ARTES MÁGICAS – EDIÇÃO PRÍNCIPE
Presumo que um dia descerás à terra para um café.
Diversas línguas designaram a extinção de tuas emanações.
A vida parece repetir-se na apólice de cada letra.
Já não distinguimos os nossos caracteres, teus ou dele.
Não contamos a ninguém quem fomos ou dominamos.
Nossos corpos são inseparáveis do restante dos mortos.
Um dia me deste um fogo emergido com luz insuficiente.
Ao buscar o fundo falso dos arquétipos reli tuas formas.
Sempre te deixaste confundir com muitos outros deuses,
como uma harmonia falseada vagando por nossas crenças.
Rabisco na pedra teu nome, deslocando letras ao acaso.
És sempre o mesmo, levadiço, proscrito, salvador, mártir.
Sempre que erguemos as mãos ao céu nos desconhecemos.
Somos uma réplica do mundo que um dia esquecemos.
Qual deus não emudeceria diante da própria criação?
AO LER UMA CARTA DE QUEM ME ESQUECEU
Os
sons das casas dispostas pela rua que desce por tuas costas.
Os
sons como relâmpagos ou truques da chuva em metais.
As
guelras de uma nova espécie que ainda estamos por criar.
Os
deuses que foram substituídos por máquinas de drenagem.
Não
importa o quanto custe descrer, os pecados permanecem.
Como
teias camuflando a rainha enquanto expele seus ovos.
Como
vultos bordando cortinas a impedir a dieta dos olhos.
Também
os sons se alimentam do que nunca lhes dissemos.
Cobram
uma tempestade pela decisão de mantê-los longe.
E
um longo adeus se extrai de sonhos que há muito se foram.
As
noites destroncadas permutam seus fantasmas elétricos.
Em
nome de uns, muitas questões se resolvem. Outras relutam.
Mesmo
assim, nada mais insiste em sua permanência voraz.
Os
sons de tuas costas são casas de vento, morada de nuvens.
GRAÇAS A ELE RECOMECEI A ESCREVER
Eugene
Ionesco não gostava de ler uma peça de teatro.
O
real é pormenor semelhante a um roteiro inconcluso.
Representação
de si mesma que vive um horror incomum:
não
saber a quem escolher, vítimas ou feitores, dia ou noite,
ou
como conter mundo visível ou desvario da imaginação.
Ionesco
sabia que o dilema oscila entre o falso e o verdadeiro.
Por
isto resistia ao vício estético de uma afirmação do tangível.
Vida
repleta de significados, cimos e sopés se confundem,
tudo
o que tocamos chafurda em seu contrário, como a carência
de
um sonho refletido em outro. O momento de ler um poema,
ou
de ir ao teatro. Por em dúvida a evidência. Representá-la.
Acentuar
ou disfarçar seus vícios. Como livrar-se da expectativa.
Um
de nós desconfia do ator que não interpreta a si mesmo.
Como
dar ciência do real sem evocar o improviso e a ilusão?
A
dignidade estética é uma profusão de evidências líricas.
Caminhamos
pelas ruas [juntos]. Jamais aderimos à realidade.
POR AQUI PASSOU EVA FAY
Os
teus olhos me descamavam todos os símbolos da casa.
Os
vestidos empoeirados nutriam uma memória de escolhas ignoradas.
As
dobras esvoaçantes sussurrando em teu corpo suspenso,
em
meio à sala habituando-se a sombras incompletas.
As
mãos se davam, recortadas, ao redor de uma mesa invisível.
Os
pés indecisos, tropeçando em vultos trêmulos que espreitam a vigília ansiosa ao
buscar correspondência em vários mundos.
Pequenos
diabos anotam agora os recados mais afetivos.
As
ansiedades fatigadas custam a associar desejo e cena.
A
tua respiração me chega como um remo e possui tantas origens quantas eu possa
laçar com meus ritos aprendizes.
Eu
me desapego da consequência de qualquer ato.
Retiro-me
de mim até que me ensines a não regressar.
Consinto
que me espalhes por todos os teus casulos e que me acumules sem vícios
regressivos.
Vasculho
meus entalhes e encaixes à procura de uns fetos relutantes,
cópias
que sejam de efígies ou planos, o trânsito do indeterminado,
fagulhas
fora de nível, reuniões de sacrifícios descontínuos,
a
essência ambivalente que já não corresponde a perda ou fortuna.
Eu
te evoco para que me sopres no ventre o inverso de minhas tormentas.
A
casa se despe de seus truques milenares.
O
mobiliário retoma antigos verbos suprimidos e a anatomia informal de seus
ninhos.
As
tuas mãos ainda me assombram, porém sei que me queres bem.
Eu
voltarei aqui e amanhã, até que a tua mesa se faça visível.
SOMBRAS RELIDAS EM FRANCESCA WOODMAN
Provenho
do bosque de lupas de teus seios,
do
enxame de nuvens de uma lenda ancorada
um
pouco acima de teus requebros sinceros.
Provenho
de uma alegoria de pernas que se entreabrem
ludibriando
a própria ilusão de suas prerrogativas.
O
horizonte se materializa em teu olhar e eu me torno
o
anfíbio rematado por uma fábula desmedida.
