terça-feira, 19 de dezembro de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | A casa de Lenilde Fablas

 


as noites que habitam as primeiras casas do espasmo

essas noites pelas quais nos fazemos passar e cintilam

na plenitude das cores que só identificamos no íntimo

de todas as vozes que suspiram seu nome esquecido

essas noites que ao entrarem nos dias se desfazem

através delas nos perdemos e somos seu reino aflito

cada vez que pronunciamos um destino decifrado

elas embaralham nossas vozes e todas somos uma só

LIVRO DAS SUTILEZAS, 1898

 

 

PRIMEIRAS CENAS ILUSÓRIAS

 

Talvez nós devêssemos olhar bem atentamente o que está se passando. Li Sung despertou e se pôs a abrir as janelas da casa para que entrassem todos os pássaros. Os poucos que lhe atenderam ao chamado o fizeram em silêncio, deixando o canto lá fora. Uma enigmática quietude tomou posse do ambiente, o transformando na cena estática de uma pintura viva.

 

– O que estás achando?

– Não sei. Queres mesmo começar assim?

– Certa vez eu vi um quadro, retrato de uma jovem oriental, em seu rosto ia se desenhando toda a cena de uma casa vazia invadida por pássaros negros que buscavam alimento no chão. O que me impressionou foi o modo como aqueles pássaros se moviam na pintura, o quadro me pareceu verdadeiramente vivo. Eu podia ver os pássaros bicando o piso da casa.

– Isso poderia estar presente em teu romance, a vida evoluindo no rosto de cada uma de nós. Uma descrição precisa desse quadro seria como experimentar a própria vida correndo em nossas veias. Se é verdade que nós somos filhas do que imaginamos, as coisas ocultas são um santuário onde descobrimos o mundo a que pertencemos.

– Por maior que seja a precisão com que uma cena é descrita, ela jamais equivalerá à imagem que evoca no olhar de quem a observa. Não preciso me preocupar com a exatidão das coisas. Elas estão sempre modelando outras vertentes.

– Tens razão. É esta minha maldita mania de cortejar a perfeição. Continua teu romance, Lenilde. Vou preparar a mesa lá fora.

 

Rebeka abre a porta da sala e se aproxima da mesa na ampla varanda. Distribui a cada um dos sete lugares sua parte de papéis, lápis, taça, ao centro da mesa o balde com duas garrafas de vinho resfriadas no gelo. O crepúsculo rascunhava no céu os primeiros sinais de sua chegada. Parada na porta, Lenilde observa a leveza feliz dos movimentos de sua amada. Ela era dotada de um sentido de exatidão talvez invejável. Os objetos dispostos na mesa permitiam esse entendimento. Seus olhares logo se encontraram.

 

– Nós somos tão indefesas debaixo da imensidão desse céu. Se o horizonte abrisse agora as suas portas e espalhasse alguma forma de terror nós não teríamos a menor chance.

– Não penses nunca nisto, ‘Beka. As portas do horizonte estão sempre abertas e as forças que por elas adentram em nosso mundo são o reflexo daquilo que somos. Se trememos de terror, em nossa vida exaltada, não será outra a colheita que teremos.

– Tens sempre razão, ‘Nilde. Desde que trouxe para a memória aquela criança…

– …Eleanor Elbe, tens que dizer, este era seu nome.

– Sim, desde que Eleanor entrou em mim eu tenho pensado nos fiapos da vida fora de lugar.

– Não te esqueças que os deuses vivem fora de lugar, que as abominações fazem parte do mundo e que elas constantemente mudam de forma e lugar. Não há como acabar a matança nos mundos inferiores. A mesa ficou perfeita, graças ao apuro de teu trabalho, a tua dedicação ao desenho das curvas certas. Vem me beijar.

 

O céu fechava as cortinas para o ato noturno daquele dia. Pela estradinha que vinha dar na casa apontavam as cinco bicicletas que traziam Ada, Lueji, Komako, Emilia e Bertha. As sete mulheres se reuniam na primeira noite de cada lua nova, como se renovassem as circunstâncias imperativas de suas vidas. Lenilde as recebia com um abraço enquanto Rebeka servia o tinto nas taças. O negro tecido da noite desafiava o invisível a tomar acento entre elas. Lenilde fez a saudação que antecedia o primeiro gole da bebida. Os olhares abasteciam de alegria o lugar. Elas eram o puro alento do renascimento, seus espíritos providos de encantamento. Komako foi a primeira a perceber, no entanto, que um pequeno vulto sorrateiramente vagava pela brancura de um olho de Rebeka. Uma pequena dose de silêncio mesclou-se com o vinho e Lenilde intercedeu:

 

– Em nosso último encontro ‘Beka trouxe consigo, ao despertar, um sinal de asfixia, desde então sua respiração por vezes parece conter um sortilégio. Ela tem melhorado, graças a um unguento que lhe preparei para massagear as costas. As plantas labiadas ajudam a dissipar essas pequenas manchas que corrompem a respiração. Está bem melhor, porém a verdade é que ela se deixou comover pela criança se alimentando com a carne de sua mãe morta, o corpo espedaçado pelos morteiros, todo aquele cenário de horror que a guerra abençoava como certo. Um paradoxo mítico.

– Confesso que aquelas cenas também me visitam com alguma constância – disse Bertha –, embora elas nos tenham sido apenas narradas por Rebeka. Pobrezinha, ela esteve ali, presenciando a repugnância daquela guerra.

– Não se trata apenas de recordar, eu me sinto tragada pela atrocidade, vejo a menina dentro de mim, vasculhando em meu íntimo, procurando mais pedaços de carne de sua mãe.

– Foi então o vulto que eu vi passar em teu olho – falou Tomako.

– Eu tenho essa menina em meu ser, ela não me deixou mais. Hoje quando li o que ‘Nilde escreveu sobre Li Sung parece que regressei àquela vida, é como se ela não tivesse simplesmente passado.

– Quem é Li Sung? – indagou Komako.

– É a personagem de um romance que ‘Nilde acaba de começar. Li Sung abre as portas de sua casa para a entrada de pássaros, porém eles entram em completo silêncio. O que é um pássaro sem o seu canto? Diante do silêncio daquelas aves eu comecei a pensar nos mundos inferiores, nas conexões entre o bem e o mal, o modo como os grandes espíritos erguem as colunas sobre nossos corpos e nos lembram que estamos na terra para sofrer. Nós somos as herdeiras dessa soberania do caos. Em nossas preces uma névoa primordial vai tecendo os véus que cobrem esses espíritos triunfantes. Por isto nos vestimos de branco, para que as silhuetas do sacrifício sejam talhadas em nossos corpos.

– ‘Beka, Li Sung foi apenas uma centelha fora do lugar, não sabes como lamento haver começado com ela esse meu romance…

– Não tens que lamentar nada, meu amor.

 

Enquanto se desenrolava a conversa Ada, Lueji e Emilia rabiscavam nas folhas à sua frente. Lueji e Emilia usavam o lápis, enquanto que Ada criava uma aquarela singular com o vinho, mesclando digitais e unhas. As três pareciam arrebatadas para outra paragem.

Lueji mantinha os olhos fechados enquanto desenhava em um ritmo que ia aumentando na medida em que parecia ceder ao domínio das imagens. Rapidez e leveza combinadas a caminho de um frenesi que começou a exigir novas folhas de papel.

Emilia tinha um traço forte, a ponto de quebrar a ponta do lápis, o desenho parecia ranger, a vida naquelas figuras enigmáticas começava pela voz. Vultos espigados que não ocultavam a falácia de um martírio. O prejuízo das formas transcrevia as penas imputadas a cada um daqueles sacerdotes cuja cabeça não parecia humana. Sentia-se neles a imposição de uma desconcertante ereção.

Os aparentes borrões sanguíneos de Ada eram uma oferenda às almas que deixam a terra para fazer a vontade de seus duplos. Os pequenos riscos feitos com as unhas criavam uma espécie de ritual de deformidades em meio ao recital de uma grande nuvem vermelha cujos segredos eram ordenhados em uma variação esmiuçada de tons.

 

 

TRIBOS DA MEMÓRIA

 

– Eu quero que o meu trabalho seja guiado pelos fios da palmeira. A força com que eu aprendo os caminhos do sol. A direção dos ventos se ramificando no enlace dos fios. Eu pego na palma e agito seu destino para que ela me dê um sinal, uma trilha na floresta que faça renascer os deuses a cada manhã. Eu mostro a meus filhos e netos que não há maneira melhor de acreditar que as coisas podem mudar. Talvez eles aprendam, eu não posso garantir, porque o meu papel é mostrar a todos que há uma verdade preparada para cada ensinamento, e que aquela árvore rege a fortuna de nossas crenças. Nós somos o povo da palmeira. Este é o meu trabalho, a devoção com que alimento a minha alma. Eu sou a primeira pajé-mulher em nossa aldeia. Nossos homens estão perdendo o frescor antes mesmo de dobrarem o espinhaço. E muitos foram engolidos por essa guerra que de tanto ser vizinha já invadiu nossas terras. Flechas e lanças não podem muito contra o inferno que sai da boca dos morteiros invisíveis. As palmas ensinam a chuva a molhar cada recanto da terra, porém os morteiros não querem aprender nada sobre a vida que destroem. As miragens iam passando de uma flor para outra, porém a rosa da morte fazia com que nela cessasse todo movimento.

 

Vó Niara possuía a determinação dos ventos. Sua voz repercutia por toda a aldeia graças ao timbre decisivo das frases. Ao receber seu espírito Rebeka Naceri sentia-se alimentada por milagres. Soletrava com suas bênçãos as distinções entre as palavras brancas e negras, a pesagem dos dialetos, a previsão das grandes ocorrências. Impossível prever, no entanto, que tenha sido encaminhada para aquele momento para presenciar o triunfo do horror. Em poucos segundos contemplou a aldeia repleta de vida, as lebres, os pássaros, a fogueira, as crianças, pais e mães, as peles de veado e a boca do demônio cuspindo os selos da destruição. Não houve tempo sequer para perceber o ruído das bombas transformando a paisagem em cinzas e bagaços de corpos. Rebeka era o espírito de vó Niara embebido de sua consciência. O manto excruciante do fim de tudo. O olhar terrificado descobrindo, tão logo a fumaça começou a se dissipar, que um único corpo sobrevivera àquela tragédia. A pequena Inaiê chorava uma dor incompreensível. Aos poucos aprenderia que a sobrevivência é a mais grotesca das penúrias. Vó Niara desfalecia ao reunir últimas forças para que Rebeka desse à criança uma guia, um aviso para que ela se fosse dali, em busca de alguma ajuda em outra aldeia. O espírito da velha definhou até sua completa desaparição. Os olhos de Rebeka ainda ficaram por ali algum tempo, de impossível contagem, reflexo de abutres se recompondo em negras ataduras. Inaiê chorava sem reconhecer a pronúncia de seu mundo destruído. Os olhos de Rebeka foram devorados pela fome de Inaiê, com a pavorosa cena em que ela mastiga uma carne ressecada sem saber que se trata de um pedaço de sua mãe.

 

– ‘Beka, ‘Beka…

 

A voz de Lenilde tentava trazer de volta a sua amada. As demais mulheres tocavam seu corpo em gestos improvisando um ritual, um chamado. Menos Ada, que começa a mesclar ao vinho o sangue de seus dedos rasgados pelas unhas. Seu desenho parecia ganhar vida e a grande nuvem vermelha aos poucos se convertia em um pequeno monstro que saltava do papel. Era preciso afastar dali aquela desordem que ia fazendo com que cada reação se agarrasse com seus extremos. Não havia monstro algum e o surto de Rebeka foi ordenado pela memória, tudo ampliado pelo automatismo dos desenhos e os portais alucinatórios do vinho. Komako conseguiu estancar aquela aflição derramada, todas retornaram a seus lugares na mesa.

 

– Nós precisamos parar com isto. Essas forças que estamos desatando começam a ganhar um domínio de nosso espírito. Talvez não devêssemos nos encontrar por um bom tempo.

– Nós havíamos planejado uma sessão de hipnose – Emilia tinha olhos iluminados ao falar –, eu estava tão animada de fazer isto hoje à noite. Não sei o que houve, de algum modo me pus a rabiscar no papel, logo o próprio lápis foi ganhando identidade, forçando a minha mão, esses vultos cumpridos começaram a surgir em movimentos lúbricos, uma excitação me tomou, eu acreditava estar libertando forças que iriam me levar para uma espécie desenfreada de orgia, eu tremia de desejo, até que ouvi os gritos de Lenilde chamando por Rebeka. Eu voltei de outro horizonte trêmulo. Não queria voltar. Talvez eu já estivesse antecipando uma forma distinta de hipnose, em que somos magnetizadas por outras formas de vida. Mas que não fosse como essa influência do passado, mesmo que de um passado não vivido, que viesse nos provocar. Não deveria ser como se a memória fosse saqueada. Talvez uma vida paralela ou algo muito distante do que imaginamos ser a existência humana.

– Não adianta, Emilia – interrompeu Komako –. Eu presenciei outro espólio, o da consciência, olhando a agitação de Lueji, cuja mão ia ganhando em velocidade e sutileza de traços, na medida em que ia preenchendo as folhas de papel. De algum modo, ela estava prevendo os acontecimentos vislumbrados por Rebeka, havia uma espécie de proximidade sendo estabelecida, que eu pude perceber pelo movimento dos dois corpos. Vejam agora como eu tinha razão, olhem os desenhos de Lueji, são uma fina teia através da qual podemos encontrar as cenas da aldeia dessa vó Niara cujo espírito vinha se alimentando de Rebeka. São uma contagem enfebrecida de mistérios, o brilho inexplicável do divino, eu sinceramente já não sei o que pensar. Nós estamos perdendo o controle. Isto pode acabar conosco.

– Komako, acreditas que eu e Rebeka devamos também nos separar?

– Talvez seja o melhor, Lenilde. Inclusive eu penso que nenhuma das duas deva seguir morando nesta cabana. Desconfio que aqui mesmo na varanda nós criamos uma espécie de centro de irradiação do imponderável. Nossos lábios e pernas, gargantas e nádegas, vaginas e ombros, estão sendo costurados em uma máquina invisível, eu sinto como estamos sendo tragadas por uma correnteza, como se fôssemos a oferenda de um deus disposto a tudo para a perpetuidade de seus gozos.

 

 

EMILIA AHMADJIAN

 

O deserto caminha em busca de um refúgio onde pudesse orar. As terras se elevam diante da monstruosidade de um enigma que roça a exaltação de um deus. De que é feita a perenidade ao nosso alcance? A voz melodiosa dos ventos guia as formas das nuvens que a todo instante transcrevem símbolos maiores e menores. Quem pode resistir à fúria desses fragmentos da realidade? Os desfiladeiros conservam as cavernas que foram construídas para eles por anônimos antepassados. Por ali os nativos devem tomar nas mãos o esplendor e evitar a companhia do abominável.

Emilia Ahmadjian sentia as cordas atando os pulsos de seu corpo espiritual. Reconhecia a gruta dos horrores por seus fragmentos ósseos espalhados por toda parte. Aquele era o trabalho excessivo de um mistério que oprime a humanidade muito além de todos os tempos religiosos. Nenhum nome jamais se apresentou como protetor ou emissário daquelas punições inconfessáveis. A quilômetros dali Emilia dormia em um hotel, enlaçada pelo sono após um dia a mais de sua peregrinação pelas ruas de Hebrom. Toda jornada atende a um chamado. As luzes consomem as entranhas do andarilho. Ele se guia por um manancial de sinais que decidem a sua vida. O coração de Emilia tamborilava descompassadamente em seu peito. Sua agonia era o júbilo de uma sentença que a mantinha paralisada na cama.

Ao abrir os olhos identificava as paredes desordenadas da gruta para onde fora levada Ainoã, capturada por acólitos de um rei com cabeça de cão, destinada aos cuidados de mundos favorecidos pelo acaso, desde que jamais revelasse seu nome. As cordas que a impediam de deixar a gruta eram um plano do mesmo enigma que mantinha Emilia atada pelo sono em sua cama. Essas duas mulheres, que não se conheceram em tempo algum, se encontravam alinhadas por uma orientação mística. O que os olhos de Ainoã deveriam revelar a Emilia? E esta, acaso teria algo a dizer à outra? Sem que se saiba ao certo se havia a presença de dois tempos, ou se tudo não passava de uma projeção de inquietações paralelas, nenhuma falha foi descoberta no selo daquelas transformações.

Emilia e Ainoã guardavam uma presença que não queria se manifestar, cujas refeições gloriosas eram os manuscritos daquela indescritível agonia. As duas mulheres paralisadas uma dentro da outra, sem a rubrica venerável dos caminhos, desconheciam até mesmo a dupla jornada do tempo que lhes habitava.

 

– O que posso ver talvez se passe bem longe daqui. Como um labirinto repleto de fugas. Um lugar reservado para as notações do abismo. Seria bom dizer que sim, a tudo que a alma transmitisse, dos arredores extintos de cada método até o centro de cada mínima certeza. As árvores fazendo reverência às escadas, pois graças a ela o horizonte se tornava menos privado. A quem corresponde todas as debilidades humanas? Um jogo de transferências e a cuia sagrada das exceções. Quem mascara o espírito para que ele pareça mais alto em sua dieta de vertigens? Continuo pronunciando a filiação dessas lâminas, as folhas ardilosas da semelhança, o dia em que as virtudes não escolhem mais seus apreços.

 

Tudo isto parecia estar escrito nos olhos esbugalhados de Ainoã. Ela assustada diante do que intuía ser o alvoroço de seu destino. Emilia com seus cordéis blasfemos e a temperatura insatisfeita do cubículo que a retinha. Como alguém pode ir tão longe para suspeitar de seus hábitos? Talvez seja isto o que nos guarda a flutuante morada dos deuses. Onde ela poderia estar para que os lamentos se reunissem e a queimassem viva? Como o jogo do enforcado ou a fantasia das castanhas. O insulto do que não sabemos. Os gravetos apanhados em pleno luto, quando vagueamos por entre demônios descuidados, tentando descobrir a origem de nossos erros. Também os mortos nos expulsam, ainda que temporariamente, da vida. Com seus bonecos assombrados imitando velhas dores e sombrias náuseas. Quando Emilia sentiu os pulsos presos à cama era como se uma velha canção voltasse a lhe perseguir como o fizera na infância:

 

as noites não se refazem

do susto das frases secas

e quem não conhecemos

nos pede um favor infiel

a minha virtude escapa

por um fio da fogueira

que acendo na noite vasta

e aqui já não volto mais

 

Uma vez mais era possível ouvir tudo aquilo como se as cerimônias do tempo não pudessem evitar a repetição. A noite quebradiça ainda era a mesma. Emilia presa à cama e o mundo revirando em sua memória. Talvez ela devesse escovar seus cavalos de madeira ou banhar as marionetes, difícil dizer. Como poderia caber em si tanta claridade em cada golpe do olhar com que Ainoã lhe requisitava, sem que soubesse exatamente onde? E haveria mesmo uma Ainoã? Ela aceitaria declinar aquelas visões. Um lugar onde evitar a violência daqueles ritos. Acaso ela poderia voltar à casa de Lenilde? Como guiar a árvore de seus delírios até aquela varanda rodeada de amigas, o vinho, a celebração de seus encantos, como?

 

 

ADA GARCÍA

 

Na margem leste do relógio solar guarani, quando a tarde indagava sobre os prenúncios de chuva, Ada García sentada em sua mochila observava a caligrafia das nuvens no céu. As pequenas sementes de sua imaginação faziam brotar da terra as árvores bailarinas de sua desejada imortalidade. Era de sua natureza mover os objetos com o olhar. Longe da conjectura dos sonhos, o olhar de Ada se aventurava pelo interior da matéria com o intuito de descobrir seus motivos. Mover o mundo era sua maneira de alterar o destino. Enquanto ela evocava essa dádiva criadora, ouviu um pesado baque seguido ao risco vertical no céu, despertando um alvoroço de partículas, o escarcéu de areia e fumaça provocado pela queda de uma caixa de metal no centro do relógio do sol. Refeita do susto ela se aproximou do relógio, seduzida pelo mistério e seu objeto. A caixa não devia ter mais do que uns 30 cm de lado em sua forma quadrada. O tom de seu bronze indicava a imprecisa antiguidade. Ao tocar nela, temerosa e fascinada, Ada García descobriu que seu peso não correspondia ao tamanho, de modo que poderia facilmente retirá-la dali não fosse o fato de que a uma primeira mexida de ângulo a caixa pareceu esboçar um breve espasmo. Ao repetir a tentativa, novo tremor se seguiu, desta vez tornando legível alguns de seus traços, vestígios de alguma escrita que, embora de todo desconhecida, ela inexplicavelmente começou a ler. Eu venho a ti, meu sangue. Eu conheço as sete verdades de teu ser. Eu servirei às transgressões de teu espírito. Não me apropriarei de teus sonhos ou blasfemarei contra o cajado de tuas semelhanças na terra. Ada tocava no outro lado da caixa e aquele mínimo abalo despertava novas riscas. Eu sei que não farás ninguém sofrer. Que as tuas mulheres nada roubarão dos pobres ou dos deuses. Eu te servirei para que os homens não falsifiquem o teu legado. Tu és pura e eu venho a ti como um olho que fala. Não havia mal naquelas palavras que se dispersavam na medida em que eram lidas em voz alta. Ainda menos do que o seu conceito, Ada García não compreendia como era possível decifrar o dialeto que lhe parecia um elenco de garranchos. Pensou em suas amigas, nos quase sete anos que distavam desde o último encontro delas todas. Os algoritmos sossegaram, a caixa voltou a ser de todo imóvel, porém ganhara um peso excessivo e por mais que se esforçasse Ada não conseguia apartá-la do chão. Como parte do mecanismo daquele relógio solar, talvez a sua presença agora influísse na passagem do tempo. Era impossível prever.

 

 

LUEJI LLALEJ

 

A sua alma vagava pelas frestas de um pesadelo. Uma tempestade de símbolos se retorcia à procura de um corpo dentro de si. Jornada que atribuísse à convergência a representação de arcos exaltados e ruínas de areia descrevendo a antiguidade sem limite de enfurecidos encantamentos. A ventania demarcava o terreno com sua doutrina de esgarçamento. As árvores queimadas se erguiam como um promontório assustador. Vinha dali o medo de Lueji Llalej, daqueles disfarces desvaídos que habitavam a sua memória. Daquelas figuras insepultas que se contorciam ao redor da escuridão. Libertinagem de vultos esgalhados prescrevendo o reinado de uma nebulosa de cinzas. Era difícil para ela compreender o que estava se passando. Lembrava a contagem regressiva que o anestesista lhe havia pedido na sala de cirurgia, interrompida por aquele turbilhão que lhe arrastava para o centro do nada. Lueji acredita que enquanto a memória perdure a morte não virá, e se pega com isto ao ser tragada por uma voragem de farrapos. O cético é um ser sem pretensão a morder os cenários que a vida lhe consagra. Se alguém lhe indaga onde reside a alma imagina que ela se esconda nas grandes cavidades do cérebro ou talvez na glândula pineal. O cético negligencia o mistério e engendra seus monstros por desoladas estações. Desconhece que a alma se espalha por todo o corpo, que ocupa cada mínimo fragmento do visível e do invisível, pois transcreve a floração dos seis sentidos. É preciso ser maior do que deus para inventar um. E logo deixá-lo crer que emular o criador o torna uma semelhança renascida e acima de todos os dialetos e portas. O pesadelo de Lueji Llalej era agora um panteão transfigurado. Uma voz repercute em seu pensamento uma ordem para que abra os olhos. O lugar onde se encontra – não mais a sala de cirurgia – é de uma imensidão azul, a sutil ambiguidade de um espaço que a acolhe e ao mesmo tempo sugere um vazio iniludível. O azul luminoso se encerra em si mesmo. Não era um céu ou mesmo um oceano. Ela se levanta tomada pela mão do invisível. Aos poucos, aquele sítio azul sem matéria lhe permite desvelar algumas curiosas figuras, a cabeça desprovida de cabelos, boca e orelhas. O corpo alongado ia se desvencilhando de seus contornos logo abaixo do peito, até não haver mais sinais de identificação de suas pernas. Os três personagens atraíram a sua presença para perto deles. O silêncio atenuava o vazio e Lueji começou a captar a reverberação de um discurso que ela recebia com naturalidade. Uma telepatia manifesta como ela jamais poderia imaginar. Se uma das vozes lhe falava de um livro ela de imediato o sentia em suas mãos e passava suas páginas invisíveis em um ritmo impensável de leitura. Se outra voz referia os desastres climáticos e o mercado de degradação humana em seu mundo, Lueji via surgir diante de seus olhos as cenas correspondentes. Talvez o tempo não fizesse ali registro de seus costumes, pois o volume de ensinamentos que recebia não era importunado por sede, fome ou fadiga. O capítulo dedicado às máquinas de irrigação e técnicas de aproveitamento dos ventos e da luz solar, assim como o reordenamento dos ritos de caça e pesca, era composto de livros e imagens em movimento. O olhar daquelas três figuras lhe dava uma confiança oracular. A pedido deles ela fechou os olhos. Ao reabri-los se deparou com a retirada do tubo de respiração mecânica. Sua tranquilidade se dissipara e embora na sala de cirurgia tudo parecesse satisfatório, Lueji Llalej era possuída por um incômodo destruidor. Ela parecia não caber em seu corpo, a alma requeria uma matéria maior, talvez tivesse que escavar abismos por toda aquela substância orgânica. Abstenções mortais, tremores incontroláveis nas mínimas partículas do ser, a boca seca, os três sacerdotes indo e vindo em um turbilhão de vislumbres… tudo parecia se desencaixar a caminho de um conjuro ou de um santuário em ruínas.  Talvez levasse dias a recuperar a inteireza de seus símbolos.

 

 

KOMAKO RACHIRI

 

Kioshima é uma ilha inabitável, onde nem mesmo o fantástico planta suas árvores. O bailado de suas erupções desperta com precisão o tinteiro do acaso para que este se ponha a reconhecer as formas que saem de seu íntimo e conferem àquela pequena terra visível a relojoaria de seus encantos. O automatismo da lava e sua caligrafia de vultos em permanente transformação. As letras da alquimia vulcânica não retornavam nunca ao alfabeto dos tempos anteriores. Kioshima tinha por princípio de sua linguagem que cada mínimo gesto no mundo será sempre insubstituível. Como postais da ilusão que descrevem terras onde jamais estivemos ou a lógica arbitrária das semelhanças. O indecifrável somente assim permanece até o instante em que o livramos do fantasma da analogia. Vista do alto Kioshima parecia um olho do oceano, à espera de um intercâmbio de vislumbres. A realidade não resiste à envoltura de suas imagens. Pelo fio de uma dessas imagens suspensas desceu Komaro Rachiri, destinada ao preparo da partilha numinosa de um catálogo de seres incomuns. A fabulação da lava criou um traçado de fossas e arcos no interior da ilha, mapeamento de suas idades mais abstratas. Komaro sabia que não poderia dar uma forma ao tempo, pois Kioshima era a prova de um tempo múltiplo, escorregadio, irrefreável. Assim como as cores de seu quimono as formas da ilha eram infinitas e possuídas pelas mais excepcionais expressões do olhar. Acolhidas pelo imprevisível, a mulher e a ilha se encontrariam pela primeira vez.

 

 

BERTHA MALIK

 

Decidida a não ir a lugar nenhum, Bertha Malik desenhou no chão à sua volta um círculo de proteção. A magia ancestral do carvão filtra a loteria dos espelhos, as imagens são invertidas, a influência dos mundos inferiores não possui serventia. Desde que saíra da casa de Lenilde Fablas que buscou um lugar onde pudesse se tornar invisível. Nada havia assim no mundo. Não importa o truque que pratiquemos, somos sempre, por algum inevitável instante, apanhadas pela visibilidade. O homem tem obsessão pela consistência de suas virtudes, não importa que elas o emancipem ou traguem para um inferno primordial. Essas faíscas da compulsão desalinham a multidão de seres que cada um de nós leva consigo. Bertha queria fugir dessa anomalia tornada real. As noites passadas em lugarejos obscenos buscando conhecimento e energia, praticando as ciências mais avançadas dos rituais sexuais, nada a tornou invisível aos olhos da terra. Nem a distância ou a diminuta estatura. Não se tratava de um truque que pudesse conciliar uma cama dura e um espaço arejado, um acordo entre entidades evocando as melodias de incansáveis orgasmos. Bertha chegou a acreditar que ao embrenhar-se pelo labirinto dos excessos seu corpo poderia alcançar o momento em que ninguém mais desse por sua presença na terra. As estatuetas de todos os cultos são a garantia de suas falhas. O totem é um momento de fraqueza. Os vultos que participam de um coito desenfreado não estão preparados para durar, pois isto acabam caindo em desgraça quando se apegam aos rituais. Uma frase trazida pela ventania noturna teve em Bertha o impacto de uma revelação: o culto deforma o mito. Apócrifa, talvez escrita por alguém destinado a dar à vida as suas causas destrutivas, aquela verdade teve a firmeza de sugerir a ela traçar um círculo de carvão concentrando ao centro seu corpo imóvel. Era preciso aceder a esse lugar despida de hierarquias ou desejos. Somente assim poderia ser a precursora de si mesma.

 

 

LENILDE FABLAS

 

Todos os pássaros são um só, como as folhas manuscritas de um livro. Na mesa colada à sacada de um bar, diante do porto, Lenilde Fablas seguia escrevendo seu romance. Assim como o céu, o livro mantinha a primazia do voo. Desde quando Li Sung constata que ao abrir as janelas de sua casa para a entrada de todos pássaros, apenas uns poucos acatam o chamamento e mesmo assim adotam a mudez ao adentrar a sala, o livro se inquieta como um corpo que ao despertar lhe falta uma parte de sua alma. A ideia da obra como um quadro vivo era fascinante, porém a ausência de canto arriscava deixar as páginas em branco. Li Sung recordava as águas ensanguentadas do lago, os corpos mutilados boiando, os gritos espancados ainda nos lábios daquelas mulheres e crianças. As águas recolhiam a brutalidade de uma escuridão inumana. As casas incendiadas por toda a margem ainda guardavam visões de espancamentos e estupros. Somente os pássaros sobreviveram a toda a barbárie. Caberia a eles guardar a memória daquela podridão. Li sung não entendia a relutância dessas aves em ecoar ao mundo a dimensão de tanta maldade. Trabalhos forçados, execuções sumárias, violações sexuais, há certos lugares na terra que parecem destinados a uma repetição laboriosa desses conflitos quase sempre de natureza religiosa. Quando Lenilde Fablas conheceu a história de Li Sung sabia que poderia ser o seu pássaro desejado, o pássaro cantor que era todos os pássaros, o livro que seria todas páginas daquela tragédia.

 

– Eu não quero nunca voltar a este lugar. Tento esquecer seus traços, as cores surpreendentes, os jogos desconhecidos das sombras, as abstrações evocando figuras em seu íntimo, como folhas desenhando árvores em seu dorso, o horizonte se multiplicando como uma analogia apavorada. Era para não confiar nos alimentos. Evitar abrir os arquivos das cerimônias adormecidas. De um jeito ou de outro, era melhor esquecer os elementos antes mesmo de conhecê-los. Cada um de nós sabe que água dar a cada jardim. Como refrescar a possessão da terra sem que ela se converta em trevas. A memória não pode ser tratada como um rival. Mesmo as coisas desaparecidas diante de nós acendem uma busca que não pode ser extenuada. As noites também são dias nos pátios abertos de nossas crenças. Os deuses vão até a margem do rio dos sobressaltos, com um estrépito reconhecem a filiação de seus fantasmas. Quem poderia imaginar o entardecer à margem de rio desgastado por um culto às ruínas? Está bem. Há deuses para tudo. Esta poderia ser uma página do romance de Li Sung. Porém até onde arrastar o tremor de suas contradições? Ela não me dizia nada. Escrevia em mim a intriga de seus costumes. Eu poderia ser a senhora de seus mares, de suas casas noturnas, do culto de suas mulheres antecipadas. Mas ela talvez não confiasse em mim o suficiente para me dar a chave de seu santuário. Eu fui uma deusa proscrita. Tanto que devotei meus dias a tentar compreendê-la.

 

 

REBEKA NACERI

 

Nos últimos meses ali passados, diariamente Rebeka Naceri se banha nas águas do Juruá. Ao mergulhar a cabeça seus olhos são devorados por lampejos que descrevem um cenário em evolução. Uma caravana de miragens. O rio guarda um deserto em seu íntimo. As histórias repercutem fragmentos invertidos do mundo com que sonhamos. Os vultos nômades que buscamos dentro de nós, ao serem expostos, tornam a vida diferente do que fora idealizado. Como se a vigília fosse rival do sonho, uma opulência do paradoxo, cadeia de instintos desfigurados. Somos a luxúria que consome nossos corpos. As casas que frequentamos são um desapego, a bofetada na consciência que não nos deixa criar laços. Quando precisou de algum dinheiro Rebeka se fez passar pela putinha de Elvira Broghèse em seu suntuoso prostíbulo em Contamana. As noites transcendiam em todas as formas de luxúria. A devassidão, no entanto, desaguava na precariedade dos dias. Despertada na cama com leite e castanhas, ela submetia seu corpo aos caprichos da cafetina. As suas fendas eram perseguidas com esmero. Elvira dedilhava ânus e vagina como se propagasse novas virtudes. As leis da natureza humana decretam que todos somos vítimas, por mais que acreditemos no contrário. Os caprichos da ambiguidade ridicularizam a moral e as religiões. Os demônios que somos levados a expulsar de nós arrastam consigo uma fatia da deidade que nos regozija. Os jogos licenciosos nos tornam impotentes e mentirosos. A imaginação só encontra lugar no sofisma. O prazer pela indiferença define os melhores truques a cada novo episódio da existência. A crueldade não se deixa incomodar pelas lágrimas ou arrependimentos. Os horrores se alimentam de todas as mulheres com o inconfundível estilo de seus ornamentos. E iludem os homens de que são dominadores e inventivos. Rebeka Naceri jamais teve um homem dentro de si. As meninas índias com seus olhos de fogo, encontradas à margem do rio, faziam as honras de seus deleites. Cada uma delas era coadjuvante da memória de seus dias com Lenilde Fablas, a primeira mulher e guia indispensável. As meninas apreciavam seu corpo nu afundando nas águas do Juruá. À noite acendiam uma fogueira para ouvi-la contar os vislumbres daquele mergulho, enquanto lhe massageavam a pele com resinas das árvores locais. Os animais virtuosos se reviraram em seu íntimo propiciando uma rendilha de pequenos orgasmos entrelaçados com as histórias que ela recordava. Rebeka sabia que um dia teria que deixar aquela região. Já estava por se concluir o ciclo de sete anos e teria que percorrer o caminho de volta à casa em que vivia com sua amada Lenilde. Seus olhos refeitos por aquela imensidão fluvial, pela volúpia das linhas sinuosas, aclaravam a inexistência de retornos. Ela sabia que atenderia ao chamado de uma outra vertigem. Os sete anos de andança lhe ensinaram que não teria nunca mais que se conter. Por mais que lhe fosse oferecido um quadro negro onde combinar as carnes gastas com as deportações do desejo, ela teria que esbugalhar os olhos da graça, dando vida ao repugnante abismo das coisas inanimadas. Era hora, portanto, de tornar a volta um ir em frente. Na próxima semana tomaria a primeira barcaça.

