terça-feira, 25 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Obra prima da confusão entre dois mundos

 

 

ARTES MÁGICAS – EDIÇÃO PRÍNCIPE

 

Presumo que um dia descerás à terra para um café.

Diversas línguas designaram a extinção de tuas emanações.

A vida parece repetir-se na apólice de cada letra.

Já não distinguimos os nossos caracteres, teus ou dele.

Não contamos a ninguém quem fomos ou dominamos.

Nossos corpos são inseparáveis do restante dos mortos.

Um dia me deste um fogo emergido com luz insuficiente.

Ao buscar o fundo falso dos arquétipos reli tuas formas.

Sempre te deixaste confundir com muitos outros deuses,

como uma harmonia falseada vagando por nossas crenças.

Rabisco na pedra teu nome, deslocando letras ao acaso.

És sempre o mesmo, levadiço, proscrito, salvador, mártir.

Sempre que erguemos as mãos ao céu nos desconhecemos.

Somos uma réplica do mundo que um dia esquecemos.

Qual deus não emudeceria diante da própria criação?

 

AO LER UMA CARTA DE QUEM ME ESQUECEU

 

Os sons das casas dispostas pela rua que desce por tuas costas.

Os sons como relâmpagos ou truques da chuva em metais.

As guelras de uma nova espécie que ainda estamos por criar.

Os deuses que foram substituídos por máquinas de drenagem.

Não importa o quanto custe descrer, os pecados permanecem.

Como teias camuflando a rainha enquanto expele seus ovos.

Como vultos bordando cortinas a impedir a dieta dos olhos.

Também os sons se alimentam do que nunca lhes dissemos.

Cobram uma tempestade pela decisão de mantê-los longe.

E um longo adeus se extrai de sonhos que há muito se foram.

As noites destroncadas permutam seus fantasmas elétricos.

Em nome de uns, muitas questões se resolvem. Outras relutam.

Mesmo assim, nada mais insiste em sua permanência voraz.

Os sons de tuas costas são casas de vento, morada de nuvens.

 

GRAÇAS A ELE RECOMECEI A ESCREVER

 

Eugene Ionesco não gostava de ler uma peça de teatro.

O real é pormenor semelhante a um roteiro inconcluso.

Representação de si mesma que vive um horror incomum:

não saber a quem escolher, vítimas ou feitores, dia ou noite,

ou como conter mundo visível ou desvario da imaginação.

Ionesco sabia que o dilema oscila entre o falso e o verdadeiro.

Por isto resistia ao vício estético de uma afirmação do tangível.

Vida repleta de significados, cimos e sopés se confundem,

tudo o que tocamos chafurda em seu contrário, como a carência

de um sonho refletido em outro. O momento de ler um poema,

ou de ir ao teatro. Por em dúvida a evidência. Representá-la.

Acentuar ou disfarçar seus vícios. Como livrar-se da expectativa.

Um de nós desconfia do ator que não interpreta a si mesmo.

Como dar ciência do real sem evocar o improviso e a ilusão?

A dignidade estética é uma profusão de evidências líricas.

Caminhamos pelas ruas [juntos]. Jamais aderimos à realidade.

 

POR AQUI PASSOU EVA FAY

 

Os teus olhos me descamavam todos os símbolos da casa.

Os vestidos empoeirados nutriam uma memória de escolhas ignoradas.

As dobras esvoaçantes sussurrando em teu corpo suspenso,

em meio à sala habituando-se a sombras incompletas.

As mãos se davam, recortadas, ao redor de uma mesa invisível.

Os pés indecisos, tropeçando em vultos trêmulos que espreitam a vigília ansiosa ao buscar correspondência em vários mundos.

Pequenos diabos anotam agora os recados mais afetivos.

As ansiedades fatigadas custam a associar desejo e cena.

A tua respiração me chega como um remo e possui tantas origens quantas eu possa laçar com meus ritos aprendizes.

Eu me desapego da consequência de qualquer ato.

Retiro-me de mim até que me ensines a não regressar.

Consinto que me espalhes por todos os teus casulos e que me acumules sem vícios regressivos.

Vasculho meus entalhes e encaixes à procura de uns fetos relutantes,

cópias que sejam de efígies ou planos, o trânsito do indeterminado,

fagulhas fora de nível, reuniões de sacrifícios descontínuos,

a essência ambivalente que já não corresponde a perda ou fortuna.

Eu te evoco para que me sopres no ventre o inverso de minhas tormentas.

A casa se despe de seus truques milenares.

O mobiliário retoma antigos verbos suprimidos e a anatomia informal de seus ninhos.

As tuas mãos ainda me assombram, porém sei que me queres bem.

Eu voltarei aqui e amanhã, até que a tua mesa se faça visível.

 

SOMBRAS RELIDAS EM FRANCESCA WOODMAN

 

Provenho do bosque de lupas de teus seios,

do enxame de nuvens de uma lenda ancorada

um pouco acima de teus requebros sinceros.

Provenho de uma alegoria de pernas que se entreabrem

ludibriando a própria ilusão de suas prerrogativas.

O horizonte se materializa em teu olhar e eu me torno

o anfíbio rematado por uma fábula desmedida.