O
monstro telepata que germina uma balbúrdia de anseios
e
aterroriza as sombras envaidecidas por sua indecisão.
Renasço
de teu beijo lapidado na pedra,
no
milagre indizível da esponja de teus lábios,
no
oculto aconchego de tua pele,
cada
vez que me raptas um sonho de privilégios sem fim.
Tu
me sucedes três vezes antes que eu seja notado.
Provenho
de labirintos que perseguem os segredos
que
migraram para a relva limítrofe de teu ventre.
reconstituo
o truque de teu equilíbrio no íntimo do búzio
que
conspira um escândalo agrícola em nosso abraço.
Sempre
que percorro a geometria de tuas coxas abrevio
as
proezas do instante e o engenho onírico das oferendas.
Sempre
que arrancas de teu corpo a imagem do mundo
dali
brotam cascalhos derivados de todos os delitos.
Eu
te asseguro que não há queda sem a confusa crença
na
sementeira do renascimento, cláusula de incertezas,
proventos
passionais e o utilíssimo contágio do acaso.
Beijo a tua árvore, de onde provenho, salvo engano.
ESPECTROS ANUNCIADOS POR XIA XIAOWAN
Escuto o batimento cardíaco dos livros
que ficaram perdidos pelas fronteiras inacabadas de tudo quanto em nós dura o
tempo impreciso de não caber em parte alguma. Quatro são as vozes que ouço a
desatar o silêncio anunciado pelo mito. Uma água suja atravessa a noite como se
houvesse um plano de sacrifícios. As mercadorias do absurdo são estocadas para
edificar o caos. Jamais foi possível tornar adulta a fisiologia dos sonhos.
Empunho a sombra sacerdotal dessas estátuas que mascam a noite. Uma lua foge
pela chaminé transbordando a lama dos deuses, enquanto me desfaço em uma
quantidade sem fim de coisas estranhas. Sorvo a saliva dos desastres como uma
rua repleta de humildes acidentes. Embriago a ventura de teus apetites, até que
desconheças a distância de um abismo a outro. As pronúncias se perdem com os
vultos. Os teus beijos são incomparáveis quando regressam da escuridão. Puseste
meu nome ao alcance de uma metafísica proibida. Agora as nossas cicatrizes são
ternas e nos habitamos como salteadores em busca de um movimento qualquer, onde
as palavras mendigam um despropósito sagrado, viajando sempre a um nível acima
de todas as tormentas. Certas palavras balbuciadas durante o sono podem conter
uma perenidade demasiado curta, porém decidida a ensinar aos espelhos a
encontrar as trilhas inquietas que não permitem retorno.
ENQUANTO LIA UMA FOTOGRAFIA DE OLIA PISHCHANSKA
Os corpos iam saindo do livro como se
invocados por antiga crença. Impossível distinguir os mundos de onde surgiam
vultos embaçados. Ao mudar de forma as letras persuadiam a árvore a ter mil
cores e cheiros. A árvore erguida no centro da página de onde emanavam aquelas
figuras, com seus nomes delineados na penumbra, inconcebíveis e dissolvidos no
intuito de locomoção do tato, decompondo as proporções do homem e a
insuficiência das leis. Os corpos encurtando as palavras até a mais completa
exaustão dos sentidos, um enigma atado à asa de cada voo. Os corpos expunham,
tatuada na pele, uma rota de viagens e conjuros que ninguém poderia decifrar
até que o livro encerrasse seus portais. O cenário fervia como se houvesse
adotado a febre para atiçar a visão. Durante sete crepúsculos as páginas se
multiplicavam dando ao livro uma aparência de cornucópia e seus corpos
encarnavam diagramas fálicos, sinuosos, esvoaçados, com seus impulsos
interrogantes a revelar direções contrárias a tudo quanto fosse verossímil.
DE ONDE ELA ME VÊ UM DIA FOI TRÓIA
Em falsos humores e horrores caseiros o hábito se disfarça.
É como dizer a um dos sentidos: o que ali está nunca esteve.
As perdas são um sortilégio de janelas que não sabem abrir.
Desconhecem a imagem que eu vejo lacrada em seu íntimo.
As noites não sabem esquecer tanto quanto sabem os dias.
Resumem mistérios como um anátema que não desperta.
Tão impossível sair das noites quanto residir em seu oposto.
Busco uma almofada sob o sol onde Helena abre sua casa.
Um idioma silencioso me abraça com suas vozes arredias.
Será que ela mora ali, em meio às pálpebras da mobília
e os diâmetros adentrados no infinito pela dívida do pasto?
Jamais a reconheci sob a lua leitosa de seu contorcionismo.
Quando a descubro, improvisa uma saga de tempestades
em meu corpo comovido pela urgência de seus excessos.
AS MÁSCARAS ESTROPIADAS COM SEUS VÉUS CONFESSOS E ROSTOS
MORTAIS
Eu
trato de entrever os truques mais obesos,
súmulas
fulgurantes de tudo quanto nos foi impossível ser.
Ocultamos
no palco os cadáveres que tecem a desdita,
e
desacatam a própria sorte. E ocultos mascam suas formas.
Pequenas
horas desterradas crepitam refazendo o roteiro.
Vozes
consumidas pelo silêncio e manequins fingindo sexo.