 

 

LINHAS INCERTAS DO FULGOR

 

Quais a verdadeiras realidades secretas hoje quando o mundo se encontra aniquilado pela infâmia? As viagens proibidas como falcões peregrinos com as asas decepadas. Os barcos naufragados na cabeça do céu. O corpo busca outras fortunas. Os cordões aos quais atar um horizonte múltiplo. Lenilde Fablas abre a porta da velha cabana e é recebida por uma saudação luminar de móveis e utensílios, a casa inteira se manifesta renascida em seu vigoroso esplendor. Sete anos se passaram e seus artefatos cintilantes foram guardados em um cofre, selos e discos de sua energia vital. Lenilde vai ao armário da sala e retira de uma de suas gavetas os incensos de âmbar e suas pequenas bacias. Como uma devota do olho que brilha, ela acende os vários incensos pela sala, deixando um último para o centro da grande mesa na varanda. Ao sair observa curiosa a aproximação de um táxi, que traz consigo sua amada. As duas se abraçam como se a eternidade tivesse sido suprimida. Aquele abraço revelava as linhas de um decreto cósmico. Lenilde e Rebeka celebravam o júbilo de seu grande amor. O centro sexual da transmutação que alcançaram nos sete anos em que ficaram afastadas no plano físico. O abraço abençoado pelo âmbar, uma luz sublime as envolvia enquanto elas se desfaziam de suas roupas. Cada movimento de uma era seguido pelo da outra, com suas células partilhando o jorro ilusório da cena, as imagens indo e vindo no quadro em que o visível se refugiava. Cada toque materializa as inúmeras formas do deleite. Rebeka sentia o cheiro recôndito de sua amada, o espectro fulgurante da umidade. Suas orações naquele templo vaginal despertavam uma rigorosa ascese. Lenilde era uma árvore remota atraindo a radiatividade como objetivo iluminado de seus êxtases. Seus fluidos eram um rio crescente rompendo a casca do ovo alquímico. As duas não queriam acumular nada além das emanações de seus orgasmos. Alternaram as posições sem a mínima moderação. Só os tontos permanecem castos. O mundo sensível é uma suculenta orgia dos espíritos. Em meio à magnificência de seus excessos um carro se aproxima da cabana e quando elas percebem a chegada de uma interrupção em seus gozos, as portas do veículo se abrem e dele saem Bertha, Komako, Lueji, Ada e Emilia. Os sorrisos grafados em seus rostos são arrebanhados pelas risadas de Rebeka como uma fábula em que o bosque se enche de assinaturas primárias do entusiasmo. As cinco mulheres se aproximam para aquele abraço múltiplo, um privilégio dado pelos sete anos que ficaram sem se ver. Os beijos são um instrumento de reencarnação da força vital. A nudez de Lenilde e Rebeka é contagiante, mas elas riem e prolongam o júbilo daquele reencontro. A cena inteira não requer vozes, os risos são a única linguagem audível. Os risos acompanhados pela melodia volátil do sino de vento que pendia de um dos ângulos externos da varanda. Lueji foi a primeira a chamar a atenção para o modo como a bacia de incenso no centro da mesa levitava.

 

– Não se assustem, meninas – disse Ada –, sou eu, por vezes não consigo evitar.

– Ah mas nós precisamos saber do que se trata – ponderou Emilia.

– Não agora. Primeiro vamos buscar no carro as surpresas que trouxemos, enquanto essas duas assanhadas vão por uma roupinha – disse Ada, dirigindo-se a Bertha e Komako.

Vasilhas com algumas comidas, garrafas de vinho, incensos, uma pequena caixa alongada, elas todas entraram na cabana guardando o conteúdo daquelas sacolas, sala, cozinha, gavetas, mesa.

– Eu trouxe esses óleos de semente de uva para as nossas festinhas – realçou Bertha com um sorriso travesso.

 

Os pecados são todos veniais. É preciso afrontar a vida para que ela se prolongue em nosso íntimo. As sete mulheres guardaram si, durante a longa ausência, a vasta jornada de cada uma, a certeza de que concederiam à casa um novo batismo de suas almas. A alma de Emilia vinda da Cisjordânia. A alma de Ada vinda do céu. A alma de Lueji de muito além. A alma de Komako vinda do Japão. A alma de Bertha vinda de Singapura. A alma de Lenilde vinda de Bachim. A alma de Rebeka vinda do Amazonas. As noites recolhidas de todos os lugares. As noites sobre a terra. As noites vagando no éter. As noites que consolidam o olhar de todos os deuses. As noites que alimentam um mundo sem deuses. As noites deixadas à porta dos mitos. As noites sem sítio. As noites que serão sempre as primeiras. Rebeka é o nome de um disco da água. Lenilde é o nome de uma vinheta do desejo. Bertha é o nome de um círculo de proteção. Komako é o nome de um fio de luz. Lueji é o nome de um planeta desconhecido. Ada é o nome de um relógio do sol. Emilia é o nome de um sono cativo. Agora elas estavam ali com a abundância de tantas vertigens, prontas para entrar em um plano elevado de suas vidas.

Era preciso mais do que isto. Uma decorrência do insuspeitável. Os arquipélagos atiçados no interior de cada ilha. Por que essas inscrições encontradas a perder de vista, essas influências insuspeitadas, as coordenadas de um mapa imaginário, por que esses espíritos distintos entre si trazem até elas os assuntos de suas almas mordidas, despedaçadas, desencontradas? Não era essa a ideia de diferença. O que elas são pode despertar cedinho e abrir a janela, elas podem assimilar as últimas notícias do horizonte, as provas deduzidas das dores, qualquer ideia que lhes permita seguir vivendo.

 

– Como as noites adormecidas ao relento, os beijos deixados justamente onde acabaram de ferver. Quantas vezes em cada orgasmo nós poderíamos reaparecer como um culto acabado de nascer? Era isto? Queríamos comemorar apenas isto em nós?

– Não vamos dizer o nome de ninguém, apenas deixar fluir a multidão de anjos, a saga de espantos. Nenhuma de nós poderia agora recordar que onde estivemos era uma reprodução do que aqui vivemos. Por que fomos tão longe para entrar na medula dessa agonia?

– Um jeito de impressionar o rumo, ainda que perdido. Dar a ele uma efígie para que cumpra seu calendário de espantos. Ninguém virá nos dizer quando devemos deixar de crer no que somos. Nada nos estimula a negar as imagens tangíveis que nos visitam como um farol.

– Era para estar aqui o tempo inteiro, como uma deusa que alugou o santuário errado? A moça veio limpar o quarto e os pequenos deuses de cascas de banana se agitavam como se uma assembleia estivesse por decidir a introdução de um novo hino.

– Seria tão simples assim tornar o insondável a palestra recorrente da fertilidade. Como uma de nós poderia dissolver o enigma que nos levaria do ventre ao abismo de tantas consagrações? Com que frequência o mito brinca com os bonecos transparentes de suas vicissitudes? Quando cremos que o mistério tatuou em nossa carne a última flama do impossível, ali, na mesma pele, ao lado, encontramos a remissão ou regeneração de tudo o que perdemos.

– O que deveria ser esquecido, de um modo ou de outro, por que razão deixa guardado em nosso íntimo uma última pista para a ilusão do retorno? Seria assim tão previsível que as luzes se reunissem em torno da escuridão, como o tema central de uma nova percepção do espaço? Que estranha tinta usa o abismo para manter invisíveis as suas fendas mais disputadas?

– Quanto cabe não se deixar sufocar por esse fervilhar de penumbras? Os rios serão sempre impetuosos. O horizonte não aceita que voltemos amanhã para sua casa como um romance assegurado. Caímos o tempo inteiro. Como uma noite mal dormida ou um mito extinto. Nossas vidas não valem nada até que aprendamos a recusar seus vícios.

 

 

TABULETA DE ESPÍRITOS

 

Os goles de vinho se misturam aos sorrisos e falas. Todas sabiam da existência de um pórtico invisível que daria a aprovação para que elas adentrassem aquele círculo de associação com o cosmos, a mesa dos presságios e oferendas, a tábua dos enigmas revoltos do firmamento. Ada regressa da cozinha trazendo uma travessa com uma salada de algas marinhas e pimentas-rosa, banhada em vinagre de arroz. Enquanto ela distribui pequenas porções em pratinhos começa a contar onde esteve por sete anos.

 

[Ada García] No dia em que saímos todas daqui eu larguei a minha bicicleta logo à frente e caminhei por algum tempo. Jamais me havia passado pela cabeça deixar vocês. Os borrões sanguíneos que desenhei me seguiam com seus cascos penosos roubando meu ânimo. Que espécie de provação se avizinhava? Uma fúria controversa foi surgindo em mim e movendo objetos por onde eu passava. Quando me acalmei tudo voltou ao normal. Em casa, por algumas noites sonhei com um mesmo relógio de sol, que acabei descobrindo localizar-se em um centro de estudos em Foz do Iguaçu, para onde resolvi seguir. Pedi a um amigo que cuidasse de minha casa e tomei um avião em busca do que passei a considerar um sinal do destino. Durante o voo pude ver a facilidade com que eu movia com o olhar pequenos objetos, o copo, o lápis, meu caderno de anotações. Eu vinha ganhando confiança e já não me assustava aquela habilidade. Logo chegando na cidade fui informada de que o relógio do sol ficava em um polo astronômico, até onde me dirigi. Tudo aquilo era um obscuro desígnio. Diante do relógio eu me prostrei hipnotizada até que vi despencar subitamente do céu um objeto pesado, pelo estrondo que fez ao tocar o centro do relógio. Quando a poeira se dissipou percebi se tratar de uma caixa de metal, algo como uns 30 cm de cada lado e quando tentei lhe tocar ela esboçou um princípio de convulsão, parecia estar possuída por alguma forma de eletricidade. E na medida em que tremia surgiam em seu corpo umas riscas como se fossem veias saltadas. Aos poucos as riscas iam tomando a forma de adágios em um idioma que, embora eu desconhecesse por completo, algo em mim o compreendia e passei a ler em voz trêmula os seus dizeres. Eu serei o que ainda não estás preparada para ser. Eu te guardarei, porém jamais me apossarei de teus bens. Os feitos que são teus, nenhuma tempestade pode apagar. O que tudo aquilo queria dizer? Um tremor me assaltava o corpo inteiro, enquanto eu me sentia impelida a continuar lendo. Tu és pura e as formas que ocupas são as minhas façanhas na terra. Eu jamais usurparei as tuas semelhanças. E te servirei enquanto a vida persistir em teu ser. Comecei então a pensar em vocês e aquela escrita foi desbotando até desaparecer de todo. Voltei a tocar a caixa, que permanecia estática e com um peso excessivo que não me permitia movê-la, seja com a mão ou com o olhar. Quando deixei o lugar fui a uma lanchonete tomar uma água e ali me deparo com um calendário na parede que acusava a passagem de sete anos desde que eu chegara.

 

PÓRTICO

Deves entrar, és pura, és nossa.

 

[Komako Rachiri] Não sei se me assombra mais o que nos contas ou se o aparecimento dessa voz misteriosa vinda do nada ou de todas as partes. Eu também tive às voltas com os alfarrábios do tempo e até o momento considero que passei sete anos dentro de um sonho. A começar pelo modo como cheguei àquela ilha no Japão, descendo do céu por um fio de luz, ignorando as leis físicas, superando todos os apegos da realidade. E aos poucos fui percebendo se tratar de uma ilha vulcânica, inabitável, com sua cratera colossal. Do alto o esverdeado do enxofre se confundia com uma espessa vegetação entornada por toda a extensão de terra. Quando toco o chão confirmo que era apenas um mar rochoso sem fim, variando sua silhueta entre arcos e fossas. Talvez eu estivesse ali para criar uma fauna absurda que pudesse dar vida àquele sepulcro verdejante. Permanecia intacto, fazendo a ponte inquebrantável entre céu e terra, o fio de luz por onde eu descera. Ao tocá-lo dei por conta de que poderia extrair de sua claridade intangível uma exaltada espécie de feto, de origem desconhecida, cuja forma seria dada por mim. Eu não podia pensar em uma forma humana ou animal, pois nenhum ser vivo sobreviveria àquela terra desolada. Fui buscar em minha imaginação uma fusão dos três reinos. O primeiro golem a que dei vida tinha a cabeça de cão, o tronco de cobre e os membros de pequenos ciprestes. A reunião desses reinos deu ao primogênito um caráter melancólico. Era preciso pensar em algo mais expansivo. Então me veio a ideia de fundir a um tronco de mercúrio, a cabeça de uma águia e os membros de uma ameixeira. A fórmula dera tanto certo que cuidei de algumas mais variando apenas a cabeça, evocando águias, faisões e mesmo flamingos. Descobri nas aves um contraste com aquela paisagem petrificada que não pude encontrar em répteis ou mamíferos. Aos poucos eu fui tratando de povoar o ermo que me recebeu como uma sacerdotisa que fora levada até ele justamente para lhe recuperar vida. Tais figuras fantásticas seriam a nova expressão de uma existência. A evolução possível de um mundo feito de escombros. Sete anos se passaram até que uma manhã eu despertei em um hotel em Kioto e tinha em minhas mãos um cartão postal de Kioshima, a ilha vulcânica que um dia teria soçobrado. Era a minha hora de voltar para casa.

 

PÓRTICO

Deves entrar, és pura, és nossa.

 

[Bertha Malik] Novamente a mesma voz que parecia vir de um oratório que não podemos distinguir. Ouço o que as duas acabam de contar e por alguma razão eu tinha muito medo de me perder em andanças pelo mundo, um temor de não encontrar o caminho de volta que permitisse nosso reencontro. Decidi então não ir a lugar nenhum. Imaginei que se criasse um círculo de proteção espiritual eu poderia atravessar os sete anos sem nenhuma interferência externa. Logo na primeira noite, ao dormir eu me vi sentada no chão tendo em minha volta um círculo desenhado a carvão. Eu me sentia como uma realizadora proeminente. Alguém que se punha ali para desbravar os elos entre todas as coisas no céu e na terra. Aos poucos senti que uma febre crescente ia me elevando e eu desconhecia repouso ou atividade. A febre, no entanto, foi assumindo a configuração de um excesso, e com ela nascia um impulso atrevido, de que somente na demasia era possível ter equilíbrio. Senti meu espírito deixar o corpo e vagar em busca de um sítio em que pudesse se alimentar dessa voragem febril que o guiava. Nos prostíbulos de Saigon encontrei uma lúbrica oficina de relógios da noite, na medida em que fui visitando o corpo daquelas meninas descalças. Experimentei exaustivamente o sexo em todos os seus domínios, uma corredeira de íncubos e súcubos, a glosa desenfreada da dissolução da carne. Tudo me era revelado em espírito, sentada no círculo de carvão eu podia acumular os artifícios de um demônio em cada mulher. Era como se eu tivesse fabricado aqueles corpos para me dar prazer e vencer o tempo. Cada noite compunha seu próprio ritual de transferências anímicas. Em momento algum cheguei a pensar que aquela imersão teria que retumbar em meu ser por 2.500 noites. Eu me lembrei daquele poema que Lenilde gostava de dizer, cujo final asseverava que todo mito é deformado pelo culto. Eu estava me consumindo e os riscos de não voltar a estar aqui com vocês se tornava maior a cada noite. A ilusão de que eu poderia ser a precursora de mim mesma foi se tornando uma casa em ruínas, eu teria que cessar tão resplendente astúcia. Recordo que em algum momento consegui esticar uma perna e manchar a integridade do círculo. Meu corpo desabou sobre o chão, desacordado. Desconheço a duração de meu desfalecimento. Acordei com um peso no coração e a incerteza se acaso teria vivido tudo aquilo.

 

PÓRTICO

Deves entrar, és pura, és nossa.

 

[Emilia Ahmadjian] Tivemos experiências bem próximas, Bertha. Eu viajei para a Cisjordânia, porque sempre quis conhecer o deserto da Judéia. Fiquei em um pequeno hotel em Hebrom, a cidade que resplendia um labirinto de pedras, com a abundância intransferível de sua antiguidade. Ali conheci Ainoã, com seu discernimento sepulto em vida, os pulsos marcados pela opressão, a língua mutilada. Tão pequena e sofrida, porém com um olhar que de algum modo preservava ainda a revelação de uma morada em dois mundos. A força daquele olhar não disfarçava as violações que sofreu, a maldição que lhe corroía as carnes, era a fonte de uma insubornável resistência. Nada em Ainoã cheirava a renúncia. Ela me transmitia sabedoria. E quando deixei seu corpo foi como se uma lâmpada abandonasse sua luz, a partida de um íncubo, a fuga de propriedades mágicas. Durante sete anos fiquei naquele país, convivendo com seu povo. Em uma única noite eu fui humilhada por uma paralisia do sono. O corpo parecia um bloco de pedra, talvez a mesma pedra de que é feito o labirinto de Hebrom. No desespero para me libertar daquele cativeiro, mal pude abrir os olhos e me vi largada ao canto de uma gruta, com os braços amarrados por uma corda espinhenta. Não havia sentido naquilo. Não poderia ser eu. Foi quando identifiquei Ainoã, o meu espírito ocupava seu corpo abatido. Senti a ausência de língua. Ao vasculhar sua memória dei-me pela conta de que havia sido capturada pelos vermes seguidores de um rei estúpido. Aquela aliança mística não durou senão poucos minutos. Finalmente consegui mover meu corpo, e saí da cama. Nas próximas noites, por maior que fosse meu temor, jamais voltei àquela morbidez de sentidos.

 

PÓRTICO

Deves entrar, és pura, és nossa.

 

[Lueji Llalej] Busca mais vinho, Ada. Essa voz que se repete talvez venha do fundo vazio de nossas taças. Uma coisa me impressiona nessas histórias que estamos contando. Elas partem de uma mesma origem, o caminho que deveríamos tomar por sete anos, como uma espécie de limpeza das nódoas que estavam tomando nosso espírito naquelas reuniões mensais. Estávamos sendo chafurdadas pelo acaso, que nos martirizava pela falta de experiência. Komako percebeu muito bem que uma jornada era imperativa, uma peregrinação não propriamente pelo mundo físico, mas pelas estradas chamejantes da alma. Os deslocamentos se deram de maneiras bem aproximadas, o que significa que mantivemos certa linha de confluência em nossas expectativas. Quando eu cheguei em Cuiabá, decidida a perambular pelo centro-oeste brasileiro, sofri um acidente de trânsito que me levou à necessidade de extração do baço. Na sala de cirurgia, tão logo veio o efeito da anestesia, senti o chamado que me levou ao centro de um espaço azulado, estranha forma do vazio. Quando me ergui percebi que não havia cama, tudo era um esplendor azul desabitado. Em segundos surgiram ao longe três vultos que me lembraram aquelas figuras espigadas desenhadas por Emilia em nosso último encontro. À diferença delas as que se encontravam diante de mim eram etéreas e suas silhuetas, incompletas. O rosto lembrava o descrito por tantas pessoas que foram abduzidas, a reiteração descritiva de fatos e ficções. O azul era uma espécie de fogo primordial e me chamava para si como se eu fosse uma amante da chama. Eu sentia as suas vozes dentro de mim. Elas me faziam ler um livro intangível e vislumbrar à altura de meus olhos grandes telas que reproduziam cenários de destruição. Nossa comunicação era telepática e mesmo o som das imagens não me chegava pelo ouvido. Tudo era revelado em meu íntimo. O modo como estamos destruindo o planeta e o que poderia ser feito. O inferno que levamos dentro de cada um de nós, um golpear perene de crises viciadas que fecham todos os caminhos. A nossa vida está por um fio, Lenilde. 

 

PÓRTICO

Deves entrar, és pura, és nossa.

 

[Lenilde Fablas] O nosso discernimento se encontra inteiramente desfigurado. Não é que vejamos a escuridão em que mergulhamos. O que ocorre é que nossos olhos estão negros e contaminam a percepção. Assim como vocês eu também estive em dois lugares ao mesmo tempo. Naquela mesma semana em que nos despedimos viajei para Sydney, decidida a continuar escrevendo meu romance. Flanar pela grande baía era um sonho. E poderia escrever quanto livros quisesse naqueles cafés, escutando o burburinho de idiomas que por ali passavam, as gaivotas e o excesso de beleza com que o sol pintava de azul o céu. Seria o momento precioso de vasculhar a vida de Li Sung, descobrir o que verdadeiramente houve com ela em Bachim. A metáfora dos pássaros entrando em sua casa deixando o canto lá fora aponta na direção de uma dissidência brutal entre corpo e alma. Em meio às perseguições a seu povo, por suas crenças milenares em múltiplos deuses, a pequena área que habitavam à margem do rio Neprum foi invadida por militares a mando do governo cristão, ordenados a intimidar os cultos. A maioria dos homens havia sido convocada para a guerra, de modo que a localidade estava guardada por velhos, mulheres e crianças. Os soldados viram naquelas mulheres um primeiro poço de martírios. Era preciso livrá-las de suas confusas crenças, e abriram caminho forçado em seus corpos para uma violência lasciva. Os gritos das crianças se juntaram aos das mulheres estupradas, e logo algumas delas também foram violentadas, espancadas, mortas. O agouro das aves negras preparava seu banquete na medida em que os primeiros cadáveres começaram a ser jogados no rio. Os corpos dos anciões foram seguidos pelos das crianças. As mulheres foram barbarizadas até o último fôlego. Ao final, as águas tingidas de sangue, a terra putrefata, Li Sung, que se escondera no alto de uma árvore, estava paralisada pelo desespero, diante do horror daquele cenário. Ela construiu dentro de si uma morada que a protegesse das sombras delirantes da carnificina, porém algo nela se recusava a esquecer o que houve. Ao convidar para entrar em sua casa os abutres os poucos que lhe atenderam ao chamado o fizeram em silêncio. O pavor estava ali, ela o percebia, mas ele rejeitava sua narração. Durante os anos que passei na Austrália escrevi um extenso romance que era a história sem nomes de um povo cuja chacina negava ser contada. Não havia encantamentos ou homenagens em suas páginas. Apenas o rastro sinuoso e constantemente interrompido das incertezas. Nada servirá de exemplo. O mundo deve continuar a sua jornada a caminho do abismo.

 

PÓRTICO

Deves entrar, és pura, és nossa.

 

[Rebeka Naceri] Creio que todas queremos que leias teu romance para nós. Não importa se é real ou não o que se passou conosco. Nós também vivemos as histórias que nos contam, assim como os sonhos que se agarram à nossa memória, desejosos de uma vida própria. Eu precisava de uma experiência selvagem, buscar a natureza primordial dentro de mim. Viajei para o Amazonas e descobri à margem do rio Juruá o lugar quimérico para instalar uma dessas barracas maiores para cinco ou seis pessoas. Peixes, cocos e pequenas frutas silvestres foram meu alimento por muito tempo. Minhas lições de ioga foram proveitosas e também pratiquei um pouco de levitação. O único nome de que me recordo é o de Elvira Broghèse, dona de uma espelunca de prazeres sexuais, de quem eu me tornei sua libertina particular e a visitava sempre que necessitava algum dinheiro. O prostíbulo ficava em Contamana, cruzando a fronteira e um barqueiro me levava até lá. Eu sempre trazia comigo de volta a Juruá uma ou duas meninas que fariam a festa de minhas delícias diante do rio. Cheguei a ter comigo seis delas e me perdia em seus afagos. Sempre que eu mergulhava nas águas do Juruá me acontecia uma curiosa manifestação que não sei se do acaso ou de outra forma de desvario. Ao fechar os olhos dentro do rio surgiam lampejos de barragens detonadas, corpos à deriva, árvores naufragadas, como se toda uma história viesse à tona. Tudo em absoluto contraste com a beleza edênica daquela região. As meninas gostavam que eu lhes contasse esses relatos incompreensíveis da destruição da natureza. Não sei o quanto daqueles relatos eu inventei. Meu corpo estava viciado nas carícias erráticas daquelas meninas. Eu poderia viver o resto de meus dias com elas. Pura tolice. No fundo eu sempre quis estar aqui com vocês e que vocês fossem as minhas meninas.

 

PÓRTICO

Deves entrar, és pura, és nossa.

 

A última voz a repetir aquele chamado mantinha o enigma de sua origem. Os sete anos de ausência entre elas finalmente pareciam cumprir as exigências de uma senha propiciatória de novo encontro. Porém o dia agora deveria caminhar em que direção? Elas estavam certas de que não poderia retornar àqueles encontros anteriores. Tanto escavaram sua alma que certamente encontraram novos fantasmas, assim como novas torrentes de ser.

 

 

SELVAS DELIRANTES

 

O jantar era carne de vitela com castanha e mel. Água e vinho eram dois amantes inseparáveis. As sete mulheres eram feitas de olhares luminosos, sorrisos e carícias. Seus corpos por vezes pareciam um só. Sem nenhuma noção do que poderia se passar lá fora. Não havia maior experiência deífica do que o instante e a soberania de seu relâmpago. No entanto, qualquer deus difere de sua sombra de prenúncios, pois nos visita carregado de paradoxos. A dúvida é a única fé possível. Ela exige que toda autoridade seja renegada, somente o imprevisível nos presenteia com uma utopia reveladora. Em meio a esses enunciados silenciosos, entrecortados pelas risadas enlevadas, o tempo não encontrava lugar para suas fábulas. Ada García foi a primeira a manifestar as linhas equidistantes do que acontecera com todas elas, como se estivessem sempre reunidas por um mesmo princípio. Em seguida, observou a curiosidade que tinha lhe despertado o relato de Lueji Llalej, cujo cenário descrito era o único que se passava em um mundo alienígena, mesmo considerando que talvez fosse fruto unicamente de sua imaginação. E prosseguiu:

 

– Ao evocar a cor azul e suas nuances, Lueji mergulha no infinito e o ambiente extraterrestre talvez seja uma imagem dessa necessidade de ir mais além. Eu queria saber um pouco mais até que ponto esse azul não foi a tua busca de uma vacuidade.

– Não estás certa quando dizes que a minha experiência foi a única a referir um ambiente fora da Terra. De algum lugar no espaço veio a caixa de metal que viste cair do céu. E estou certa de que o modo como ela se comunicou contigo foi algo mais do que apenas um êxtase místico através do qual tentavas manter uma ligação entre nós todas. Em parte, querias levar até o limite do absurdo essa talvez irônica manifestação de uma linguagem surgida de um latejo das veias de metal. Mas a caixa era um objeto físico e caiu mesmo do céu. De onde ela terá vindo? Em meu caso foi uma inversão, eu caí dentro da caixa (risos). O azul deve corresponder não a um abismo estelar, mas à afirmação de uma consciência, onde as forças contrárias se reúnem em torno de uma linguagem que seja a fusão de todas as formas. Como aqueles pássaros que se recusavam a cantar, que Lenilde acaba compreendendo, em seu romance, que eram a única realidade restante no íntimo de Li Sung.

– Assim como este vinho, as palavras em meu romance foram bebendo a tensão entre desejo e realidade. Confesso que jamais me preocupei com a exatidão correspondente entre os fatos históricos – que eu havia lido na imprensa há poucos anos, que vocês todas devem conhecer – e a minha decisão de comover a leitura com as joias da indignação.

– Eu estou muito curiosa em relação ao teu romance. Tens razão ao dizer que a analogia independe da veracidade de seus tópicos. A arte não pode se confundir com ciência ou religião. Não pode ser catequese ou paradigma inquestionável.

– Mas a tua conotação de um espaço alienígena reflete uma realidade paralela que permanece questionada, não?

– Não, Ada. Primeiro não podes esquecer que o ponto de partida de minha experiência se deu em uma sala de operação, eu estava sendo operada de um acidente que sofri. Quando a anestesia me apagou os sentidos, um inusitado mecanismo se instalou e me vi transposta para outro lugar. Eu jamais havia planejado aquilo e nem mesmo o assunto costumava me prender a atenção. Algo que permanece me assombrando diz respeito ao tempo. Eu poderia pensar em explicações para a conexão entre dois mundos, as minhas preocupações com as agonias climáticas, meu ativismo ambiental, até mesmo a percepção de um acaso objetivo que tenha provocado a urgência de extração do baço. Em nenhum desses ângulos eu consigo encaixar o abismo real de anos que se passaram no hospital, uma cirurgia que tenha tomado mais de seis anos em sua realização. Onde estive durante todo este tempo é algo que não consigo assimilar. Enfim, o real por vezes pode ser uma coisa absurda.

– Tão absurda quanto a paralisia do sono que me transportou a alma para o corpo daquela jovem sequestrada. Tudo poderia ser apenas fruto de minha imaginação, não fosse o fato de que, ao recuperar o domínio de meu corpo os meus pulsos estivessem marcados pelas mesmas cordas ásperas que aprisionavam Ainoã.

– Tens razão, Emilia. Eu creio que essa tua aprendizagem traz em si um mecanismo desafiador. O que houve comigo na ilha japonesa foi um jorro infindo da imaginação, como uma deusa errática criando mil formas.

– Ora, Komako, mas a verdade é que nunca estiveste em Kioshima, uma ilha que talvez sequer exista, e não há nada que explique que tenhas durado esses anos todos naquele hotel em Kioto, despertando sem o menor sinal de como o tempo se passou. Eu poderia pensar que estavas sob efeito de ópio. Sinceramente não encontro outra explicação.

– É verdade, Rebeka, eu esqueci que tudo começara no hotel e não na ilha. Permanece a teimosia do maior de todos os mistérios: o tempo.

– Por vezes eu penso se algum dia chegamos a deixar esta cabana.

– Não me venhas com tuas loucuras, ‘Beka.

– É verdade, ‘Nilde. Lueji não tem a cicatriz de sua cirurgia. Emilia possui os pulsos bem limpos. Bertha sempre teve a mesma sofreguidão que eu. Não creio que tenhas comprovação de tua viagem à Austrália, assim como eu não tenho evidência alguma de haver estado no extremo norte, sem falar no fato de que sou demasiado indolente para acampar sozinha.

– E durante essa lacuna de sete anos em nossa vida…

– Mas quem disse que se passaram sete anos? Começo a pensar que há poucas horas Komako manifestou seu temor de que estávamos caminhando para uma perda de controle e nos sugeriu deixarmos a cabana e nos ausentarmos de tudo por sete anos.

– Que diabos está se passando! Vejam, as nossas bicicletas ainda estão lá fora.

– Lenilde, onde estão os manuscritos de teu romance?

 

 

PRESENÇA INESPERADA

 

Pequenos objetos, taças, garrafas, almofadas, folhas de papel, lápis, flutuavam no ar e se moviam formando um círculo em ritmo cada vez mais acentuado, se deslocando da altura da mesa na varanda para o espaço vazio a seu lado. À margem daquele êxtase se mantinha em curiosa quietude um pequeno cesto que resistia à força telecinética desprendida por Ana García, um transe vigoroso que mantinha sob hipnose as demais mulheres. Uma enfermidade do instante. Um mercado de ilusões. Um redemoinho de rostos. Sete vezes o sacrifício de portas que se abrem e fecham. Candelabros, templos, selos – sete videntes renegam a repetição do mundo. O cesto emana um choro de bebê, como uma serpente alada que percorre o ar na medida em que cessa aquela suspensão ou encantamento, as sete mulheres despertando de seu torpor. O choro se intensifica com o barulho dos objetos caindo ao chão, os vidros quebrados, o tempo exaltado disposto a aceitar uma nova direção. Lenilde é a primeira a se levantar de sua cadeira em busca do cesto.

 

– Como esta criança terá vindo parar aqui?

 

As horas mortas no cabide dos sonhos. A gravidade imprevisível como fim de um desastre. As luzes sussurram do interior de cada objeto. Rebeka ainda aturdida indaga:

 

– O que fizeste, Ada?

 

– Algo além de mim, eu não sei explicar. Eu apenas senti uma conexão com tudo à minha volta, e um centro de energia parecia querer sugar até mesmo vocês. Como se fôssemos tragadas para uma outra dimensão. Curiosamente eu a tudo observava com incrédula lentidão e cheguei a pensar que seríamos levadas a um cenário distante daqui. Mas nenhum portal era visível. As coisas aconteciam como se fossem um desgaste da mente. Nada parecia real. Só despertei daquela estranha forma de letargia quando ouvi o primeiro choro da criança. Era quase como estar nascendo, como se fosse eu mesma a deixar o abrigo materno. Aquele choro era meu. Talvez não fôssemos nós a cumprir uma passagem, mas sim a criança, ela que teria adentrado nossa vida através desse portal imaginário.

 

– Por onde então começamos?

– Certamente que pelo infinito.

 

Ada suja os dedos com carvão e rascunha o infinito na mesa. Aos poucos a rota do carvão emana uma luminosidade rara, como o esboço de uma trilha a ser seguida. Rebeka se aproxima do cesto no canto da varanda e dali recolhe uma pequena brochura xilogravada cuja capa revela tratar-se de um Livro das sutilezas. Seus versos lidos produzem o efeito de um encantamento.

 

as noites como pequenas cicatrizes na pele da luz

esses cortes sentenciados a denunciar os pecados

as horas mais fáceis de engolir como seitas

as queixas um número prodigioso de queixas

as espirais de nossos corpos ungidos um labirinto

carcomido em sua medula uma espiga apodrecida

as pedras rolando com um incêndio em seu íntimo

 

Em algum momento da leitura a voz de Rebeka foi substituída pela de Komako, nas mãos de quem o livro já se encontrava e este ritual se repetiu até que as sete mulheres houvessem lido cada uma delas uma passagem:

 

as caricaturas se corrompem como esfinges perseguidas

por um mesmo destino não importa a dimensão da noite

a semelhança é uma desfiguração impensável

um rastro que perpetua o aviltamento dos sentidos

procurem bem por outros livros dentro de cada leitura

sem deixar que os fanatismos apertem seus laços

as últimas tramas hospedadas trazem um calafrio sem fim

 

Elas seguiram lendo a brochura como se fosse inesgotável seu conteúdo. Impossível prever quanto tempo levariam a desatar aquele mecanismo ilusionista.

 

 

15 ANOS DEPOIS

 

Eleanor Elbe era a grande filha de sete videntes. Sua vida parecia determinada ao êxtase ininterrupto. Há anos fora anunciada em um transe de Lenilde Fablas e a menção a seu nome não provocou a menor reação. De algum modo as outras seis mulheres sabiam de quem se tratava. E o acaso conspirou para que o equilíbrio entre elas fosse alcançado através de uma criança deixada à entrada da velha cabana onde todas se reuniam na primeira lua nova de cada mês. Inefáveis luas se passaram. O nome de nenhuma delas poderia ser dito, sob pena de todas convergirem para a lua do morto, aquela que rege um ideário progressivo de devastações e aniquilamentos. Sob sua condução as chagas proliferariam, os tremores de alma e terra, a soma de infortúnios seria perene. Um regime passivo em que todos os seres vivos eram receptáculos de adversidades. Somente a lua sem nome transmitiria beleza e conhecimento em uma fórmula transformadora. Por 180 luas Eleanor foi nutrida com as folhas e raízes mais fecundas do firmamento. Mesmo agora, quando ela dava início a uma primeira migração, levaria consigo os trevos de tantas luas, as lâminas do instinto, os símbolos de uma dupla iluminação.