O monstro telepata que germina uma balbúrdia de anseios

e aterroriza as sombras envaidecidas por sua indecisão.

Renasço de teu beijo lapidado na pedra,

no milagre indizível da esponja de teus lábios,

no oculto aconchego de tua pele,

cada vez que me raptas um sonho de privilégios sem fim.

Tu me sucedes três vezes antes que eu seja notado.

Provenho de labirintos que perseguem os segredos

que migraram para a relva limítrofe de teu ventre.

reconstituo o truque de teu equilíbrio no íntimo do búzio

que conspira um escândalo agrícola em nosso abraço.

Sempre que percorro a geometria de tuas coxas abrevio

as proezas do instante e o engenho onírico das oferendas.

Sempre que arrancas de teu corpo a imagem do mundo

dali brotam cascalhos derivados de todos os delitos.

Eu te asseguro que não há queda sem a confusa crença

na sementeira do renascimento, cláusula de incertezas,

proventos passionais e o utilíssimo contágio do acaso.

Beijo a tua árvore, de onde provenho, salvo engano.

 

ESPECTROS ANUNCIADOS POR XIA XIAOWAN

 

Escuto o batimento cardíaco dos livros que ficaram perdidos pelas fronteiras inacabadas de tudo quanto em nós dura o tempo impreciso de não caber em parte alguma. Quatro são as vozes que ouço a desatar o silêncio anunciado pelo mito. Uma água suja atravessa a noite como se houvesse um plano de sacrifícios. As mercadorias do absurdo são estocadas para edificar o caos. Jamais foi possível tornar adulta a fisiologia dos sonhos. Empunho a sombra sacerdotal dessas estátuas que mascam a noite. Uma lua foge pela chaminé transbordando a lama dos deuses, enquanto me desfaço em uma quantidade sem fim de coisas estranhas. Sorvo a saliva dos desastres como uma rua repleta de humildes acidentes. Embriago a ventura de teus apetites, até que desconheças a distância de um abismo a outro. As pronúncias se perdem com os vultos. Os teus beijos são incomparáveis quando regressam da escuridão. Puseste meu nome ao alcance de uma metafísica proibida. Agora as nossas cicatrizes são ternas e nos habitamos como salteadores em busca de um movimento qualquer, onde as palavras mendigam um despropósito sagrado, viajando sempre a um nível acima de todas as tormentas. Certas palavras balbuciadas durante o sono podem conter uma perenidade demasiado curta, porém decidida a ensinar aos espelhos a encontrar as trilhas inquietas que não permitem retorno.

 

ENQUANTO LIA UMA FOTOGRAFIA DE OLIA PISHCHANSKA

 

Os corpos iam saindo do livro como se invocados por antiga crença. Impossível distinguir os mundos de onde surgiam vultos embaçados. Ao mudar de forma as letras persuadiam a árvore a ter mil cores e cheiros. A árvore erguida no centro da página de onde emanavam aquelas figuras, com seus nomes delineados na penumbra, inconcebíveis e dissolvidos no intuito de locomoção do tato, decompondo as proporções do homem e a insuficiência das leis. Os corpos encurtando as palavras até a mais completa exaustão dos sentidos, um enigma atado à asa de cada voo. Os corpos expunham, tatuada na pele, uma rota de viagens e conjuros que ninguém poderia decifrar até que o livro encerrasse seus portais. O cenário fervia como se houvesse adotado a febre para atiçar a visão. Durante sete crepúsculos as páginas se multiplicavam dando ao livro uma aparência de cornucópia e seus corpos encarnavam diagramas fálicos, sinuosos, esvoaçados, com seus impulsos interrogantes a revelar direções contrárias a tudo quanto fosse verossímil.

 

DE ONDE ELA ME VÊ UM DIA FOI TRÓIA

 

Em falsos humores e horrores caseiros o hábito se disfarça.

É como dizer a um dos sentidos: o que ali está nunca esteve.

As perdas são um sortilégio de janelas que não sabem abrir.

Desconhecem a imagem que eu vejo lacrada em seu íntimo.

As noites não sabem esquecer tanto quanto sabem os dias.

Resumem mistérios como um anátema que não desperta.

Tão impossível sair das noites quanto residir em seu oposto.

Busco uma almofada sob o sol onde Helena abre sua casa.

Um idioma silencioso me abraça com suas vozes arredias.

Será que ela mora ali, em meio às pálpebras da mobília

e os diâmetros adentrados no infinito pela dívida do pasto?

Jamais a reconheci sob a lua leitosa de seu contorcionismo.

Quando a descubro, improvisa uma saga de tempestades

em meu corpo comovido pela urgência de seus excessos.

 

AS MÁSCARAS ESTROPIADAS COM SEUS VÉUS CONFESSOS E ROSTOS MORTAIS

 

Eu trato de entrever os truques mais obesos,

súmulas fulgurantes de tudo quanto nos foi impossível ser.

Ocultamos no palco os cadáveres que tecem a desdita,

e desacatam a própria sorte. E ocultos mascam suas formas.

Pequenas horas desterradas crepitam refazendo o roteiro.