Pentagramas
trôpegos, bússolas cegas, faroletes anêmicos.
Donatien
tricotava os controversos argumentos da corte,
os
livros secretos do teatro-hospício onde encarnava a demência
cruel
dos amantes, a vileza indisfarçável dos crimes fraternos.
Quantas
vezes um represente a intolerância do outro,
mais
descortinam a sujeira descontínua de seus privilégios:
despudor
e caprichos, sombras sacrílegas e orações abjetas,
cadafalsos
convertidos em ultrajante comédia tristíssima.
PARTITURA DA ILUSÃO
Sempre que penso em escrever uma fábula
adormeço sobre teu retrato. Não sei a quem convém que a arte não saiba dizer
adeus. Quando te beijo a memória cobra de mim um novo estímulo para que ela
volte a ser iminente. A ideia de um livro absoluto defendida por Mallarmé
tornou-se frívola. Não há conceito mais frustrante do que o da totalidade.
Quando me despeço de ti no aeroporto, na galeria do metrô ou no Messenger, sei que ali não nos resumimos
propriamente a uma despedida. A benevolência noturna que me leva a galerias de
arte, cinemas, concertos, lançamentos de livros, feiras de bricabraque,
antecipa que eu não me divertiria tanto quanto tomássemos nosso aperitivo
resumindo a opereta bufa de cada ingresso. Sei que prometi cuidar de teus pés
esta noite. Porém o tempo por vezes consegue ser tão veloz que já estamos
sobrevoando a extensão monossilábica de nossos afagos. Em qualquer língua que
me digas teu nome, saberei que a sílaba essencial a trago imersa na ortografia
de meu desejo. Queres ser a louca que ambiciona uma sílaba única em minha
obsessão por tocar o mundo? Queres ser a folha do relâmpago que melhor descreve
a extensão de meu ser? Queres vir descobrir comigo que o melhor de tudo é que o
mundo jamais pensa em nós? Lembra-te que quando estamos nos despedindo de
alguém não sabemos de quem exatamente. Queres ser a minha mulher esta noite?
Deixa o teu retrato fora disto. Jamais sabemos quem realmente somos até que
seja tarde demais.
PRIMEIRA IMPRESSÃO DEIXADA À PORTA DE LEILA FERRAZ
Eu deixei passar um edifício inteiro situado no acaso.
Parecia uma boa mercadoria anônima e avulsa,
dessas que não insistem e tratam a dúvida com desdém.
Agora que reeditamos o catálogo apócrifo do horizonte
vejo o quanto que aquele edifício ficaria bem aqui.
A realidade que leiloamos saiu de nós bem satisfeita,
sem hesitar, reconhecida por seu novo prestidigitador.
Monet nos braços de outro amante do impressionismo.
Não importam as manchas do tempo, o semblante
raspado pela ação da luz, o sótão desaparecido, nada.
Eu recrio todas as formas com que me enches de mim.
Tudo em nós se reconhece nas vértebras do susto.
O que somos avista ao longe o que um dia seremos,
e este dia é ontem. Nos exploramos como quem renova
os esboços que assumem formas as mais inesperadas.
Somos os esforços conjuntos da beleza e da fealdade.
As formas essenciais não saberiam como deixar de ser
sem que antes se tornassem íntimas de nossa vertigem.
ESCADAS ANDARILHAS
O
tempo está exposto a um traço.
Queda
e omissão se completam mais do que desejam.
Podem
ser trevas guardadas no gelo
ou
uma maldição reflorestada por acaso.
O
tempo é um fóssil que jamais revelará seu nome.
Patinamos
a lavoura do mistério.
Curvamo-nos
ante a vaidade da timidez.
Recorremos
aos mais absurdos álibis.
Os
cegos talvez percebam melhor o quanto somos sonsos.
A
história recobre a pele humana como um trapo.
Alguém
duvida de que todos os perfis sejam ambíguos?
A
memória abusa de presunções e suas vítimas agradecem o atenuante de crimes
ainda mais indecisos.
Certa
vez fui pastor de um rebanho de escadas andarilhas.
Ali
desconfiei da história à luz dos escalpes.
O
mal que aflijo ao outro é o reflexo fiel do que sou.
Apenas
uma dúvida foi farejada por meu traço:
até
que ponto o reflexo acata o reino da fidelidade?
AMBIÇÕES DE UM BEIJO ENQUANTO LEIO MARIA DE NAGLOWSKA
As
noites batem à porta querendo sair.
Sempre
temos que adivinhar a razão do esforço que fazemos para permanecer dentro de
algo.
As
vibrações do fecundo recomendam não fechar as portas ao dormir.
Porém
só defendemos o amor pensando em sua fonte de permanência.
Haverá
mesmo um amor incondicional ou todo ele somente se revela ao nos esperar lá
fora?
Quem
recusaria o louco prazer de ir e vir?
Nenhuma
tradição explica como ressuscitar.
O
mundo acaba se perdendo em fórmulas que não apaziguam a inteligência ou o
instinto.
Toda
escrita é um fosso de navalhas dispostas a talhar a consciência de quem lhe
visite.
As
noites soletram uma filosofia sangrada por suas ansiedades.
Nenhum
amor corresponde a outro.
