canção nos diga algo assim:
Pasa la luna por tu piel
Por tus
espejos pasa el sueño
Y lo que
ves es mi querer
Llenar de
abismos tu vivir
Pasa el
miedo por tu sombra
Los
fantasmas y el gemido
Y lo que
veo es tu querer
En mi
espanto más temido
Pasa la
noche rellena
Con sus
encantos más locos
Y los
misterios del mundo
Por tu
mirada se escriben
Ante tu
rostro enceguecen
Todas las
luces celestes
Y lo
que veo es abismo
A soportar
tu inmensidad
Quedan en
peligro los ojos
Que te
miran con temores
Y los
espantos del alma
Sin piedad
soplan sus cantos
Silêncio.
Nunca se sabe, porque uma canção
costuma enlaçar as mil margens do acaso. Quem poderia imaginar uma canção como
algo que coubesse dentro de um balde e que quando ali encostamos o ouvido o que
presenciamos é um mundo repleto dos espantos da alma? Eu queria tanto que
alguém me indagasse sobre as vertigens do mapa desse buraco sem fundo que vejo
agora no balde. Mas quem de vocês subiria aqui para indagar algo? Talvez tenha
que ser eu mesma a cobrir meu desejo com as inquietudes de um enigma. Pensem
comigo. Um balde onde ele está, por que razões estaria? Ele não fala, não se
move, depende de mim para tudo. Pode ser o receptáculo de toda agonia ou
fortuna. Que tenha chegado assim puxado por uma corda não pode significar algo
em vão. E que esteja eu aqui esta noite, quando em outras o palco é ocupado por
distintas atividades… Nunca pensamos na vida assim. Só nos vemos aos pedaços.
Vamos ao teatro, sexo grupal na floresta, noites de blues ao redor da fogueira…
Ah como é bom ter o acaso sempre ao cuidado de nossas idades! Eu cuido de mim
quando estou fora daqui. Vocês bem podem imaginar que adoro vir aqui, a cena,
essa personagem que vocês não acreditam que seja eu mesma. Mas vocês não são
exatamente o que pensam ser. Ou que se mostram como a pessoa mais nítida na
escola, na rua, na festa. Nós estamos aqui quase que na mesma intensidade do
ser, eu posso encarnar um personagem, cantar uma canção, mas vocês também abrem
uma espécie de abismo onde se mesclam nossas mais diversas formas de ser. E
esse balde, o que ele pode querer nos dizer?
Vira e revira o balde.
Não sei quantas vezes uma imagem
possa tirar de nós o proveito de uma metáfora. Eu me ponho sentada a teu lado,
ela se põe sobre mim, outro busca um copo ao alcance de sua mão. São três
cenas. Cada uma delas pode gerar um ambiente múltiplo. Quando tenho diante de
mim um objeto ele pode ser o ativador de uma cena, um abridor-de-garrafas, um coelho
empalhado, uma garrafa de cerveja. E para vocês, quando a vida desperta?
Ninguém responde.
Eu não toco nenhum instrumento.
Venho aqui e canto, improviso boa parte do que digo a vocês. Eu penso que
olhando as coisas se moverem elas acabem me movendo também. Eu sempre pensei
que o mundo é uma espécie de coordenada inesgotável de tudo o que vemos, somos,
imaginamos. Vir aqui e me encontrar com essa surpresa de um balde que que
silencia, que não quer dizer nada, e que sabe mais do que eu que caberá a mim
encontrar as suas imagens e palavras reveladoras, ah sim, isto sim, será o seu
favor feito aos deuses do acaso. Um balde. Vamos pensar nisto. O que cabe em
si, o que não se suporta, o que pode reter a volúpia de alguma identidade.
Vamos voltar ao nada o tempo todo. Podemos imaginar alguma situação risível. Ou
descobrir no público um sentimento nostálgico que o leve a chorar. Eu quero
cair de mim e não sei onde poderei encontrar alguém que me diga o que eu
poderia ter sido de outro modo. Não haverá um outro modo de ser. Nenhum outro
jeito de cair. Quando toco as perspectivas voláteis de um balde eu desconfio
que tanto podemos entrar ou sair de sua imaginação assumindo formas que de um
lado não sejam percebidas como fontes de outra imagem. Mas quantos de nós podem
aceitar a ideia desse balde sem fim, como uma espécie de mar que não para de
abençoar a si mesmo pelas ondas voluptuosas com que recria a paisagem praieira.