Vozes consumidas pelo silêncio e manequins fingindo sexo.

Pentagramas trôpegos, bússolas cegas, faroletes anêmicos.

Donatien tricotava os controversos argumentos da corte,

os livros secretos do teatro-hospício onde encarnava a demência

cruel dos amantes, a vileza indisfarçável dos crimes fraternos.

Quantas vezes um represente a intolerância do outro,

mais descortinam a sujeira descontínua de seus privilégios:

despudor e caprichos, sombras sacrílegas e orações abjetas,

cadafalsos convertidos em ultrajante comédia tristíssima.

 

PARTITURA DA ILUSÃO

 

Sempre que penso em escrever uma fábula adormeço sobre teu retrato. Não sei a quem convém que a arte não saiba dizer adeus. Quando te beijo a memória cobra de mim um novo estímulo para que ela volte a ser iminente. A ideia de um livro absoluto defendida por Mallarmé tornou-se frívola. Não há conceito mais frustrante do que o da totalidade. Quando me despeço de ti no aeroporto, na galeria do metrô ou no Messenger, sei que ali não nos resumimos propriamente a uma despedida. A benevolência noturna que me leva a galerias de arte, cinemas, concertos, lançamentos de livros, feiras de bricabraque, antecipa que eu não me divertiria tanto quanto tomássemos nosso aperitivo resumindo a opereta bufa de cada ingresso. Sei que prometi cuidar de teus pés esta noite. Porém o tempo por vezes consegue ser tão veloz que já estamos sobrevoando a extensão monossilábica de nossos afagos. Em qualquer língua que me digas teu nome, saberei que a sílaba essencial a trago imersa na ortografia de meu desejo. Queres ser a louca que ambiciona uma sílaba única em minha obsessão por tocar o mundo? Queres ser a folha do relâmpago que melhor descreve a extensão de meu ser? Queres vir descobrir comigo que o melhor de tudo é que o mundo jamais pensa em nós? Lembra-te que quando estamos nos despedindo de alguém não sabemos de quem exatamente. Queres ser a minha mulher esta noite? Deixa o teu retrato fora disto. Jamais sabemos quem realmente somos até que seja tarde demais.

 

PRIMEIRA IMPRESSÃO DEIXADA À PORTA DE LEILA FERRAZ

 

Eu deixei passar um edifício inteiro situado no acaso.

Parecia uma boa mercadoria anônima e avulsa,

dessas que não insistem e tratam a dúvida com desdém.

Agora que reeditamos o catálogo apócrifo do horizonte

vejo o quanto que aquele edifício ficaria bem aqui.

A realidade que leiloamos saiu de nós bem satisfeita,

sem hesitar, reconhecida por seu novo prestidigitador.

Monet nos braços de outro amante do impressionismo.

Não importam as manchas do tempo, o semblante

raspado pela ação da luz, o sótão desaparecido, nada.

Eu recrio todas as formas com que me enches de mim.

Tudo em nós se reconhece nas vértebras do susto.

O que somos avista ao longe o que um dia seremos,

e este dia é ontem. Nos exploramos como quem renova

os esboços que assumem formas as mais inesperadas.

Somos os esforços conjuntos da beleza e da fealdade.

As formas essenciais não saberiam como deixar de ser

sem que antes se tornassem íntimas de nossa vertigem.

 

ESCADAS ANDARILHAS

 

O tempo está exposto a um traço.

Queda e omissão se completam mais do que desejam.

Podem ser trevas guardadas no gelo

ou uma maldição reflorestada por acaso.

O tempo é um fóssil que jamais revelará seu nome.

Patinamos a lavoura do mistério.

Curvamo-nos ante a vaidade da timidez.

Recorremos aos mais absurdos álibis.

Os cegos talvez percebam melhor o quanto somos sonsos.

A história recobre a pele humana como um trapo.

Alguém duvida de que todos os perfis sejam ambíguos?

A memória abusa de presunções e suas vítimas agradecem o atenuante de crimes ainda mais indecisos.

Certa vez fui pastor de um rebanho de escadas andarilhas.

Ali desconfiei da história à luz dos escalpes.

O mal que aflijo ao outro é o reflexo fiel do que sou.

Apenas uma dúvida foi farejada por meu traço:

até que ponto o reflexo acata o reino da fidelidade?

 

AMBIÇÕES DE UM BEIJO ENQUANTO LEIO MARIA DE NAGLOWSKA

 

As noites batem à porta querendo sair.

Sempre temos que adivinhar a razão do esforço que fazemos para permanecer dentro de algo.

As vibrações do fecundo recomendam não fechar as portas ao dormir.

Porém só defendemos o amor pensando em sua fonte de permanência.

Haverá mesmo um amor incondicional ou todo ele somente se revela ao nos esperar lá fora?

Quem recusaria o louco prazer de ir e vir?

Nenhuma tradição explica como ressuscitar.

O mundo acaba se perdendo em fórmulas que não apaziguam a inteligência ou o instinto.

Toda escrita é um fosso de navalhas dispostas a talhar a consciência de quem lhe visite.

As noites soletram uma filosofia sangrada por suas ansiedades.

Nenhum amor corresponde a outro.