Nenhuma
casa é portal para a unidade perdida ou desencontrada.
O
verbo é múltiplo e condicional.
O
tempo não deseja ficar.
O
espaço quer livrar-se de si.
Os
versos que me seguem não sabem senão alertar: beijo o amor para despi-lo de si
mesmo, sua incompleta maldição.
Em
tua boca eu construo o meu mundo.
As
noites desandam cientes de que não são a réplica de nada.
Vem
para meus braços antes que o verbo se repita.
À NOITE REINAM OS METEOROS DE RADOVAN IVSIC
A
prudência me disse que não me afastasse nunca do abismo.
Ela
pensava por mim, eu a transformava em um redemoinho,
nós
dois éramos o peixe, a fábula, o seio que não parava de rir.
Quantas
vezes o musgo procria suas jaulas de permanência.
Quantas
lâmpadas são apenas um deserto que não se renova.
As
verdadeiras estrelas se despedem do céu a todo instante.
Olhos
vermelhos são recobertos por escamas que não sabem
como
encontrar um novo músculo por carpir ou descarnar.
A
prudência evitar pensar. Apenas o acaso ergue suas asas.
Porém
o abismo masca com gosto a chave de todos os céus.
Não
é uma imagem. Não é um dilema. Não adianta pensar.
Estamos
expostos à superfície de tudo o que negamos ser.
O
desconhecido apenas volta a cobrar os extras de cada recusa.
Como
um deserto enjaulado, um cadáver ilegível, uma rajada
de
olhos que, mal começam a ver, percebem o que somos.
A IMAGEM RESSUSCITADA DE LUCA SIGNORELLI
O leito do rio recolhe as pedras de teus passos,
bem à frente, sob a luz expelida pelas nuvens.
Desde a hora de tua morte que me pus a entalhar
duas questões: o que foste em minha vida
e como superar a infestação de tua ausência.
A caminho de casa quase sempre nos iludimos,
como um condenado crente em sua absolvição.
Na iluminura em que gravamos nossos erros
nos encontramos em suas linhas mais controversas.
Ao devorar a imundície o rio luta contra si mesmo.
A impureza é uma forma humana, como Deus
e demais ardis com os quais a arte soube acasalar.
Não são a luz ou a perspectiva que impedem
a sombra de libertar-se de seu objeto, ou mesmo
a fricção das pedras no estuário de nossas lágrimas.
Desde a hora de tua morte que me indago
se um dia me desfaço das nossas brandas ilusões.
O DIA EM QUE CONHECI AUSTIN OSMAN SPARE
Estrelas acordam pendidas do teto como morcegos albinos.
Árvores chorando o látex de um culto há muito esquecido.
Logo a farinha faz bailar seus grãos no coração do vento.
A casa refazendo sua anatomia a cada reverência do olhar.
Dali só poderíamos sair para o rio que se afastava da janela.
Vultos imprecisos se revezam como uma magia solidária.
Visão coletiva dos mútuos orgasmos que o rito enrama.
Éramos bem vindos como a representação do Paraíso.
Móveis arejam o espaço em uma imponente procissão.
Suores se divertem com seus trinta lenços prometidos.
Paredes liquefeitas em um oratório despido pelos sexos.
Árvores trocam de frutos sem vir a confundir a colheita.
Flores substituem as estrelas mascadas pelos morcegos.
Sementes confiantes no desejo coletivo são elegantes
no movimento que projetam em nossas mãos excitadas.
A casa dedica uma palavra sagrada a cada um de nós.
A fertilidade do espírito se enraíza como um relâmpago.
Deus algum me fez um homem melhor do que a tua mão.
Fomos surpreendidos pelos reflexos de um no outro.
Exuberância com que mudamos de forma a cada toque.
Íntima semelhança refrescada em imagens análogas.
Os corpos facilitam a descendência do abismo e gozam
as sucessivas qualidades do que um dia sequer sonhamos.
QUANTOS ERAM MESMO DALTON TRUMBO?
Os
verbos se voltam contra suas sombras proferidas,
como
uma ascese gloriosa que revela o que não somos.
Talvez
eu seja uma exceção de mim mesmo, cuja tecla mais preciosa
é
a que me expande e acaba por encontrar uma verdade insuspeita.
Todos
os gestos são precários frente à imagem que revelam.
A
magia está no efeito alcançado e não em sua idealização.
Porém
não há como convencer o mundo de que seus problemas fundamentais se localizam
na medula de uma aceitação do que lhe corrompe.
Somos
o que nos permitimos ser.
Não
importa a fase animal ou intelectual em que nos declaramos.
Vítimas
ou algozes, o flagrante rende homenagens apenas ao modo como nos dissociamos
uns dos outros.
Estou
aqui para filmar o teu fantasma.
Indago
quantas vezes tua morte foi agendada pelo Estado.
Solfejamos
um impasse: o homem não sabe como livrar-se da ilusão da arte.
JULIANA HOFFMANN
PINTANDO EM SEU ATELIER
Os céus descrevem o roteiro de
secretas viagens.
Descascam as árvores do tempo,
erguendo biombos de um mundo fascinante repleto de enigmas.
Um palimpsesto de almas ali há muito
residente e que agora encontra os poros dilacerantes por onde voltar a
atormentar a existência.