 

– As tuas luzes estão prontas para uma nova prática, minha filha.

– Eu me sinto forte, mãe Komako. Consagrada pelo entusiasmo. Estou segura de que nossa separação será apenas no plano físico. Levo comigo vocês todas, como bússolas indispensáveis à transfiguração de meu ser.

 

 

SETE ESPIGAS

 

Há três anos Eleanor Elbe havia partido. Sua primeira parada foi em Al-Quiaṭyra, o nicho dos três sóis, com suas moradias como que paridas pelas areias. Naquela vasta planície, as casas eram filhas do deserto, erguidas em dupla jornada pelo homem e a natureza. O alcance simbólico de seus braços, permitia a Eleanor orientar novas construções, abrindo canais de irrigação que dariam àquela província uma riqueza subliminar. Em casa, as sete mulheres a observam através dos olhos de Rebeka Naceri. Uma vez a cabeça imersa em água, seu olhar se convertia nas pedras cristalinas que evocam em detalhes a amplitude de todos os lugares na terra. Vinha de seu dom a certeza de que em momento algum a filha estaria sem proteção. Elas eram as sete mães e Eleanor a raposa civilizadora. Seu corpo espelhava as faltas e desajustes de todos quanto dela se aproximassem. Tudo procedia desse metal que captava os dissabores da consciência humana. Todos os erros se reconheciam em sua pele vítrea.

A segunda jornada foi em Uluru, a imensa rocha natural no centro do deserto australiano. Seus rios de terra se espalhavam por todo o terreno. As listras negras com seus afluentes numerosos, uma caligrafia de mistérios que revelavam a Eleanor que o monólito vermelho sangrava de expectativas de sua chegada, ela que traria os ensinamentos de como levar água àquelas estrias ressecadas. Escavadas a certa profundidade, a imperativa chegada das chuvas seria a sombra e o reflexo de um múltiplo manancial. A terra cantaria por todas as veias: eu trago da altura insuspeita dos céus os acórdãos iluminados dos deuses, eu trago a alma de todos os curandeiros que varrerão para longe a poeira da morte, eu trago as torrentes que renascem em contato com o espinhaço da terra, evoé, evoé, as bacantes são nossas guias, Uluru agradece a grande obra das águas.

A terceira jornada levou Eleanor até os pastos desancados no centro-oeste brasileiro. As forrageiras no Cerrado entoam cantos à aveia ucraniana que lhes trará uma estirpe de prosperidade. Era preciso expulsar as efígies da fome. Lavar o espírito do grão para que ele voltasse a reinar em todas as estações. As árvores também cantam e se erguem, as copas em ritos buscados em várias partes do planeta, uma renascença de cerimônias férteis. Cantam ainda as borboletas com suas asas ensinando aos ventos onde roçar seu corpo. Uma antiga teoria da natureza esplende abrigando a fadiga dos nativos. A cada mulher esgotada uma raiz de angico ou jatobá, a cada lamento um gole desse chá restaurador. Os deuses beliscam a terra para manter o plantio.

Eleanor atendeu ao chamado, em sua quarta jornada, dos papiros submersos no delta do Nilo, onde o rio esgalha sua árvore genealógica. Um braço de Deus e o fogo das águas. A exaltada vastidão de seus mantras juntava-se à eletricidade quimérica de sua foz na forma de um ventre. A partir de sua vagina o rio azul se movia como uma serpente harmoniosa anunciadora de seus míticos ancestrais. Quetzalcoatl pronta a sacrificar-se pelos povos de suas margens arenosas. A serpente inspirada do Nilo deveria percorrer todo planeta. A vida não é uma condenação. A ideia de pecado é uma fístula que o homem talvez ainda possa reparar, as águas deveriam banir as religiões, a união livre de todos os seres não seria uma sedução demoníaca. Os rios unificados renegam o obscurantismo bíblico. A serpente do Nilo recebe em seu útero o dragão de outras águas.

O inferno queima por dentro e expele os verbos do inconsciente, as chagas invisíveis das perversões humanas. Uma iniciação de opostos atormenta o mais insondável de seus mistérios. O inferno quer livrar-se de si, de sua desventura absoluta. Porém as suas vísceras se perpetuam como uma maldição mítica. Os homens não querem o inferno para si, porém não se desfazem de seus vícios e ilusões. Assim como o inferno, os homens cultivam os excrementos da avareza e do horror. Em sua quinta jornada Eleanor deveria apagar o reflexo do inferno, impedir que ele tomasse todas as formas, revogar o trabalho de suas lágrimas.

Kalasasaya aguardava há milênios a chegada de Eleanor, com seus guardiões de pedra fundidos à pele da grande muralha. De todas as portas do sol, seria por ali que os deuses migrariam quando os homens estivessem prontos para o cultivo de sua própria natureza. Um dia Tiwanaku amanheceu e tinha diante de si a proteção requerida. Cada pedra olhava em seu íntimo e ruminava com júbilo a joia do mito. Todas as civilizações perdidas encontraram lugar naquela epifania, graças à qual se determinaram a partilhar os tratados da natureza. Por essa porta que tomava acento no mundo tinha início a sexta jornada.

Os livros sacrificiais se postam diante da mulher e da árvore como não compreendessem que a balança essencial não corresponde à deposição de valores e sim à seiva encontrada na fricção de dois mundos. O céu e a terra se distinguem entre si apenas por um efeito de perspectiva, como a influência fugaz dos espelhos. Eleanor se dirigia à sua sétima jornada enquanto refletia sobre o paradoxo das sombras. Em um mundo de trevas elas não são visíveis. Tampouco sobrevivem a um reinado exclusivo da luz. O sonho e a vigília são frutos da respiração e nenhum deles suporta a ausência do outro. A criação se estende pelo planeta graças ao plantio infatigável de hinos. Os tambores sacrificiais não são o ovo do mundo. Eleanor seguiria sua viagem como uma caravana de estrelas até que o último oásis desperto erradicasse os infortúnios.

 

 

REFÚGIO ACIDENTADO

 

A velha cabana é um refúgio fora da cidade. As sete mulheres não se reúnem ali mais apenas ao princípio de cada lua nova. Desde a chegada de Eleanor Elbe elas passaram a morar juntas. O carteiro costuma deixar a correspondência sobre a mesa na varanda. Na última semana chegaram dois postais da filha, no último deles o pedido para que todas elas, na primeira hora do 25 de setembro, estivessem dormindo, pois as visitaria em sonho. Agora a noite chegara e as sete mulheres se deitaram na sala, no sofá e em colchonetes improvisados. Luzes apagadas e o habitual incenso de âmbar. A noite petisca as primeiras imagens dispersas dos sonhos. Lenilde está em um corredor em cuja curva encontra uma pequena garota agachada. Dela se aproxima pensando ser a sua filha. A menina ergue a cabeça, o rosto tomado pelas lágrimas. Ela desconhecia como foi parar naquela casa.

 

– Eu estava sonhando com um jardim verdejante e florido. A minha mãe sentada em um banco me olhando. Ela havia morrido há alguns anos, mas agora estava a meu lado. Nas últimas semanas as minhas noites foram todas preenchidas pelo mesmo sonho. Ontem ela me disse que eu jamais fechasse os olhos quando estivesse no jardim. A mãe era uma passagem secreta para um mundo que desaparecera com a sua morte. Tudo nela me protegia do que a vigília impunha. Meus olhos começaram a pesar e logo foi impossível mantê-los abertos. Uma vez fechados vim dar nessa casa escura, repleta de corredores embruxados que se debruçam sobre meus anseios sem que nada me digam. Eles me assustam, eu perdi a minha mãe uma vez mais. A alucinação é uma forma bizarra da realidade. Quem é você?

– Eu me chamo Lenilde e estou procurando a minha filha. Podemos descobrir uma saída dessa casa, vem comigo, nós também procuraremos a sua mãe.

– Onde você perdeu a sua filha?

– Eu não a perdi. Ela me pediu para dormir que viria se encontrar comigo em meu sonho.

 

As duas caminharam por aquele estranho labirinto de corredores sem uma única porta ou sinal de passagem.

 

– Isto não pode estar acontecendo. Este lugar pode estar se repetindo e nem percebemos, pois tudo nele é absolutamente igual, uma agonia que se repete incessante.

– Talvez devêssemos fechar os olhos. Em algum momento devemos encontrar um sentido para tudo isto.

 

As duas se deram as mãos e juntas fecharam os olhos. Um único corredor se estendia como uma reta imensurável. Em uma das extremidades uma luz cintilava, as duas dela se aproximaram, as paredes se tornaram um vão tenebroso. Ao centro uma fogueira e corpos infantis espetados prontos para serem assados. Pelo chão outros corpos se multiplicavam, ao lado de esqueletos e restos de carne. Diante daquele cenário medonho a garota saiu correndo em direção contrária até desaparecer na escuridão que definia a outra extremidade do corredor. Aquele não podia ser o lugar onde Eleanor queria se encontrar com sua mãe. Lenilde não sabia mais o que fazer. Agachou-se no chão, o corpo contraído esvaindo-se em lágrimas quando então ouviu seu nome. Ao erguer a cabeça encontrou as suas amigas no centro de uma casa cujo salão era tomado de escadarias que pareciam dar no infinito. Rebeka a tomou pela mão.

 

– Ande, ‘Nilde. Demoraste a vir. O que houve?

– Eu encontrei uma menina que havia perdido a sua mãe e a estava ajudando a encontrá-la. Mas tudo de repente se transformou em um horror insuportável. Eu só queria sair dali, então fechei meus olhos e me pus a chorar.

– Agora já estás conosco. Vamos esperar por nossa filha.

 

Komako observou que são sete as escadas que se abrem como um plano secreto da consciência daquele abrigo onírico.

 

– As luzes que se perdem no caminho já não servem para nada. Os olhos se banham em avidez por sete motivos e depois desaparecem. As proteções se desfazem a cada novo risco alcançado. Como transes que assumem as formas de um nevoeiro.

 

– O que estás vendo, Komako?

– Uma esfera que não é mais azulada como a que encontrou Lueji na migração de sua alma. Este é um volume negro, cujos pontos estão carregados de ambiguidade. Os degraus são assimétricos e se destinam à criação da imensidade. A sua presença significa que agora devemos enfrentar nossos temores. Nenhuma de nós sabe o que encontraremos ao final dessas escadarias.

– Talvez seja isto o que Eleanor quer nos mostrar. Que devemos buscar uma saída para o enigma terrível de nossas vidas.

– É possível, Ada. Uma trilha imaginária que não caberia em mapa algum. Não sei vocês, mas eu não me sinto cativa como em meus sonos paralisantes.

– Estamos livres, Emilia. Mas se trata de uma liberdade ilusória, que nos desafia a encontrar o elemento exato em que ela se converte em real.

– Um talismã invisível?

– Uma correia de transmissão que nos levará por terras insondáveis.

– E o que fazemos agora? Nos separamos?

– Sim, ‘Beka, uma vez mais nos separamos.

 

Cada uma delas começa a transpor aqueles degraus como uma miragem de caminhos retorcidos. Os tecidos esvoaçantes da imaginação. O tempo fulgindo em uma dimensão que parecia perdida. Um tempo sem hierarquia ou truques sorrateiros de evolução. Tanto escalaram aquele encantamento que era como as sete mulheres tivessem desaparecido de si mesmas. Uma sensação de formas dispersas, uma ascensão em sentido inverso, uma travessia pelo vácuo.

 

[Emilia] Eu vim oferecer o meu corpo, uma plumagem de voos, as sombras esgarçadas da memória. O mundo se desgasta nos aspectos da fé. Uma comitiva de fantasmas opulentos que imitam as aparições humanas nos templos negros. Eu quero me desfazer de mim até que seja possível encontrar um elo perdido, onde os ritos aprendam a superar seus ornamentos.

 

[Ada] Eu vim para buscar os provérbios da harmonia, aprender com eles a decifrar a consequência de cada movimento, a raiz possível de cada coisa que desloco de seu lugar aparente. Eu quero entender por que o limbo, ao desfrutar sua infusão de incertezas, rejeita as figuras mais repulsivas.

 

[Lueji] Eu vim para acender os fogos confinados ao âmago dos abismos, onde as dores tateiam no escuro os mortos que se amontoam em um sítio abandonado. Afastadas de seus pés as sandálias não reconhecem os caminhos que traçaram. Eu quero banir a mágoa das hóstias, os deuses não podem cobrar de nós mais do que lhe podemos dar.

 

[Komako] Eu vim para desterrar as injustiças, revogar o mandado das traças e a vocação usurária da humanidade. Os textos que alimentam o mundo devem estar escritos pelo altruísmo. Eu quero ver as águas subindo por um fio mágico de transposição, revendo as leis da gravidade, nos banhando por dentro e por fora como um rio que germinasse em nosso espírito.

 

[Bertha] Eu vim para devorar as equivalências e a degeneração das catarses, as pedras quentes que ridiculariza os presságios. Quem quer que se debruce sobre a aversão que sente pelos seus confunde as depressões do próprio calvário. Eu quero revelar os pormenores da culpa e o manto de infortúnios que ela prepara para nos abrigar.

 

[Lenilde] Eu vim para preparar os papiros que darão o testemunho das iniquidades, a ausência completa de justiça desde que homem se reconhece como tal, desde o espelho das águas e as chamas de seu obsessivo desejo de domínio. O inferno sempre foi muito lisonjeiro com seus escolhidos. Eu quero escavar o fogo até que ele perceba a efígie de suas iluminuras.

 

[Rebeka] Eu vim para reler as diferenças manifestas e seu caudal de elevações persuasivas, os mantéis com que a superfície nos impede de conhecer o paradeiro de nossos erros. Não há um sentido sagrado sem que se aceite suas encostas heréticas. Eu quero dormir ao relento e acordar em outro palco.

 

Cada uma delas, ao chegar ao que julgavam ser o final daqueles degraus, se encontrava com a própria imagem, como se fossem uma alma fora de seu corpo, e ouvia o que seu outro tinha a dizer. Subir aquela escadaria não lhes permitiu ver os deuses, mas sim compreender algo do patamar de seus paradoxos, espécie de tabuleiro móvel em que as hipérboles estendiam cordas no centro abissal de cada existência. Komako Rachiri foi a primeira em compreender a correspondência entre elas e a criação. Suas virtudes atendiam pelas sete exigências das metamorfoses: calcinar, sublimar, dissolver, deteriorar, destilar, coagular, tingir. Cada uma das sete mulheres teria que decifrar a sua relação com o mundo. As suas escolhas teriam que superar os lampejos dos pequenos rituais mediúnicos, os vislumbres eventuais, os objetos suspensos no ar sem controle de seus princípios. Qualquer que fosse a forma que assumisse o espaço, seu traçado nascente, a fonte de seus eixos irresolutos, nada as conduziria às dimensões simultâneas da transmutação buscada. Eleanor Elbe soprou uma alegoria no ouvido de cada uma de suas mães. A audição representava o primeiro contato com o tempo, a percepção de seu fraseado ativo, a elevação das formas ainda invisíveis. Da conjugação dos contrários nasceram as árvores da abundância. Era preciso revelar o duplo em suas criaturas indivisíveis. Desfazer-se das máscaras onde foram aviltados os instintos. Mesmo com as suas efusões espíritas as mães ainda tinham que entregar-se às escrituras de um mundo mais profundo. Decifrar o móvel inconsciente de cada estrato de seu pensamento. Mudar o antigo em perene, ensinar o múltiplo ao restrito, destravar o quebranto de toda inércia. Recriar o cenário que torne seus atos evidentes.

O grande salão ressurge como um corpo mítico. Dentro dele se vislumbra o mundo, como em um livro ou em um estalo secreto da mutação. Uma voz oficia o que está aquém do entendimento. Lagos, pássaros revoando, uma palavra realçando a margem, uma viagem debruçada da abóbada subterrânea.

 

– Como te chamas?

– Eu tenho sete nomes. Queres ouvi-los?

– O teu passado não me impressiona. Interessa-me saber a que nome chegaste. E o que aprendeste com essa decisão.

– Aprendi a ser o centro da pedra. Aprendi o enigma das pernas do sonho. Aprendi a jamais proferir palavras de julgamento.

– Porém não sabes por qual nome te decidiste. Ou manténs a ilusão de que possas não ter nome?

– Eu sou um doador de céus.

– Teu nome é tempestade.

– Eu sou um doador de destinos.

– Teu nome é reencarnação.

– Eu não posso escolher as crenças, os retratos ou mesmo os nomes de cada indivíduo.

– Mas deves ter o teu próprio nome. A tua filha terá que saber a quem devotar a sua alma.

– Ela permanecerá em cada uma de nós. Com seus braços exaltados ela nos receberá como as sete mães que a tornaram melhor do que toda semelhança.

– Este é um julgamento teu.

 

Aqueles eram os termos do ludíbrio, a assinatura flamejante das mentiras. As sete mulheres viam como era tecido o diálogo no centro da grande sala, entre seus espectros e um vulto portentoso cujo rosto era um borrão confuso. O impreciso sobrevive de muitas formas. As imagens cobertas por um manto de aspectos desolados. Os atributos do abandono refazem a realidade.

 

– Eu sou tudo o que existiu em ti. A legenda das forças que foram minguando a cada estação. A matéria evasiva que constitui a tua memória absorvida pela dor.

– Eu me desfiz das inundações e dos triângulos imperfeitos, da depressão e da sinuosidade das interpretações. Vejo no mundo o que nem mesmo ele compartilha comigo. O que ele é e não como se mostra.

– Mas continuas apoiada na ideia de um ser múltiplo que abriga toda a sabedoria desorientada.

 

O gigante perpetuava a perversão de suas aparências falseadas. Dava a entender que as verdades não tinham mais em quem acreditar. Insistia em saber o nome que restara daquelas sete mulheres como a representação de sua união na filha errante. Para ele os corpos superiores dependem da resignação de seus antípodas. O mundo é um jogo tolerante de fantoches. O salão então subitamente foi envolvido por uma ondulação e uma névoa, seus traços desapareceram, um estigma incalculável daqueles desígnios fraudados. Era preciso um novo ardil gnóstico, uma insígnia cuja veneração não aceitasse objeção.

 

 

OS NOMES REVIGORADOS

 

Os sete poços descreviam uma agonia peculiar. Ada foi a primeira a se manifestar: – Tem alguém aí? Emilia abria os olhos para a escuridão interna de seu cativeiro. As demais também expressavam dor e pânico. Por um instante se entreviram, como se houvesse um fio indecifrável de comunicação entre os poços. – Alguma de vocês me escuta? Komako guardava em si a certeza de que mesmo a dor, quando em abundância, propiciaria alguma forma de milagre. As sete torres terra adentro tinham a profundidade de um silêncio recôndito. Um abismo dissimulado era o único albergue possível do emblema de sua aflição. – Alguém me tira daqui, desesperava Lenilde. A escuridão é o lar profundo do conhecimento. Em seus domínios são concebidos os espelhos sombrios de uma dúvida primordial: quantos seremos na outra margem da vida? Quantos nos aguardam enquanto sopramos a poeira do universo? Os poços estavam revestidos de um drama representado pela ausência do outro. Os olhos foram se acostumando à escuridão e cada uma daquelas mulheres reconheceu o lugar onde estava como se fosse uma sala de interrogatório. Paredes limpas, mesa e cadeira fixas ao piso, uma portinhola diante do olhar atormentado. Entreaberta em seu metal rangente se viam espreitadas pelo olhar do anão gigante, aquele vulto oscilatório que propagava confusão e temor. A respiração foragida, o corpo trêmulo, a comichão das pernas. As indagações surgidas telepaticamente, encravadas na mente delas todas.

 

– Não sei dizer. Eu fui atraída pela água do rio. Ao mergulhar meus olhos reabertos me levaram para o que poderia ser o interior de um pesadelo. Talvez eu estivesse mesmo dominada por um sonho ruim. A mortificação orgíaca de meu corpo sendo brutalmente apalpado e penetrado, braços e pernas em um frenesi ondulante sem fim. Em contraste absoluto com as jovens índias que me afagavam o desejo quando eu retornava à terra, ao nosso acampamento nas margens do Juruá. O rio mantinha ao meu alcance o ponto de integração espiritual, um entrelaçamento de círculos metafísicos, que, ao mergulhar em suas águas, eram rompidos e desorientavam as energias. Eu não sabia o que estava se passando, qual o motivo daquele divisor de sensações. Fui àquela região amazônica como quem busca hibernação. Havia planejado passar sete anos naquele berço de plenitude.

 

Rebeka Naceri acreditava firmemente em suas palavras, embora o olho na portinhola pusesse dúvidas em seu relato. Teria que contornar as adversidades, a frequência com que as inquirições eram grafadas em sua cabeça. Por vezes voltava a sentir-se no poço, arranhando as paredes lisas buscando fugir dali. – O que queres que eu diga? Sua voz era uma esmaecida película da consciência. Mentiria para ter a sua vida refeita. No entanto, tudo levava a crer que seu captor a havia condenado à dúvida perseverante. O mesmo vinha se passando com as demais mulheres. Emilia Ahmadjian também não conseguia explicar o que fora fazer no deserto da Judéia. Ela mesma não acreditava mais que se tratasse de uma paralisia do sono, que tenha sido arrastada até a Cisjordânia por um cordame de desvarios de sua mente.

 

– Eu jamais ouvira falar em Ainoã. Quando percebi estava em seu lugar, no corpo da vítima, minhas mãos fortemente atadas por uma corda espinhenta. Aquelas amarras eram um meio de me fazer sofrer, estou certa de que suas fibras tinham mais importância do que a identificação de Ainoã. As cordas vibravam dentro de si e me confidenciavam em uma espécie de telegrafia que me envolvesse com sua linguagem selvagem. Porém o que elas me diziam não estava relacionado aos conflitos da região. Seus laços eram possuidores do acaso, espécie de ironia que me levava a crer que somente aquela forma de cativeiro me conduziria à ponte onde eu cruzaria os sete anos de desgastes de meu espírito. Eu estava no centro de suas palhas apertadas e seria reduzida a um fantoche que saberia bradar apenas os acidentes de um pesadelo, até que houvesse anulado todo um calendário de repetições. Sem antes vencer as etapas fortuitas da imitação eu não poderia me reconciliar com o universo. Não, eu não sei quem era Ainoã, o que mais posso fazer para que me acredites?

 

Emilia sofreu os efeitos daquela torrente de impiedades. O anão gigante por trás da portinhola na sala de interrogatório flechava-lhe a consciência até que ela se desfizesse de suas virtudes. O mesmo vinha acontecendo com as outras amigas, corvos famintos bicando as palavras fustigadas de cada uma delas. O olhar ameaçador do anão nefasto se alimentava das feridas de sua alma. Logo foi a vez de Lenilde Fablas ser tiranizada até explicar os motivos que a levaram a dar guarida, nas páginas de seu romance, à fugitiva Li Sung, procurada por múltiplo homicídio. Tudo soava de modo improcedente. Uma farsa que não teria como ser revidada, pois a verdadeira face das vítimas será sempre improvável.

 

– Li Sung é fruto de minha imaginação. Eu a criei como representação aflitiva da solidão extrema a que podemos chegar. Mais alto do que as terras arremessadas ao meu olhar, eu posso vê-la vencendo seus medos, cantando e retendo em suas mãos o vapor divino que apagaria meus ferimentos. Escrevi esses versos como uma canção de berço, para que a pequena Li Sung recuperasse, em sua idade madura, a força dispersa na juventude. Era uma espécie de canção para com ela alguém atravessar o tempo e seus dissabores. Esta é a Li Sung que concebi e não uma criminosa, mesmo que a realidade pudesse se esconder sob o manto da ficção. Na canção alguém olha para o modo como o abismo semeia suas angústias em nosso ser, como se fôssemos prisioneiras de um poço ou de uma sala de interrogatório.

 

Uma forte pancada no metal da porta fez Lenilde compreender a infelicidade de suas referências. – O que eu quis dizer é que a canção nos ajuda a resistir às penúrias da vida. De nada adiantava tentar remediar a reação do anão gigante, que trancou a portinhola e a deixou ali na escuridão. Naquele celeiro de pânico era impossível contar os dias. Como não lhes foi servido água ou comida, e como não sentiram fome ou sede, as sete mulheres começaram a perceber que o tempo não escorria pela pele das trevas. De algum modo Ada García sentiu-se fortalecida ao ser forçada a declarar-se culpada de haver roubado uma caixa de papiros apócrifos do Polo Astronômico em Foz do Iguaçu. – Mas era uma caixa de metal, hermeticamente lacrada! Suas explicações precisariam ser mais convincentes.

 

– Desde criança eu posso mover objetos com o olhar. No início eram chaves e pequenos utensílios de cozinha. Um dia deixei cair um pequeno frasco na oficina de meu avô e quando o vidro se rompeu no chão eu li em seu rótulo: “Cibele – Crânio cremado”. Fui tomada por um transe e logo toda aquele pó sobre o tapete hesitava no espaço enquanto suas unidades foram se encaixando a formando um crânio que certamente seria o de Cibele. Ao final peguei em minha mão aquele objeto refeito e o coloquei na prateleira, me desfazendo dos fragmentos do frasco original. Aprendi então que poderia não apenas mover coisas, mas corrigi-las ou refazê-las. Com a caixa que despencou sobre o relógio do sol não me foi possível criar nada. Mesmo aquelas rajas que surgiram no metal de sua pele, como veias saltadas que aos poucos foram revelando uma mensagem, nada esteve ao meu alcance, exceto a súbita compreensão daquela linguagem. Não, não se tratava de uma escrita cifrada. Se fosse alguma conspiração outra pessoa poderia ter lido. Recordo uma das frases – Eu te servirei para que os homens não falsifiquem o teu legado – que me foi de grande impacto, como um sinal de proteção. Eu sempre pensei na caixa como o prenúncio de existência de um guia, alguém com quem eu podia contar durante a travessia daqueles sete anos.

 

Os verbos sacrificam o instante em que são transcritos. Ao abrir a portinhola da quinta sala o anão gigante se deparou com seu vazio. Ao gritar surpreendido o nome de Komako o silêncio lhe respondeu com o indecifrável. Talvez o útero da sala ainda estivesse formando aquela figura. Ao procurar com seu olhar uma crisálida defeituosa nada era mais completo do que o vazio da sala. Caminhou até a próxima portinhola e o mesmo se repetiu, assim como na última. Onde estariam aquelas mulheres? Seriam elas os hieróglifos que tanto lhe aconselharam evitar? Os animais iniciáticos que dariam à vida um novo curso que há décadas eram identificados como pontos desconexos em todos os cálculos de extermínio da natureza humana? O anão teria que reportar aquele insulto, explicar o desaparecimento de três corpos. Evocar os intérpretes antigos de outras civilizações para indagar a eles o que houve em outros momentos. Incrédulo, deixou o lugar sem saber ao certo para onde ir.

 

 

ABISMOS FLUTUANTES

 

Por uma tortuosa galeria subterrânea mergulhada em algum terreno desconhecido corriam as três mulheres, fatigadas em suas vestes úmidas, arranhadas em suas pernas ardentes. A fuga buscava apenas um lugar para refazer a vertigem. O cansaço, no entanto, as fez parar antes do previsto. Extenuadas se sentaram no piso. – Não aguento mais, tenho que respirar um pouco. Bertha Malik estava desfalecida. – Dois minutos e seguimos, objetou Komako Rachiri. – Temos que encontrar a saída desse pesadelo. Lueji Llalej recorda que elas atenderam ao pedido de Eleanor, o propósito era localizar uma encruzilhada onde a filha as aguardasse.

 

– Onde estarão todas? Desde que nos separamos nas escadarias que não soube de mais ninguém. Estive presa no que parecia ser um poço, impossível identificar pela gelatinosa escuridão que me abatia o ânimo. Os únicos sons que pude escutar vinham de meu íntimo. De repente uma voz começou a estalar em minha cabeça um interrogatório absurdo, querendo saber o motivo dos relógios que eu vendia para os prostíbulos em Saigon.  A voz era severa em sua assertiva de que eu estava contrabandeando o tempo. Eu estava muito fragilizada e comecei a chorar. Ela enterrava o metal de suas questões aviltantes em meu cérebro, tudo aquilo doía muito, eu pedi várias vezes que parasse. Antes de desmaiar ainda lhe ouvi indagar sobre as minhas atividades clandestinas na Ásia. Nós todas sabemos que o que passamos não foi senão um teste para ver como sobreviveríamos a sete anos longe de nossos encontros na casa de Lenilde e Rebeka.

– Eu sei disto, Bertha. Eu também passei pelo mesmo tormento que contas. Fui acusada de fazer experimentos genéticos em uma ilha vulcânica no Japão. Por mais que eu dissesse que compunha seres imaginários em um caderno de notas, na sacada de um hotel em Kioto, como forma de penetrar os mistérios que me estariam reservados naqueles sete anos de jornada solitária. A impressão era de desprezo pelas minhas justificativas. Se queriam me envolver em uma história repleta de crimes, talvez as memórias de um taxidermista ou a saga de demônios embalsamadores, por que insistir em perguntas acusatórias? Poderiam simplesmente revelar quem eu era, segundo a decisão de sua seita…

– Seita?

– Sim, Lueji, aquilo tudo me parecia a artimanha de uma seita, um truque de fariseus. Queriam me levar ao extremo de minha fragilidade, até que eu aceitasse integrar a ordem de suas trapaças.

– Não creio, Komako. Há muitas coisas que relutam em permitir uma explicação. Algumas delas são condicionadas por nossas superstições. Quando eu fui hospitalizada para extração do baço, aquela imensidão azul que surgiu do que parecia ser efeito da anestesia me fez pensar no mito astral por trás das pinturas pagãs, os extremófilos escondidos sob mesas e mantos, em armários e altares misteriosos. Muitas profecias são arquivadas como absurdas ou, quando se realizam, não são vistas senão como milagres. Deus não é o único milagre possível. Ao menos isto nós deveríamos ter em mente. Recordo coisas assombrosas de minha infância: fósseis encontrados no quintal da casa de meus pais – carcaças do que pareciam répteis alados ou hipocampos –, o campo magnético em volta de árvores flutuando na noite, as bizarras fotografias de exoesqueletos deformados. O que posso contar agora me foge completamente da ideia de tempo, não sei se de fato ocorreu há poucos instantes. A escuridão será sempre imprecisa e a partir dela é que formamos a nossa noção da realidade. Através da pele e dos sons externos é que começo a perceber a minha existência. Os surdos são mais melancólicos do que os cegos. A voz que eu ouvia em meu cérebro era de certa forma o que me mantinha viva. Por mais que me violentasse o espírito aquela provação, ao mesmo tempo o som era meu amuleto e graças a ele pude atravessar o vácuo que talvez até possa ter sido apenas o caráter sombrio da minha imaginação.

– Do que exatamente te lembras?

– Da vastidão azul e aqueles vultos que se misturavam a uma penumbra onde seus corpos por vezes se tingiam de uma névoa impressionante. Creio que flutuávamos todos no espaço, mas não era como a sensação de ausência de gravidade e sim como se estivéssemos no mais absoluto nada, um lugar onde nossas noções físicas haviam sumido por completo. As vozes vinham carregadas de imagens, elas não emitiam sons, eu simplesmente as compreendia como um quadro vivo: as asas eram erguidas para alimentar os ventos, com a pele das serpentes as cordas eram fiadas e dedicadas a retirar as crianças do abismo, os raios do sol decoravam as nuvens espalhadas pelos campos como montanhas flutuantes. Sobrepostos a essas estampas as lanternas de catástrofes que poderiam ser evitadas: o desatino climático induzido, o ressurgimento das grandes pestes, os deuses expelindo populações inteiras sufocadas por seus gases químicos.

 

Lueji Llalej tinha o rosto coberto de lágrimas durante seu comovente relato. Na medida em que ela seguia descrevendo o que lhe aconteceu, as outras mulheres foram surgindo do nada, materializadas naquela atmosfera onírica em que se encontravam. Sentada ao chão, cercada por suas amigas, Lueji repetia um breve diálogo telepático que manteve com os três vultos, que se expressavam de modo uníssono:

 

– A raiz de toda vida é uma orquestração harmônica de ritmos. A dança é um mistério que somente o espírito harmonioso pode explorar. Isto vale para todas as peças em movimento, seres vivos, planetas, firmamento. Vocês estão descompassando o universo. Todo esse desfalque de caráter, as crendices fétidas e seus desvios incidentais, o triunfo corrosivo da morte, os amuletos frustrados, as ninhadas de serpentes demoníacas no interior de corpos humanos, não haverá mais lugar para transição ou aprendizado, o planeta está corrompido em seu âmago, e se desfaz em síncopes que testemunham um fim irremissível.

 

– Mas se estamos no plano do irremediável, o que vocês fazem entre nós?

– Estamos em uma dimensão etérea, acrônica. Ao negligenciar a essência alquímica de toda vida na Terra, os homens foram condenados ao desamparo, ao devaneio de falsas premissas, toda a história se converteu em artifício.

– Por que me diriam tudo isto se não houvesse mais nada a ser feito?

 

Talvez porque não quisessem induzir Lueji a nada, ou simplesmente porque nesse momento o anestesista estava removendo o tubo de respiração, o núcleo azulado em que ela se encontrava foi se dissipando e ao abrir os olhos sentiu o seu espírito dilatado em relação ao próprio corpo. Como eu poderia caber ali? – Indagou a si mesma. – Vamos parar um pouco, procure se acalmar. Temos que procurar nossa filha. A voz de Lenilde alcançou um êxito possível. Elas ainda estavam no interior daquele sonho coletivo e talvez o encontro com Eleanor Elbe já tenha ocorrido como uma metáfora de tudo o que experimentaram naquela múltipla escala. Não creio que nossa filha apareça, disse Rebeka. O que me preocupa agora é não saber como saímos daqui, prosseguiu.