Nenhuma casa é portal para a unidade perdida ou desencontrada.

O verbo é múltiplo e condicional.

O tempo não deseja ficar.

O espaço quer livrar-se de si.

Os versos que me seguem não sabem senão alertar: beijo o amor para despi-lo de si mesmo, sua incompleta maldição.

Em tua boca eu construo o meu mundo.

As noites desandam cientes de que não são a réplica de nada.

Vem para meus braços antes que o verbo se repita.

 

À NOITE REINAM OS METEOROS DE RADOVAN IVSIC

 

A prudência me disse que não me afastasse nunca do abismo.

Ela pensava por mim, eu a transformava em um redemoinho,

nós dois éramos o peixe, a fábula, o seio que não parava de rir.

Quantas vezes o musgo procria suas jaulas de permanência.

Quantas lâmpadas são apenas um deserto que não se renova.

As verdadeiras estrelas se despedem do céu a todo instante.

Olhos vermelhos são recobertos por escamas que não sabem

como encontrar um novo músculo por carpir ou descarnar.

A prudência evitar pensar. Apenas o acaso ergue suas asas.

Porém o abismo masca com gosto a chave de todos os céus.

Não é uma imagem. Não é um dilema. Não adianta pensar.

Estamos expostos à superfície de tudo o que negamos ser.

O desconhecido apenas volta a cobrar os extras de cada recusa.

Como um deserto enjaulado, um cadáver ilegível, uma rajada

de olhos que, mal começam a ver, percebem o que somos.

 

A IMAGEM RESSUSCITADA DE LUCA SIGNORELLI

 

O leito do rio recolhe as pedras de teus passos,

bem à frente, sob a luz expelida pelas nuvens.

Desde a hora de tua morte que me pus a entalhar

duas questões: o que foste em minha vida

e como superar a infestação de tua ausência.

A caminho de casa quase sempre nos iludimos,

como um condenado crente em sua absolvição.

Na iluminura em que gravamos nossos erros

nos encontramos em suas linhas mais controversas.

Ao devorar a imundície o rio luta contra si mesmo.

A impureza é uma forma humana, como Deus

e demais ardis com os quais a arte soube acasalar.

Não são a luz ou a perspectiva que impedem

a sombra de libertar-se de seu objeto, ou mesmo

a fricção das pedras no estuário de nossas lágrimas.

Desde a hora de tua morte que me indago

se um dia me desfaço das nossas brandas ilusões.

 

O DIA EM QUE CONHECI AUSTIN OSMAN SPARE

 

Estrelas acordam pendidas do teto como morcegos albinos.

Árvores chorando o látex de um culto há muito esquecido.

Logo a farinha faz bailar seus grãos no coração do vento.

A casa refazendo sua anatomia a cada reverência do olhar.

Dali só poderíamos sair para o rio que se afastava da janela.

Vultos imprecisos se revezam como uma magia solidária.

Visão coletiva dos mútuos orgasmos que o rito enrama.

Éramos bem vindos como a representação do Paraíso.

Móveis arejam o espaço em uma imponente procissão.

Suores se divertem com seus trinta lenços prometidos.

Paredes liquefeitas em um oratório despido pelos sexos.

Árvores trocam de frutos sem vir a confundir a colheita.

Flores substituem as estrelas mascadas pelos morcegos.

Sementes confiantes no desejo coletivo são elegantes

no movimento que projetam em nossas mãos excitadas.

A casa dedica uma palavra sagrada a cada um de nós.

A fertilidade do espírito se enraíza como um relâmpago.

Deus algum me fez um homem melhor do que a tua mão.

Fomos surpreendidos pelos reflexos de um no outro.

Exuberância com que mudamos de forma a cada toque.

Íntima semelhança refrescada em imagens análogas.

Os corpos facilitam a descendência do abismo e gozam

as sucessivas qualidades do que um dia sequer sonhamos.

 

QUANTOS ERAM MESMO DALTON TRUMBO?

 

Os verbos se voltam contra suas sombras proferidas,

como uma ascese gloriosa que revela o que não somos.

Talvez eu seja uma exceção de mim mesmo, cuja tecla mais preciosa

é a que me expande e acaba por encontrar uma verdade insuspeita.

Todos os gestos são precários frente à imagem que revelam.

A magia está no efeito alcançado e não em sua idealização.

Porém não há como convencer o mundo de que seus problemas fundamentais se localizam na medula de uma aceitação do que lhe corrompe.

Somos o que nos permitimos ser.

Não importa a fase animal ou intelectual em que nos declaramos.

Vítimas ou algozes, o flagrante rende homenagens apenas ao modo como nos dissociamos uns dos outros.

Estou aqui para filmar o teu fantasma.

Indago quantas vezes tua morte foi agendada pelo Estado.

Solfejamos um impasse: o homem não sabe como livrar-se da ilusão da arte.

 

JULIANA HOFFMANN PINTANDO EM SEU ATELIER

 

Os céus descrevem o roteiro de secretas viagens.

Descascam as árvores do tempo, erguendo biombos de um mundo fascinante repleto de enigmas.