As máscaras de orelhas graúdas como
folhas ancestrais.
As orelhas do vento. O solar das
agonias meditadas.
Eu a vi pintar um revoar de sombras
dentro da floresta.
E então me sussurrava: Eu busco a escuridão e o respiro das árvores.
Floresta de caules e tecidos de seu
corpo invisível.
Os céus rasgam as paisagens
antevistas.
Desentranham uma ponte entre o
abismo e os lábios dos pincéis.
Quisera revelar o infinito de seus
assombros.
Quando a vi pintar a nudez de suas
linhas assumia a forma de ninhos irrequietos.
A qualquer momento uma era distinta
surgirá.
Eu a via cruzando todas as trilhas
da duração da vida.
Da miscigenação dos elementos – suas
cores e texturas extenuadas – uma pétala de eternidade se desprende.
Ela se volta e ri e me antecipa os
escritos sobre as origens de seu desassossego.
Os céus retocam os desequilíbrios da
paisagem.
Um dia sairemos todos dali, a vida
farta do ouro que deixamos escapar.
TOMANDO AULAS COM PIERRE NICOLAS HUILLIOT
Vejo como as noites se estreitam na fiação de tuas nádegas.
Logo dou pela conta de teus fantasmas mudando de calçada.
Eles me excitam como páginas de um moinho não escritas.
Marco os períodos de teu corpo em toda farinha extraviada.
Somos a riqueza de nossa ebriedade e a altura das árvores.
Quando a música chega nossos barcos já estão em alto mar.
Quero te visitar antes que empalideças como uma ave matinal.
As tuas luvas animadas como se guardassem todos os sinais.
Sei que nos comunicamos graças à imersão de teus anseios,
as dobras do suor, breviário de cicatrizes, as páginas gastas.
Como te manifestas em mim ao ouvir a morte tão inquieta?
Jamais imaginei que teu maior pecado fosse embora comigo.
Fugi de tuas escalas como a atrevida partitura de uma mulher
que deseja o mundo acelerando suas torrentes dentro de si.
Quero te fazer meu homem, sem que te sintas mal por isto.
TRÁFICO DE NOVAS CORRESPONDÊNCIAS
Um
cascalho indaga ao limo: quando se retorce o verbo?
Uma
parelha de espelhos ensina aos filhos cautela para refletir o rancor e a
náusea.
A
teus pés, Darwin, um lagarto regurgita hóstias.
Um
ventríloquo fala comigo em mandarim, diz ser minha filha
e
me confessa coisas que sua própria mãe desconhecia.
Certa
senhora me disse que às vezes sentia uma queimação de letras na mão esquerda.
Estariam
ali os vasos comunicantes da poesia?
No
dia seguinte à abertura de uma coletiva de escultoras,
as
obras despertaram todas emendadas, exceto uma.
Há
muitos nomes a serem recordados, tanto que por vezes
confundimos
a memória com um prodígio do eterno retorno.
Parte
de nós insiste em revelar uma ilusão do que virá,
enquanto
a outra metade rói os ossos do que fora:
cerimônias
de pedras dispostas como relógios
que
se multiplicam no olho de um lagarto tatuado
no
dorso de uma mulher em cujo sonho surgimos
como
aves bicando centelhas de uma idade perdida.
O
homem caminha por todas as páginas de seus atos.
Também
a memória se petrifica, assim como o desejo
mendiga
degraus invisíveis em quaisquer escadas da virtude.
LEONOR FINI VEIO ME VER AGORA HÁ POUCO
Os teus lábios ondulam como uma fogueira acalmando a noite.
Os móveis parecem sair do lugar procurando a lua pela casa.
Enquanto o vento sussurrar pela madeira seu punhal ilegível,
os deuses se despem mascando dor e mistério e teu rosto
se torna inalcançável, por mais que o tenha em minhas mãos.
Nós dois jamais saberemos como plantar algo, lar ou túmulo,
sonho ou dissimulação, nada que nos faça sequer naufragar
em uma mesma artéria. Não importa o livro que evoque
a inominável verdade de nossos desejos. Não há outro modo
de alterar o futuro. Não há colheita ou conquista, trigo
ou pólvora, que não seja escrita pelo mais dedicado vilão.
Nenhum de nós está pronto para deixar de ser o que somos.
OS DIAS EM QUE ESTIVE COM HILMA AF KLINT
Seu
olhar era uma árvore a me perseguir por onde fosse,
por
quaisquer caminhos que o meu desejo rascunhasse.
Uma
pérola equilibrando-se na pedra, fagulhas de íris
em
um céu de tintas ágeis, cromos de um imaginário em outro.
Seu
olhar melodioso supera o equilíbrio tenso entre o bem e o mal,
e
me despe de mim, de toda a roupagem do que fui e serei.
Eu
vi quantas vezes ela me viu antes mesmo de estar ali.
Videira
anunciada quando a lava vulcânica ainda se esmera
por
ampliar a pequena ilha que a harmoniza em pleno caos.
Eu
li as suas horas compassadas e o incenso de seu abismo.
Gotas
anímicas de um mundo ressurgindo a cada instante.
Ela
anteviu quantas vezes seu nome se desfaria no mesmo truque apinhado de
escândalos da comoção mais ardente.