 

 

CONFABULAÇÃO DE FANTASMAS, 1

 

As sete mulheres vagaram por incontáveis galerias oníricas, até que finalmente encontraram a sala da cabana onde elas estavam dormindo. Komako foi a primeira a tentar despertar a si mesma, logo constatando sua impossibilidade. As demais inutilmente a seguiram em uma mesma e desesperada tentativa. Seus corpos eram inalcançáveis. O outro em que se encontravam agora nesse experimento de sonho coletivo reconhecia sua condição incorpórea, mesmo que entre si, nessa outra dimensão, elas pudessem se tocar. Nesse estranho vácuo elas também eram tangíveis, o que as levava a pensar que o sonho conduzia a uma espécie de realidade paralela. – Talvez o mesmo se passe com a morte, chegou a mencionar Ada García. – Eis algo que jamais saberemos, pois certamente se um dia despertarmos algo me diz que não recordaremos o que se passou, confabulava Emilia Ahmadjian. – Vocês acreditam que estamos condenadas a esse estado? Rebeka Naceri foi dolorosamente sucinta em sua inquietação. Enquanto elas refletiam sobre o que poderia ser um ardil, aos poucos perceberam que seus corpos iam sendo alterados. Na medida em que se alongavam surgiam brânquias e escamas, uma pigmentação multicor, a queda dos cílios, a ondulação vertebral única, toda essa metamorfose as afastava de vez de seus corpos deitados na cabana. Primeiramente confundida com um teatro de perdas, logo Komako foi também a primeira em se manifestar: – O que antes nos parecia uma réplica de nós mesmas vemos agora que se trata de um corpo duplo, é como se cada uma de nós contivesse em seu íntimo duas formas, como se fôssemos mulher e peixe a um só tempo. Nessa perpetuidade de perspectivas, quem sabe quantas vertentes não podemos despertar! Em seu novo aspecto físico Bertha Malik notou que agora passaram a se comunicar telepaticamente. – A alteridade é também um enunciado alienígena, suspeitou ela. – Instabilidades e dissimulações nos revestem de gestos afetados, cenas primárias, associações histéricas, seguiu formulando. A quem interrogar quando a memória se despedaça e reconhecemos apenas o abalo de seus fragmentos indisciplinados? Como refutar a inversão do tempo se um de nossos estados físicos a todo instante nos evita? As suspeitas iam exibindo seus sintomas como uma fartura de riscos. Lenilde Fablas presumiu que talvez persistissem irreconhecíveis aquelas desconfianças. – Não me parece que o peixe que somos venha a decifrar os enigmas dessas mulheres adormecidas na sala, mesmo que também sejamos parte delas, quase chegou a sentenciar. E novo desassossego se estabeleceu entre elas. – Toda forma de prudência é suspeita. É impossível haver exatidão em cena, mesmo quando um ato é mera réplica de outro. As imagens correspondentes à verdade serão sempre ambíguas. Na medida em que Lueji Llalej ia acumulando seus provérbios automáticos, a imensidão azul que abrigava os sete peixes foi perdendo sua condição líquida e imitando a ondulação de uma cortina etérea e uma vez mais os corpos foram alterados, agora alongados e surgiam inesperadas asas e garras, como serpentes mitológicas, que logo foram reproduzindo em sua face o semblante de cada uma das sete mulheres. Talvez ali finalmente se delineasse a chave da posteridade. Uma projeção de mundos germinados de retalhos de evidências e paradoxos que só alcançariam sua riqueza expressiva em uma simultaneidade de contradições. Um mundo em que o tempo não faria mais sentido. Em que a verdade não faria falta. O mundo de plena perplexidade simétrica. Seria possível algo assim? Quem estaria disposto ao impulso vital para sua criação? Na medida em que as serpentes moviam suas asas as sete mulheres começaram a se agitar, até que se ouviu um ruído exaltado e o súbito despertar de seus corpos.

 

 

CONFABULAÇÃO DE FANTASMAS, 2

 

Ao despertar nenhuma das sete mulheres sabia o que estava fazendo naquela sala, nem mesmo se reconheciam entre si. Entre confusas e espantadas, cada uma murmurando uma espécie de linguagem incompreensiva, subitamente mal haviam sentado foram atraídas de volta ao sofá e colchonetes. Os braços à altura da cabeça, o olhar de desespero, como se estivessem presas de alguém. Por toda a casa era possível escutar sons desconexos, uma quebradeira de louças e vidros, a estridência de metais, a água escorrendo nas torneiras do banheiro e da cozinha. A própria cabana parecia suspensa no espaço, a entoar um lamento de desamparo. A cena inteira não deve ter ultrapassado a cota dos segundos que a perplexidade lhe permitia. Um estrondoso silêncio se seguiu, nenhuma das mulheres esboçava ter consciência do ocorrido. A evidência é um braço do discernimento. Os fantasmas não reconhecem a moralidade, zombam de seus atributos, infringem todas as tábuas do pudor. Lenilde Fablas se senta no sofá e vocifera o nome da filha:

 

 Eleanor, Eleanor…

– O que houve, ‘Nilde?

– Eu fiz um caminho por onde deveríamos ter passado. O caminho queria crescer dentro de nossos passos. As pernas queriam um caminho escrito na medida em que avançavam. O caminho entoava seus carvões e nós crescíamos dentro dele. O chão prosseguia não importa em que mundo penetrasse. As pernas se fartavam de mistérios de toda sorte. Os caminhos são um louvor àqueles que perderam o coração no abismo. A terra se levanta provando que é possível extrair caminhos do nada. Eu fiz um modo dos ventos serem sempre favoráveis. Uma estrela que descansa em nosso ventre e nos guia. Eu fiz as pernas que nos dariam um caminho sem fim.

 

Lenilde entoava o que parecia ser o hino, quase cantarolado, na suave firmeza de uma voz que não era sua, o olhar fixo no vazio, decerto possuída por alguma desconhecida entidade. Em seguida parecia dirigir-se a cada uma de suas amigas. A Emilia pediu que escondesse melhor sua estrela. – Terás que me ensinar como fazê-lo. Rogou a Ada que desse a seu caminho um melhor propósito. – Terás que me ensinar como fazê-lo. Dirigiu-se a Lueji evocando um descanso nas noites tempestuosas. – Terás que me ensinar como fazê-lo. Na vez de Komako implorou que ela jamais dissesse uma mentira que não contivesse a verdade. – Terás que me ensinar como fazê-lo. Buscou em Bertha a certeza de que a eternidade não seria castigada. – Terás que me ensinar como fazê-lo. Sustentou que Rebeka protegeria o manancial de suas dádivas. – Terás que me ensinar como fazê-lo. Cada uma delas parecia igualmente não ter controle sobre suas falas. A cena reproduzia um ritual escrito à revelia. E se desfez tão logo atingiu seu desígnio. A pequena voz de Lenilde foi a primeira a manifestar uma combinação de frio e fome. Algumas velas ainda estavam acesas pelo chão da sala. A noite mantinha sua majestosa sedução. Lenilde e Rebeka se dirigiram à cozinha decididas a preparar algo para comer, seguidas por Emilia e Lueji que trataram de abrir duas garrafas de vinho. Ada foi ao banheiro. Komako sentou-se diante de uma das paredes para desfiar as sílabas de sua devoção. Bertha reacendeu as velas apagadas. A velha cabana parecia recuperar um pouco de sua tranquilidade. Observando de longe o que víamos era um breve ensaio de plenitude. Como se o acaso desse uma trégua àquelas mulheres.

 

 

PRIMEIRO MANUSCRITO EXTRAVIADO

 

O horizonte deve conter a cilada de seus extremos. A travessia acidental dos desapegos. Tudo em sua pele será escrito como se fosse a feição triunfante do caos. Uma alegoria com suas faixas de extravios e a rebentação das águas que levamos em nosso íntimo. Os deuses insistem na decomposição das causas humanas, de modo que é preciso não deixar os corpos perecerem sob o selo das falsificações clericais. É preciso guardar o vigor que nos protegerá das sutilezas da moral. Manter abertas as portas para que o ar agitado do imprevisto circunde nossos corpos permitindo que as forças ocultas não cessem de buscar a rubrica de suas bênçãos. Eis onde viemos dar. Eis onde estamos.

 

Em outra página desgastada também estava anotado:

 

Não importam os mundos esquecidos, as chacinas na memória, os frequentes atentados contra a preservação do mistério. Há um furor mortal nos fanatismos que não devemos deixar invadir o palco de nossa representação da história. Ainda que toda escrita seja queimada, algo em nosso espírito deve se manter radiante como a fiação elétrica das descobertas incessantes. Pássaros ou serpentes, deuses ou vultos irreconhecíveis, não devemos temer o empirismo desde que ele não se limite a criar uma teia de ilusões. Os caminhos da eficácia não devem ser perturbados pelos falsos iniciados. Mesmo quando os vestígios de algumas civilizações são destruídos, devemos manter a irradiação do milagre. Recordemos com a sombra astral de Robert Charroux: O mistério não está na interpretação ou na influência caprichosa dos astros, mas na capacidade diferente de recepção dos indivíduos.

 

 

SAGRADAS OFERENDAS

 

– Alguma de vocês ouviu falar em Eleanor Elbe?

– De onde veio este nome, ‘Nilde?

– Não sei. Eu senti a presença de um vulto passando à minha frente e logo me surgiu o nome. Nenhuma ideia de quem seja ou o que possa significar.

– Ele me lembra algo…

– O que seria, Komako?

– Um cartão postal sobre a mesa lá fora, havia a foto de um cubo transparente e dentro dele uma criança chorava. Quando te ouvi perguntar imediatamente pensei nisto. Vou ver se ainda o encontro.

– Mas por que não me recordo disto?

– Não sei, Lenilde. Talvez apenas eu tenha visto o cartão.

 

Ao abrir a porta Komako se espanta ao ver sobre a mesa na varanda não o cartão, mas sim o cubo que ela mencionara. Um pequeno objeto que cabia em sua mão cintilava um enigma incompreensível. – Vejam a criança lá dentro. Como é possível? Rebeka foi a primeira a se aproximar. – Eu a vi em um sonho, seu nome é Inaiê. Porém apenas elas duas viram uma pessoa dentro do cubo. Cada uma das demais teve um vislumbre distinto. Emilia viu uma água corrente com alguns peixes saltando. Ada não quis pegar na caixa temendo ser queimada pelo fogo que lhe tomava todo o interior. Lueji não viu nada, porém levou as mãos às orelhas por conta dos fortes gritos que escutava. Bertha viu um santuário de espelhos que evocavam o infinito. Quando Lenilde se aproximou empalideceu de horror ao reconhecer a presença de sete mulheres sem rosto, o corpo escuro como se fosse apenas as sombras delas. – Somos nós, vejam, como é possível que estejamos dentro desse cubo? As visões se perdiam na passagem de um olhar para outro. – Não é possível que cada uma de nós veja algo diferente, disse Komako. Algumas vezes ela mudou de posição o cubo, inclusive o emborcando, sem que nada alterasse a perspectiva assimilada pelo olhar delas. Em seguida o colocou sobre a mesa. Ada permanecia afastada e Lueji contraía o rosto, as mãos abafando os gritos.

 

– A nossa força é a mesma desses vultos, essas sombras que se alimentam de minha visão. Não podemos ter ilusões distintas. Eu peço que todas fechem os olhos. Não há fogo ou rio, gritos ou espelhos, ancestralidade ou profecia. Somos apenas nós. Abram os olhos e vejam como nossa força nutre as imagens manchadas do que vemos. Embora não saibamos como fomos parar no interior desse cubo, muito menos como é possível que nos vejamos ali em gestos dessincronizados do que temos aqui fora, mesmo assim, ali estamos, em um lugar que desconhecemos, sem saber que ritos cumprimos ou se acaso estamos fugindo de algo. Talvez se nos concentrarmos em nossa força derrubemos essa barreira indecifrável e abracemos a nossa essência. Temos que delinear com nossos corpos as colunas que nos prepararão para sustentar a ausência do tempo e a dissimulação do espaço.

– Começo a sentir a nossa presença, ‘Nilde, no interior do cubo.

– Eu te quero sempre a meu lado, o meu amor se derrama sobre o teu em uma mesma direção. Mas agora temos que ser as sete em uma reciprocidade soberana.

 

[Komako] A miragem se foi. Somos nós as sete pilastras.

 

[Bertha] Os espelhos se foram. Somos nós as sete eras.

 

[Ada] O fogo se foi. Somos nós as sete terras.

 

[Lueji] Os gritos se foram. Somos nós as sete árvores.

 

[Emilia] As águas se foram. Somos nós as sete luzes.

 

[Rebeka] Os mitos se foram. Somos nós os sete saltos.

 

– Agora vocês compreenderam. A nossa força nos trouxe para a medula desse cubo que esplende o princípio de todas as coisas. Agora podemos sair à procura de Eleanor Elbe. Ela certamente deve estar no interior de uma esfera.

 

 

REBEKA NACERI

 

A morte é irrelevante. Como tudo que é inevitável. As luzes estão pequenas para que as árvores cresçam dentro delas. As pessoas repetiam isto. Uma amiga estava comigo quando em meio a um vento mais forte eu tive uma cegueira momentânea. Ela me disse que surgiram no céu três círculos de luz que logo se fundiram em um só assumindo a forma de uma bola luminosa que lentamente se aproximava do centro da praça. Alguns anos se passaram e de algum modo as pessoas se acostumaram com a presença daquele objeto que emitia uma luz em sincronizada rotação. A minha amiga permaneceu a meu lado, gostava das histórias que passei a recordar como se as tivesse vivido. Ela se impressionava tanto e a todo instante me pedia que as repetisse. Quase sempre as mesmas histórias, embora aos poucos eu fosse criando variações e em algum momento até mesmo introduzindo novas lembranças. Quem sabe em meu íntimo eu acreditasse que a memória aprimora a existência.

 

Uma noite despertei com a presença em meu sonho de uma garota que entrava no ônibus em que eu estava e si dirigia direto a mim gritando: Saia já daqui! O mesmo sonho marcou diversas noites sequenciadas, sem que eu compreendesse seus motivos. É difícil acreditar que os sonhos não tenham um motivo, sobretudo quando são tão nítidos. Em meu caso, também me assustava que aquele mesmo sonho procurasse por mim, como se tivesse algo a revelar. Não contei quantas noites, porém um dia tudo aquilo acabou e nunca mais voltei a sonhar com a moça e o ônibus. Meses depois eu estava na casa de uma amiga e quando batem à porta eu reconheci a garota do sonho. Não escondi a palidez de meu assombro, o tremor da alma. Sem saber ao certo o que fazer, saí da casa em disparada pelas ruas. Tudo aquilo me parecia algo medonho, o sonho retornara a me dizer algo sem que, uma vez mais, eu compreendesse o seu recado. No dia seguinte a arte real das revelações vem ao meu alcance, quando escuto uma vizinha conversando com a minha mãe, as duas comentando o brutal assassinato que houve na casa de minha amiga. A resistência a um roubo fez com as três mulheres naquela casa fossem mortas. O inevitável vive à sombra do desconhecido? O que fazer com a vida quando ela se interrompe de modo tão imprevisto?

 

– Mas não soubeste das mortes graças à conversa da vizinha com tua mãe!

– Sei que não, porém acredito que assim desenho melhor a entrada do enigma no mundo real. Foi a solução que encontrei para vestir melhor a grandeza dessa incógnita.

– Rebeka, a todo instante tens que estar inventando algo. Mas já que falaste em tua mãe, conta aquela outra história dela.

 

A mãe costumava ver à noite um fantasma, uma mulher toda de branco, que entrava na casa atravessando as paredes e se dirigia a um local na sala ficando ali parada por algum tempo e depois ia embora. Sempre o mesmo lugar, como um sinal. A mãe pensou em uma botija e convenceu o pai a cavar. Três metros de profundidade e se viu uma espécie de túnel revestido de uma madeira envelhecida. O túnel se ramificava em cavidades que iam dar em pequenas grutas. Em uma primeira delas foram encontrados esqueletos humanos. A pequena estatura parecia ser de crianças, porém o formato do crânio era alongado e encurvado para trás. A cena parecia ser o desenho de uma alegoria, o alerta de uma parábola, como nos sonhos. Uma segunda gruta era abrigo de um amontoado de minúsculas esculturas em madeira, carcomidas pelo tempo, as peças mescladas e fundidas umas nas outras, formando uma espécie de cenário vivo de uma catástrofe ocorrida em plena orgia de todos os habitantes de um lugar. Rostos apavorados, braços, pernas, torsos sinuosos, formas apodrecidas e úmidas, se misturavam a restos de mobília. Após um longo canal era possível chegar à terceira gruta, habitada unicamente por uma escada fincada ao chão, no centro do cômodo, cuja extensão se desconhecia, pois, acompanhando seus degraus com o olhar, a escuridão logo tomava conta de tudo. As três pessoas que trabalhavam com o pai, uma a uma, subiram pela escada, a ver onde ela daria. Cada uma delas por lá ficou, nas alturas daquele estado absoluto do breu. A engrenagem do mistério se completara com aquela excentricidade exacerbada. O pai temia pelo desdobramento do inexplicável e me tirou dali. Voltamos pelas duas grutas, das esculturas e dos ossos, o pai me fez subir primeiro à aparente normalidade da casa, que agora se encontrava vazia. Nem a mãe, nem os móveis, não havia nada ali. Era como se tivéssemos dado em outro lugar. Quando olho para o pai, o buraco que fora aberto não está lá. Também o pai havia desaparecido. Onde eu estava era algo impossível de desvendar. Parecia a mesma casa, esvaziada de seres e objetos. Inutilmente tentei abrir portas e janelas. Eu estava presa naquele lugar, privada de sentidos.

 

– Mas a história não era assim, Rebeka.

– As histórias mudam. Ninguém extrai da repetição o sentido prodigioso da vida.

– Se é verdade, então podemos inventar destinos diversos para uma mesma pessoa. Conviver com inúmeros significados que representem as aparentes semelhanças entre homens e animais. De quem seriam aqueles ossos encontrados na primeira gruta?

– Os preconceitos puritanos prostituem os princípios sagrados do espírito. O que criamos, o que movemos, aquilo do que nos desfazemos, os significados que plantamos como uma nova perspectiva da existência, tudo isto, nós vamos retaliando de forma regular, intoxicando a percepção, até que deixamos de ser estrelas e os únicos estímulos que perduram são os da repetição. E os nossos duplos – bem como os duplos de nossos duplos e sempre sucessivamente – passam a reproduzir os mesmos espasmos, com a mesma frequência de caprichos.

– Mas… e os ossos?

– Imaginemos que aqueles três círculos de luz que eu vi quando estavas a meu lado, que eles representavam os três reinos da natureza. É possível que esta compreensão tenha vindo de muito longe, o que nos tornou conscientes de nosso destino na terra. Que os três círculos tenham se fundido em um só, bem podemos imaginar que seja o alerta de que, ao separá-los, apressamos a destruição do que somos. O homem é a raiz de todas as coisas, pois é dele a consciência de cada partícula de vida. A primeira gruta representa a infância, o formato dos ossos nada mais é do que a origem, os primeiros seres aqui chegados. A segunda gruta é a sexualidade, sugere as nossas descobertas, e o estado de decomposição que ali encontramos não é outra coisa senão a imundície gerada pelas convenções e a intolerância. Quando chegamos na terceira gruta, era inevitável que déssemos de cara com o vazio, o mundo despovoado.

 

Não havia mais nada que eu pudesse dizer que não fosse um naufrágio de paradigmas. As drogas, as religiões, os mercados, tudo isto nos levou ao centro de produção industrial das repetições, onde a morte – como uma programada ausência de variação de sentidos – é verdadeiramente irrelevante.

 

 

ADA GARCÍA

 

Eu preciso encontrar o ponto onde as formas se retorcem e criam a miragem que orienta nosso olhar. Onde as pedras relutam em fixar suas semelhanças. O olhar explora a dança dos sentidos. Eu teria que pintar a queda. Há um ninho em que o maravilhoso prepara sua alma. Um acidente em que a noite fala sozinha. Eu nunca estive aqui. E as formas que imaginei não param de ser outras. Devo então começar assim o meu dia:

 

As estradas por onde passo…

 

O fato de que eu não toque nos fios dos fantoches não significa que eles não atendam os meus desejos. Sete vezes andei por aqui, circundando a rigidez dos pontos. Nenhum deles abandonava seu posto. No entanto as cordas entrelaçadas em todos eles regiam uma representação voraz dos movimentos. Foi de tanto percorrer a arbitrariedade dos modelos que me perdi em traços eróticos que fulminavam as simulações da morte. Dar forma a tudo, a cada instante. E não desprezar nunca o requinte de vulgaridade da madona que sorri.

As silhuetas se desprendiam do corpo criando dificuldades para os caminhos que virão. Na decomposição dessas serpentes de água eu identificava a aura dos desafios. Criar não permite lamentar morrer. As dores apressam o passo dos deuses. Tudo o que sabemos pode ser esquecido se a modelo deixa cair o tecido antes do tempo. Uma ironia virtuosa nos leva da lâmpada sangrenta à pálida duplicata de seus caprichos. O traço feroz possui o seu engenho meticuloso e não há pássaro que se reconheça no voo de outro.

 

As estradas passam todas por aqui…

 

As árvores não veem no bosque um desterro óptico. Elas estão ali como se houvessem descoberto outra versão do mundo. Essa culinária de vertigens não dá um falso testemunho da realidade. As coisas que se mostram fora de lugar nem sempre se dissipam como um engano. Muitas evoluem como uma civilização imprevisível. O majestoso banquete do paraíso refeito, com uma letra, uma pincelada, uma gota d’agua na folha. Nada em meu olhar quer ser um ícone. Quando reuni o meu pequeno grupo de sonhadoras, Myriam foi a primeira a lembrar que os meios mais poderosos são aqueles que não estão ao nosso alcance. Sem o arrebatamento do impossível não é possível criar nada. Logo se juntaram a nós Zainah, Carmem e Giuliana – nosso quinteto dedicado a desvendar a matéria oculta em todas as forças da natureza.

 

CARMEM

Não há razão de ser na duração da felicidade.

 

ZAINAH

O casto é manipulado pelos malefícios da perda da libido. Assim como aquele que jejua cultua apenas a miséria de seu próprio ser. Os sacrifícios programados eliminam toda a perspectiva de renascimento.

 

MYRIAM

Giuliana outro dia nos lembrou que os nossos sentidos não atuam como a necessidade de controle, mas antes com aquela densidade líquida de um transe automático. As sombras podem ser localizadas em seus esconderijos, à espreita dos estados fugazes da matéria, mas como um fluxo revigorante do fogo que a todo instante nos transporta para o interior de novas formas.

 

GIULIANA

Um enunciado acidental da chama que tanto queima quanto ilumina. Nós somos perpetuamente acesas pelo fogo.

 

As estradas que não deixamos passar…

 

Nosso quinteto buscava uma harmonia das formas, desde o primitivo segredo oculto sob o universo identificado como princípio de tudo, até os vendavais da perfeição que traz o mundo às suas costas. Éramos as cinco harmonias sucessivas, as cinco mulheres indissolúveis.

Mesmo quando planejávamos o excesso sabíamos que a resultante seria sempre inacabada. A morte não é uma manifestação do destino cumprido. As origens, os sabores, as vísceras, sob a tábua harmônica em que nos reuníamos, a quintessência de nossas propensões era sempre a busca de uma regeneração incansável.

A ideia de que tudo é inconcluso sempre nos despertou um estímulo pela combinação perene de cifras e signos. Juntas avançamos em tantas casas, mais do que poderia suportar o destino de cada uma de nós. Até que um dia não estávamos mais ali.

 

Tanto se misturaram as estradas que deixaram de passar…

 

 

KOMAKO RACHIRI

 

Eu sempre me senti fora do mundo. Desde pequena passava horas deitada de bruços no centro de meu quarto, rabiscando traços e letras, fingindo personagens que me visitavam de romances e filmes, sonhando com o dia em que poderia fazer com que eles se encontrassem todos em uma história em quadrinhos. Era preciso ir até o fundo daquelas mentes, descobrir a raiz de seus prodígios. O desenho deveria vir com a escrita, somente ao friccionar as duas linguagens eu criaria um mundo à medida de minhas extravagâncias. Sonhava com o momento em que pudesse criar um cenário de predações. Fui manipulando todo aquele ouro de sombras que ia surgindo, até que um dia surgiu diante de mim a enfermeira Juana Guaita e me disse: Há muito não há mais realidade possível. A realidade é a soma de algumas fortuitas impossibilidades. Diante daquela imagem eu compreendi que havia chegado a hora de deixar que ela mesma me guiasse pelo labirinto de suas artimanhas. Juana e a pincelada objetiva de seu devaneio. Dei asas à sintaxe de meus instrumentos delicados: guache, pincéis, carvões, sedas, lápis, tesoura, cola, usei de tudo como uma verdadeira máquina de espasmos, até que… Ali estava, a firme expressão primordial de tanta ambiguidade. Talvez nem houvesse outro modo da arte dizer a si mesma que teve atendidas as suas aspirações. E no centro daquele teatro onírico, Juana Guaita me dava sua aprovação.

 

Página 1 – Visão de fora do casarão. Com certo aspecto de uma mansão mal-assombrada vulgar.

Página 2 – Detalhe da porta vista por dentro, uma mulher dando passo a uma visitante.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Eu gosto das noites cobertas de mistério. Uma sombra espelhada e outra espalhada até onde a vista alcança. Eu vim aqui buscar a minha mãe. Uma carta me disse o lugar e me prevenia que não devo confundir origem e fim.

 

Página 3 – A enfermeira recebe a visitante:

 

JUANA GUAITA

Lamento o que houve com a tua mãe. Ela certamente não gostaria de estar aqui. Mas não sabemos quem a trouxe.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Não é o que importa. Suponho que ela soubesse o que estava se passando.

 

As duas adentram um quarto onde no centro se encontra uma maca com o corpo da mãe.

 

JUANA GUAITA

Tudo o que podemos fazer nesta vida é presumir.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Nada equivale ao esplendor da aventura.

 

Página 4 – A filha beija os lábios da mãe morta.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Um céu… Por conta de tudo o que nos falta nessa vida.

 

JUANA GUAITA

Talvez eu deva recordar o que se passou aqui com a chegada de seu corpo.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

As revelações do cadáver…

 

CADÁVER DA MÃE

Eu não direi nada.

 

JUANA GUAITA

Ela é contrária à ideia que temos de cova. O senhor terá que decidir qual destino dar à tua mãe.

 

Página 5 – Segue o diálogo entre os personagens:

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Tenho que devorá-la. Porém não posso fazê-lo enquanto ela tenha algo a dizer.

 

CADÁVER DA MÃE

Não vou a parte alguma.

 

JUANA GUAITA

Desejas ficar a sós com ela em uma página?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Eu a conheço como uma flecha a quem jamais lhe importou o alvo.

 

JUANA GUAITA

Não terá então o que dizer?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Tampouco nos deixará tranquilos. Há uma fornalha aqui?

 

Página 6 – Outros planos internos do casarão. Corredores com um aspecto lúgubre. Do interior de duas portas distintas saem dois novos personagens: uma retraída, outra expansiva.

 

COMIGO

De que lado fica a ausência?

 

CONTIGO

Quem se importa com ela?

 

COMIGO

Não me repreendas. Quero apenas saber onde estou?

 

CONTIGO

Seguramente não estamos em parte alguma.

 

COMIGO

Eu me sinto sozinho quando não sei ao que correspondo.

 

CONTIGO

Eu detestaria não ter a quem revelar meus planos.

 

COMIGO

Há modos infinitos de fazer parte do mundo.

 

CONTIGO

Mas nada supera consagrar aos deuses a emanação das formas que não compreendemos.

 

COMIGO

Para que sejam eles a dizer que não há sentido algum na existência?

 

CONTIGO

Os símbolos são misteriosos. Os deuses deveriam saber disto. Quem gostaria de tomar para si um deus que desconhece seu prelado?

 

Página 7 – Dois quadrinhos, cada um expressando o rosto de uma das loucas, sua reação singular ao tema do mistério.

Página 8 – Outro aposento, mobiliado apenas por um espelho de tamanho natural de corpo humano, rente ao chão em uma das paredes. Entram em cena a enfermeira e a exorcista cega.

 

JUANA GUAITA

O senhor deve aguardar aqui.

 

SOFIA MOURISCA

Mas eu disse que queria ficar a sós…

 

JUANA GUAITA

Eu sairei.

 

SOFIA MOURISCA

E os demais?

 

JUANA GUAITA

As câmaras foram desligadas.

 

SOFIA MOURISCA

A matéria nem sempre possui a forma que desejamos.

 

JUANA GUAITA

Quem mais está aqui conosco?

 

SOFIA MOURISCA

A garota que fica o tempo todo a desenhar a casa para onde quer regressar.

 

JUANA GUAITA

Mas ela está em outro quarto.

 

SOFIA MOURISCA

Não há muitos quartos aqui. Muitos estamos no mesmo.

 

Página 9 – O consultório central. A enfermeira se encontra à frente da mesa da psiquiatra chefe.

 

JUANA GUAITA

Devemos nos preocupar com o cego?

 

DRA GENARA FIORD

Não, pelo contrário. Ele nos trará essa garota desenhista, uma jovem quebrada pela obsessão…

 

JUANA GUAITA

Mas de onde ela virá?

 

DRA GENARA FIORD

Do espelho, quem sabe…

 

Página 10 – De volta ao quarto onde está a exorcista cega, sozinha. Aos poucos vemos um corpo tomando forma no espelho. Toda esta página descreve a magia do surgimento do personagem anunciado.

Página 11 – A jovem diante da cega. Ela indaga:

 

SOFIA MOURISCA

Já conhecias esta casa?

 

KALIGA POTT

Os vislumbres mais nos aproximam do que nos afastam da realidade.

 

SOFIA MOURISCA

Já estivemos aqui?

 

KALIGA POTT

Talvez. Para identificar um crime.

 

SOFIA MOURISCA

Para isto servimos…

 

KALIGA POTT

O mundo está repleto de crimes.

 

SOFIA MOURISCA

Quem matou a mãe do satanista?

 

KALIGA POTT

Ela já chegou morta em qualquer lugar.

 

SOFIA MOURISCA

Isto não existe.

 

KALIGA POTT

A existência é tudo aquilo em que cremos.

 

SOFIA MOURISCA

Quem crê na loucura?

 

KALIGA POTT

Quem crê na razão?

 

Página 12 – A satanista diante do cadáver de sua mãe.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Uns minutos antes de sua morte, eu poderia saber o que houve.

 

CADÁVER DA MÃE

Eu não direi nada.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

De algum modo eu teria me devotado aos nossos laços.

 

A enfermeira retorna, juntamente com a psiquiatra chefe.

 

JUANA GUAITA

Lamento, senhora, porém ela já não poderia nos revelar nada.

 

DRA GENARA FIORD

Isto muito me desconforta, pois gostaríamos de contar com tua ajuda.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Não vejo em que uma coisa impeça outra.

 

Página 13 – De volta ao consultório, encontram-se agora psiquiatra e satanista:

 

DRA GENARA FIORD

Quantas vezes os encantamentos de amor podem transbordar o alcance de seus efeitos?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

A todo instante. Não é como gostar ou desconfiar. Prever sol ou chuva. Todo mal conhece o risco que corre de tornar-se um bem.

 

DRA GENARA FIORD

Temos aberrações de sobra.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Elas são anunciadas por toda parte.

 

DRA GENARA FIORD

Uma mulher sabe a hora de seu traje vermelho, e logo se reconhece entre uma credulidade de rostos que passam.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Os códigos de campo foram distribuídos como medalhas ao revés.

 

DRA GENARA FIORD

Por que te chamam de satanista desatualizado?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Porque todos creem que a magia foi enterrada pela mesma pá da vulgarização dos símbolos.

 

DRA GENARA FIORD

Somos o passado?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Há muitos passos. Somos aquele que ninguém quer.

 

Página 14 – A enfermeira sozinha em seu quarto, uma cama, ela deitada, nua, toca seu corpo em um solilóquio:

 

JUANA GUAITA

Eu dei a minha vida para estar aqui. Os corpos surgindo com sua lubricidade fascinante. Mórbidos, cada um, em seu dilema. Porém viris e fieis. Cheguei a tê-los de mil formas, cada um com seu espectro reservado. A cada um deles dediquei uma fantasia de meu corpo, uma hipótese de meu orgasmo. Ahhhhhhhhh aonde nós iremos agora, quando o mundo se tornou tão similar?

 

Página 15 – Passeando pelo corredor, as duas loucas:

 

CONTIGO

Algo te falta aqui?

 

COMIGO

Nem por sonho! A natureza é a mesma, como uma fábula espigada, sempre que a convocamos.

 

CONTIGO

Por isto te aquietas como uma estátua calada por sua absolvição?

 

COMIGO

Eu gozo com todas as divindades. Não evito a presença sugestiva de qualquer sexo. Há tanto mortos com personalidade quanto fantasmas bem-dotados. Aqueles que eu quero, pela frente, os outros, que só aceito por trás. Estabelecer a diferença, entre dois seres paridos pela mesma natureza, isto sim, é diabólico.

 

CONTIGO

Ah ah ah Divindade o inferno! O que queres é foder, nada mais!

 

COMIGO

O que posso fazer com teu espírito quando ele queima diante de ti sem uma única chama?

 

CONTIGO

Diz que me ama…

 

COMIGO

Quem sabe em outra vida…

 

Página 16 – O corredor vazio.

Página 17 – A enfermeira sai de uma porta e se dirige até outra, onde entra.

Página 18 – Dentro do quarto há apenas um espelho na parede, rente ao chão, e uma mulher agachada, cabelos desgrenhados, metida em uma camisa-de-força.

 

RENÉ DEL RÍO

Quantos nomes eu dei ao acaso até que viesses me ver…

 

JUANA GUAITA

Mas por que ainda precisas de mim?

 

RENÉ DEL RÍO

És a única que sabes o que se passa aqui. A única a compreender que não posso ser culpada pelo que vejo.

 

JUANA GUAITA

O doutor não está certo de que sejam visões.

 

RENÉ DEL RÍO

E por que diabos eu me fingiria de louca?

 

Página 19 – Continua.

 

JUANA GUAITA

A loucura não se conclui. É uma ambição sem ponta ou margem.

 

RENÉ DEL RÍO

O meu desejo também não tem fim.

 

JUANA GUAITA

Porém a loucura é sinistra. O desejo é um tormento feliz.

 

RENÉ DEL RÍO

Os corpos que vejo saírem de mim possuem uma expressão sensual.

 

JUANA GUAITA

Mas são muitos…

 

RENÉ DEL RÍO

Não tenho como contá-los…

 

JUANA GUAITA

Sabes de onde eles vêm?

 

RENÉ DEL RÍO

Nenhum deles conversa comigo.

 

JUANA GUAITA

E este silêncio, não te revela nada?

 

Página 20 – Close do rosto da ninfomaníaca espírita. Em sua fronte se reflete o espelho da parede e de seu interior sai um lagarto.

Página 21 – Recorte lateral do quarto, mostrando o lagarto saindo do espelho. Na medida em que sai ele se transforma em um anjo negro. O anjo paira suspenso no ar.

 

JUANA GUAITA

Vejo agora como atua o desejo no centro de tuas visões.

 

RENÉ DEL RÍO

Se me tocasses verias ainda melhor.

 

JUANA GUAITA

Resisto ao princípio numinoso de tuas virtudes esgarçadas.

 

RENÉ DEL RÍO

Não tens que resistir. Não estamos aqui para renovar ou destruir nada.

 

JUANA GUAITA

Mas os nossos sonhos…

 

RENÉ DEL RÍO

Nós apenas imitamos as forças destrutivas e renovadoras da natureza.

 

JUANA GUAITA

E as fontes humanas?

 

RENÉ DEL RÍO

Sexo, minha linda, não somos mais do que esse fogo avassalador e orgíaco.

 

Página 22 – Continua. O anjo se excita na medida em que perde as asas, porém segue levitando.

 

RENÉ DEL RÍO

O sexo dá sentido à brutalidade do mundo.

 

JUANA GUAITA

Como uma dissolução de tudo?

 

RENÉ DEL RÍO

Como a grande força indiferenciada, que não reconhece nenhuma outra.

 

JUANA GUAITA

Deus!

 

RENÉ DEL RÍO

O meu deus feito carne dentro de mim!

 

O anjo feito homem envolve o corpo da enfermeira, sem que ela o perceba, e em um segundo ambos desaparecem, ante a risada descarnada da ninfomaníaca.