Um palimpsesto de almas ali há muito residente e que agora encontra os poros dilacerantes por onde voltar a atormentar a existência.

As máscaras de orelhas graúdas como folhas ancestrais.

As orelhas do vento. O solar das agonias meditadas.

Eu a vi pintar um revoar de sombras dentro da floresta.

E então me sussurrava: Eu busco a escuridão e o respiro das árvores.

Floresta de caules e tecidos de seu corpo invisível.

Os céus rasgam as paisagens antevistas.

Desentranham uma ponte entre o abismo e os lábios dos pincéis.

Quisera revelar o infinito de seus assombros.

Quando a vi pintar a nudez de suas linhas assumia a forma de ninhos irrequietos.

A qualquer momento uma era distinta surgirá.

Eu a via cruzando todas as trilhas da duração da vida.

Da miscigenação dos elementos – suas cores e texturas extenuadas – uma pétala de eternidade se desprende.

Ela se volta e ri e me antecipa os escritos sobre as origens de seu desassossego.

Os céus retocam os desequilíbrios da paisagem.

Um dia sairemos todos dali, a vida farta do ouro que deixamos escapar.

 

TOMANDO AULAS COM PIERRE NICOLAS HUILLIOT

 

Vejo como as noites se estreitam na fiação de tuas nádegas.

Logo dou pela conta de teus fantasmas mudando de calçada.

Eles me excitam como páginas de um moinho não escritas.

Marco os períodos de teu corpo em toda farinha extraviada.

Somos a riqueza de nossa ebriedade e a altura das árvores.

Quando a música chega nossos barcos já estão em alto mar.

Quero te visitar antes que empalideças como uma ave matinal.

As tuas luvas animadas como se guardassem todos os sinais.

Sei que nos comunicamos graças à imersão de teus anseios,

as dobras do suor, breviário de cicatrizes, as páginas gastas.

Como te manifestas em mim ao ouvir a morte tão inquieta?

Jamais imaginei que teu maior pecado fosse embora comigo.

Fugi de tuas escalas como a atrevida partitura de uma mulher

que deseja o mundo acelerando suas torrentes dentro de si.

Quero te fazer meu homem, sem que te sintas mal por isto.

 

TRÁFICO DE NOVAS CORRESPONDÊNCIAS

 

Um cascalho indaga ao limo: quando se retorce o verbo?

Uma parelha de espelhos ensina aos filhos cautela para refletir o rancor e a náusea.

A teus pés, Darwin, um lagarto regurgita hóstias.

Um ventríloquo fala comigo em mandarim, diz ser minha filha

e me confessa coisas que sua própria mãe desconhecia.

Certa senhora me disse que às vezes sentia uma queimação de letras na mão esquerda.

Estariam ali os vasos comunicantes da poesia?

No dia seguinte à abertura de uma coletiva de escultoras,

as obras despertaram todas emendadas, exceto uma.

Há muitos nomes a serem recordados, tanto que por vezes

confundimos a memória com um prodígio do eterno retorno.

Parte de nós insiste em revelar uma ilusão do que virá,

enquanto a outra metade rói os ossos do que fora:

cerimônias de pedras dispostas como relógios

que se multiplicam no olho de um lagarto tatuado

no dorso de uma mulher em cujo sonho surgimos

como aves bicando centelhas de uma idade perdida.

O homem caminha por todas as páginas de seus atos.

Também a memória se petrifica, assim como o desejo

mendiga degraus invisíveis em quaisquer escadas da virtude.

 

LEONOR FINI VEIO ME VER AGORA HÁ POUCO

 

Os teus lábios ondulam como uma fogueira acalmando a noite.

Os móveis parecem sair do lugar procurando a lua pela casa.

Enquanto o vento sussurrar pela madeira seu punhal ilegível,

os deuses se despem mascando dor e mistério e teu rosto

se torna inalcançável, por mais que o tenha em minhas mãos.

Nós dois jamais saberemos como plantar algo, lar ou túmulo,

sonho ou dissimulação, nada que nos faça sequer naufragar

em uma mesma artéria. Não importa o livro que evoque

a inominável verdade de nossos desejos. Não há outro modo

de alterar o futuro. Não há colheita ou conquista, trigo

ou pólvora, que não seja escrita pelo mais dedicado vilão.

Nenhum de nós está pronto para deixar de ser o que somos.

 

OS DIAS EM QUE ESTIVE COM HILMA AF KLINT

 

Seu olhar era uma árvore a me perseguir por onde fosse,

por quaisquer caminhos que o meu desejo rascunhasse.

Uma pérola equilibrando-se na pedra, fagulhas de íris

em um céu de tintas ágeis, cromos de um imaginário em outro.

Seu olhar melodioso supera o equilíbrio tenso entre o bem e o mal,

e me despe de mim, de toda a roupagem do que fui e serei.

Eu vi quantas vezes ela me viu antes mesmo de estar ali.

Videira anunciada quando a lava vulcânica ainda se esmera

por ampliar a pequena ilha que a harmoniza em pleno caos.

Eu li as suas horas compassadas e o incenso de seu abismo.

Gotas anímicas de um mundo ressurgindo a cada instante.