O balde que persiste. Quer ser entendido. Eu desconfio que não há motivo no
mundo para ele ser aceito. O que lhe cabe dentro ou fora. O lugar que move ou a
sensação de isolamento. Um assassino serial pode ser interessar por ele tanto
quanto um governo. A chuva corrói os restos de um telhado vago. Quem poderá nos
matar se não imaginamos alguém que nos queira matar? Tudo é isto. O espaço que
se ocupa de nossas indecisões. Talvez seja lindo estar aqui, esta noite entre
vocês, eu gosto do que faço, mas vocês querem mais, e eu adoro que vocês
queiram mais, a noite coberta de mistério, essa sombra que ainda não
conseguimos perceber a quem pertence, ah, um mistério, uma noite, esse corpo
sem nome, parece uma série sanguenta de um corpo sem nome, mas nós sabemos o
nome. Nós sabemos o que estamos fazendo aqui, a noite, esse telhado que não
identificamos, o balde, ah sim, aqui estamos, o bendito balde, o que ela nos
traz. Penso que devo mandá-lo de volta para o lugar onde, onde o que, onde
nada, onde diabos… balde ou corda?
Um silêncio. Ela brinca com o balde, suas inúmeras posições.
Eu creio que talvez seja
indolente imaginar um mundo em que a perspectiva do que está dentro e fora seja
a razão única de seguir vivendo. Uma variação infinita entre todas as formas
que se apresentam como um modo distinto de amar ou desafiar a nova forma de
qualquer um de nós. Ninguém quer ser assim. Aquela festa em que nos encontramos
com todos e ninguém nos reflete mais nada. Não importa isto. Aquilo com que uma
vez mais pensamos que fosse o mundo se refazendo, isto não é mais possível. A
corte chegou ao fim. A noite não chega ao fim. O fim tem um desejo que oculta
sobre todas as noites. Um jeito de amar e saltar o mais longe possível de todos
os saltos.
Deixa o balde sobre o banco e caminha pelo palco
refletindo...
O que eu poderia fazer com esse
balde? Já sei. Poderia enchê-lo de nuvens. Ah mas isso não teria
fim. Escuto o que deveria ser impensável, a batida de meu coração vinda do
interior do balde. Com que propósito? Lembrar-me que ele é parte de mim?
Que afinal ele inexiste, como a ideia do abstrato, considerando que o mundo em
definitivo é algo concreto? O balde entrará em mim e deixará tudo fora de
lugar. A loucura será apenas medo de que ele me roube a identidade. Se ele
desaparecer com meu coração, quem eu ainda poderei ser? O desespero do cérebro
que teme a confusão da mente. A caixa preta com sua revelação
inaudível. Quer saber uma coisa, balde? Vou contar algo que eu jamais
disse a alguém. Não te livrarás de mim tão fácil. Não serei o teu brinquedo. A
pedra no sapato. O pássaro cego.
Eu até posso imaginar as histórias
que serão contadas a meu respeito:
Lá vem a
doida do balde. Dizem que ela rouba crianças na rua e as enfia dentro do balde.
À noite ela faz o balde crescer e dorme nele. A doida água no rio para se
banhar. Dizem que um dia o balde cresceu e ela foi brincar de barquinho, o
balde era o mundo dela e a doida acabou desaparecendo com balde e tudo. Mas há
outra versão, alguém espalhou pelas ruas que ela brigou com o balde e o largou
em um beco. Depois se arrependeu e foi buscar o balde de volta, porém ele já não
era o mesmo. Havia algo diferente em seu interior. Ela quis plantar uma muda de
canabis que pudesse ser a fonte de seus delírios, porém o balde imaginava agora
as possibilidades de um mundo sem ela.
Mas nada disso será verdade. Eu jamais me
perguntaria como seria a minha vida dentro de um
balde? Tampouco eu te enfiaria em minha cabeça, como se quisesse fugir do
mundo.
Pega o balde e o joga para o alto, logo o apanhando de
volta.
E se este for o único balde do
mundo? Ou talvez o último, que por alguma razão tenha vindo parar em minhas
mãos… meus sonhos se ramificam pelas noites sem fim, como se eu vivesse ali uma
outra vida, como se as noites pertencessem a uma realidade paralela. Um mundo
de algum modo perto e distante, onde, curiosamente, não encontro balde algum.
Nem mesmo o banco, a corda, vocês. Em meus sonhos eu estou em outro cenário.