 

Página 23 – Em meio à sua crise de riso entram no quarto a psiquiatra e a exorcista.

 

DRA GENARA FIORD

Tudo nela se realiza no olhar.

 

SOFIA MOURISCA

Há quem tenha o sol na boca. Ela o tem guardado na íris.

 

RENÉ DEL RÍO

Mmmm, dois de uma só vez…

 

DRA GENARA FIORD

Veja como insiste em definir seu corpo como uma mansão vazia.

 

SOFIA MOURISCA

É ele. Não há dúvida. O mesmo arquétipo banal.

 

RENÉ DEL RÍO

Qual dos dois me desamarrará primeiro?

 

DRA GENARA FIORD

Pincela o próprio corpo com uma clarividência anárquica.

 

SOFIA MOURISCA

Não te deixes iludir por sua assimetria.

 

RENÉ DEL RÍO

Rogo por um pedacinho selado do primitivo de cada um.

 

Página 24 – Continua.

 

SOFIA MOURISCA

Vamos começar.

 

DRA GENARA FIORD

Sem paramentos?

 

SOFIA MOURISCA

Os paramentos quando muito fornecem as guias para a decomposição do espírito.

 

RENÉ DEL RÍO

Um instruído!

 

SOFIA MOURISCA

Deixemos que ele se entupa de si mesmo, até que o corpo que ocupa se torne insuficiente.

 

Página 25 – Corta para o quarto onde se encontra o cadáver da mãe sobre a maca. Há ali agora uma pequena mesa, onde a garota desenhista rabisca as suas imagens. A satanista desatualizada está ao seu lado.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Eu pus um pé no nome e outro na estrada. Por onde andei tudo parecia ser o mesmo, embora mudasse de nome.

 

KALIGA POTT

As formas são uma adoração do lugar onde estão.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Sempre pensei que fossem como um céu caindo o tempo inteiro fora de lugar.

 

KALIGA POTT

Veja quantas vezes desenhei o cadáver imóvel de tua mãe. No entanto nenhum desenho se assemelha ao outro.

 

CADÁVER DA MÃE

Procurem não falar comigo.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Eu ainda me calo sobre os antigos sortilégios.

 

KALIGA POTT

Eles não existem mais. Tudo gira em torno da receptividade. Negociada como hóstias fabricadas no quintal ou sonhos roubados.

 

Página 26 – Continua.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Porém sua imagem me amarra e nada mais me satisfaz tanto quanto o seu fantasma exaltado.

 

CADÁVER DA MÃE

Não insistam.

 

KALIGA POTT

As noites fazem desaparecer as razões do dia. Os dias somem com os malefícios da noite.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Como um plano divino?

 

KALIGA POTT

Como uma abundância da pior impotência: a crença. Observa o que desenharei:

 

Página 27 – Ela desenha a cena em que o anjo tornado homem envolve a enfermeira e ambos desaparecem diante do sorriso descarnado da ninfomaníaca.

Página 28 – Ela mostra o desenho ao satanista:

 

KALIGA POTT

O que vês? O que chama para dentro ou o que expulsa?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Uma ilusão.

 

KALIGA POTT

Exato. A mesma pedrinha vista por dentro ou por fora. O deus que por vezes trazemos para dentro de casa não é senão o diabo que nos dá imenso trabalho de expulsar.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Como distinguir entre mau-olhado e semelhança?

 

KALIGA POTT

Ainda crês nisto? Que uma só palavra guarde em si toda a jactância do mundo?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

A verdade é que já não sei o que buscar…

 

KALIGA POTT

Por que estamos aqui neste casarão?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

A Dra. Fiord me convidou para auxiliar no caso de uma ninfomaníaca que manifestara poderes mediúnicos.

 

KALIGA POTT

E não estranhaste essa cumplicidade entre ciência e religião?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Sempre imaginei que o homem um dia alcançaria uma espécie de harmonia improvisada…

 

KALIGA POTT

Agora sabes o que querem de ti: a tua inocência.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Eu não posso estar de acordo ao mesmo tempo com o ferro e o ferrolho.

 

Página 29 – O quarto vazio, exceto pela maca onde se encontra o cadáver da mãe.

 

Página 30 – O corredor.

 

COMIGO

Eu dei à imaginação um jeito dela se libertar de si mesma.

 

CONTIGO

Eu concluí que ela sempre olha para seu pé indagando pela cabeça.

 

COMIGO

O que fazem da vida os ponteiros de um relógio depois que o tempo foi abolido?

 

CONTIGO

Mas assim? Vamos crendo em toda moda lançada por Deus?

 

COMIGO

Não sei, não sei, não. Este lado parece riscado para cima.

 

CONTIGO

É que estás olhando por outra brecha.

 

COMIGO

Mas toda vez que chego aqui já se passou uma hora.

 

CONTIGO

Vê só, estás confundindo tempo e espaço. Isto é perfeitamente racional.

 

COMIGO

Queres dizer que estou louca?

 

CONTIGO

Pelo menos não sei mais o que pensar de ti.

 

Páginas 31 a 33 – Reprodução de página inteira de três quartos esvaziados do casarão. Num deles a maca vazia. Em outro o espelho na parede. No terceiro a mesa da desenhista.

Página 34 – Área externa do casarão, gramado, debaixo da copa de um cajueiro pequena mesa redonda e duas poltronas, sentadas a psiquiatra e a satanista.

 

DRA GENARA FIORD

Cada sombra que projetamos nos indaga de onde acabamos de sair.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

A ninguém importa onde estamos chegando.

 

DRA GENARA FIORD

O futuro inexiste. Pode até indagar por nós, mas é o passado que nos revela.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Por que me trouxeste aqui?

 

DRA GENARA FIORD

Ainda não sabes? A morte de tua mãe atua como uma consciência automática dos erros que não podes repetir.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Não creio…

 

DRA GENARA FIORD

Este é o ponto chave…

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Não creio na convergência que traças entre o acaso e o desejo.

 

DRA GENARA FIORD

Como uma ramagem flexionada.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Nada nos decepcionaria então…

 

DRA GENARA FIORD

Torpe analogia entre o queijo e o rato.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Entre o fogo e a angústia do demiurgo.

 

Página 35 – Continua.

 

DRA GENARA FIORD

As formas se reproduzem como símbolos de sua soberania.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Conversa fiada. Quem não sabe ceder não acede ao enigma do desejo.

 

DRA GENARA FIORD

Quantas intenções se desmembram por medo de uma correspondência?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Não te entregues ao pasto, ao prato, à receita de uma razão reencarnada.

 

DRA GENARA FIORD

Não crês em teu próprio ofício?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Tudo aquilo que construímos encontra uma razão de ser. Não importa que simbolize algo que nos desagrade. Somos complementares em tudo.

 

DRA GENARA FIORD

Crês no que defendo?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Cada mínimo gesto humano é um anagrama.

 

Página 36 – Continua.

 

DRA GENARA FIORD

Que bela solução mística encontras para tudo.

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Veja, há tanto de unidade quanto de divergência entre o profano e o sagrado. Por que imaginas que a farmacologia seja uma varinha mágica?

 

DRA GENARA FIORD

E o que fazemos com esses corpos devastados pela mente?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Deixamos ser a expressão de seu inconsciente.

 

DRA GENARA FIORD

E quando cresçam, e tomem toda a realidade?

 

A CONDESSA TRAMPOSA

Nós então os invejamos. Quem sabe seja um recomeço.

 

Página 37 – O casarão visto de longe.

 

 

LENILDE FABLAS

 

O tema da luz compartilha com seu complemento, a escuridão. Desde a minha infância os dois vieram ao mesmo tempo. A escuridão dos amplos e abertos pátios da casa da avó e a luminosidade dos segredos trazidos pelo acaso. A luz é a alegria dos encontros e a escuridão é o despertar dos estímulos. A imensidão da casa da avó semeava em mim a argúcia dos labirintos. Também havia o mistério de uma parede inteira de livros, eu me sentia vigiada por ela enquanto um portal, ali em seu centro magnético, me levava até a casa da mãe. Fui criada entre duas casas, cada uma com suas fissuras, seus corredores, os caminhos misteriosos que a todo instante me transportavam de uma para outra. Em algumas paredes, a evocação muito sutil da luz nas pinturas de um tio-avô, as naturezas-mortas que marcaram meus escritos, muito antes de eu começar a escrever.

Infância é tudo. O resto é uma sementeira psíquica e a fabulação técnica. Desde muito cedo a luz me interroga dos ambientes externos, dos lugares onde minha avó me levou: praças, fundações, ruas, além dos domingos enfrentando o mal com meus pais. Tudo isto me levava a crer que não há arte sem vida. De qualquer forma, aquelas naturezas mortas foram de imensa importância em minha infância, como os quadrinhos, a chegada da televisão com suas animações. Ainda muito jovens, as primeiras leituras. As tragédias trouxeram um charme mágico para os meus dias, com sua escuridão que me convidou a desvendar o outro lado do espelho. É claro que tudo isto aflora em meu romance, porque em mim a curiosidade é imortal, e leva à compreensão dos relacionamentos amorosos entre os opostos. Iguais à relação entre as coisas dadas como distintas, as possíveis conexões entre o cosmos e o cérebro humano, a importância de discussões sobre a matéria negra, que são dadas pela bifurcação de luzes e trevas.

Viver é uma especulação do inconsciente. A parede de livros na casa dos pais foi o espelho de minha infância. Eu entrava em suas páginas como quem enraizava estrelas no olhar. Nos livros eu sempre me banhei, com as minhas sombras mescladas à de todos aqueles personagens. Uma épica da imaginação. Os lugares percorridos, os horrores desvendados, a sabedoria do vácuo. Assim como aquela curiosa biblioteca me levava até a outra casa, em suas idas e vindas eu embaralhava os vultos desentranhados das páginas de tantos romances que durante anos eu não sabia devolvê-los ao seu território de origem.

O espelho é uma tábua de adivinhação. Na medida em que eu escrevi era como se pintasse uma língua em cada superfície do papel e desse a elas a liberdade de falar o que bem quisessem. A magia era inconfundível. Os cachimbos voadores mantinham no ar uma exigência vital: a alma tem que reconhecer seu próprio corpo – mesmo que seja em outro – ou então se despedir da cena. Sem que eu desse por mim, havia interrompido o fluxo natural das relações entre corpo e alma, propiciando uma nova arte da conversa entre dois mundos. A partir daí, e por muito tempo, eu perdi o controle sobre a minha escrita. Beleza e feiura, temor e coragem, desabrigo e proteção, eram sintomas que, uma vez embaralhados, demonstravam que a moral era uma vitrine que já ninguém queria desfrutar.

O fim disfarçado em princípio. Quando a moral se dilacera os vasos de flores sobre a mureta enunciam um novo desafio a ser desventrado. Uma versão bem distinta dos fatos com seus atributos e manchas larvares. Aos poucos o mundo que eu conheci foi se transformando, baseado no conhecimento inverso das coisas. Quando dei por mim eu estava no interior de um espelho e, ao abrir os olhos, percebi que tinha à minha frente um outro espelho, de onde eu era convocada pela minha própria imagem refletida no olhar daquele incômodo personagem. Eu podia ler a essência individual dos seres encontrados nas páginas de todos os livros que tantas vezes reli. Mas agora outra ambição se projetava. A exigência de uma subversão perene. Eu teria que percorrer a espiral que me separava de meu outro, até que a sua extremidade me revelasse um movimento original de meu próprio ser.

Sem que eu desse por mim, havia começado a escrever outro romance.

 

 

EMILIA AHMADJIAN

 

Houve uma época em minha vida em que eu estava tão perdida, em meio a uma vertigem de peregrinações, que comecei a enviar cartas a mim mesma, cartas que eu sabia que jamais as receberia. Um rio de linhas que talvez um dia desventrasse algum futuro, a vertigem impressionista de um mundo que eu talvez devesse abandonar. As cartas são como um sinete, uma tatuagem do destino e sua indecifrável arbitrariedade. Em algum remoto lugar da terra certamente haveria uma Emilia Ahmadjian que me leria e encontraria em cada verbo um efeito de presença, a figuração de meus fantasmas, o universo submetido às sutilezas da decomposição. E se nenhuma Emilia Ahmadjian me lesse, ao menos as cartas teriam sido escritas, dando fé que a obsessão pela confluência pode se prolongar pelas bordas do infinito.

 

Querida Emilia

Talvez estranhes que seja eu a te dizer que Deus nos marca com um selo fervente que nos impõe a criação de algo. O meu primeiro impulso foi me sentir destinada à criação de meu próprio eu, este ser ausente do lugar onde me encontro. Mesmo correndo o risco de um desvio de percepção, eu te envio linhas embaraçosas que pretendem inspirar novos tempos. Talvez não haja maior utopia do que sair em busca de si mesmo. Quem dera essa carta te alcance e possas me responder contando um pouco a meu respeito.

Com amor,

 

Aos poucos comecei a aprender vários idiomas, pois me veio a dúvida sobre qual deles falaria Emilia Ahmadjian. Diversas vezes esquadrinhei esse mistério, sem encontrar a menor sombra de solução. As semanas se atropelavam e as cartas seguiam viagem imaginária entregues ao acaso. A minha confusão vagava entre a solidão e a melancolia. Não sabendo quem era Emilia Ahmadjian perdi o sentido da subjetividade e só via diante de mim um horizonte de objetos descorados e dispersos entre eles. Eu estava crescendo em meio a uma civilização sem alma. Talvez eu devesse encontrar um símbolo que me levasse ao íntimo fervilhante de meu ser.

 

Emilia

As minhas visões são tão incomuns que sempre que reflito sobre elas me perco ainda mais. A ausência de uma resposta tua me leva a pensar que eu talvez deva cessar essa tormentosa espera. Um temor exponencial me faz crer que as suspeitas pintam melhores paisagens do que as certezas. Eu queria criar uma árvore dentro de mim, cuja ramagem fosse tão vasta que não precisássemos mais nos sentir isoladas uma da outra. Porém ao meu redor só vejo coisas em miniatura. Eu me tornei um monstro cujo reino está perdido.

Tua

 

Foram dias de uma profundidade relutante. Eu me deixava inflamar pela ilusão do que estava por vir. A esperança estava se convertendo em um castigo perpétuo. Eu estava paralisada em meu próprio corpo, como um rio em uma fotografia. Neutralizada pelos demônios da encruzilhada, desconhecia a quem invocar em meu íntimo. Só podia pensar nessa distante Emilia Ahmadjian que talvez sequer me conhecesse. E a ela incansavelmente devotei o meu desespero.

 

 

LUEJI LLALEJ

 

Certa noite despertei com um disparo que me parecia vir da crueza de uma linguagem brutalizada. A cidade distorcida em meu olhar ofegava em uma mineração de lágrimas. Tudo parecia talhado pela destruição. Talvez ainda fossem as ruas de um sonho. A terra desolada de tantas bíblias, o desgaste crescente dos símbolos, as proezas de uma barbárie que nos ameaça com seus bônus requintados de torpeza. Não era mais o sonho. Tudo era tão real que um sonho não conseguiria reproduzir. Porém a dúvida persistia. A qual mundo pertencia aquele disparo? Viesse do sonho e poderia ser um alerta de que o terror nos varreria do mapa. Viesse da vigília e seria o último som que escutaríamos antes da completa devastação. Deitada na cama, prolonguei minhas suposições. Eu costumava dormir abraçada com Micus, um desajeitado macaco de pelúcia que me dera uma amiga ironizando meu medo de dormir sozinha. Micus me divertia por horas a fio imitando os animais que eu lhe mostrava em um livro de fotografias. O seu silêncio me impressionava, pois eu interpretava tudo o que ele queria me dizer. Ao ouvir aquele disparo eu me agarrei tanto com ele que talvez ali naquele exato momento nos tornamos uma essência única, meio sangue, meio pelúcia. E graças a seu dom de imitação pude evocar a consciência alterada daquela noite que pendia do torso do mistério.

 

– As manhãs costumam esperar por nós, por mais tarde que acordemos. Mas não vejo nenhuma manhã por aqui, Micus. Estás acordado a mais tempo?

– Não acordamos mais, Lueji, agora nós somos assaltados pela vigília, e de nada adianta discordar de seus ardis. Esta senhora tem parentesco com os diabos das sete chagas.

– Sendo assim, o disparo veio dela.

– Acho que jamais saberemos. As viagens cerimoniais pelos domínios do sono estão suspensas, como estratégia para reduzir as irrupções de homens e lagartos para o reino avançado das caricaturas.

– O que estás me dizendo, Micus? Isto não pode ser.

– Não há mais nada que não possa ser. A realidade tornou-se uma tempestade facultativa. E quando desconsidera seu próprio método não faz mais do que nos aterrorizar. Somos uma sociedade capturada pelo vácuo, nos reservaram os santuários de rituais maléficos.

– Sentes o cheiro de enxofre vindo daquela abertura?

– Não é enxofre. Trata-se do suor desprendido de um protesto de esfinges. Cada uma leva consigo a sua escada e a foto de um poço onde fez sua morada. Não querem mais ser guia ou representação de ninguém.

– Eu temia que um dia chegaríamos a um ponto em que nem mesmo as esfinges sentiriam orgulho de seu destino.

– E por que sentiriam? Elas foram brutalizadas pelo acúmulo de revelações que transmitiram ao mundo. Um excesso que cedo deu indícios de que viria uma onda violenta de vulgarização.

– Sem elas, de algum modo, perdemos nossa orientação no espaço. Tivemos que improvisar caminhos e desistir do retorno a algum ponto de origem.

 

Desde que Micus e eu nos tornamos um híbrido víamos estranheza em tudo, as linhas da semelhança foram cortadas e os seres se atropelavam nas ruas como autômatos parafusados em série. O mundo não carecia mais de interpretação, os algoritmos eram distribuídos em tíquetes e tinham já definidas as suas funções. Eu teria que sair dali e o disparo ouvido naquela noite foi um sinal de que eu deveria escolher entre o sonho e a vigília. Eu teria que buscar uma paragem de proporções desiguais, apanhada por um salto, ciente de que a mudança de lugar ocasionaria também a mudança de tempo.

Nossa morada pode ser o pântano ou um regaço de nuvens. Impossível a privação em um lugar onde não temos nada. Aquele mundo há muito havia acabado. Seu futuro era tão incerto quanto a ressurreição. Eu estava ciente de que não poderia levar Micus comigo a parte alguma. E naquela noite, enquanto o disparo se completava, fechei os meus olhos e me deixei ir, simplesmente.

 

 

BERTHA MALIK

 

Quando eu tinha 13 anos não fechava os olhos no chuveiro temendo estar em outro lugar ao reabri-los. Um dia ouvi um barulho de água vindo do banheiro. Parecia o som de um vazamento, a água minava por todas as partes. Ao entrar a porta se fechou e o volume d’água foi se acumulando a ponto de me cobrir todo o corpo. O banheiro se transformara em uma espécie de tanque que me aprisionava, onde eu me debatia com desespero. Ao abrir a porta minha irmã me viu deitada ao chão, o corpo se agitando, gritando. Ela me abraçou e logo despertei do que parecia ser um grande sonho e chorei em seus braços. Outra noite, em minha cama, sempre que eu fechava os olhos sentia os meus ossos estalando como se eu me desfizesse toda. Tudo não durava mais do que segundos, era uma sensação insuportável que me forçava a manter os olhos abertos. Comecei então a vislumbrar como poderia ser um corpo sem ossos, como se eu fosse uma serpente com braços e pernas, até que o cansaço me forçava a desmaiar.

Essas coisas me aconteciam com frequência. Desde as mais sutis fantasias que se apossavam de mim até umas vertentes mais violentas, que levavam à asfixia e ao delírio histérico. Era como se eu vivesse entre a fuga e o fingimento, conflito em que eu acabava por distorcer uma tão precária noção da realidade. De muitos daqueles desvios temporais a minha irmã me salvava, e me ensinava uns truques de dissimulação, talvez – dizia ela – disfarçando as sensações aqueles paradoxos fossem aos poucos se disseminando até o completo desaparecimento. Talvez a impostura fosse a única forma de apagar os estigmas daquela cadeia de devaneios. Em algum lugar eu havia lido que tudo o que serve para expressar a queda faz parte dela. Era o que eu deveria fazer. Dar um nó em cada sensação escabrosa e lhe fixar o olhar até que ela se curvasse, fragilizada, negada, separada de seu fulgor. Foi um longo aprendizado, o de imitar a histeria.

Aos poucos fui sustentando em mim o desejo de ser outra. Era preciso criar uma combinação cênica em meu íntimo que me tornasse parceira de um personagem imaginário. E não havia modo que se mostrasse naquele momento mais eficaz do que a imposição de uma sedução, um tipo de exaltação passional em que eu me tornaria uma amante singular de mim mesma. A fortuna sigilosa de uma identidade dilacerada, cativada por olhares licenciosos e orgasmos deslumbrantes. Eu seria testemunha dessa expropriação do outro. Meu corpo transformado em asilo e campo aberto. Cedo descobri que não bastava marcar o palco, o chão da aparência. Era preciso deixar-me embriagar por aquele jogo de atração. Eu teria que fazer com que cada truque se reconhecesse em suas consequências. E, com o tempo, a repetição era inevitável.

Minha irmã foi a primeira a perceber que eu vinha me repetindo muito, como uma espécie de mecanismo viciado em encenações. As imagens daquelas torturantes fantasias iniciais agora haviam sido transferidas para um cenário em que eu polemizava pecado e inocência. As masturbações agora iam mais além dos toques físicos. Eu fiz de minha imaginação um teatro em que diversas de mim compunham um roteiro orgíaco de estripulias consentidas. Vasculhávamos a intimidade de cada uma, proliferando a medida de todos os risos, imprimindo ao sentido genital inúmeras fronteiras que se preenchiam na medida em que floresciam novas formas de desejo. Nós nos transformamos em modelos experimentais do ser. Todos os desvios eram testados como a presença de um princípio maior. As dores e devaneios, os sonhos decaídos e a morbidez de certas ilusões fora de lugar, as crises similares da memória, tudo havia se tornado secundário.

Eu finalmente pude me reconciliar com o sono e a escuridão. Uma pantomima de carícias acabou por se mostrar mais eficiente do que os eletrochoques e as sessões hipnóticas. Não havia melhor modo de vencer o pânico do que encenar repetidamente seus atributos. 

 

 

O ROMANCE INACABADO DE LI SONG

 

Todas as vidas estão conectadas. Os dias ficaram fora dos frascos. As noites dormiram longe das camas. As vozes não sabiam o que falar. Talvez fosse o princípio de uma nova aposta. Diante desse enunciado irredutível, qual o sentido de uma pertinaz conexão entre todos os seres vivos? O interior da casa visitada pela maldição das mudas aves negras, o dilaceramento da mobília desfeita de suas funções, a desordem imediata da consciência. Li Sung aturdida diante das coisas fugindo da razão. Onde ela esteve, os ermos para onde fora levada, a teoria dos excessos imaginários, tudo agora se derramava diante de si como um triunfo líquido do fogo. As transgressões do horror de sua memória, a divindade doentia que lhe afastara das religiões, o peso pavoroso das definições. Li Sung atribuía seus novos vícios ao instinto suprimido do coletivo. O aspecto sacrificial da solidão, essa perturbadora violência do silêncio. A casa habitada pelos truques do impassível, as células gastas da linguagem. Quando todos nos tornamos vítimas, o regozijo é uma conduta perversa dentro da qual justificamos nossos tormentos. Uma casa de cada vez, sem termos para onde voltar. Não importa o inferno distribuído em tantos colos. As sagas estão infestadas de arbitrariedade. As semelhanças são formais e acentuam a vantagem que tiram das relações a cada sentimento expressado. A identidade é secundária. Os sítios interditados que Li Sung vê surgir diante de si, na casa e na memória, traficam seus estados místicos, a vida inferior do sagrado, e ela aos poucos vai perdendo a noção do que determina a brevidade de um vislumbre entre o piso e o telhado. Ela também terá que dormir longe das camas e desabrochar sua consciência fora dos frascos. Os limites foram contaminados, as prudências desterradas, os paramentos denunciados. Li Sung estava decepcionada diante das novas fornalhas do ser. Não queria escolher os caminhos tatuados na pele daquele cenário ardilosamente ambíguo. Ela também repugnava a melancolia. Não seria fácil simplesmente desistir de tudo e deixar-se vagar pelos limites do alheamento. Talvez o livro devesse ser escrito de outro modo. As aldeias violentadas da memória, o café improvisado com Lenilde Fablas no espelho da sala vazia, os pássaros negros bicando seu espanto – as páginas deveriam dar em outra esfera. Lenilde teria que concordar com ela que as histórias se tornaram indiferentes à vida humana. Era preciso vasculhar a alma até encontrar um fogo-fátuo, uma fagulha, um estalo. Até lá, não lhe restava senão rejeitar a realidade, essa trapaça fascinante que está acabando com tudo. Abandonou então aquelas páginas, acreditando que elas seriam brevemente substituídas por uma espécie de folheto alquímico que abrangesse o espírito resoluto dessa nova mulher que ela intuía estava por chegar. Os dias assim foram folheando o acaso, até que em uma manhã outra casa se mostra diante dos olhos de Li Sung, não menos perturbadora que a anterior, porém agora mais segura de que seus tremores a levariam por caminhos de uma descoberta mais visceral. Uma casa repleta de fantasmas que ao invés de gerar pânico a desafiavam a embaralhar as máscaras à procura de um rosto singular que acabasse por ser a soma de todas elas. Um desses fantasmas insistia em seu código telepático: Não sejas outra pessoa se não és capaz de ser tu mesma. Li sung se via tomada pela escrita, as páginas se multiplicando em uma série irrefreável de vestígios, um personagem que ganhava vida em seu íntimo: Lavínia di Lúvia e seus fantasmas. Talvez Lenilde Fablas devesse intervir, pela devassa tão incomum que um personagem estava provocando em seu romance. Li Sung no entanto perseverava que não seria mais aquela que a autora decidira que ela deveria ser. A partir daquele momento ela seria Lavínia di Lúvia e sua vida tomaria um curso distinto. Não havendo como dissuadi-la de sua decisão, Lenilde Fablas concordou em lhe dar novas páginas, para que ela, em seu raro renascimento, agora como Lavínia, expusesse as vertigens de sua memória ou as inquietudes de seu desejo.

 

 

OS 12 FANTASMAS DE LAVÍNIA Di LÚVIA

 

A minha vida talvez não passe uma sincronia de erros, com sua enxurrada de acidentes, os disparos devoradores da ansiedade. Impossível sabê-lo. Talvez se eu desse a outra pessoa as chaves para, ao refazer meus passos no mundo, evocar uma criatura que definisse meus temores adormecidos, as dissimulações de meu ânimo… Alguém que pudesse chafurdar nos escombros de minha memória e dali trazer à tona os meus fantasmas. Pensei em uma inteligência artificial que pudesse ser programada para invadir o meu íntimo e me arrancar de uma prostração que vem me contaminando al alma. É possível que assim criaríamos – sim, a quatro mãos, como um exercício visceral de escrita automática – a atmosfera de um enredo elucidativo, um teatro com seus fantasmas desafiadores.

 

1, FANTASMA DO ESPELHO

 

Lavínia di Lúvia acordara espantada com a mancha escura na cama logo abaixo de seu braço, naquela abafada manhã de chuva em Turandot, um 3 de março de 1947. Algo se passara, talvez um sonho, porém não havia lembrança alguma. Olhou fixamente a mancha e ainda mais assustada ficou ao perceber que ela pouco a pouco mudava de forma, assumindo contornos distintos. O que a mancha teria a dizer a Lavínia talvez elucidasse algo acerca dos constantes esquecimentos que vinham lhe preocupando. Ao levantar-se da cama foi ao banheiro buscar sua escova de cabelos e retornou, constatando o crescimento daquela sombra misteriosa que agora se movia de um canto a outro da cama, contorcendo-se e assumindo uma forma quase humana. O que estaria guardado naquela evidência funesta? Uma revelação da noite, a chave de um pesadelo que aguardara a vigília para se manifestar? Imóvel, Lavínia temia a qualquer momento ser devorada por aquele infortúnio. Fosse uma desdita onírica e ela logo despertaria. Talvez um reflexo tardio da época em que ela foi por seguidas noites perseguida pela paralisia do sono. Em meio a seus pensamentos, a mancha ganhara volume ao sentar-se na cama, fixando o olhar negro e vazio em seu rosto apavorado. Mal conseguindo gritar, embora nada ali fizesse sentido, ela indagou o que aquele vulto queria. Nenhuma resposta, enquanto a mancha se erguia, prostrando-se diante dela, passando a repetir à exatidão os movimentos de seu corpo, o mínimo possível, os braços trêmulos, a nudez irremediavelmente pânica.

 

– O que queres de mim?

 

Novamente o silêncio era interrompido apenas pelas palpitações agônicas de Lavínia. A conveniência de um desmaio não lhe era permitida. Ergueu um braço e a mancha lhe repetia o movimento. Era como se estivesse diante de uma sombra tridimensional. Observou que tudo no quarto permanecia imóvel. O tempo congelado, apesar da chuva escorrendo pela janela. As horas em desalento. Suas pernas dormentes.

 

– Não vês que isto é impossível? Se és o reflexo de minha loucura, então entremos em um acordo. Posso abrir a janela e saltar, ou sair gritando pelos corredores do prédio. Só não me deixes assim, diante deste vazio inconfessável. Quem és, afinal?

 

Não há caos que não alcance um momento de aparente normalidade. Quando tudo parece conspirar à nossa volta acaba por surgir uma quietude que nos permite ver que é apenas o acaso em sua versão intraduzível. Lavínia tentava se convencer de que a qualquer momento aquela mancha obscura desapareceria sem deixar vestígios. Ou ela despertaria de um sonho ainda acuada pela memória terrificante e a mancha de urina reconhecida pelo cheiro seria a única circunstância fora de lugar. No entanto, seus esforços foram subitamente inutilizados, no momento em que o vulto ergueu as mãos em volta de seu pescoço e Lavínia sentiu a pressão daquele impulso por lhe enforcar. A voz tragada pelo medo e a asfixia, ao olhar de lado viu a sua imagem solitária refletida no espelho, em movimentos horripilantes e desconexos.

 

– O que está acontecendo comigo? Nada disto pode ser real.

 

Porém a realidade não estava presente, ou nada que se assemelhasse a ela. Não se tratava de sonho ou pesadelo, de instável memória de algum suplício, uma dor recortada do passado que viera lhe afligir a manhã chuvosa. O que seria então? Lavínia sentia esse verboso desespero por um mundo plausível. Agora estava diante de algo sintetizado ao acaso, uma fortuita ilustração do impossível. Já quase sem fôlego, as forças sucumbindo, ela não duraria muito mais. Certamente a vida lhe saltaria fora e no dia seguinte a faxineira a encontraria morta ao pé da cama. Do que morrera afinal jamais seria possível constatar. O corpo nu e aparentemente saudável, sem uma única mancha na pele. Apenas a morte em uma manhã chuvosa e o atrevimento de um mistério que não deixou carta alguma de despedida.

 

2, FANTASMA DA MACIEIRA

 

Esta é a árvore da vida, os ramos da liberdade. Olhem bem, este é o verbo que confere a imortalidade a todos que guardem um pentagrama em seu íntimo. Olhem bem como a matéria carnal se reproduz em tudo quanto se alimenta de seu conhecimento. Esta é a catedral das profecias, o refúgio sagrado do maravilhoso. Esta é a árvore de mil mundos e a advertência mística dos prenúncios. Olhem bem a água que corre sobre o princípio de todas as coisas. A luz que nos enriquece o desejo.

 

Lavínia di Lúvia lia fascinada as páginas daquele romance. Pela primeira vez sentia-se como designada para um fim absoluto, a tempestade ascendente de todas as naturezas híbridas. Ela que conhecia um mundo em que tudo se distingue pela palavra, agora se deixava mergulhar no inconsciente e ali uma potência subterrânea que poderia dar a cada gesto ou coisa incontáveis significados, não mais a palavra úmida e única, mas sim uma voragem de tesouros que se descobrem a si mesmos a cada ovo rompido, a cada embrião desperto, a cada senha revelada.

 

Esta é a caverna onde cresce o ímpeto. O abismo da casualidade, onde os seres só são temíveis quando não correspondem ao turbilhão dos símbolos. Olhem bem como todos nós podemos ser a encarnação dos limites mais invisíveis, das correntes que podem unir os cinco elementos. Esta é a caverna onde se acumulam as sementes da grande árvore da vida.

 

A leitura retomava as cifras inspiradas em um tempo em que tudo era possível, em que os mundos paralelos saltavam de uma frase para outra, rio de vísceras onde todos os números se encontravam no olhar, nas cinzas primitivas do renascimento. Lavínia di Lúvia aguçava em seu íntimo a construção de um esplendor. Para ela a sua vida era com frequência invocada pela encarnação de algo que não sabia explicar. Havia frequentado grupos de estudo, se viciado na retórica de alguns guetos, especulado sobre totens rodeados de tabus. Agora um romance lhe parecia devolver a um estado giratório de descoberta de si mesma.

 

Não há templos onde não atue o redemoinho dos paradoxos. Cada coisa dá uma primeira volta em torno de suas consequências e percebe que a cada movimento se abrem as trilhas que não acenam propriamente com significados, mas sim com a representação de abismos que dão a todas as forças terrenas as chaves do inacessível. As portas por onde descobriremos os conflitos criativos, os privilégios da dissonância.

 

Ela lia e lia, naquela imensa biblioteca alegórica que criara em torno de seu corpo. As horas mascavam o cofre do conhecimento. Uma senhora veio lhe avisar que o lugar iria fechar em minutos. Lavínia di Lúvia mastigou o último pedaço da maçã e, ao fechar as páginas do romance, viu erguer-se a árvore anunciada.

 

Olhem bem que nossos votos sustentam os abismos e os passos se agrupam onde as estrelas não podem alcançar. Tudo é símbolo, na medida em que nos movemos pelo mundo. Os sentidos fumegam como um cometa deixado para trás.

 

Ao caminhar de volta à sua casa Lavínia di Lúvia ainda refletia sobre aquela macieira encontrada nas páginas de um romance.

 

3, FANTASMA DO FAROL VERMELHO

 

Escavando no jardim a gata Justina aguça sua curiosidade ante a luminosidade daquela boca de vidro que se abria a suas patas. O mistério é um vidro frágil de metonímia volátil. Justina arranhava a boca da garrafa, aos poucos descobria seu pescoço brilhante tocado pelo sol. Suzana e Luiza corriam de um lado para outro no jardim, salpicando de alegria as miudezas da manhã.

 

– Justina, o que estás cavando?

 

Um rosnado moleque e continuava a rondar aquele objeto. Suzana se aproximou e ajudou a cavar. Luiza lera que os felinos são os mais sábios dos animais por sua percepção de que levam dentro de si, em porções iguais, o bem e o mal. Justina era imprudente e sorrateiro. Sua curiosidade ia além das cartas do baralho e da fábula das sete vidas. Seu miado sabia ser encantatório e usurpador. Quando Suzana lhe esguichava o pelo, com gestos satíricos de um espírito malvado, ele não demonstrava a menor aflição, disposto a impedir que aquele ritual fosse portador de boas chuvas. Justina fazia cair por terra todas as crendices de Suzana.