Ela anteviu quantas vezes seu nome se desfaria no mesmo truque apinhado de escândalos da comoção mais ardente.

Ela que me cobria com seu olhar, com seu manto de enigmas,

com sua pauta sigilosa de incontáveis modos de ser.

 

FAZIA FRIO NAQUELA TARDE EM KENTUCKY

 

A porta se abriu e ele entrou com um miúdo e velho macaco. O primeiro susto veio de uma senhora que escolhia antigas colheres de chá para sua coleção de caprichos. O dono da loja naquele justo momento nos dizia que jamais havia perdido um cliente. Eu havia separado uma peça de gesso, um velho homem do mar desfrutando a música que fazia soar através de uma manivela enquanto, sobre a máquina sonora, agachado sorria seu macaco. O segundo susto eu dividi com o homem que acabara de entrar. Ambos o reconhecemos na estatueta com seu mecanismo quebrado. A senhora das colheres as deixou espalharem-se ruidosas pelo chão. Lá fora os albatrozes do rio Kentucky decifraram toda a cena. Eu também jamais havia perdido um poema. O acaso não reconhece a verdade que sugere. O futuro desconhece quando nasceu. Certas imagens possuem um apetite pelo inevitável. Todos ali nos entreolhamos, como quem transita por entre mil abstrações. A razão humana despreza seus anjos, a latitude do que não explica e os erros que iluminam como tochas a estrada de volta ao passado.

 

DENTRO DE UMA PAISAGEM AZUL DE ANTONIO BANDEIRA

 

Quando me sorris uma cidade brota de teu semblante.

O olhar chafurdando nos antecedentes de cada rochedo,

como uma noite oculta no vislumbre de uma coruja

no galho mais alto da árvore esquecida da humanidade.

Um discreto farol no jardim desconhece as coordenadas

dos corpos enterrados da maçã e da serpente sem plumas.

Quando ouvimos falar no homem pela primeira vez

não sabíamos a qual miséria aludir: o caos ou a bonança.

 

Desde então o mundo se encharcou de tintas confusas,

repleto de ângulos desafinados e desbulhados excessos.

Rabisco as tuas formas entrevistas em cenários tristes.

Aquarela de teus ritos, alcova de nanquins incertos

e o pastel tão íntimo de teus pesadelos a esmo na praia.

Nós cavamos o sonho como uma filosofia extraditada.

Quanto mais quero de ti mais remetes ossos ao inferno.

Reluto em contar quantas escadas nos separam e rio.

 

Afogo-me no desastre sem salvação de tua liberdade.

A liturgia dos ornamentos que mendigavam as noites

enquanto meus olhos brincam com teus vultos na pedra

e nossos óculos aprendem a desenhar na névoa gasta.

Eu me desfiz do consolo de tua contemplação unicamente

para reinventar os mares e sertões de um gozo mútuo.

Não tens ideia de quantos pecados teus me reconhecem.

Desde os primeiros carvões ensaio o sol em teu ventre.

 

Rápido soubemos que a abstração é um jardim de túneis.

E nos beijávamos identificando a paisagem no escuro.

Quando nos multipliquei em uma vila desolada e sombria

teus dentes brandos foram os primeiros casebres habitáveis.

Nem Mondrian ou Pollock ou Kline estavam ali afeitos

ao fetiche de tua arquitetura de sombras carnudas

enquanto eu mastigava em tua pele um céu de nuvens suadas.

Eu não sei que nome dar a cada passagem de meus lábios

pela abstração profunda de teu corpo, com segredos nus

e a paleta de mistérios que amontoa derivas e naufrágios.

 

Vamos sair agora do bosque cinza para uma cidade noturna.

As dores mudam de forma e muitas não se reconhecem em si.

Toco a estação solitária das sombras, batizo cada desejo teu.

Ninguém saberá como te refazes no ninho de cada olhar.

Brincamos com os rostos, as cores, as sombras, a luz matinal.

Não importa o pecado da ilusão, somos seu vaso com flores,

a irreconhecível composição dos dias que nos fizeram felizes.

 

ESTA NOITE SONHAREI COM EUNICE ODIO

 

Eu sempre fui estrangeiro em teu corpo,

pelo princípio da fome e da fertilidade.

A tua boca o que mais queria era acabar comigo.

Os nossos sonhos foram provados com desnuda alegria.

Por onde passamos as lâmpadas decidiram nos amar.

As mais estranhas cidades eram pastos afáveis.

E líamos as nossas mãos mergulhadas no calor da espuma de lagos e motéis. Quantas vezes nos vestimos um ao outro

com um olhar melado de horas apreensivas.

O mistério às vezes emprestava uma adaga à cena.

Creio que tua volúpia pensava em mim como uma ave-âncora,

essa imagem convulsiva que almeja ser tudo a cada golpe.

A tua nudez planejava viver apenas de meu corpo.

Fábula da consumição de todos os pecados do mundo.

Murmúrios planando na equação suada de tuas ancas.

Aprendemos a dizer sim ou não como uma árvore aprimorando as estações.

Vem me trazer um tropeço. Descobre a extensão de meu silêncio,

que eu repercuto os afluentes de teu deserto.