Ela que me cobria com seu olhar, com seu manto de enigmas,
com sua pauta sigilosa de incontáveis modos de ser.
FAZIA FRIO NAQUELA TARDE EM KENTUCKY
A porta se abriu e ele entrou com um
miúdo e velho macaco. O primeiro susto veio de uma senhora que escolhia antigas
colheres de chá para sua coleção de caprichos. O dono da loja naquele justo
momento nos dizia que jamais havia perdido um cliente. Eu havia separado uma
peça de gesso, um velho homem do mar desfrutando a música que fazia soar
através de uma manivela enquanto, sobre a máquina sonora, agachado sorria seu
macaco. O segundo susto eu dividi com o homem que acabara de entrar. Ambos o
reconhecemos na estatueta com seu mecanismo quebrado. A senhora das colheres as
deixou espalharem-se ruidosas pelo chão. Lá fora os albatrozes do rio Kentucky
decifraram toda a cena. Eu também jamais havia perdido um poema. O acaso não reconhece
a verdade que sugere. O futuro desconhece quando nasceu. Certas imagens possuem
um apetite pelo inevitável. Todos ali nos entreolhamos, como quem transita por
entre mil abstrações. A razão humana despreza seus anjos, a latitude do que não
explica e os erros que iluminam como tochas a estrada de volta ao passado.
DENTRO DE UMA PAISAGEM AZUL DE ANTONIO BANDEIRA
Quando
me sorris uma cidade brota de teu semblante.
O
olhar chafurdando nos antecedentes de cada rochedo,
como
uma noite oculta no vislumbre de uma coruja
no
galho mais alto da árvore esquecida da humanidade.
Um
discreto farol no jardim desconhece as coordenadas
dos
corpos enterrados da maçã e da serpente sem plumas.
Quando
ouvimos falar no homem pela primeira vez
não
sabíamos a qual miséria aludir: o caos ou a bonança.
Desde
então o mundo se encharcou de tintas confusas,
repleto
de ângulos desafinados e desbulhados excessos.
Rabisco
as tuas formas entrevistas em cenários tristes.
Aquarela
de teus ritos, alcova de nanquins incertos
e
o pastel tão íntimo de teus pesadelos a esmo na praia.
Nós
cavamos o sonho como uma filosofia extraditada.
Quanto
mais quero de ti mais remetes ossos ao inferno.
Reluto
em contar quantas escadas nos separam e rio.
Afogo-me
no desastre sem salvação de tua liberdade.
A
liturgia dos ornamentos que mendigavam as noites
enquanto
meus olhos brincam com teus vultos na pedra
e
nossos óculos aprendem a desenhar na névoa gasta.
Eu
me desfiz do consolo de tua contemplação unicamente
para
reinventar os mares e sertões de um gozo mútuo.
Não
tens ideia de quantos pecados teus me reconhecem.
Desde
os primeiros carvões ensaio o sol em teu ventre.
Rápido
soubemos que a abstração é um jardim de túneis.
E
nos beijávamos identificando a paisagem no escuro.
Quando
nos multipliquei em uma vila desolada e sombria
teus
dentes brandos foram os primeiros casebres habitáveis.
Nem
Mondrian ou Pollock ou Kline estavam ali afeitos
ao
fetiche de tua arquitetura de sombras carnudas
enquanto
eu mastigava em tua pele um céu de nuvens suadas.
Eu
não sei que nome dar a cada passagem de meus lábios
pela
abstração profunda de teu corpo, com segredos nus
e
a paleta de mistérios que amontoa derivas e naufrágios.
Vamos
sair agora do bosque cinza para uma cidade noturna.
As
dores mudam de forma e muitas não se reconhecem em si.
Toco
a estação solitária das sombras, batizo cada desejo teu.
Ninguém
saberá como te refazes no ninho de cada olhar.
Brincamos
com os rostos, as cores, as sombras, a luz matinal.
Não
importa o pecado da ilusão, somos seu vaso com flores,
a
irreconhecível composição dos dias que nos fizeram felizes.
ESTA NOITE SONHAREI COM EUNICE ODIO
Eu
sempre fui estrangeiro em teu corpo,
pelo
princípio da fome e da fertilidade.
A
tua boca o que mais queria era acabar comigo.
Os
nossos sonhos foram provados com desnuda alegria.
Por
onde passamos as lâmpadas decidiram nos amar.
As
mais estranhas cidades eram pastos afáveis.
E
líamos as nossas mãos mergulhadas no calor da espuma de lagos e motéis. Quantas
vezes nos vestimos um ao outro
com
um olhar melado de horas apreensivas.
O
mistério às vezes emprestava uma adaga à cena.
Creio
que tua volúpia pensava em mim como uma ave-âncora,
essa
imagem convulsiva que almeja ser tudo a cada golpe.
A
tua nudez planejava viver apenas de meu corpo.
Fábula
da consumição de todos os pecados do mundo.
Murmúrios
planando na equação suada de tuas ancas.
Aprendemos
a dizer sim ou não como uma árvore aprimorando as estações.
Vem
me trazer um tropeço. Descobre a extensão de meu silêncio,
que
eu repercuto os afluentes de teu deserto.
Não
nos esqueçamos que nossos segredos
somente
se encontrarão esta noite.