Agora estavam as três ao redor de uma garrafa que já se mostrava quase até a metade. Um frasco destampado guarda o mais prosaico dos filtros, o rio ressecado das malícias ou a poeira embriagadora dos naufrágios. Se desenterrado por um gato é possível que exponha ao mundo um conhecimento secreto difícil de ser alcançado, pois somente o mais ousado dos mistérios deixaria a porta aberta.

 

– Justina, afasta um pouco, me deixa puxar de vez esse brinquedo.

 

Luiza já estava exaltada de curiosidade, quem sabe ali encontraria as últimas gotas de um néctar que lhe levaria por mundos insondáveis ou a miniatura em fina madeira de um navio fantasma, tudo era imprevisível. O que desejar pode deformar o encontro. As máscaras de Dioniso e Narciso se confundem no fundo do baú dos disfarces. Por vezes as aparências pronunciam um neologismo irrelevante.

 

– Luiza, não me vás desejar nada. Bem sabes que a gente nunca deseja qualquer coisa, que o desejo, por mais vulgar, é sempre especial e deslacra seu inverso. Esvazia essa cabecinha. Me deixa arrancar a garrafa da terra.

 

Assim fez Suzana. Como se desenterrasse uma vida. Era a arqueóloga do jardim, passando por cima do mérito de Justina, era ela agora a usurpadora, a guardiã de uma fonte evolutiva da existência humana. Na medida em que erguia a garrafa o sol ia desvendando aquela procriação assimilada do mistério.

 

– Vejam, vejam, que coisa mais linda!

 

Justina divagava de um miado para outro. Seus olhos cresciam com aquele brilho, alheio a seu significado.

 

– Como é possível? Parece estar vivo!

 

Vivo como se evocado por forças superiores, como se refeito em sua mecânica estelar, como se voltasse a cumprir seus valores mais extasiantes. Suzana e Luiza tinham diante de seus olhos maravilhados a miniatura de um farol vermelho cujo facho de luz no cimo da torre lentamente girava. Justina dava pulinhos tentando tocar a garrafa nas mãos de Suzana.

 

– Cuidado para não soltar, Suzana. Coloca no chão, deixa a Justina ver de perto.

 

A gata encosta o olhinho bisbilhoteiro na entrada da garrava e súbito dá um salto e dispara para longe dali como se tivesse visto uma matilha exaltada.

 

– O que será que a assustou?

– Olha, Suzana, uma pequena luz se acendeu na base do farol.

 

As duas irmãs, com olhar bem apurado, identificam uma porta se abrindo no térreo do farol vermelho e dali surgindo uma mulher. Os caprichos da fascinação sempre alimentam a fortuna do arbitrário. Gritam para a mulher, chamando-lhe a atenção, dizendo que estão ali desejosos de saber quem ela é.

A intrigante mulher recolhe alguns pequenos objetos não identificados à lateral da porta de entrada e então regressa ao interior do farol. Jamais saberemos quão bruta é a pedra da imaginação. Luiza guarda em seu quarto a garrafa esverdeada que ela jura conter em seu íntimo um farol vermelho. Suzana perambula pelo jardim gritando por Justina, que nunca mais apareceu.

 

4, FANTASMA DO NAVIO-PRESÍDIO

 

Lavínia di Lúvia morrera a primeira vez em 1947. O tempo se multiplica por infinitas dobras do espaço. Em 1935, quando andou por Pindorama, foi surpreendida com uma ordem de prisão. No interrogatório ficou bem claro o insólito do assunto.

 

– A senhora está aqui para depor…

– O governo? Pois me parece que o senhor comandante, no lugar que ocupa, está em melhores condições do que eu para fazê-lo.

 

Capitão Frazino Descartes era de todo desafeto do humor, de sensibilidade passageira e certamente não acataria os subterfúgios daquela mulher.

 

– Então a senhora não sabe o que a traz aqui?

– Atrás de muitas notas nem sempre se confirma o montante investido. Por mais elaboradas que sejam as hipóteses elas não vão além de migalhas prováveis. As acusações são quase sempre tão suspeitas quanto as heranças. O senhor me dirá se a porta certa se abriu para minha entrada.

– Como prováveis? Eu tenho testemunhas que viram a senhora no local do crime.

– Mas todos os quadrantes da geografia humana são potencialmente locais de crime. Somente as certezas geram prejuízos.

– E o morto?

– Se houve algum, ele dirá mil vezes que muitas foram as possibilidades de ter sido traído por uns e outros. Além do que não se pode confiar na palavra de um morto.

– Muito menos contrariá-lo.

– Ah o senhor agora está brincando com a situação…

– Minhas desculpas, a senhora é impossível…

– O senhor sabe muito bem que o país está dividido e que revolução alguma resolverá mais do que a metade do problema que a desperta. As revoluções são sempre frustrantes. Não há insanidade maior do que matar ou morrer por elas.

– Vamos parar com esse despudor. Quero começar do começo. Seu nome:

– Lavínia di Lúvia.

– Sabe ler e escrever?

– Sei ler tudo o que escrevo, mas me recuso a escrever tudo o que leio.

– Pode me dar detalhes de sua participação no crime?

– Não estou segura de ter havido um crime. Há mortos por toda parte, assim como manuscritos forjando culpas de muitos como eu.

– Que ousadia! A senhora quer dizer que foi incriminada? E por quem?

– As suas perguntas respondem muitas coisas. Eu não diria a verdade melhor do que o senhor.

 

Frazino Descartes não aguentaria mais uma troca de frases com aquela mulher. Chamou um sargento e lhe deu ordens para levá-la dali, seria hóspede do exército em seu navio-presídio, catre de luxo para as mentes mais perigosas da revolução.

 

– Então o senhor admite que há uma revolução…!

– Sargento Minerva, conduza a presa a sua cela.

 

O navio estava ancorado na grande baía de Pindorama. O mundo provável surpreendia a todos com suas medidas preventivas. Os crimes políticos eram tratados na informalidade. A menos que uma das partes reincidisse nada se poderia provar, de modo que as privações de liberdade não eram senão um método de perplexidade para evitar as frustrações referidos por Lavínia. Nem mesmo ela estava certa de seus argumentos. E se escapasse daquela embarcação sinistra – refiro-me ao tempo e não ao espaço – submergiria em outras aventuras de descobrimento de dúvidas.

Os meses se empilhavam ao redor daquela população flutuante, em uma combinação evasiva que talvez desconhecesse de todo o que se passava lá fora. Teria havido alguma revolução? Que destino haveria tomado? Alguém sobrevivera ao litígio de ideais? Lavínia di Lúvia teve então a ideia de criar um serviço de rádio, trazendo notícias imaginárias do exterior e alentando as almas naquele cárcere à deriva. De manhã cedo acordava a todos com uma voz anasalada:

 

– As nuvens lá fora são quimeras pintadas boiando no éter e as nossas penas foram todas anistiadas em um fundo falso dessa caixa metálica. Logo voltaremos todos para casa, mesmo aqueles cujos lares foram extraviados. Nem mesmo Deus pensa em cumprir sua sentença até o fim. A todos vocês, submissos e afoitos, tranquilizem-se que ainda não saímos porque a porta se encontra emperrada e agora mesmo uma equipe de soldadores tenta abrir caminho para a liberdade.

– A liberdade não passa de uma ilusão, gritou um descontente.

– O que mais estimo em nossa audiência é que ela seja participativa. As ilusões são a dilatação de nossas memórias mais gloriosas de tempos que virão. O humor é a única militância que desmascara a inércia. Nenhuma prisão pode dispersar as forças do humor. Tenham certeza de que nada será dado ou tomado. A moral é uma canalhice da amargura.

 

Lavínia di Lúvia começava então a cantar velhas canções desconhecidas, certamente improvisadas, que muitos logo aprendiam e a acompanhavam preenchendo aquele vazio de uma legítima defesa da fantasia. Em seguida pensou em montar uma comédia e convocou aqueles que pudessem lhe ajudar a compor um script que espelhasse o nonsense da situação que estavam vivendo. Insistia que não há arte que não seja autobiográfica.

O sucesso da peça foi tamanho que outros textos se seguiram, já tão espontâneos que todo o navio se convertera em palco de representação inesgotável. A arte finalmente se confundia com a própria vida.

 

5, FANTASMA DO MUNDO VISÍVEL

 

O mundo visível não é senão uma fantasmagoria sugerida pelo mundo invisível. Quando Salustes Belmonte pôs a pesada pedra sobre a mesa da sala destelhada e ela refletiu um quarto-crescente no céu, não havia dúvida que resistisse à compulsão de dizer que ali estava o mundo possível. Pouco importa a confiança que tínhamos na veracidade dos fatos, a paisagem acaba sendo desmascarada como cenário de uma tragicomédia que emporcalha nossas vidas de vícios e frustrações. Um pranto invade os casebres de uma pintura naïf com a mesma desfaçatez de um relâmpago cortando a cena bíblica em que os apóstolos confabulam sobre o fim dos tempos. As verdades são como penduricalhos do cinismo. A moral nunca nos reservou um lugar privilegiado nas aulas de pintura. Lavínia di Lúvia estava no centro da sala com a sua nudez pousada em um gesto displicente que lhe enaltecia a beleza. Ao seu redor, em variadas alturas e ângulos, os alunos da escola de belas artes espedaçavam seu corpo em detalhes que a revelavam por dentro e por fora. Seu desígnio era ser uma ponte entre dois universos, graças a ela os alunos poderiam passar de uma margem a outra, pela estreita passagem que elegemos como os limites do terror e da beleza. Um braço, uma rótula, a nuca, o mistério refletia a luxúria e inocência das portas. Suas formas eram reveladas pelo carvão como parábolas do maravilhoso. Cada aluno parecia tocar o espírito das imagens e a prefiguração de uma nova combinatória entre o sagrado e o profano. As linhas do nariz, da vagina, dos calcanhares, as proporções rejeitavam quaisquer hierarquias. A inclinação das curvas, a insinuação das perspectivas, as vozes secretas que os desenhos desentranhavam – uma misteriosa ascese libertava os infinitos ângulos do corpo de Lavínia de seu senso comum. O carvão também fertilizava as intimidades e memórias da modelo. As metamorfoses incessantes do desejo, o coaxar das sombras viajantes, seu coração ainda pulsando depositado no prato de uma balança. Os 12 alunos na sala desenhavam os pensamentos fragmentários e os cuidados materiais daquele corpo imóvel que continha em si todo o movimento do mundo.

 

– Por trás de nossos inconfessáveis embaraços um segredo procria os fundamentos do ser.

 

Aquela misteriosa voz parecia ressoar como um gracioso boato, uma sabedoria entoada desde o interior de um mamilo cujo seio crescia tomando a forma de um vulcão, receptáculo litúrgico das explosões de nossas inquietudes. Lavínia encontrou na voz daquele selo místico um módulo de revelação de suas seivas mais íntimas. O seio possui a aparência unificada da proporção, a fonte vulcânica de tudo que precede a realidade. O jorro de seus minérios pronunciava o nome invertido de todas as convenções. Os alunos interromperam seus desenhos, liberaram uma folha limpa em seus cavaletes e se puseram todos a esboçar as artérias e contornos luminosos daquele seio-vulcão. Lavínia prontamente havia deitado seu corpo sobre a tábua central.

 

– A persistência na escavação da terra leva à renúncia de todo atributo moral.

– O conhecimento se apoia sempre em realidades misteriosas, que representam ora o fim ora o princípio de cada ouro perseguido.

– As línguas se enlaçam para formar não o livro, mas sim as suas páginas cuja analogia nos leva de um sonho a outro.

 

As vozes iam surgindo na medida em que os alunos configuravam sua interpretação da imagem. Evoluímos como uma paródia de cada momento vivido. Os seios assumiam atributos impetuosos. A destruição edifica as novas formas do tempo. Lavínia empinava seu corpo com uma consciência irônica, permitindo a cada desenho a evolução de uma dualidade sedutora. Cada aforismo representa a entrada e saída naquela misteriosa manifestação do espírito. Não nos esqueçamos de Salustes Belmonte quando acendeu seu cachimbo após haver posto a pesada pedra sobre a mesa. Os símbolos foram se ajustando à nova realidade da sala. O mundo invisível é uma caixa que encerra em si as nossas fadigas e destemperanças. A sala era uma árvore, um candelabro com 12 braços. Lavínia era uma deusa que se metamorfoseava segundo a vibração de cada braço. O inesperado é o único triunfo da forma.

 

6, FANTASMA DA ANALOGIA ROUBADA

 

Meu querido Pankua Shuk

Muitos se esforçam a vida inteira para que as águas passadas tornem incessantes os movimentos de seus moinhos, e se banham com o bálsamo da melancolia reprisando amores perdidos e frustrações acumuladas. As mentiras desordenam o mundo e quando mentimos a nós mesmos destruímos a linhagem de nossos reinos na terra. Conservo comigo o gráfico que me desenhaste, quando de nosso encontro em Jacarta logo após o massacre de milhares de chineses no século XVIII. Ali apontavas que o caráter das sombras é determinado pelo arrebatamento das relações entre a luz e a escuridão e que a verdadeira orientação de nossos gestos não buscava uma pureza das formas, mas antes as linhas vertiginosas dos abismos.

Os ornamentos são indiferentes à prerrogativa das mutações. Então era outro o nome de tua cidade e aqueles mortos todos empilhados deram substância a uma mutação empenhada unicamente em novos métodos de destruição. Ainda hoje indago qual a força vital daquela devastação. Por trás das mentiras há uma abundância de signos que pressentem as simetrias abandonadas. A arte traslada essas proporções esquecidas de uma época a outra, sem que nada lhes garanta as realidades tangíveis figuradas como a imitação de um novo tempo. Roubamos do passado os ritmos entrecortados de nossos erros desencontrados.

Não há salvação na memória, quando ela se limita a deleite estético. Os teus ensinamentos ainda repercutem em mim. Os negócios da morte sempre foram a balança radiante da razão. As guerras evocavam a grandeza das submissões. Os desenlaces amorosos também rascunhavam uma cartilha de sujeições. A palavra central de todos os tratados sempre privilegiou a cessação definitiva da existência. Até mesmo para imprimir veracidade ao plágio, a morte sempre foi necessária. O óbito, o perjúrio, a corrupção. Os cordeiros entorpecidos acumulavam seus crimes, ativos ou passivos, em nome de uma fortuna intangível. Esqueciam com frequência que também os reinos do céu tinham seus dias contados.

As mentiras acabam pondo as barbas de molho e suas letras pegajosas trilham caminhos secundários envergonhando os dicionários. Não há sucesso no que roubamos ou matamos porque a analogia sempre salta de um quintal para outro da linguagem. Conservo comigo, meu bom amigo, o teu diagrama e as linhas de sua verdade que deram cabida a tantas abordagens de minhas inquietações. Também comigo o desenho que fizeste de um moinho com as pás inflexíveis que não reconheciam a ação dos ventos. Este é o império de nossas desgraças, a alusão a tudo o que convertemos em ruínas. A única analogia que não conseguimos desfigurar.

Ah como recordo nossas andanças pela ilha, as conversas, teus radiantes argumentos. O tempo não permite que leias esta carta. Séculos já se passaram desde nosso encontro e apenas o silêncio da noite turva os meus olhos e consagra a tua memória.

Tua

Lavínia de Lúvia

 

7, FANTASMA DO CAFÉ

 

– Tudo o que temos de essencial é ar nos pulmões. O homem possui a mesma natureza do diamante. Ambos são o seu único inimigo. Nada mais pode destruí-los.

 

Lavínia di Lúvia mantinha uma caderneta onde anotava suas reflexões. Aos 78 anos recebeu a ligação de uma repórter interessada em lhe entrevistar sobre seu último romance. Quando se encontraram Lavínia logo descobriu que o interesse maior de Vanessa Borgia era bem outro.

O outono parecia ainda mais bucólico naquela tarde de 2029 no Café Louise. A jovem jornalista mostrara uma foto de Lavínia conversando com alguém em lugar não identificado, porém a foto trazia impressa no canto inferior direito a data 24-07-1919. Lavínia fez questão de não disfarçar o sorriso um tanto burlesco. Algum dia aquilo aconteceria.

 

– Minha cara, deixe-me contar uma história que, se não trará sentido à tua curiosidade, ao menos a ampliará.

 

A garçonete atende ao pedido e quando se retira Lavínia recorda com satisfação:

 

– Dez anos antes dessa foto eu vivia em Montpelier, em um charmoso bangalô que me foi cedido pelo matemático Henri Sobejano, para que eu escrevesse meu primeiro livro. Na época eu adquiri o hábito de rabiscar em folhas soltas situações que eu poderia aproveitar no romance. Quando cheguei era estação fria e eu pouco saía de casa, de modo que fazia caminhadas internas pelos quartos, corredores, salas e biblioteca. Algo em comum em todos esses cômodos era a presença de espelhos. Aos poucos observei algo intrigante: se os espelhos eram fiéis à reprodução de minha imagem o mesmo não se passava com o cenário que me envolvia. Em cada cômodo eu me via presente em outro. Estivesse em um dos quartos poderia estar na cozinha, e se me aproximava do espelho de uma das salas por vezes me via em um quarto ou banheiro. Aceitei aquele mistério como uma variabilidade possível de conexões com os distintos recantos da casa. Isto até o dia em que despertei com o que parecia ser vozes dentro do espelho ao lado da cama. Ali me vi refletida e por trás de mim a espaçosa biblioteca de Sobejano com seus milhares de títulos. Sobre a mesa que eu utilizava para os meus escritos repousava uma caderneta com a capa de cor castanha como a pele de algum animal. De um lado e outro da mesa dois homens conversavam e, embora eu não pudesse entender o que diziam, deduzi que discutiam sobre o livrete. Desci as escadas às pressas, ansiosa por saber do que se tratava. Ao chegar na biblioteca não encontrei senão o pequeno objeto ali deixado. Suas páginas continham inúmeras sentenças que me deixaram aterrorizada por duas razões: eu reconheci a minha letra e muitas das frases eram datadas de épocas impossíveis de terem sido escritas pela mesma pessoa.

 

A repórter suspirou sobressaltada. Nada daquilo poderia ser verdade. Sentiu-se ludibriada pela romancista cujo interesse único era fugir das explicações do motivo que lhe teria feito falsificar a data na foto sobre a mesa do café. Como acreditar em espelhos que refletissem duas realidades sobrepostas? E a agenda que ganhara forma física oriunda do nada? Ela não se deixaria enganar. Tomou um gole de café e ponderou:

 

– Se bem posso entender o que houve a senhora aos poucos foi estabelecendo laços com incontáveis versões do tempo, com um resultado que lhe permitiu compor a narrativa que tanto caracteriza a escrita de seus romances. O acaso, através daquela insólita combinação de espelhos, ao contrastar ambientes e situações engendrou um simbolismo que lhe foi de imensa riqueza estética. O irracional é o grande tambor da arte. Eu me desculpo por haver julgado a senhora como uma fraude e declaro a minha admiração por seu talento literário. Recordo uma passagem no romance mais recente em que a protagonista afirma desconhecer ao certo a sua idade. Ao ler imaginei que fosse apenas um comum erro de datas no cartório de registros de nascimento. Veja agora que essa confusão de idades poderia imprimir décadas de abismo entre dois momentos. Não há dúvida de que se trata de uma belíssima ideia. O tempo imaginado como um labirinto em que a simples passagem de um vão para outro nos levasse a décadas dali. O Minotauro seria o guardião não apenas do tempo, mas também de sua duração física, o regente das forças de atração e repulsão do caos e da criação.

 

Lavínia se deliciava com as envolventes ponderações de Vanessa Borgia. Ali estava um modo bastante simpático da realidade se banhar no lago da imaginação.

 

– Vanessa querida, estou encantada. Eu jamais encontraria um crítico à altura de tuas palavras.

 

As duas conversaram por toda a tarde. Quando Lavínia se despediu a repórter ficou uns momentos rascunhando as notas para uma matéria que escreveria. Na pequena desordem de seus papéis encontrou a caderneta da romancista e, ao folhear ao acaso, sua atenção pousou na seguinte passagem:

 

– Em geral as pessoas não se importam com o tipo de interpretação que lhe oferecemos da realidade. Uma jovem repórter me fez entender que a razão é como um objeto rompido que jamais recupera seu mistério. É preciso constantemente alimentar a razão com novos mistérios.

Café Louise, outono de 2029.

 

8, FANTASMA DA AUTÓPSIA

 

Quando os detetives conseguiram abrir a pesada porta de madeira e adentar a plena escuridão daquela casa quase isolada no bairro de Leviatã em Palmares um misto de umidade em decomposição e fedor lhes invadiu os sentidos, acelerando a atenção dos dois em relação a cada detalhe da cena.

O interior da porta expunha um baixo-relevo em madeira composto por incontáveis corpos desmembrados e organizados como a representação absurda do abandono. A perfeição dos traços permitia entrever a obsessão de quem entalhou aqueles corpos.

Uma olhada ao redor e a mobília correspondia ao desamparo do lugar. Trapos cinzas sobre o sofá, restos rasgados de plástico pelo chão, o cutelo manchado de sangue sobre a mesa da cozinha. A cada lance do olhar as associações iam definindo a brutalidade maligna do ambiente.

Siegfried e Kalil levavam à letra aqueles símbolos conectados e a intuição de ambos apontava para a geladeira delatada por algumas manchas que pareciam sangue limpo às pressas. Kalil se aproximou e abriu a porta, se deparando com o esplendor desleixado do vazio. Nem mesmo uma caixa de leite ou um vidro de geleia. Enganados pela intuição, os detetives reviraram cada fio de espaço naquela decoração funesta.

Ao abrirem a porta que dava para o quintal, sobre uma velha pia carcomida encontraram apinhados os sacos plásticos amarrados com barbante, os bocados de corpos preparados como se desatinados a refeições. Cutelos, facas, serras, ainda por serem lavados, indicavam que os pedaços daquele corpo foram desossados. A ausência de sinais de putrefação impunha a existência de dois tempos, não correspondendo a repugnância fétida do interior da casa aos cuidados recentes com a mutilação do cadáver.

A impossibilidade de identificação da vítima desapontou os detetives, que deixaram a cena sem conclusão alguma do que ali acontecera. Ao fechar a porta da casa, observaram caído no chão um papelinho embolado. Kalil leu para Siegfried a frase que não lhe pareceu reduzir em nada o mistério daquela tarde:

 

– Eu não esqueço quantas vezes tive que morrer.

 

9, FANTASMA DAS PEDRAS DE CHUVA

 

Sentei-me a esperar que venham do futuro os meus momentos perdidos. Anna Chae me trouxe um suco da mais doce graviola de seus cuidados e uma de suas pedras de chuva que ela mantinha afagada pelo calor negro de um veludo em uma pequena caixa.

 

– Eu tenho três dessas pedras, colhidas em momentos de grande aflição. São uma bênção e me protegem das tempestades interiores e da sedução pelos sacrifícios. Eu não posso lhe dar uma porque elas devem ser encontradas, de outro modo são apenas um objeto sem uso.

 

Anna parecia ter vivido mil vidas pela virtude de suas palavras. E o som de sua voz parecia regenerar o tempo. Um dia me contou sobre a que considero a mais estranha narrativa de um amor perdido.

 

– Conheci Jano aos 21 anos e nossos véus se deitaram como um milagre. Eu me sentia impregnada nas transições inesgotáveis de seu espírito. Um dia ele decidiu partir para cá, cansado de ser profeta desacreditado na própria terra. Quando encontrasse condições de morada seria então a minha vez de vir. Fui deixá-lo no porto e enquanto nos despedíamos senti sob meu pé a primeira de minhas pedras de chuva.

Um apanhado de cartas banhava o oceano que nos separava. Nós nos escrevíamos como vastas plantações de amor e devoção. Até que um dia elas deixaram de vir, o mesmo se dando com o dinheiro que ele costumava me mandar. Decidi reunir uns últimos trocados e cruzar o oceano ao seu encontro, levando comigo apenas o endereço para onde eu mandava as cartas.

 

O que havia de estimulante naquela conversa era o modo como ela recordava. Sua voz parecia tocada por Deus, um raio doce e decidido que nos penetrava a alma.

 

– O endereço era de uma pensão e a pessoa que me atendeu não conhecia Jano algum, mas logo acabou por identificá-lo quando o descrevi. Segundo ela, estivera na pensão um senhor Kitsune, porém há mais de mês fora embora. Enquanto ela foi buscar algumas cartas que haviam chegado um brilho no chão me levou ao encontro da segunda pedra de chuva. Em seguida me fui dali, vagando pelas ruas sem destino. Eu não tinha mais dinheiro e a fome começava a moer as minhas ideias. Ao entrar em uma lanchonete, disposta a pedir alguma comida, observei umas fotos na parede. Uma delas era de meu amor, e havia um pedido para que alguém fosse identificar o corpo no necrotério. A moça da lanchonete me trouxe um copo d’água para acalmar meu pranto. Ao sair daquele lugar obscuro onde confirmei o nome de meu amor, as forças me faltaram e só não fui ao chão porque a senhora me amparou.

 

Aquela foi uma insólita coincidência. Eu passava por ali a caminho de uma tenda de frutas. Anna Chae estava na encruzilhada de uma tragédia.

 

– Ainda me recuperando da tontura, o que parecia ser efeito das lágrimas me levou à terceira pedra de chuva, esquecida em uma mureta. Enquanto eu me recuperava, já em sua casa, refleti sobre a jornada incerta do destino em nossas vidas. Os caminhos fogem desfigurados. Retratam as fontes secas que temos que regar. Os demônios que espreitam cada travessia acenam com bilhetes que abrem portas inoportunas. As três pedras de chuva reunidas me deram uma nova escada: os três selos de despedida de uma dimensão que pesava em mim como uma maldição, uma ausência de escudo, uma geometria desfeita.

 

Eu agradeço a todos os espíritos que teceram a nossa amizade. Anna Chae está comigo há cinco anos, sua companhia muito me conforma, embora ainda me assuste o que considero seja uma sequela de seus tormentos, pois segundo ela ainda estamos a duas décadas do dia em que a encontrarei à porta do necrotério.

 

10, FANTASMA DO CALÍGRAFO

 

Sobre o criado-mudo um dicionário de símbolos e o livro negro de São Cipriano. A rede guardava a varanda enquanto a maresia rapidamente envelhecia os metais da casa. Os mercadores do tempo negociavam com os desgastes da mobília. Os mercados sempre criaram objetivos fugazes que garantem a sua duração. Os amores também ocasionalmente perdem seus efeitos e exigem uma transmigração. O que permanece é aceito por seus caprichos. Também a aceitação é um capricho. Como um desejo de crescer no interior da imagem. Olhamos a miragem das letras embaralhando o significado das representações e acreditamos que naquele baile insidioso podemos encontrar nosso verdadeiro destino. Como uma estrela caindo na sopa ou um pássaro bicando o céu, as letras evocam a imaginação que as transforma em ligações físicas com o mundo. Mesmo as omissas fazem parte do alfabeto das migrações, frequentado pelas almas que perderam o acento na metáfora do paraíso.

Sempre que o homem duvida de seus atributos nasce uma religião. E cresce o desamparo daqueles que não estavam olhando para o lugar certo. Os santos apedrejados, as pérfidas orações, a predominância do hábito sobre o instinto. O domínio do corpo, a amarração vital, a intensificação da evidência sobre as intuições. Lavínia di Lúvia arranca do túmulo de seus tormentos os galhos secos e as flores murchas de sua cota de dedicação ao tempo. Os versículos desgastados de sua constância entre os vivos. Os pecados relutantes poliam a vidência de sua estagnação. Era preciso infernizar as lendas. Deixar-se devorar bela banalidade. Embaralhar os sortilégios de modo a surpreender a todos com um ímpeto que fale mais alto do que o bem ou o mal.

Ao abrir a gaveta do criado-mudo encontrou um pênis de látex ao lado do novo testamento com uma página marcada por um papelote que trazia apenas um número telefônico manuscrito. Instantes depois Michel Labán bateu à porta e seu olhar despojado cativou Lavínia que ao deixá-lo entrar presumia a dissipação de suas energias naquele quarto de hotel que até então lhe parecia um simulacro de seus devaneios. Uma lapidação alquímica de orgasmos ou a leitura de uma carta de exigências metafísicas que ela teria que cumprir naquele aposento.

 

Eu sou a ventania das profundezas.

Eu sou a orquídea desaparecida na noite.

Eu sou o orvalho acordado no interior de um vulcão.

Eu sou o último combatente de tua grandeza.

Eu sou um deus que abre teu corpo até o Norte.

 

Lavínia repetia as frases destacadas no livro que Michel lhe pusera em mãos. Um rio de óleos descia por seu corpo, sem que ela recordasse em que momento tirara a roupa. Aquele azeite irreverente lhe dava um sentido de fraternidade a seu espírito. Aqueles laços intermediários deveriam ser bastantes para unir as letras extraviadas de seus sentidos. As lacunas de sua memória talvez aflorassem ou então perdessem de vez a importância.

 

A luz sai à noite procurando o reino de teus seios.

A selva percorre as estações até encontrar o manancial de teu ventre.

As noites se destinam a fazer gemer a pérola de teu olhar.

Os rios abraçam as nuvens para que elas suspirem um nome que talvez seja o teu.

Eu quero que me aceites como se eu fosse a balança de tua luxúria.

 

Os corpos se uniram enquanto Michel Labán murmurava a sedutora oração. As letras coincidiam em uma mesma escrita. Não havia pausa naquele jorro de imagens. Um frenesi de sentenças que voavam como uma flauta ou uma flecha, impiedosas preces cuja trajetória constelava os espelhos e as trevas. E logo então um silêncio reinou como a descoberta de uma nova linguagem.

 

11, FANTASMA DAS METAMORFOSES

 

A casa é uma chaga, a chaga é um berço. A pedra decanta as impurezas do canto, passando de mão em mão. Quem chora diante do pássaro morto altera a rota primordial da existência. O canto derrama seu mel secreto sobre as estações da carne.

A casa é uma espiral incompleta feita com os restos de mil esqueletos. As estrelas carregam um fardo da linguagem e caem sem ter onde apoiar-se. A casa é uma faixa de terra em farrapos. A terra é um lagamar esquecido, um símbolo cuja cicatriz não se fecha, quinta de gigantes enraivecidos.

O sangue imita a água dentro da chaleira fervendo. Quem chora enquanto se alternam as perspectivas do caos amarga a similitude de todos os princípios expostos. A casa parece um trevo desmembrado, o trevo é um tratado de sombras. O diagrama que não explica o que faz ali sobre a mesa. Os círculos concêntricos da queda. A fênix banhando-se no fogo enquanto masca uma romã.

A nudez grotesca dos umbrais celebra a regressão dos guardiães do tempo. Todas as pelejas são uma fecundação de monstros. Aquele que chora por seus heróis embalsamados mortifica a imagem luminosa do renascimento. A casa é um tropel de nomes que se desconhecem, a vulgata de sentenças que não foram cumpridas.

Até aqui as dores cantam, as formas são cúmplices de uma figuração de vertigens, a origem deriva de acordo com a descida aos becos do inferno. Se a roda é oca, os caminhos se perdem. Se o caráter engorda sentado, as lendas jogam fora os objetos dissecados da beleza. O olho também pode ser oco se por uma curiosidade os oceanos saem em busca de outra morada. As oliveiras desistiram de simbolizar a paz.

A casa é um deserto onde mascamos o fumo negro de nossos ancestrais. Os pensamentos tropeçam entre restos sacrificiais. A ideia que tenho de todas as transições da matéria através de minhas perdas ou portas enevoadas que desorientam os processos físicos de quantas sou é algo que não consigo elucidar e talvez não seja mesmo um enigma, uma equação, um conjuro.

Sei o meu nome, o que persiste nas inúmeras casas, nos séculos e lugares por onde passei. No livro das proporções talvez o mistério mais próximo da exatidão seja aquele que envolve o nome e não o lugar. Não há putrefação do nome, nem mesmo quando atingido pelas fórmulas fúnebres do caráter de quem o usa.

O nome é o racimo transcendente, o raio flexionado, a cintura do abismo. Nosso único parentesco com Deus. Quem chora diante do nome perdido terá sempre vivido à sombra de uma terra prometida.

Eu me chamo Lavínia di Lúvia.

 

12, FANTASMA DAS AFINIDADES OCULTAS

 

Lavínia di Lúvia voltou a indagar àquela sombra que vagava pela casa.

 

– O que queres de mim? Quem és?

 

Mas ela certamente sabia que não se tratava disto. As eleições do acaso por vezes eram um bom remédio para a inércia. Os pesadelos são gerados como uma mistura de extravios.

 

Alguém que bateu à tua porta quando especulavas sobre os humores exóticos.

Aquele que soprou em teu ouvido a primeira incógnita do caos.

Quem agitou os redemoinhos que alimentaram tuas intuições.

 

Giambattista, Trithemius, Teofrasto… A cada uma das vozes Lavínia divagava sobre aquelas aparições reclusas. O tesouro das falas respondia à ambiguidade de suas suspeitas. Era possível sair dali para qualquer outro lugar e uma nova época apareceria de imediato. A casa parecia ter sido construída como um gigantesco mecanismo de agitações espirituais. Enquanto a lareira na sala sussurrava novos aforismos incompreensíveis ela contou 12 cômodos. A sala era o domínio do eremita. Lugar escolhido pelos vultos para a sucessão dos mistérios. Pela primeira vez a mulher tinha voz nessa corte. Talvez não fosse além de prestidigitação, mas o certo é que Lavínia destinou a cada figura imaterial um talismã que acentuava à exaustão as contradições de suas sentenças. As entoações iam marcando um ritmo de projeções embaralhadas. Há um momento em que todos os provérbios revelam uma única verdade.

 

– Oh terrível destruidora de nossos mundos, por que existes dentro de nós?

 

Aquele era um lamento proferido por uma dessas misturas de adágios. Os visitantes da casa, agora embaralhados, confundiam as cartas de seu próprio destino. As palavras não são a essência das coisas, elas não possuem indícios magnéticos que prefixam o lugar que devem ocupar em uma revelação. Lavínia di Lúvia aos poucos ia descobrindo a Ísis que tinha dentro de si. Todas as vozes conduziam à constância elétrica de seus atributos. Estes iam se formando na medida em que se apropriavam do refluxo de axiomas amantes da instabilidade. Lavínia e sua nutrição de abismos. A lua boiando no ventre. A sutil semelhança com todos os seres.

Pelas leis secretas da ótica o que vemos naufraga na memória. O passado requer uma tripulação de alienados imprevisíveis, pois de outro modo sua deriva não encontraria um hábito na súbita aparição no litoral das alegorias. Espantosos cães da lua, hienas sofismáticas, uma serpente moribunda no subterrâneo da nave. Os espelhos davam origem a toda sorte de pesadelos. A imaginação era testemunha de todas as divagações do efêmero e dos fatos invisíveis. Lavínia di Lúvia anotava em sua caderneta as comparações que iam captando no ardil daquelas vozes retorcidas.