Não nos esqueçamos que nossos segredos

somente se encontrarão esta noite.

Amanhã estaremos uma vez mais à beira do abismo

do que jamais aprendemos a ser.

 

A BORDO DE UMA ESPIRAL COM PABLO DE ROKHA

 

Eu fui embora daqui como um demônio a cavalo, que respira em um mundo sem saber de outro que o aceite. Repetimos à beira da mais absurda catástrofe que a linguagem nos faz e desfaz como pequenos monstros que não cabem em si. Onde estavas quando naufraguei ou desfiz as malas de um amor impossível ou o instinto simplesmente não me livrou de um cochilo fatal? A esperança flutua ante o cenário da realidade mais aterradora. Quantos montaram a córnea ou a medula de nossas visões mais alucinadas? Eu quis chorar antes que o mato tomasse conta da cútis. Eu quis legislar sobre os teus cultos mais macabros. O que somos quando drenamos nossos limites? Conhecemos uma fatura íntima de nossas crenças na espécie humana. Os desastres climáticos sempre deram guaridas a halos criminosos. As matemáticas riem quando os cavalos se embriagam e as divindades se fingem de mortas. Nenhuma religião resiste quando o caos perde o apreço por si mesmo. Nossos olhos se movem e não sabem o alcance do desterro programado. Os nossos espantos detidos podem representar a utopia de uma renovada urgência. Não somos nada aqui. As vestes mais simples providenciam o abandono de nossos corpos. Nós somos o traste acumulado à realidade que nos custa acreditar. A amizade talvez tenha nos deixado fora do estropio de teus naufrágios, um sol em cada porto inexistente, a fábula carente. Serão estas as anotações mais altas de um rio antigo? Quando li teu nome na proa da embarcação descobri que vamos à procura de algo que certamente não cabe em nós. Até que as distâncias sejam um distúrbio menor, e o frêmito do inexplicável a compor o ideário de inquietudes de nossa espécie. O verbo se esquenta. As diversidades se atropelam. Os dias se foram. Fixar o olhar em um dado mistério significa determinar sua vida como uma lanterna lançada ao infinito. Isto pode tomar mais tempo do que o desejado. A esperança é a madrasta dos mártires.

 

QUANDO FUI PARAR NO INTERIOR DOS OLHOS DE MARIE WILCOX

 

As luzes da imensidão anotavam os vultos velozes que percorriam seu dorso, enquanto migrávamos de um porto a outro da extensa desolação sem palavras. Fumávamos a paisagem embaralhando os dias. A casca do tempo rachava como os cascos da memória. Uma poeira vermelha parecia aninhar-se sob a pele. Qualquer um de nós mordia as mãos e súbito soletrava a fortuna que se esvaía, os metais preciosos de quem estava à beira da extinção. Até mesmo a queda apodrecia, já na boca do silêncio mais faminto. Uma cadeira de balanço de entrançados gastos palpitava como uma moenda de milagres. Uma sombra florindo cercada pela escassa vegetação que evocava o vento. Uma crença sagrada na reencarnação de todos os mitos na alma de cada palavra. Foi quando te vi convocando todas as ruínas, os armazéns que não haviam tirado o pé do chão, os fantasmas que ainda sabiam conversar. A cada um não pedias mais do que a luxúria das lendas e as formas de exaltação, os elementos áureos, os selos invisíveis, as paredes irregulares do passado. Aos poucos eu fui retratando tudo o que viveste, os verbos do instinto, os despenhadeiros de cada letra acesa na página urgente de teu olhar. Não há outra forma do mundo renascer, por mais clandestino ou violentado. Ponho os teus olhos em minha mão e leio toda a tradição de teu povo.

 

MINHA GRATIDÃO POR FRANZ VON STUCK

 

O prazer não necessita doutrina. Dedico-me à generosidade sem deter-me na salvação dos corpos. Do mais alto da ambição de todas as formas eu te vejo, entregue a um volume de atividades que nem mesmo a ilusão alcança. Sem que anuncies uma teoria, exijas proteção ou te dediques a empilhar as moedas do agradecimento. As tuas carnes são de uma irrestrita beleza, como se a própria humanidade estivesse incumbida de iniciar-se sob seus véus. Contemplamos as cerimônias de quem entra e sai. O homem já não sabe viver sem a agitação exasperada de um sacrifício. Construiu seu teatro-morada em uma caverna aturdida por amuletos. Arranha sua pele buscando um deus sob cada demão de eternidade. Que outros livros ele não teria escrito se a vida que conheceu não fosse a pedregosa ruína de ritos inferiores e superiores. O prazer não reina sob as aparências.

 

CERIMÔNIA DE EXUMAÇÃO DE EDITH RIMMINGTON

 

Certos mortos relutaram em comparecer.

Ainda hoje indago o que me levou ali.

O modo evasivo com que sua morte foi tratada.

Outono e um ar entre os presentes de indisfarçável aceitação.

Há verbos que aturdem qualquer idioma.

No entanto, ali se deflagram, expressando nossa miséria.

Quando caímos de um sonho quantos países florescem?

Uma queda entre amigos, longo período sem deles saber notícias, por que essas coisas não despertam uma revolução?