Amanhã
estaremos uma vez mais à beira do abismo
do
que jamais aprendemos a ser.
A BORDO DE UMA ESPIRAL COM PABLO DE ROKHA
Eu fui embora daqui como um demônio a
cavalo, que respira em um mundo sem saber de outro que o aceite. Repetimos à
beira da mais absurda catástrofe que a linguagem nos faz e desfaz como pequenos
monstros que não cabem em si. Onde estavas quando naufraguei ou desfiz as malas
de um amor impossível ou o instinto simplesmente não me livrou de um cochilo
fatal? A esperança flutua ante o cenário da realidade mais aterradora. Quantos
montaram a córnea ou a medula de nossas visões mais alucinadas? Eu quis chorar
antes que o mato tomasse conta da cútis. Eu quis legislar sobre os teus cultos
mais macabros. O que somos quando drenamos nossos limites? Conhecemos uma
fatura íntima de nossas crenças na espécie humana. Os desastres climáticos
sempre deram guaridas a halos criminosos. As matemáticas riem quando os cavalos
se embriagam e as divindades se fingem de mortas. Nenhuma religião resiste
quando o caos perde o apreço por si mesmo. Nossos olhos se movem e não sabem o
alcance do desterro programado. Os nossos espantos detidos podem representar a
utopia de uma renovada urgência. Não somos nada aqui. As vestes mais simples
providenciam o abandono de nossos corpos. Nós somos o traste acumulado à
realidade que nos custa acreditar. A amizade talvez tenha nos deixado fora do
estropio de teus naufrágios, um sol em cada porto inexistente, a fábula
carente. Serão estas as anotações mais altas de um rio antigo? Quando li teu
nome na proa da embarcação descobri que vamos à procura de algo que certamente
não cabe em nós. Até que as distâncias sejam um distúrbio menor, e o frêmito do
inexplicável a compor o ideário de inquietudes de nossa espécie. O verbo se
esquenta. As diversidades se atropelam. Os dias se foram. Fixar o olhar em um
dado mistério significa determinar sua vida como uma lanterna lançada ao
infinito. Isto pode tomar mais tempo do que o desejado. A esperança é a
madrasta dos mártires.
QUANDO FUI PARAR NO INTERIOR DOS OLHOS DE MARIE WILCOX
As luzes da imensidão anotavam os vultos
velozes que percorriam seu dorso, enquanto migrávamos de um porto a outro da
extensa desolação sem palavras. Fumávamos a paisagem embaralhando os dias. A
casca do tempo rachava como os cascos da memória. Uma poeira vermelha parecia
aninhar-se sob a pele. Qualquer um de nós mordia as mãos e súbito soletrava a
fortuna que se esvaía, os metais preciosos de quem estava à beira da extinção.
Até mesmo a queda apodrecia, já na boca do silêncio mais faminto. Uma cadeira
de balanço de entrançados gastos palpitava como uma moenda de milagres. Uma
sombra florindo cercada pela escassa vegetação que evocava o vento. Uma crença
sagrada na reencarnação de todos os mitos na alma de cada palavra. Foi quando
te vi convocando todas as ruínas, os armazéns que não haviam tirado o pé do
chão, os fantasmas que ainda sabiam conversar. A cada um não pedias mais do que
a luxúria das lendas e as formas de exaltação, os elementos áureos, os selos
invisíveis, as paredes irregulares do passado. Aos poucos eu fui retratando
tudo o que viveste, os verbos do instinto, os despenhadeiros de cada letra
acesa na página urgente de teu olhar. Não há outra forma do mundo renascer, por
mais clandestino ou violentado. Ponho os teus olhos em minha mão e leio toda a
tradição de teu povo.
MINHA GRATIDÃO POR FRANZ VON STUCK
O prazer não necessita doutrina.
Dedico-me à generosidade sem deter-me na salvação dos corpos. Do mais alto da
ambição de todas as formas eu te vejo, entregue a um volume de atividades que
nem mesmo a ilusão alcança. Sem que anuncies uma teoria, exijas proteção ou te
dediques a empilhar as moedas do agradecimento. As tuas carnes são de uma
irrestrita beleza, como se a própria humanidade estivesse incumbida de
iniciar-se sob seus véus. Contemplamos as cerimônias de quem entra e sai. O
homem já não sabe viver sem a agitação exasperada de um sacrifício. Construiu
seu teatro-morada em uma caverna aturdida por amuletos. Arranha sua pele
buscando um deus sob cada demão de eternidade. Que outros livros ele não teria
escrito se a vida que conheceu não fosse a pedregosa ruína de ritos inferiores
e superiores. O prazer não reina sob as aparências.
CERIMÔNIA DE EXUMAÇÃO DE EDITH RIMMINGTON
Certos
mortos relutaram em comparecer.
Ainda
hoje indago o que me levou ali.
O
modo evasivo com que sua morte foi tratada.
Outono
e um ar entre os presentes de indisfarçável aceitação.
Há
verbos que aturdem qualquer idioma.
No
entanto, ali se deflagram, expressando nossa miséria.
Quando
caímos de um sonho quantos países florescem?
Uma
queda entre amigos, longo período sem deles saber notícias, por que essas
coisas não despertam uma revolução?