O homem é um blefe muito antigo. Preexiste à invenção de todos os deuses e à descoberta do acaso. As melancolias se arrastam pela complexidade dos corredores, a casa é uma espécie de animal fabuloso com uma boca enorme disposta a nos levar pelos interiores mais recônditos do instante, pelas saliências retóricas do desejo, as entranhas desesperadas da agonia humana. Todas as linhas se estreitam antes do último confronto com as sílabas da morte.

 

– Eu tenho um pecado para cada aparição que me insulte.

 

Esta frase no livrete de Lavínia não tinha a sua caligrafia. Quem quer que a tenha escrito o fez enquanto mascava atrevimento e escárnio. A todo instante somos arrastados para os subterfúgios da linguagem. Quando esquecemos algo nos cercamos do sadismo dos movimentos repetitivos. Nosso organismo é impulsionado pelas marcas impressionantes das suspeitas, o vagido crescente da imprudência e a crença impronunciável na exalação de mundos paralelos.

 

– Sou eu quem veio te buscar para uma nova pretensão de vícios.

 

Aquela voz sorrateira se fez escutar e foi embora. Como outras tantas bisbilhoteiras, talvez tivessem rompido o vestíbulo e se ocultado em algum recanto de cada aposento da casa. Jamais saberemos a soma exata dos fantasmas que espreitam a nossa vida. Serão oportunos, encostados, sagazes, infecciosos? Pouco há como saber de que se nutrem as suas sombras insaciáveis. Se agitam suas pernas em nome de uma beleza ou de um terror moral. Se abrigam em rostos sobrepostos as mais delirantes afirmações do desconhecido. Até onde fraudam os bilhetes de nossa digressão existencial. A opinião de cada um deles nos atravessa como um cortejo fúnebre e acabam traçando os fundamentos de nossa ruína. Lavínia refletia como se bordasse uma colcha de trevas.

 

– A ilusão é uma percepção que não mede consequências. Graças a ela os rios podem desaguar no céu, as areias galopam contando com a ingenuidade dos mares, eu volto sempre aqui para representar o que me espanta nas cenas excêntricas da perpetuidade dos flagelos. O homem ressurge em cada ato e volta a cometer os mesmos erros. O público acha o sobrenatural risível. Por sorte a memória desmonta sua carroça de pressentimentos infundados quando a morte baixa a cortina. Não é outra a confiança de que me alimento. No entanto, nos últimos dias tenho me indagado sobre esses 12 fantasmas e a sabedoria oculta de suas manifestações. Não sei até onde eles se lembram de mim quando cantarolam suas resoluções provocativas. Quase sempre são tão burlescos que me parecem frutos de uma insônia. O que vejo diante de mim – ou talvez o certo seja diante deles – nem sempre coincide com o que vivi. Alguns virão do futuro, serão a minha antevisão das pernas doloridas dos acidentes? Mas como posso estar viva em épocas tão remotas e distintas? Os fantasmas são os piolhos da imaginação. Não há matemática ou outra mecânica do infinito que os faça sobreviver ao meu último fôlego.

 

Lavínia di Lúvia seguiu preenchendo as páginas de seu diário até a completa surdez do mistério. Sua morte pesou sobre as ruínas do tempo. Graças a ela hoje compreendemos que as cifras cabalísticas podem fazer da luz uma forma de arrependimento das trevas e que a memória será sempre uma incógnita quando se trata de desvelar a origem de nosso nome.

 

 

PÁGINAS INESPERADAS DO DIÁRIO DE LAVÍNIA DI LÚVIA

 

Ao ler aquelas páginas todas Lavínia di Lúvia descobrira em seu autor uma extensão de suas aflições, porém com a força de um desmascaramento de subterfúgios que de outra maneira não teria conseguido. Talvez fosse o momento dela mesma escrever um diário, antes que Lenilde Fablas resolvesse dar um fim àquele novelo de vidas conjugadas que mais parecia uma colagem existencial das sete mulheres engalfinhas nas cavidades de sua memória. Começou a escrever vorazmente. Os rascunhos intercalados de muitas vidas em uma só. Onde desvendar os limites biográficos de Li Sung e Lavínia di Lúvia? É verdade que a própria Li Sung não havia reconhecido os desdobramentos de sua vida na medida em que Lenilde Fablas seguiu escrevendo o romance. Mas teria ela se desfeito por completo de seu antigo eu, ao incorporar o misterioso personagem Lavínia di Lúvia? Havia ainda que considerar a mudança de casa numérica, saltando do sete que marca a existência da autora, indo habitar o doze e a complexidade interior das casas e cidades cuja vibração sonora diversificou o mistério até a sua completa expansão física. Se as sete mulheres alimentaram a árvore de um mundo marcado por evocações oníricas, associações imprevisíveis, correspondências paralelas, os doze fantasmas que foram despertados no íntimo de Lavínia di Lúvia desfizeram as crenças em ciclos concluídos, semeando planos abruptos onde as evidências tremiam e mudavam de centro a todo instante. Dar asas a um diário talvez seja a melhor perspectiva que permite contemplar o destino dessa mulher cujo nome multiplicado nos leva à totalidade do ser.

 

AVALON, 1190

 

Certos galhos de meu corpo despertam a manhã antes que ela se reconheça deste lado do mundo. As folhas atendem a um chamado impresso na escavação de um pentagrama no interior da terra. Serão muitos os tempos erguidos como catedrais de sombras. Um sepulcro abundante de ramagens e vozes iniciáticas. As seis letras da pureza mascada ao contrário. Calculo o número de seu equilíbrio indefinido. A matemática sorrateira de sua ambivalência. A terra cria seus símbolos divinizados e os alimenta com o pecado. Seu número é o risco. A metade de um descompasso fecundado a céu aberto. Os seis braços do presságio das tempestades. A hora lendária em que um corpo penetra em seu oposto e dele só é retirado quando um duplo se soma a seu arrebatamento milenar. Este é o mapa das manifestações do refúgio do tempo. Quando o tive em minhas mãos descobri que sua escrita é a seiva de que nos alimentamos. Cada letra é um sinete do mistério antecipado. E o silêncio se prolongava como uma síntese:

 

Grava-me a noite

em teu ventre

para que o dia seja forte

e chegue mais cedo.

 

No interior de um dos ramos mais úmidos de meu ser marquei as suas palavras na medida em que elas deixavam algum vestígio:

 

O que agora conheces como o encontro de propriedades opostas foi, em tempos antigos, um bosque onde coabitavam todos os elementos. Uma consonância de acordos em profundidade. Os nomes passavam de corpo em corpo e a ninguém preocupava designar uma verdade para cada gesto.

O que agora associas a um pântano da linguagem, teve a sua primeira matéria regida pela abundância. A transmutação elétrica dos seres e animais era uma constante dilaceração da unidade que se expandia sem feridas, uma dialética fecundada nas ondulações privilegiadas do caos.

 

Eu deveria conter em meu íntimo todas as riquezas da terra. As forças nutritivas da existência, nas duas metades de seus esforços por imitar o bem e o mal. Uma árvore que se ocupasse de todos os estados da matéria. O sexo volumoso da dualidade que compreende muitas expressões. A casa das luzes e o vaticínio das trevas.

Minha mão trêmula em certos momentos perdia a simetria daquelas anotações semelhantes a um ditado. Uma tempestade passava por dentro de mim e nem sempre o que eu escrevia reverberava as minhas dúvidas. Não sei como aceitar o ano em que tudo se passou. Talvez fosse uma alegoria, uma viagem pelos enredos vibratórios da ilusão. O passado talvez não passe de uma etimologia do assombro. Os ramos absurdos da árvore que nos foi destinada e não soubemos decifrar. De qualquer modo segui naquela embriaguez contagiante da analogia. O tempo escrito em duas línguas simultâneas cujo anúncio era compreendido de acordo com o testemunho das sombras. Em um mesmo versículo a noite poderia ser dia e o alimento dos sonhos o veneno da vigília.

A mão também persistia trêmula:

 

A tua maçã apodrecida um dia se chamou Avalon.

 

URZELINA, 1647

 

Estive por dois ou três minutos tentando me lembrar o que me trouxe aqui. A porta que dava para o quintal se abriu e vi passar dois homens que se dirigiram à pedra da pia onde estavam embrulhados pequenos sacos contendo porções de um corpo limpo como se fosse carne para consumo. Que se tratava de um corpo humano é algo que só reconheci ao recordar que antes daqueles homens chegarem foram jogados cuidadosamente fora os vestígios de ossos, as mãos e pés, a cabeça despedaçada. Não havia indulgência para o que se passara. Os bocados foram levados para a polícia, porém não ajudaram em nada a evitar que o assunto se tornasse irresoluto. Durante o tempo em que ali estive nada mais se passou. É possível que o corpo fosse meu. Não pude chegar a tempo de sentir as dores da violência, ou identificar quem me tivesse causado a morte. Sei que foi a primeira vez que morri, porque jamais havia regressado tanto no tempo. As aflições me convocavam. Eu podia estar em distintos lugares ao mesmo tempo, não apenas como observador, por vezes cheguei a conviver com outras pessoas. Não foi o caso daquela velha casa abandonada. Tampouco eu tinha certeza se era eu. Meu corpo não possuía sinais de nascença, tatuagens, cicatrizes, nada que me pudesse identificar. Os sinos de uma igreja dobravam longe. Minhas dúvidas me perseguem. O que eu estaria fazendo ali se não tivesse algo a ver com o assunto? Se não fui a vítima, isto me preocupava ainda mais, pois não restava senão ter sido o malévolo destroçador daquele corpo. A memória é um trapo embebido em sangue. Mesmo a sua retidão pode estar escavada por impurezas. Algumas dessas minhas transições mais súbitas no tecido ondulado do tempo são imprecisas e nubladas, recortadas por lampejos e pontos cegos. A frequência com que se dão por vezes me põe em dúvida a idade certa que me define, a época em que verdadeiramente estou, o lugar que habito. Jamais retornei a essa casa, e se agora me lembro dela é porque ainda me assalta ocasionalmente a dúvida sobre o lugar que ocupei naquela cena.

 

MACURI, 1873

 

Todas as conclusões foram varridas dali para outra realidade. Não havia mais lugar para as religiões. As explicações eram associadas a uma tática de preenchimento das lacunas da existência. As aldeias foram devoradas pelo fogo, corpos carbonizados, velhas, crianças, animais de pasto. Os poucos caçadores da tribo foram empalados antes de queimados. Seria essa uma lei de sucessão divina, que garantia a expansão das hordas religiosas? Seriam esses os disfarces dos deuses? Quando toda uma aldeia sucumbe aos perigos da alma um missionário tece um novo transe e refaz a vida entre os subjugados aterrorizados. Uma vida de fé em aberrações. Toda sobrevivência agoniza enferma e sua única convicção é a de que um paraíso a espera dormir o último sono. Eu vi nascer Macuri das cinzas daquela barbárie.

O céu se desgarra da terra como um acidente paralelo. A seu lado os sacerdotes repassam o catecismo da tolerância condicional. As noites são injustas com os dias. Há uma reclusão de discípulos de sua devassidão. A moral estabelece seu calendário de vertigens. Ninguém foi indagado se queria atingir a imortalidade.

Eu sigo anotando as violências do credo.

Toda santidade é herética.

Haverá uma ressurreição feliz?

As digressões fecham suas portas a quem desacate as tradições.

O grande mar é convidado a indagar à pedra em seu leito se ela tão minúscula poderia restaurar a vastidão agônica dos desertos. A pedra sorriu diante daquela simplória inquietude do mar e lhe inquiriu se ele acaso teria como se desfazer de todo o sal que o impedia de ser compartilhado com homens na terra. Os véus tanto são um refúgio como a toga do poder. Abrigam e despedaçam a um só tempo.

As metamorfoses bebem o sol.

Os grãos da loucura sacrificam as lendas e enterram seus atavios pelos sítios mais infecundos do planeta.

Os devaneios sobrevivem às certezas razoáveis.

Um barco cruza as constelações com sua carga de extravios. Seus fantasmas raspam no casco uma fábula de intempéries. Os mares foram engolidos pelos portais de metáforas impossíveis. As esfinges se riem dessas inscrições sem fundamento dos dogmas celestiais.

A semelhança gera abstrações descoradas.

As procissões são um formigueiro que perturba o plano solene das ocorrências irregulares. Não se pode esperar que a adoração retribua com melhores dias.

Vejo agora que muitas coisas que anotei chegaram a meu pulso tocadas por um arrebatamento que não pude decifrar, um ditado que era a demonstração de um conhecimento que poderia evitar o retorno de arcaicos declínios. Não eram vozes ou visões. Talvez uma força telepática guiasse a escrita. Não havia trevas ou iras da salvação. Não escutei os hinos negros ou fui tocada pelo vulto desnudo das entidades piedosas. Não eram as espigas do ego nem a fornalha dos dissabores.

As noites deveriam desenterrar a claridade reservada às divindades. Compartilhar o inesperado. Semear o desconhecido até que fosse possível alimentar a humanidade.

Aqueles adágios me pareciam perdidos para sempre, embora eu os continuasse a escrever.

 

MONTPELIER, 1909

 

Muito já escrevi, em meu livro sobre as partículas errantes, sobre a casa que me foi emprestada pelo amigo e matemático Henri Sobejano. Ali convivi por alguns meses com enigmas que me obsequiaram a suspeita acentuada de que possa advertir experiências simultâneas em espaços e mesmo épocas distintas. Impossível restaurá-las ou devastá-las, mas o impacto de suas correspondências inflamava o meu espírito e me fazia correr pelos rios de meu ser um manancial convulso que me desfaziam de tudo o que a vida até então me havia ensinado. Os estudos de meu amigo deram lugar a uma melhor compreensão do fenômeno das evidências gravitacionais e um século depois permanecem repletos de novas sugestões. De algum modo a sua casa criara um vínculo com as energias intermediadas pelos cálculos de Henri.

Cada imagem que projetamos suga tudo o que está à sua volta, permitindo um encontro em seu interior dessa população irrequieta de horizontes. O reflexo daquilo que somos se orienta pelos retratos que traçamos das sombras que conseguem fugir do plano de sucção das imagens. É possível que tais sombras, quando excedem seu crescimento, deformem as tábuas de minúcias que regem a existência, as leis primitivas de nossa presença na terra. Não há dúvida que foi isto o que me aconteceu em 1947. Suores frios se espalham pela casa favorecendo o espetáculo dos espíritos malévolos. As influências do medo sujeitam nossos atos mais correntes, derramam sobre eles um caldo de hostilidade. Assim é que por vezes nos olhamos no espelho e não correspondemos ao que imaginamos ser. Como a trajetória das cargas elétricas anotadas por Henri. A aceleração vertiginosa das ondas concêntricas. A casa encarnara com assombro exatidão as suspeitas de seu proprietário. E agora me alimentava com seus vislumbres, com a arca de seus mistérios.

No poço mais fundo que o homem conseguiu cavar ele acumulou a estatura terminal dos tabus. Ao deformá-los, na medida em que recorria àquele acervo, a arte foi se transformando e criando novas condutas. A cada tabu esmagado uma nova impunidade estética. Crescia para o fundo da terra o maior palácio de espelhos que um dia fora concebido. Não à toa são siamesas a poesia e a matemática. Minha estadia no bangalô de Henri Sobejano me permitiu projetar uma sombra na outra. O conhecimento nasce do espanto. Os restos, com seus formatos complexos, percorrem o exterior da gravidade. A analogia é um tributo selvagem às leis da sucção.

 

VERSALHES, 1919

 

O sol flutuava no espaço como um archote cercado de névoa. A sua luz de tocaia ocasionalmente descobria os planos de alguns vultos. O dia era todo um crepúsculo inusitado. Nem mesmo impostos os tratados de paz alcançariam um fim. A única lição que a humanidade tira das guerras é como torná-las mais potentes. O frêmito metálico das trombetas rasgava os véus da ilusão. Os novos tempos anunciados não convenciam a ninguém. Havia fome se espalhando por todas as ruas. Construções devastadas pelo impacto dos conflitos. As carcaças se reproduziam como o aleitamento de infecções. As frutas passadas insultavam as mesas leprosas. Os selos bíblicos se embaralhavam naquele ambiente proscrito. As vozes se encardiam em um mesmo grito: aos diabos com a paz! Qualquer que fosse o ângulo do qual contemplássemos aquela época tudo era prenúncio de extensão. Apenas uns pequenos guetos formigavam como os últimos suspiros de uma chama que se acreditava destinada a manter uma réstia de luz e calor no mundo. Não havia mais nada com que enfrentar a desolação dos espíritos daquele momento.

Meu encontro com o Barão de Spawforth teve o toque incomum de uma mútua preocupação com os planos de paz e a semântica de um cinismo generalizado que definia o poder em quaisquer tempos. Falamos do despudor programado dos governantes. Ele inicialmente se mostrou reticente em emitir sua opinião, talvez por eu ser mulher ou pelo fato de que meus conhecimentos excediam os dele. Evitei lhe dizer que eu vinha do futuro, o que certamente teria o efeito de uma blasfêmia. O Barão me pareceu um homem íntegro e o fato de que eu estava diante dele era mais do que a comprovação de sua honestidade. Em nossas breves ainda que intensas conversas sob a luz trêmula do sol, na praça principal daquela cidade artificial, reiteramos que os sonhos de paz sempre foram empoleirados para novos abates. Os algarismos negligentes de seus postulados parafraseavam um vício perene: a avareza ensanguentada com que o homem marca sua presença na terra.

 

– Talvez um dia o sol ressurja em nosso íntimo e possa iluminar as cidades, dando aos homens a perspectiva de uma nova época.

– Meu caro Barão, novas cidades artificiais surgirão no mundo e serão o centro de sua mesquinhez, o cerne das matanças, o núcleo das avarias.

 

Qualquer outra coisa que eu lhe dissesse ele desconfiaria de uma origem mediúnica, talvez me confundisse com uma bruxa, meus riscos seriam excessivos. Era aconselhado nos despedirmos, agradecendo aos deuses por aquele aprazível encontro.

 

PINDORAMA, 1935

 

A memória por vezes é o idiota que caiu em um buraco que estava à sua frente. Um livro raro que apodrecera sem uso em nossa biblioteca. O erro de perspectiva que limita a abstração ao território do intangível. Somente uma curiosidade dessa natureza teria me levado à prisão, àquele estúpido catre boiando nas águas de Pindorama. A autoridade repugnante que me interrogou me convenceu, logo na entrada, que viriam dias de uma perversa ausência de humor. O imbecil acreditava piamente que o mundo estava apinhado de espiões. Tal crença é a grande fonte de presunção que assola os espíritos ordinários. Não há como convencer essa gente que ninguém perderia tempo os espiando.  Para fundamentar sua tolice essas almas estropiadas encarnam a mais patética de todas as abstrações: o Estado. Um governo qualquer sempre exclama dentro delas que são as mais qualificadas para defender suas impropriedades. Impossível sobreviver a esse extermínio de bom senso.

Como ser o cronista de uma época mediada pelas batinas promíscuas sem tornar-se louco ou o menestrel desacreditado da corte? A esse tipo de loucura o melhor remédio sempre foi o cárcere. Não há receita mais indicada para as botinas voadoras. Ali dentro todos aprendem rapidamente a se passar por surdos. Cantei que me esgoelei até que um dia eu dei pela conta que ninguém tinha orelhas. No entanto, aquela estranha população expunha uma curiosa admiração por meus gestos. Primeiro anotei os versos de algumas canções e logo eles se puseram a me acompanhar, pois ainda tinham bem guardada em sua garganta uma fala esquecida.

Com o tempo, em meio à nossa cantoria, decidi montar uma comédia, cujo texto foi com certa facilidade – afinal, todos éramos loucos – sendo improvisado em toda espécie de papel que nos permitiam. Aquela verbosa projeção de ânimos era o cadarço inaugural de nossas autobiografias. Poderíamos então caminhar com menos desconforto pelos ofícios da razão imposta. Um golpe de ilusão é indispensável à escrita de todo testamento.

 

TURANDOT, 1947

 

As perdas estão ocupadas com o inventário de suas prendas. Os carneiros da insônia, o mercado das fábulas, a agonia dos deuses. Tantas coisas na vida parecem reais e, no entanto, quando reviradas, mordem a própria cauda e revelam uma outra ordem suspeita que é apenas metade de sua evidência. A verdadeira consciência dessas coisas é determinada pela indiferença. Por vezes temos que imaginar o contrário do que vemos, para que o mundo se mostre em sua clareza simbólica. Porém os sentidos nem sempre estão de acordo e o que avistamos é uma confusa negação de juízo. Uma chacina moral, uma fraude de ideais, os cascos brotando da terra seca como centelhas em uma arribação fingida. A realidade se desloca alheia à impetuosidade da razão. Como uma mancha no lençol, com seu negrume crescente e seu movimento provocativo.

 

Um tumulto misterioso por vezes nos redime, e nos leva à irradiação de outro enigma.

As pedras cadentes podem muito bem ser a construção de uma morada incerta.

Os cegos cavam a sepultura de mortos que não podem identificar.

Forasteiros vindos dos céus redigem as máximas que subvertem os hábitos de homens e centauros.

Quem traça um centro desconhece as portas que dão para outras dimensões.

Um amontoado de chifres desorienta as mitologias.

 

Na medida em que anotei esses aforismos a mancha no lençol foi ganhando volume e movimento. Se pôs de pé diante de mim, nascida de um salto, como uma epifania despertada no deserto. Aquele talvez fosse o custo assombroso do paradoxo. A despensa ilusória da origem. No entanto, na medida em que o vulto negro ia ganhando a definição exata de meu corpo, algo encantava os princípios de minha identidade e fazia planos, repletos de atrevimento, de estar em duas partes ao mesmo tempo. Seduzir a folhagem trivial de um velho arvoredo e o disco sacramental dos disfarces. Lavínia di Lúvia renascida em dois hemisférios. Sairíamos de casa tomando direções opostas e se é verdade que o mistério copula com a curiosidade aos poucos seríamos mais, oito, talvez 12.

A vaidade tem a força de um eclipse. O espelho no quarto não compartilhava minha crença na multiplicação dos seres, não aceitava meu duplo, insistia que no mundo não poderia haver outra igual a mim. Desestimulante falta de perspectiva daquele espelho ordinário.

 

Esta tua aparência é falsa. Não vês que podemos dar sentidos diversos ao mundo visível?

 

Seu silêncio era irritante. Desconhecia a gravidade, o prazer, o entendimento. Negava os algarismos da levitação e os elementos corporais da imaginação. Estava preso às vísceras de uma realidade mesquinha. O espelho nos fez à sua imagem e semelhança.

 

Porco egocêntrico que não me permite vencer a fadiga da existência.

A tua embalagem deve ser única, como a legenda embrionária de tua própria vida.

 

O diabo platônico abriu então o verbo da tolice. O ser humano é fruto da partição, a complexidade do ser mede acima do espaço que ocupa e da época a que acaso tenha sido destinado. Talvez os espelhos sejam a vibração agônica de nossas superstições. Uma ilustração esmaecida de Deus.

A impetuosidade crescente de minhas palavras enredou um sobressalto entre nós três, e o vulto me apertou o pescoço, decidido a se desfazer de mim. Enquanto eu me debatia pude ver que aquela inusitada violência não era acobertada pelo espelho que reproduzia apenas a agitação indecifrável de meu corpo, o que acabou descrevendo no quarto um desfecho obscuro.

Morte ou metamorfose, talvez nenhum fim seja absoluto.

 

FORTALEZA, 1957

 

Volto ao meu diário sempre que posso. No começo eram anotações dispersas, centelhas ou formigamento de coisas que me assaltavam ao longo do dia. Uma frase solta, uma imagem infrequente, um medo, uma irritação, a suspensão de um entusiasmo. Guardar as coisas comigo de modo que elas não me escapem. Aos poucos fui dando ao diário a condição de uma criatura invisível que me faria companhia em meus retraimentos. As imagens anotadas foram ganhando uma intimidade perigosa. Aquele objeto passou a saber coisas de minha vida que eu jamais havia contado a alguém.

Quem sabe um dia me assediaria com ameaças de revelar meus segredos ou mesmo com agressões sexuais, me forçando a levar com ele uma jornada promíscua. Poderia assim me obrigar a escrever uma biografia distorcida, um relato de demônios, a visita de um extraterrestre. Não digo que essas coisas não podem acontecer. Com a prodigiosa facilidade que tenho de atravessar portais inimagináveis, provavelmente eu já devo ter páginas e mais páginas por escrever acerca de todos esses temas, dos mais vulgares ao mais insólitos. Como alguém interpretaria a lascívia de uma história de um amor que se passara em realidades paralelas? Como tornar aceitável que um espírito elementar tenha se deitado a meu lado e me empalidecido de luxúria somente com o olhar?

Se há alguma verdade na memória, aquele objeto me seduziu tantas vezes que mesmo quieto sobre a mesa, com as suas páginas fechadas, ele me penetrava o sexo e açoitava meus desejos mais lúbricos. Houvera noites em que eu ardia desesperada, chorando como uma libertina gananciosa. A sombra pálida e frenética que me espalhava o corpo por toda a cama e me fazia desaparecer uma mão pelas curvas sutis de minhas formas descrevia um código que eu havia anotado em uma antiga página, minha visita a Urzelina em 1647. O intrigante caso de um corpo despedaçado que jamais foi elucidado. Eu sei que se tratava de uma mulher. Talvez pudesse ser eu mesma. A memória estabelece sua lista de prioridades, avariando o nosso entendimento de premências e disparates.

A sombra desnudava as minhas lembranças. De algum modo me fazia renunciar à minha rotina. Converti-me no documento astuto de uma volúpia. Até mesmo um crime possuía conotação sexual. Agora era o diário que me confessava suas experiências, uma calúnia de tintas, a obsessão de condenar a realidade a declarar-se inconsequente. Fui constantemente convocada para sua tigela de orgasmos, a nutrição do êxtase, o testemunho de uma irrupção de espíritos no ar. Mesmo conhecendo seus recursos, eu me deixava possuir por aquele bailado de réplicas, as minhas amantes todas tinham a exatidão de meus contornos, eu havia me convertido na mulher invisível amante de um íncubo. Até mesmo o silêncio súbito, aquele rascunho de imperfeição da angústia, que abocanhava a cena e logo desaparecia sem deixar motivo, mesmo essas passagens vagamente aprimoradas ele reproduzia nas páginas de meu corpo.

O diário me escrevia como o refluxo de um transe. Quem decifraria aquelas notas invertidas? Sessões de suores alternados. Um médium devasso que eu abrigara dentro de mim. Os sinais dissolutos de nossas transfigurações. Uma orgia de vultos que singravam a memória. Um dia eu tinha dentro de mim um psicótico, um alienígena, um palaciano violento. A memória materializava em meu ventre os personagens mais impensáveis. O diário insistia que por ali passavam os meus mitos primários, a substância carnal de meus anseios. E erguia meu braço onde acabara de escrever uma exaltação de adultérios. Uma adoração de magos, eu quero todos em meu pasto febril. A iluminação desse fogo mágico acendia em meu íntimo as tochas de uma passagem para muitas noites. Uma ingestão de espermas e sangues menstruais, eu não fazia mais distinção entre os sexos, as leis de meus ímpetos já não eram mais secretas.

O diário tinha sobre mim domínio absoluto e me fazia praticar os mais incessantes martírios. Tudo era incontinência no acúmulo de suas imagens, as palavras pareciam sangrar de tão frenética atividade. Escrevo como quem cavalga um tigre, com a tinta suculenta dos excessos e as faculdades fulgurantes do impossível. Escrevo destinada a ser a escrita no requinte de sua erupção.

 

SANTARÉM, 1974

 

10 de março

Minha cara Lavínia di Lúvia

Há muito não nos reencontramos, porém eventualmente recebo notícias de suas pesquisas pelo interior do Nepal. Atualmente estou morando em Santarém e há poucos dias chegou uma carta de Anselmo Salerno da ilha de Marajó onde relata uma série de crimes dos mais violentos, envolvendo moradores de uma vila. Os corpos foram encontrados espalhados nos arredores carbonizados como se tivessem recebido uma fulminante descarga elétrica. Uma moradora de nome Salete contou a Anselmo que a carnificina não durou mais do que um susto do olhar. Um cheiro ruim rapidamente se espalhou e ao cessar o salpico de fagulhas ela observou uma mulher se afastando da cena, caminhando calmamente por entre os mortos. Ao indagar se ela estava bem, a mulher se virou e então se apressou a desaparecer de seu olhar. Anselmo quis saber se Salete conhecia a pessoa, mas ela afirmou que jamais a havia visto na ilha. Um dia depois, ao ir formalizar testemunho na delegacia, a senhora, ao aguardar ser chamada, folheou displicente alguns livros na mesa e, ao abrir a capa de um deles, ao ver a foto da autora em uma das orelhas, súbito deixou o livro cair no chão e deu um grito, reconhecendo a mulher do livro ser a mesma que vira há duas tardes. Como o livro havia sido emprestado ao delegado por Anselmo, este foi de imediato chamado para esclarecer o fato. Acontece que o livro era teu, minha amiga, exemplar de A fuga das transparências, que me deste no ano passado e Anselmo me pedira para ler e emprestar ao delegado. Peço que me escrevas contando o que é possível de toda essa nossa agitação.

Recebe o meu abraço apreensivo,

Argênteo Soros

 

 

16 de abril

Lavínia querida

Volto a te escrever após um período de cinco semanas desde a minha carta anterior. Em vão esperei por uma resposta tua. Ao contrário, o que se passou foi algo assombroso e que trato aqui de narrar. Na noite de ontem apareces em meu sonho de forma tão nítida que mesmo que o impacto de tua presença tenha me despertado ainda assim ali permanecias e toda a cena prosseguia diante de meus olhos como se estivesse projetada na parede. Os corpos espalhados pelo chão, como descrevera a moradora da vila em minha outra carta. E curvavas teu corpo sobre eles, deixando um círculo de teu próprio sangue em cada fronte. Em seguida te aproximavas de mim e, ao me tocar entre as sobrancelhas, tudo se dissipava. O sono prosseguia, como se nada tivesse acontecido. Porém pela manhã, ao despertar, tudo veio à minha memória. Ao ir ao banheiro, diante do espelho me vi, com um círculo de sangue marcando a testa.

O que está se passando, Lavínia? Não encontro explicação para nada disto. Não deixe de me escrever e, se possível, venha me ver.

Recebe o meu abraço cada vez mais apreensivo,

Argênteo Soros

 

RIO DAS ALMAS, 1980

 

Acordei no que parecia ser o meio da noite, com uma dúvida flamejante de Deus. Sob a copa decaída do imenso cajueiro no Grande Lago boiavam sete corpos sem vida. Uma esvaída caligrafia da morte que as águas iam tratando de apagar. Meus olhos começaram a busca ainda em sonho, na complexidade vetorial dos abismos. Aqueles corpos expandiam a imaginação, desafiavam a parcela migratória dos sentidos.

O sonho é a primeira escrita de uma liturgia do desejo. Não era outro o argumento de meu olhar ao descobrir aquelas sete mulheres. Substituímos cada verbo pelo atrito psíquico de sua morada. O que vejo no sonho jamais deixará de estar presente na vigília, não importa o mecanismo de minha visão. O sol alternava os timbres daqueles sete enigmas, sete versões de um mesmo crime. Retirados da água os corpos rascunhavam os vestígios de cada morte.

Os crimes ocorreram em lugares e momentos distintos. As vítimas foram guardadas à espera do momento em que seriam ritualisticamente emborcadas no lago. Não havia sinais de luta, cortes, hematomas, ossos quebrados, marcas de agulha ou cordas, cada corpo envolvido por um drama onírico que não permitia desvendar a fonte do óbito. Teriam sido asfixiadas, porém em condições raras, cada uma delas imersa em um ataúde de acrílico, sem que tivessem como se debater enquanto o ar ia se dissipando. As jovens mulheres expiando em relutante agonia.

No âmago das associações pude revirar os bastidores de meu sonho, onde as sete caixas iam sendo preenchidas uma a uma. Os últimos instantes foram como ter em mãos as chaves do inferno e não vislumbrar as portas. Também em mim a vida se desfazia. Não era um filme ou a leitura de um relato. A minha respiração sutil ia emitindo seus últimos acordes. Eu escondia a minha face e com isto não podia identificar aquelas mulheres. As letras foram jogadas em um balde e não havia como recuperar a tempo as palavras de onde elas foram arrancadas. Distinta era a extensão do sopro vital das sete jovens assassinadas.

Não esquecer como a agonia vai substituindo as pretensões de vida. Como deuses foram substituídos pelos palimpsestos de uma civilização agônica. Os corpos boiando no lago desafiavam a clarividência. Sem deformidades aparentes, aquelas tábuas do mistério algo queriam nos dizer. Como se quem as dispusera ali, em maquinação com o acaso, rabiscara um acidente profético. Uma caligrafia proverbial do contágio, a praga das sete semanas, um mundo em permanente ausência de repouso, a execução do desenlace. Nem mesmo Deus anularia tal sentença. E a minha dúvida desmantelava o tabuleiro dos símbolos.

Os conflitos são pedras decorativas. O instinto talvez nada possa contra a razão. E esta não é uma combinação de padrões diversos, mas sim a imposição de uma alegoria: o corpo perdendo a vida no abraço frio de uma caixa de acrílico.

 

ESTREITO DE MAGALHÃES, 2021

 

Esta talvez seja eu mesma. Uma curiosidade que me acena convincente. Os mares que trago dentro de mim, a fiação do horizonte com suas correspondências com incontáveis jornadas. Se não me agrada ser um atrativo entre fantasmas, ao menos sei que aqui posso acolher minhas simpatias, as poções benfazejas que venho colecionando por onde as noites me levam. As reminiscências secretas de tantos sonhos frustrados. A procriação pânica dos desastres. Todos esses cadarços puídos do destino, que vêm dar à minha porta como uma canção das origens do mundo, eu os recolho dentro do farol, como cereais de minha saga solitária.

O cenário arqueado de todos os incidentes acaba semeando um plano de vertigens do olhar de quem me vê rabiscando luzes pela colcha inaudita dos temporais. O aguaceiro santifica a noite salpicada de sacrifícios. Os ventos vão e voltam tão vertiginosamente que uma multidão de sinais floresce como relíquias. Algumas manchas no céu são declaradamente humanas, extraviadas como grãos de um prognóstico falho. As chuvas são atraídas pelas lágrimas selvagens de uma deusa decapitada. Uma harmonia estilhaçada em seu refúgio místico. As tempestades implantam asas nas árvores e metais em um manancial de riscos.

Há tanto tempo estou aqui que devo ser eu mesma. Sequer recordo outras ganâncias ou distâncias percorridas por incertos motivos. Sou a luz em forma de aves que bicam as espigas da escuridão indicando a terra que deve ser evitada. A minha solidão ecoa desde os antigos sete mares e representa um segredo que jamais poderá ser compartilhado.

 

 

Noites embaralhadas por um cardume de catástrofes. Desconheço por que a vista me faltou. Assim como o tempo que permaneci cega. Nenhum grão de luz consegui emitir. Os mitos querem matar o touro, os gritos da aurora anunciam as quedas, as minhas epifanias se tornaram inexatas. De tanto querer voltar a ser quem sou uma débil claridade esverdeada se associou ao meu olhar. Aquele parecia um novo lar inesperado. Uma garrafa ancorada em alta prateleira do quarto de uma menina. Nova cédula de naufrágios, as minhas luzes agora guiavam os mundos interiores, sopravam para dentro de mim, despertando ansiedades indefinidas.