Alguém repetiu o meu nome em dois truques com os olhos.

Sempre estivemos em guerra, eu não sei onde tantos códigos configuraram nossa espontaneidade.

Um verbo quebrado, um roteiro desviando a atenção da realidade, como é possível levar a vida inteira assim?

Uma horda, uma ordem, uma solenidade.

E se foram estações, mapas astrais, os guardados de Edith,

sua inocência diante do símbolo e a ofegante respiração?

Eu não trouxe a minha vida para o centro dessa inquietude.

Eu não estou aqui. Os verbos foram corrompidos.

Não virá revolução alguma.

Exumarão mil corpos. Nenhum será o dela.

 

A IMAGEM DUPLA NO ESPELHO COM QUE CONTEMPLO MEU FILHO

 

Luzes postas no céu para florir as janelas do horizonte.

Uma corredeira de azul nos ensina a velejar enquanto o vento se distrai.

Um minério. Dois minérios. As pedras angulares do desejo.

Eu quero a minha casa no alto daquela nuvem.

Com o manuscrito selvagem de nuvens na varanda ao pé do crepúsculo.

O que lemos faz com que a memória trafegue por toda parte.

Um mistério. Dois mistérios. Posso evocar os deuses quando as luzes se excitam.

Posso notificar o acaso que estarei sempre aqui.

As trevas não sabem o risco que correm quando me espreitam criar.

 

LENDO OS GEMIDOS DE KEITH JARRETT EM MODENA EM 1996

 

O teu olhar rompe o narcótico das visões.

Onde eu te busco as notas se queixam da saciedade da avalanche de acordes.

O mundo não precisa acabar hoje.

Tampouco tem motivos para guardar-se para um último resfolego.

Muitos deuses se digladiam por uma pilha de ossos.

Como se túmulos herdados garantissem a perenidade de alguma fé.

Quando aprendemos a balbuciar a queda algo no mundo começa a renovar-se.

Porém já nada repete os ardis e ansiedades que nos marcaram a experiência.

As notas que saltam do palco dilapidam nossa esperança.

Tudo parece acabar exatamente ali,

embora o mundo nos traia com sua parábola da eternidade.

Os nossos nomes estão sobrando dentro do céu.

Tudo o que somos é uma demasia constante que se repete até a central dos extravios.

Não sei por que nos sacrificamos por tão pouco que somos e ao mesmo tempo evitamos a fluidez insaciável do que podemos ser.

Desde que ouvi Keith Jarrett na noite de 23 de outubro de 1996 que eu disse ao meu silêncio, em estado de plena oração:

daqui não passo, porque eu jamais poderia voltar a ser o mesmo.

 

RASCUNHO DE HIPÓCRATES

 

A cuia do firmamento desagua seu esplendor.

O horizonte insinua-se como uma serpente.

Vejo o que restou de mim e anoto minhas chances.

O inimigo me mantém vivo como garantia da própria resistência.

Ambos sabemos que somente a minha morte poderia dar fim a seu reinado de terror.

As nuvens destilam, a céu aberto, a insolvência do mistério.

O suicídio é a única oportunidade que a vida encontra para refazer-se.

Sequer reluto. A paisagem inóspita fará o resto.

 

PÁGINA APÓCRIFA DE UM DIÁRIO

 

Se um dia eu me sentasse a teu lado para conversar sobre os punhais que perdi, sinceramente não saberia contar os ossos que resultaram em sua fatura. O tempo corrompe até mesmo o teatro da fala. Não importam as negociações entre arte, ciência e religião. Os gestos são tragados por um ardil de escombros. É tarefa inútil esperar que o homem aprenda com seus erros. O infinito é uma prática dispersa. Esgotamos em cada sentido o brilho com que a experiência se torna, em cada um de nós, um acidente inigualável. Quantas vezes nos preparamos para a dor ou a fortuna? A ansiedade é uma fórmula vazia. Alimentamos o fundo falso de uma alegoria que se diverte às nossas custas. Agressivo, assediado, traído, o que resta do homem em si mesmo tende a ser uma justificação de seus erros. Não me confundam com a minha própria sombra. Há tempos desconfio que ela está por me deixar. A todo instante procuro ser outro, antes que eu seja o único em mim.

 

OBRA PRIMA DA CONFUSÃO ENTRE DOIS REINOS

 

Um dia estive a ponto de dizer que te amo.

Quase recorto uma advertência apressada

na qual eu confessara esse amor impossível.

Transcrevi para inúmeras páginas soltas

que as dissonâncias são um estímulo,

uma vida dedicada às discrepâncias,

como saudável mecanismo de insubmissão.

 

Somos a denúncia de um mundo irreconciliável.

A refeição atormentada de muitos leitos

que se perderam entre símbolos inertes.

Quando começo a falar assim as tuas mais

secretas saciedades se reúnem para a pugna

de meus erros e outras memórias propagadas.

Sei que já não posso lembrar que te amei um dia.

 

Um de nós registrou em opúsculo a indisciplina

de nossas razões comuns, o ideal clássico.

As improváveis consequências do amor.

Eis a tabuleta: os verdadeiros deuses somos nós.

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 



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