Talvez o lugar mais próximo de uma realidade desejada. Sim, por isto que são
chamamos de sonhos. Os truques de uma cena impossível. Porém o teatro também é
assim. O que realizamos aqui é o improvável. Mas então a imaginação é
irrealizável? Eu posso usar toda a minha imaginação para ser real? Vocês estão
me vendo como uma forma real ou não passo de um vulto intrometido da imaginação
de vocês. Em algum momento nós teremos que tomar esta decisão: o que vemos é o
que somos ou o que desejamos ser?
Olha fixamente no interior do balde.
A miragem será o melhor oráculo.
Indago à natureza profunda de um balde o que ele pode me dizer acerca de mim
mesma. Não é isto o que fazemos? Quando lemos as folhas de chá do zodíaco, ou
nos deliciamos com nosso próprio corpo, ou quando o analista nos indaga o que
nos levou até ele… talvez estejamos irremediavelmente perdidos. E preenchemos o
vazio de nossas vidas com a voz roufenha de um oráculo de ocasião. A voz que
agora escuto vir do interior desse maldito balde. O desespero de não me
encontrar em parte alguma. Uma sentença ou maldição. Eu me procuro nas
assertivas do I Ching. Nada de mim e, no entanto, algo nessa ilusão me
reconforta. Chego a crer que finalmente posso contar com meu eu mais
verdadeiro. Bom, mas quantos serão mesmos? Este balde precisaria conter o
infinito para que apenas uma parte de mim pudesse ser visível. Não creio.
Melhor deixar tudo isto de fora. O balde talvez seja o corpo da noite, ou um
balde-barco sempre a nos guiar em silêncio profundo.
Joga o balde o mais longe possível. Respira profundamente.
Os olhos fechados. Começa a entoar uma canção.
mientras la noche silabea sus trucos
entre el desierto y el mar tenebroso
miro en tu cuerpo ese barco desnudo
siempre a guiarme en silencio profundo
vuelve al mar, vuelve el mar
al desierto que fuimos un día
y allá en sus besos salados
vuelve el sueño a escribir su canción
vuelve al mar, vuelve el mar
en sus
manos nos fuimos un día
y allá en
sus dunas calientes
vuelve el
mar a escribir su pasión
Ela então se curva sobre si mesma. Não há cortina. O público
imagina que chegou ao fim. Ela ergue novamente o corpo.
Agora não sei se devo sair ou
não. As horas sempre murcham anunciando o fim de algo, porém a realidade não
tem fim ou propósito. Ela está sempre agarrada em nossa pele. Eu posso me
desfazer do balde, porém alguns fantasmas são os primeiros a saltar do barco à
deriva. De longe olhamos o balde do qual imaginamos ter nos livrado. Ele ainda
está lá. Talvez seja uma poltrona na sala, o abraço enternecido de um amigo, o
álcool e suas curvas fechadas. No fundo sabemos que as estações são mais do que
a pequenez de seus arquétipos, que o símbolo brinca conosco nos fazendo crer
que não passa de um significado espantoso que nos fascina e nos leva a seu
encontro. O círculo fonético das palavras que trapaceiam com a nossa
necessidade de acreditar em algo. As miniaturas dos elementos sagrados que
recolhemos em nossas mãos. A espiga e o espinho, a multiplicidade de truques
que nos fazem confundir a angústia e o êxtase. O balde poderia ser uma descida
aos infernos ou a simples analogia de um amor desfeito. Quando olhamos para as
cores pela primeira vez na vida não sabemos seus nomes. Tampouco podemos lhes
dar nome. Aos poucos aprendemos que o azul é azul é a mais profunda das cores e
que seus aposentos estão repletos de suavidade e divagação, que o azul só é
tempestuoso quando escurece. Não trocamos ideias com os símbolos, apenas nos
adaptamos às suas aplicações em nossa vida. Aquele mar que a princípio pensamos
que a vestimenta do acaso, no fundo é um domo espelhado que nos ilude com suas
luzes numerosas. O mar é a própria raiz do obscuro. Reproduz em nós o mundo
informe que encontramos no balde. Experimentem chegar em casa e olhar para o
fundo de um balde vazio. Verão ali a própria decomposição da existência humana.
Apontem uma luz para o interior do balde e sua irradiação dará uma nova
ordenação ao caos. Um silêncio manifesto que aos poucos ilude a nossa retina e
as sombras vão surgindo para um baile de oferendas e influências. Vão logo, vão
para casa. Esta rua onde estamos deve permanecer vazia. Não há mais balde.
Sacrifiquei o símbolo para ter um pouco de paz. Este é o meu sétimo dia. Estou
pronta para adivinhar um novo barco no horizonte. Vão para casa. O balde não
dará mais um passo até que todos tenham saído daqui.
FIM
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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