Alguém
repetiu o meu nome em dois truques com os olhos.
Sempre
estivemos em guerra, eu não sei onde tantos códigos configuraram nossa
espontaneidade.
Um
verbo quebrado, um roteiro desviando a atenção da realidade, como é possível
levar a vida inteira assim?
Uma
horda, uma ordem, uma solenidade.
E
se foram estações, mapas astrais, os guardados de Edith,
sua
inocência diante do símbolo e a ofegante respiração?
Eu
não trouxe a minha vida para o centro dessa inquietude.
Eu
não estou aqui. Os verbos foram corrompidos.
Não
virá revolução alguma.
Exumarão
mil corpos. Nenhum será o dela.
A IMAGEM DUPLA NO ESPELHO COM QUE CONTEMPLO MEU FILHO
Luzes
postas no céu para florir as janelas do horizonte.
Uma
corredeira de azul nos ensina a velejar enquanto o vento se distrai.
Um
minério. Dois minérios. As pedras angulares do desejo.
Eu
quero a minha casa no alto daquela nuvem.
Com
o manuscrito selvagem de nuvens na varanda ao pé do crepúsculo.
O
que lemos faz com que a memória trafegue por toda parte.
Um
mistério. Dois mistérios. Posso evocar os deuses quando as luzes se excitam.
Posso
notificar o acaso que estarei sempre aqui.
As
trevas não sabem o risco que correm quando me espreitam criar.
LENDO OS GEMIDOS DE KEITH JARRETT EM MODENA EM 1996
O
teu olhar rompe o narcótico das visões.
Onde
eu te busco as notas se queixam da saciedade da avalanche de acordes.
O
mundo não precisa acabar hoje.
Tampouco
tem motivos para guardar-se para um último resfolego.
Muitos
deuses se digladiam por uma pilha de ossos.
Como
se túmulos herdados garantissem a perenidade de alguma fé.
Quando
aprendemos a balbuciar a queda algo no mundo começa a renovar-se.
Porém
já nada repete os ardis e ansiedades que nos marcaram a experiência.
As
notas que saltam do palco dilapidam nossa esperança.
Tudo
parece acabar exatamente ali,
embora
o mundo nos traia com sua parábola da eternidade.
Os
nossos nomes estão sobrando dentro do céu.
Tudo
o que somos é uma demasia constante que se repete até a central dos extravios.
Não
sei por que nos sacrificamos por tão pouco que somos e ao mesmo tempo evitamos
a fluidez insaciável do que podemos ser.
Desde
que ouvi Keith Jarrett na noite de 23 de outubro de 1996 que eu disse ao meu
silêncio, em estado de plena oração:
daqui não passo, porque eu jamais poderia
voltar a ser o mesmo.
RASCUNHO DE HIPÓCRATES
A
cuia do firmamento desagua seu esplendor.
O
horizonte insinua-se como uma serpente.
Vejo
o que restou de mim e anoto minhas chances.
O
inimigo me mantém vivo como garantia da própria resistência.
Ambos
sabemos que somente a minha morte poderia dar fim a seu reinado de terror.
As
nuvens destilam, a céu aberto, a insolvência do mistério.
O
suicídio é a única oportunidade que a vida encontra para refazer-se.
Sequer
reluto. A paisagem inóspita fará o resto.
PÁGINA APÓCRIFA DE UM DIÁRIO
Se um dia eu me sentasse a teu lado para
conversar sobre os punhais que perdi, sinceramente não saberia contar os ossos
que resultaram em sua fatura. O tempo corrompe até mesmo o teatro da fala. Não
importam as negociações entre arte, ciência e religião. Os gestos são tragados
por um ardil de escombros. É tarefa inútil esperar que o homem aprenda com seus
erros. O infinito é uma prática dispersa. Esgotamos em cada sentido o brilho
com que a experiência se torna, em cada um de nós, um acidente inigualável.
Quantas vezes nos preparamos para a dor ou a fortuna? A ansiedade é uma fórmula
vazia. Alimentamos o fundo falso de uma alegoria que se diverte às nossas
custas. Agressivo, assediado, traído, o que resta do homem em si mesmo tende a
ser uma justificação de seus erros. Não me confundam com a minha própria
sombra. Há tempos desconfio que ela está por me deixar. A todo instante procuro
ser outro, antes que eu seja o único em mim.
OBRA PRIMA DA CONFUSÃO ENTRE DOIS REINOS
Um dia estive a ponto de dizer que te amo.
Quase recorto uma advertência apressada
na qual eu confessara esse amor impossível.
Transcrevi para inúmeras páginas soltas
que as dissonâncias são um estímulo,
uma vida dedicada às discrepâncias,
como saudável mecanismo de insubmissão.
Somos a denúncia de um mundo irreconciliável.
A refeição atormentada de muitos leitos
que se perderam entre símbolos inertes.
Quando começo a falar assim as tuas mais
secretas saciedades se reúnem para a pugna
de meus erros e outras memórias propagadas.
Sei que já não posso lembrar que te amei um dia.
Um de nós registrou em opúsculo a indisciplina
de nossas razões comuns, o ideal clássico.
As improváveis consequências do amor.
Eis a tabuleta: os
verdadeiros deuses somos nós.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
∞
Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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