Certamente ainda sou quem sempre fui, uma ilha suspensa, uma miniatura do caos, os animais perigosos de todos os vislumbres. Quem me distingue à distância sabe que tem que evitar a serventia da fatalidade. Mesmo agora, dentro dessa garrafa, tenho que inventar mares e nevoeiros, impedir que os homens atraquem em seus infortúnios, evocar os demônios para que dancem comigo, pois devo ser luz ininterrupta, mesmo que não haja escuridão.

Eis quem sempre fui, aquela que se antecipa às trevas.

 

EM CASA, 2029

 

Se eu tivesse chegado mais cedo ela certamente ainda estaria viva.

MEREDITH SINCLAIR

 

Desde menina tinha particular curiosidade por saber se há vida antes do nascimento.

Alguma ideia de por onde começamos? Há lugares-comuns em que ninguém acredita. Eu me chamo Lavínia di Lúvia. Meu corpo foi encontrado morto quando eu acabara de fazer 30 anos. Ao olhar para a memória ainda me vejo ali, desfalecida ao lado da cama. A casa permanece fechada. Lembro que na sala principal eu havia posto uma grande mesa cumprida de madeira usada para fazer as minhas maquetes. A hera ramificada pelas paredes acusava a idade do abandono. Meu corpo então se moveu, lentamente me ergui e voltei a me deitar na cama. Talvez fosse a hora de voltar a sonhar. Ou simplesmente a casa precisava se alimentar. Algo me dizia que apenas um sonho poderia me tirar dali. O relógio de parede abrigava as cicatrizes de um tempo inerte. Para onde eu poderia ir? 

 

 

Por vezes eu tirava uma noite só para mim, aguardava Lavínia dormir, e saía da prateleira quase um ninho que ela reservara para mim. Adorava o jeito como me chamava de Laila, como se fosse a primeira, como se meu nome tivesse saído de sua imaginação. Ao contrário das primeiras vezes eu agora saltava do móvel com facilidade ritual, subia no tapete fofinho ao lado da cama de Lavínia e deixava meu corpo crescer até o ponto em que poderia aventurar-me pela janela. Naquela noite preferi vasculhar a casa, o corredor imenso repleto de portas e quadros, propositalmente não cresci tanto, tornando mais desafiantes os passos, facilitando vislumbrar o conteúdo das fechaduras. Uma primeira porta e vi o mar. Já conhecia água, os banhos que Lavínia me dava em sua banheira. Porém ver todo aquele infinito líquido em sutil movimento, foi como haver entrado certa vez no olho de um peixe azul no aquário ao lado da cama. Como aqui voltarei muitas vezes resolvi colar à porta uma tabuleta indicando ração de mar como seu nome aberto a múltiplas viagens. Uma pequena luz se equilibrava na linha do horizonte e algo em seu olhar vinha me dizer que evitasse as noites de chuva em alto mar. Talvez fosse melhor eu dar ouvidos e abandonar a fechadura, mas fui engolida pela curiosidade e me aventurei fazendo votos ao infinito para que não chovesse. Na medida em que me aproximava da luz escutava mais claramente suas palavras:

 

– Desde a infância, luz e escuridão vieram ao mesmo tempo. A escuridão dos amplos e abertos pátios da casa da avó e a luminosidade dos segredos trazidos pelo acaso. A luz é a alegria dos encontros e a escuridão é o despertar dos estímulos. A imensidão da casa da avó, como uma nave mãe que me explorasse com seus labirintos. O mistério de uma parede inteira de livros, eu me senti vigiada por ela enquanto um portal me permitia passar para a casa de minha mãe. Fui criada entre duas casas, cada uma com suas fissuras, seus corredores, os caminhos misteriosos que até me levavam de uma para a outra. Em algumas paredes, a evocação muito sutil da luz nas pinturas de um tio-avô, as naturezas-mortas que marcaram as minhas tintas, muito antes que eu começasse a pintar. Infância é tudo. Desde muito cedo a luz me interroga dos ambientes externos, dos lugares onde minha avó me levou: praças, ruas, parques. As naturezas mortas foram de imensa importância em minha vida, como os quadrinhos, a chegada da televisão com suas animações, o teatro de Shakespeare, tragédias que trouxeram um charme mágico para os meus dias de menina, até hoje permanecem, porque em mim a curiosidade é imortal, o que leva à compreensão dos relacionamentos amorosos entre os opostos. Como a relação entre as coisas dadas como distintas, as possíveis conexões entre o cosmos e o cérebro humano, a importância de discussões sobre a matéria negra, a épica travada entre luzes e trevas.

 

Tanto distanciei-me da porta que deixara atrás de mim que não percebi haver caído no truque do horizonte. Certamente não era a luz que falava comigo. Era outro truque, só então percebi, não me restando senão fechar os olhos como último recurso, o que de algum modo funcionou, pois, ao reabri-los eu estava novamente no corredor. De volta à verdade que tomara então o lugar de origem. Assim as coisas à nossa volta se deixam passar, esquecidas ou não, confiantes de que o tempo lhes dará uma nova imagem. Novamente o corredor, porém antes que eu me inclinasse por outra fechadura, dentro de mim Lavínia começou a se remexer, talvez abrindo as páginas de um pesadelo ou simplesmente acordando. Melhor retornar à máxima proximidade do ponto de partida, única espécie de retorno que nos permite a vida. Imóvel uma vez mais na prateleira escutei a voz de Lavínia balbuciando meu nome em seu sonho.

 

 

Se eu fosse contar meus sonhos de imediato reclamaria a presença de uma subversão, pois a história somente se completa em sua deformação da linguagem. O relato espezinha as diferenças entre sonho e vigília, com uma astúcia reservada ao fio com que tecemos as contradições da memória. A todo instante trocamos a vida por uma ideia dela mesma, um gracioso palimpsesto que nos devora por dentro. A minha irmã cresceu em outra casa e eu a via aos finais de semana, como se fôssemos lançadas ao centro de um labirinto, de costas uma para outra. Durante cinco dias o tempo gotejava de uma torneira consumida pela ferrugem e aquela água precária das horas fazia de cada uma de nós a sua mutação preferida. Laila na prateleira era a nossa verdade comum, a autonomia de uma utopia reverberada em nossa imaginação. Somente a ela conto meus sonhos. Os nomes próprios nos disfarçam quando perambulamos pelos arredores da fantasia. Talvez cada uma de nós deva ter mais de um, pois assim podemos enganar as imagens que se voltem contra nós no labirinto. Ou talvez seja Laila o fio invisível que nos leva aos finais de semana em nosso tear de mistérios. Somente a subversão nos garante uma linguagem própria.

 

 

Eu quero contar um segredo, mas não digo a quem. Hoje pensei em escrever um capricho, deixá-lo anotado em meu diário com a página vincada, confortando sua ironia de constranger a curiosidade de quem o abrisse. Um capricho sobre a arrogância daqueles que adaptam sua aparência para buscar um consenso. A arrogância é a medida de todos os paradigmas. Talvez seja verdade que não temos escolha em relação a eles, mas igual verdade nos leva ao leito de uma quimera, o sentimento deslocado que nos faz crer que as coisas poderiam ser outras. Sequer nos esforçamos para estabelecer uma diferença entre o provérbio e a assertiva. Quando muito nos revezamos nos braços, ora de uma, ora de outra. Quando começamos a vagar no interior da linguagem, as nossas frases se repetem buscando produzir uma verdade a cada repique dos sinos de sua procedência. As denúncias cavam seu próprio sacrário. Quero contar um segredo, porém só consigo me esconder atrás dessa página marcada, um segredo que talvez não passe do arrepio de um manuscrito.

Assim que Lavínia dormiu eu dei início à repetição de um ritual. Provoquei a cópia de vários movimentos, de modo a retornar ao corredor da casa, onde uma segunda porta me aguardava. Silenciosa em sua indefinição, seu olhar-fechadura piscava como um delirante segredo, a exaltação de uma imagem que nem mesmo tocada imprimia a causa completa de seu chamado. Ao colar meu olho ao seu o que vejo é o escândalo maquinal da repetição, vejo-me ali recortada, montada, vestida, a mim e a meus outros duplos, as variações polissêmicas de uma mesma existência, Laila multiplicada. A preparação de pertinências que darão ao mundo novos sentidos. Em quantas casas estive e seguirei estando, sem jamais compartilhar a pluralidade de reações, sem comunicar-me com o gosto de cada criança que me recolhe na dialética de seu crescimento. O que vejo repercute como um fragmento de meu ser, até onde a vida em mim pode se destacar com iluminada precisão. Impossível prever-me, e nisto reproduzo em mim os mesmos dilemas de Lavínia, como uma fotografia amarelecida cujos detalhes esmaecidos pelo tempo retornam ao privilégio errante dos abismos. Ao contemplar o duplo sentido de minha existência, não me vejo mais a mim mesma e sim a uma câmara de ecos que exploram a minha impotência. A miniatura em que sou reproduzida se agiganta no seio de um conflito: sendo igual na forma, serei distinta no batismo. Desloco meu olhar daquela porta, suficiente para mim haver compreendido o que não poderei ser. Vejo o corredor ondular como um feitiço. A noite ainda não saiu do lugar. Vejamos que outra realidade me reserva o sonho de Lavínia.

 

 

Eu tenho muito medo do que carrego dentro de mim. Recordo com que facilidade migro entre meus sonhos. Uma noite sonhei com a estreia de Karsavina em Paris, 1909, do teatro voltara para casa e à tarde me encontrei com a bailarina em um café, onde lhe mostrei um desenho feito enquanto eu a via dançar. Marcamos novo encontro no hotel onde Karsavina estava. Sentadas no chão diante da grande cama comecei a desenhar um nu improvisado entre olhares lascivos. Karsavina se deixou seduzir acreditando que eu a estava retratando, mas logo viu surgir nos desenhos as primeiras linhas de meu próprio rosto. Tão logo fizemos amor, ainda nuas e deitadas na cama, eu lhe contei como rabiscara um desenho enquanto, décadas depois, assistira à estreia em Fortaleza do filme O sétimo selo, de Ingmar Bergman. A mão se movendo no escuro do cinema em um jorro do inconsciente o que depois veria fascinada por se tratar de traços de um sonho que se concretizaria anos depois. Confesso agora não entender como se deu meu encontro com a bailarina russa, pois naquele ano ela ainda não havia nascido.

 

 

Oito minutos me separam de ti. Quando li esta frase em meu diário, manuscrita ao lado de um círculo negro, me pus a chorar, mesmo sem entender o alcance de seu significado. Certamente não se tratava de uma relação de distância em função do tempo, mas sim de uma negação do espaço e suas leis. Longe desse alguém a quem a frase se destinava – não ouso pensar que falasse de mim – a sua vida seria convertida em uma escuridão plena, o último símbolo como a ambígua concentração de todos os demais, para onde ninguém quer ser enviado. Oito minutos para que a elipse se instale em todos os nossos movimentos. Não se trata mais de descer aos infernos nem mesmo do abismo intemporal aonde nos conduz a morte. Creio que ela se refere a uma mística da ausência, onde se perde inclusive a noção daqueles oito minutos que a separavam de alguém. Um ser amado? Uma derivação divina? Já não importa. Imagino que essas palavras estejam carregadas de um sentimento do agora. A vida não pode ser a penitência de quem aguarda seu instante final. Ao contrário, deve ser uma germinação infinita das mais imanentes fagulhas da existência. Sem recapitulação ou ansiedade. Uma afirmação intransigente de que esses oito minutos jamais ocorrerão. 

 

 

Quando eu ainda estava na casa da mãe de Elise eu a via escrever seu diário todas as noites antes de dormir. O inconsciente é o lugar onde se processa o erro. Por isto não se pode criar sem a sua presença. Elise escrevia um diário projetivo, anotações de suas premonições, perambulações no imaginário, a linha de um horizonte que um dia ela supunha cruzaria. Guardo ainda de memória algumas frases. É preciso que ao menos uma de nós duas esteja do outro lado de tudo. Jamais me atrevi a decifrar aquelas mensagens. Nas páginas havia também alguns desenhos, precários rabiscos, lembro bem uma série que me parecia uma mesa redonda com seu vidro todo rachado, como as linhas rasgadas de um deserto ressequido. Em três ou quatro repetições do desenho alternava os movimentos de um corpo cadavérico sobre a mesa. Como a súbita voracidade de um relâmpago. Ao lado estava escrito: Este corpo representaria o princípio da negação que nos leva a refletir sobre as chaves ocultas de todos os mistérios da existência. Ao recordar me ponho a pensar em qual idade teria Elise naquele momento. Certamente não era a menina de 10 anos que brincava comigo como se eu fosse um amuleto delicado por quem ela tem imenso carinho. Quantas vezes dormi colada a seu rosto, sentindo a sua respiração. O ar farejando minha ausência de movimento. A ponta do lençol sobrevoando a mansidão de cena.

 

 

Suspenda a descrença. Pode haver mais de uma de nós aqui. Eu falo com as flores que murcham em todos os vasos na sala. As luzes tremulam dentro de mim como um sacrário de velas. Vieste me ver, mas é possível que tenhas trazido alguém contigo. A tua respiração parece uma pele de gelo se partindo na medida em que a ondulação do corpo envolve o espaço negro. As luzes se foram. Agora eu sei quem está aqui. Tens que me buscar bem fundo. Não deixes que os sons da casa nos atrapalhem. O teu corpo alcançará as minhas dobras mais enraizadas, e comerá o meu bocado mais encoberto. O seu nome está na ponta da minha língua, a sala envolve a sinuosidade de seus sussurros. A sala se encrespa como se fosse uma pira sacrificial. Continue adentrando meu âmago, adivinhando cada letra de meu nome. Não grite. Deixe que o nome se complete sozinho, entregue a seus caprichos. Mesmo que o repitas continuarei sendo a oculta. Permanecerás em suspensão. Nenhuma de nós pronunciará teu nome. Abre os olhos, Elise, uma pequena luz descerra a janela e sairás daqui consciente de que Laila jamais poderia ter ganho vida. Apenas em sonhos ela conversa contigo. Suspende o temor pelo mistério. Sempre haverá mais de uma de nós dentro de ti.

 

 

Minha doce irmã

Aceito tua decepção em face de meu silêncio. Há dois meses estou aqui e só agora me disponho a te escrever. Eu sempre quis que o tempo se desse muito além de mim. Que não ficasse apenas me rondando como um cão dedicado. São muitas as coisas que tenho para te contar. Esta carta não será escrita de uma só vez. Será como uma espécie de carta-diário. A cada dia virei aqui dizer-te algo. Ao final receberás o que imagino seja um pequeno pacote manuscrito.

Posso expurgar o demônio do interior de uma pessoa, porém não consigo reacender uma alma moribunda. Em que espécie de pessoa terei me convertido, é pergunta que me acompanha há muito.

 

Meu coração jamais suspirara tanto como quando desci à gruta das bonecas, onde crianças vivas eram convertidas em autômatos de todos os tamanhos. Ali aprendi que nada no mundo existe sem o seu duplo. E foi justamente ali, naquela espantosa gruta, onde conheci a sem nome. Eu a encontrei arqueada de tanta amargura, embriagada pelas lembranças incuráveis e uma bebida nativa…

 

Lavando minhas roupas em uma pensão no Equador, pressenti que a noite se mexia por toda a casa.

 

Nepal, portal para vidas paralelas.

 

Abra a veia de qualquer plano divino sem temer a escuridão.

 

 

Por vezes apenas frases soltas eram coladas em meu diário, sem que eu pudesse explicar sua origem ou entender seus motivos:

 

Eu não vou me prender às queixas de tua ansiedade. Não me verás como uma inconsistência de tua vida. Os dias que passamos juntas foi algo mais do que o espelhamento de um sacrifício. Nós nos demos tanto uma à outra e a motivação dessa entrega não era obscura ou gratuita.

 

O fundamento de suas palavras me penetrava como se fosse o frenesi de sua língua em meu sexo. Qualquer de nossas noites, escolhidas aleatoriamente, revelaria um amor que era tudo menos incerto. Tínhamos a mais plena convicção do papel que cumpríamos uma na vida da outra. Ela então tamborilava com seus dedos em minha coxa ao dizer:

 

As dores se alimentam da inconsistência e fazem de tudo para ocupar o lugar de uma inadequação, como se não fosse real o teu corpo envolvendo o meu. Os feitiços costumam reivindicar suas virtudes dispersas e creem –  defendem uma crença hipotética – que não há maior significado no sacrifício do que a agonia instável de sua metáfora.

 

Quando ela deixou de me enviar seus misteriosos bilhetes eu senti a mais abominável de todas as dores, como se a sua ausência me impusesse agora um silêncio cruento, a entrada em outro feitiço, no espelho de uma nova inconsistência.

 

 

Tia Armênia não nos chamava pelo nome. Dizia que estávamos todos amaldiçoados e que repetir nossos nomes era dar mais força aos demônios. Alguma razão ela devia ter. Nas férias escolares, quando nos encontrávamos todas as primas na fazenda de um tio-avô, costumavam acontecer coisas curiosas. Anita levava consigo sua amiga invisível e por vezes se afastava de nós para ficar a sós com ela. Ângela repetidamente nos pedia que não contássemos à sua mãe o que ela havia feito, sem que soubéssemos do que se tratava. A pequena Arlete costumava subir no telhado da casa grande, com seu binóculo e um caderno, onde parecia anotar tudo o que via lá do alto. Quando íamos para o quarto, antes de dormir, as luzes já apagadas, ela nos contava pequenas histórias assombrosas que afastavam o sono de todas.

Não me acostumei jamais a descrever a mobília das casas onde vivi. Até mesmo alguns móveis desapareceram da memória. Sem falar daqueles tantos que a cada lembrança mudavam de lugar. Se uns reclamavam da presença de alguns visitantes, outros não diziam uma palavra, talvez temendo a reação de algum espírito sentencioso.

Há noites que sonho com uma cena que se repete até certo momento. Desperto com a garganta seca e me dirijo à cozinha. A frieza súbita nos pés revela que o cômodo está alagado e mesmo assim caminho até a geladeira. Ao abri-la, quase vazia, me espanto com o coelho morto que ali encontro, porém a minha mão avança para pegar a garrafa. Este gesto não se conclui. Insisto, mas é como se algo invisível não me permitisse tocar a garrafa. O sonho sempre se encerra assim.

 

 

Desejar saber onde estamos. Quando a escuridão repleta de silêncio transborda sua taça e nossos olhos tropeçam na invisível trança do horizonte. As histórias pressentidas no transe da insônia. Algo nos diz que ainda estamos lá. Na cumeeira do abismo. Quantas noites mais até que recuperemos os sentidos dilacerados?

 

 

Meu encontro com Anita se deu em uma dessas tantas vezes que viajei entre mundos, como quem mergulha em um espelho ou abre a porta que nos leva a outra dimensão. Eu não saberia nunca prever quando se daria a jornada. Anita estava muito assustada e me confessou que vira seu outro errático, talvez um pouco mais velha do que ela, porém idêntica em tudo. Teve muito medo de se aproximar, apenas a seguiu com o olhar à distância quando ela entrou na floricultura onde trabalhava Anete e através da parede parcialmente de vidro olhou terrificada as duas se beijarem. Anete não percebera distinção alguma ao beijar a outra Anita. Eu tampouco soube o que lhe dizer. Certa noite acordei e podia jurar que estava sendo observada por um vulto que repetia com exatidão as minhas feições. Ao acender a luz não havia ninguém. Não creio que saibamos quantos somos. O que nos leva a essa duplicação incomum e faz com que nos projetemos em um outro aparentemente ficcional talvez seja mesmo real.

 

 

Hoje acordei pensando em escrever para a minha amiga Cleide, mas logo fui tragada pela dolorida lembrança de sua morte. Por vezes é quase impossível conviver com esses lampejos, o desejo de reencontrar um amigo morto, o vazio em que naufragamos o cotidiano. Ester me pedira para revisar os manuscritos de um livro seu e morreu antes que eu começasse a leitura. Ela não deixou familiares, e me vejo agora responsável por editar seus escritos. Laura havia comprado passagens e reservado hotel para uma temporada no Oriente Médio. Uma noite conversamos sobre seu desejo de fotografar o vale do Nilo. Foi nosso último telefonema. Dias depois eu liguei para sua casa e a irmã mais nova me atendeu dizendo que ela morrera naquela mesma noite em que nos falamos. Há certas viagens que são feitas de um modo inesperado, como escrever um livro que jamais o vemos publicado ou as férias planejadas que se realizam em outra dimensão. De que modo posso escrever agora para Cleide, senão rompendo com todos os pilares da realidade? Quando somos nós que deixamos de viver, de que modo as pessoas que amamos se comunicam conosco?

 

 

Por vezes não sei como sair de meus sonhos. Em uma delas minha mãe me levou a visitar uma menina em seu quarto, deitada e enferma. Haviam lhe dado um remédio para baixar a febre. Estava delirando e falando uma estranha língua. A senhora que cuidava dela nos disse que Deus a havia abandonado. Quando me viu, indagou se eu poderia salvá-la.

 

– Do que você quer ser salvo?

– Não tenho ideia. Imagino que você esteja aqui para isto.

– Na verdade, desconheço o que faço aqui.

– Poderíamos sair para uma melhor conversa.

– Você poderia?

 

Quando lhe indaguei em segundos o quarto escurecera por completo e no instante seguinte caminhávamos em uma praia deserta. 

 

– Se você quiser me salvar terá que mergulhar no mar e encontrar uma cura. 

 

Ela me levou mar adentro e imergiu todo meu corpo com decidida delicadeza. Não sei quanto tempo fiquei ali. Ao emergir estava de volta ao quarto, diante de sua cama. A menina estava sentada e parecia estar bem.

 

– Eu lhe devo a minha vida, embora não saiba o que fazer com ela.

 

 

1. Alguém havia tomado o seu lugar, se passando por ela sem que ninguém percebesse. Porém algo lhe escapou, o dedo mínimo de sua mão esquerda havia perdido movimento...

2. Abdução. Uma palavra que sempre me soa estranha, pois não compreendo exatamente a sua dimensão. Claro que posso ser conduzida através do tempo e do espaço, porém ao retornar, serei apenas eu?

 

 

Fui criada entre tias e primas. Para que eu nascesse minha mãe teve que morrer. Quando vi um homem pela primeira vez meus olhos tremiam, tentando decifrar aquela estranha visão. 

 

 

Certa noite eu e minha irmã mais velha entramos uma no sonho da outra e quase não conseguimos voltar ao sonho de cada uma.

 

– Por que não fica aqui conosco?

– Não sei onde estou...

– Do que você lembra?

– Antes de desaparecer eu estava na costa italiana. Fui jogada pelo mar. Estávamos em 12 em um barco que provavelmente não suportaria mais de seis pessoas. Também não lembro como fui parar ali. Eu precisava sair da Etiópia, não era mais possível viver daquele modo.

– Quem cruza consigo mesmo sem notar o que está fazendo jamais conseguirá alcançar o que pretende.

 

 

Em 2016 Meredith Sinclair apresentou ao mundo sua tese de que o mal era fruto da religião e que somente a ciência poderia erradicá-lo. Na forma de roteiro de um filme intitulado O credo dos hereges, Meredith defendia que as sociedades que conheceram a guerra jamais se livraram dela. A liberdade buscada através da violência converteu tais sociedades em discípulas da Grande Submissão. Algumas vezes já ouvimos que a dor nos fortalece e que o amor nos torna fracos. Também que somos iludidos pela perspectiva da liberdade. Poucos duvidam que o amor nos deixa tão ausentes do mundo quanto a poesia e que a liberdade é um ardil que pode nos levar à morte.

 

 

Um dos 12 fantasmas está a escrever sua autobiografia, um aforismo manuscrito em cada folha que vai jogando ao chão. 

 

As noites são como estátuas que saíram em busca de suas sombras. Tudo nelas existe em função do outro que projetam no espaço. 

 

Anita não compreendia a ambiguidade de sua nudez naquele quarto despudoradamente solitário. Viajava velozmente pela memória, tocando o ponto mais negro do passado e as fórmulas confusas do imprevisível. Seus escritos imitavam a si mesma, como se plagiasse a humanidade e seus votos de indeterminação. 

 

Nem sempre a vida resulta em morte. Aqueles que perdem a memória não morrem jamais.

 

A areia da ampulheta desceu por completo. Pode soltar a mulher. Não há nada que ela possa nos dar. Certamente enlouqueceu e vê sombras e a matéria de que elas são feitas. Consideremos que os mortos não saem de suas tumbas. Os espíritos são invisíveis e por onde quer que eles andem não os podemos ver. 

Lucila desfiava sua solidão com um relato que repetia todas as noites sentada no chão de seu quarto antes de dormir. Era a história de uma menina que, desejosa de ganhar uma boneca, entrara em uma fila infinita acreditando que ali realizaria seu desejo. O tempo assumia mil vultos disfarçados de esperança e destemor. Uma noite Lucila percebeu que seu relato tomou outro curso e quando deu por si viu que a menina estava a seu lado e tinha uma boneca em suas mãos. Como isto é possível? Não vem ao caso. As suas noites estão sendo consumidas por um desejo que não é o meu. Eu precisava lhe dizer que a minha boneca, que se chama Lucila, sempre esteve comigo. Você tem que acordar e nos deixar seguir viagem. Deixe para trás essa noite que lhe aflige. Ela jamais acontecerá. 

 

Devo a meus sonhos muitas vidas que de outro modo eu não teria.

 

Naquele ritmo de desprendimento a autobiografia jamais cessaria sua vazante de revelações.

 

 

– Este não é um quarto de criança.

– Certamente que não. Eu mesma não sei o que é uma criança. Até onde me lembro sempre tive esta idade. 

– Qual a sua idade?

– Não sei ao certo, porém jamais foi outra. 

– Não sei como ainda não morreu de excesso da mesma idade.

– Eu não me canso dela. Não é um fardo.

– E por que me trouxe para morar aqui?

– Porque achei que a casa gostaria de conhecer outra idade. Qual a sua?

– Eu tenho nove anos. Eu sou uma criança.

– Aqui não servirá de nada ser criança. Melhor aprender a ser outra coisa.

– Eu não sou uma coisa. 

– Todas somos. Tudo no mundo é sempre uma coisa. E uma coisa-criança não terá serventia alguma aqui.

– Então irei embora amanhã.

 

 

Conheci Iuma Takashi em uma das vezes que estive em Osaka.

 

 

A noite me diz: Quanto mais nua, mais tua.

Porque a nudez não é um modo de abandonar o corpo, mas sim de lhe adentrar até o caroço.

A nudez é o que soletras quando o corpo chama por ti, quando sentes que lá bem dentro algo está a ponto não de sair, mas de ser revelado, mantendo-se no íntimo. O íntimo não é limbo. O limbo é uma negação do ser, sua transitoriedade é enganosa, porque afinal o próprio tempo não sugere senão ilusão perene.

Mas tudo isto porque tens um reservatório em teu ser que sabe exatamente qual mina escavar, qual hálito recolher.

De nada adianta o outro se não sabemos como preenchê-lo dentro de nós.

A minha língua pode falar em tua boca, porém não pode ser a tua língua, pois a tua língua é a que sabe compreender os dizeres da minha língua.

Cada coisa somente se perde nela mesma. Não há como a realidade perder-se de si na outra face do espelho, onde ela contempla a si mesma, mas sabe que ali está uma fatia de si que não pode ser habitada.

 

– Eu ando muito animada pelo desafio, Lavínia.

 

Quando descobrimos um ponto de meditação em nosso íntimo estamos prontas para um novo desafio. É o que está se passando comigo agora.

 

 

SETE CABANAS INVISÍVEIS

 

Em 2021 os mecanismos de compreensão do mundo sofriam uma nova forma de desintegração. A perspectiva de fragmentação da vida não se daria mais do ponto de vista geográfico, mas sim cronológico. O homem está perdendo a noção de passado, presente, futuro. O que era antes uma ilusão de espaço, agora é uma ilusão de tempo. As sete mulheres, após a leitura das páginas do diário de Lavínia di Lúvia, conversam a respeito de suas percepções e antevisões desse confuso atributo da época que habitam.

 

[Lenilde] Este talvez não fosse o momento de discutir com Lavínia sobre a sua rejeição a Li Sung e a visão perturbadora daquelas imagens que ela havia começado a semear em nosso leito de pedras. Quem eu poderia ser agora, no detalhe da escritura confessional? As dores são passionais, não há como evitar o subúrbio de seus rasgos. As sombras existem em confiança à verdade de nossas agitações. Elas também doem quando arrastadas pelo pântano inclemente de nossas ruínas.

 

[Berthe] Tudo na vida nasce de um susto. Não havendo susto todas as coisas deixam de existir.

 

[Lenilde] É verdade. Eu havia planejado que Li Sung um dia nos deixaria uma carta acerca de seu suicídio. O manuscrito conteria o segredo de seus arrependimentos, a mina do impossível, a proporção desconfortável de tantas dores.

 

[Rebeka] As minhas visões dentro d’água sempre me disseram que não se pode planejar os bastidores de qualquer enredo. A história estipula seus danos de acordo com as provações de cada um.

 

[Lenilde] Talvez seja isto que Lavínia soube acentuar nos esconderijos aventurados sob as vestes de seus fantasmas.

 

Por todo lugar elas procuraram uma correspondência com as esferas queimantes da existência. Os dias, os graus, as direções. Certamente seriam associadas aos números, com suas esponjas de emanações. E a velha cabana acabaria se ramificando em criaturas fabulosas que acolheriam em seu íntimo cada uma delas.

 

[Ada] Eu percorri a pé as estranhas formas do mundo. Em tudo eu me tornei a saudação da unidade. Quando li a floração de aforismos que saltavam como veias daquela caixa que me foi um presente do céu, eu nunca estive tão ciente de que ali poderia ser tocada a essência de reconciliação do homem consigo mesmo.

 

[Bertha] É incrível como eu senti, em meu círculo de proteção, o eco de tuas certezas, Ada. Uma força que só se realiza no âmago dos antagonismos. Talvez por isto eu tenha me deixado arrastar pelo mundo como uma histérica, criando pontos opostos em tudo o que tocava.

 

[Emilia] Eu tirava a sorte enquanto pensava nessas relações entre a unidade e o eco. As cartas que escrevi a mim mesma não eram senão a procura de uma síntese. A soma de todos os descarrilamentos e suas bagagens por decifrar. A todo instante somos atropeladas pelo abandono. E ficar só é uma cerimônia que pode abolir o centro de nossos limites.

 

[Komako] Eu conheci muito bem os meus limites na medida em que descia por aquele fio de luz. Uma viagem que obedecia a uma direção espontânea, sem que fosse determinada por princípio ou fim. Eu apenas estava ali, naquele transcurso, enquanto reconhecia a identidade perecível de todas aquelas imagens.

 

[Lenilde] A matéria de todas as tuas linguagens, Komako. Era isto o que vias na medida em que trafegavas pelas linhas do inúmero. A matéria de que somos feitas. A matéria que eu trago em mim como uma harmonia apanhada na tempestade. As províncias primitivas de todas as transformações, aquela secreta lição dos abismos integrados que me deu a enfermeira Juana Guaita quando estive em suas páginas. Ou talvez seja melhor falar das incríveis esculturas de Iuma Takashi, onde o poder da metamorfose se expande além da matéria e o bronze assume uma personalidade mítica.

 

[Lueji] O livro das ambivalências que ela te deixou escrever em sua pele. O livro das falhas e dos artifícios que nem sempre dão certo. Por isto eu me inclinei para o cálculo das alucinações. O meu temor sempre foi perder a qualidade de um equilíbrio impreciso. Eu preciso a todo instante me perder de mim mesma.

 

[Rebeka] Bem sabes, Lueji, que, de todas nós, és a que mais se aproxima da perfeição. Esse rumor imperturbável da totalidade que só escutamos quando aceitamos as graças incontáveis do mistério. Quando nos livramos da temperança e da justiça como fatores prolongadores de uma mórbida quietude.

 

[Ada] A todo instante eu provoquei o abismo a mudar de forma. Se era para tê-lo comigo, ele deveria ser a mecha inesgotável das mutações. Eu sempre quis escavar todas as lâmpadas, curiosa de saber o que elas escondiam sob o murmúrio de suas luzes.

 

[Bertha] Eu sempre tive inveja do modo como conseguias mover as coisas. Eu queria escrever com o olhar e criar um mundo de objetos flanando no espaço, fantoches sem fios, voos sem asas, uma profusão de milagres. Ada, sempre foste a minha fada dos milagres do olhar.

 

[Ada] Isto é tão bonito de saber, Bertha. Mas devo dizer que essa queimação elétrica que sinto em meu íntimo, que me leva a abrir as portas de tantos refúgios que posso dar a cada objeto, isto tudo tem uma dor entranhada. Uma película sobreposta que dá ao meu olhar uma condição imprecisa.

 

[Emilia] Como uma miragem? Podes te enganar ao transpor as coisas de um lugar para outro?

 

[Ada] Posso ferir alguém, seja com um objeto pontiagudo ou a mudança de significado que o deslocamento permite… É sempre um risco.

 

[Emilia] Quando eu estava caminhando pelo deserto os meus olhos a todo instante renasciam. As areias transmitiam seus segredos a meus pés, as civilizações enterradas de seus vestígios mais antigos, um mundo esquecido que se perdeu em uma fábula de migrações.

 

[Komako] Como a Kioshima mítica que aflorou de minha pele, do arrepio irrefreável em que fui me convertendo em ilha, cidade-marco, máxima consciência que poderia acabar com tudo à sua volta. Não fosse haver conhecido Juana Guaita, eu certamente teria sido devorada por Kioshima e sua obsessão por ser um universo total.

 

[Lenilde] Os pássaros negros que Li Sung convidou para entrar em sua casa foram a minha Kioshima, a falha de transmissão de minhas ideias-forças. Antes de conhecer a enfermeira Juana, meu suplício se prolongou e por muito pouco não fui transformada em uma maldição.

 

[Lueji] Oh tu que és a minha casa pelos ares, eu me arrasto até o limite de tuas metamorfoses… Lembras esta passagem do Livro das sutilezas, Lenilde?

 

[Lenilde] Rebeka encontrou esse raríssimo exemplar esquecido em uma mureta por trás de uma coluna na catedral de Sevilha, quando lá estivemos. Uma edição de 1898 chamuscada pelo tempo. Oh tu que escavas o céu em que te esvais, eu me arrasto por teus corredores de tua precavida loucura

 

[Lueji] Ainda me lembro quando me mostraste o livro dizendo que Rebeka imaginou ser uma espécie de manual de magia sexual.

 

[Rebeka] Não foi bem assim. Lenilde e eu estávamos fazendo um percurso acidental pelas tendas de bruxaria em várias cidades espanholas. Era a viagem de nossos 10 anos de amor. Em cada lugar onde entrávamos procurávamos poções, objetos, livros, tudo com uma picante implicação sexual. Quando chegamos em Sevilha, eu queria conhecer a catedral, e certamente estávamos ainda tatuadas por aquela aura de sexualidade. Quando meus olhos pousaram no livro, ao ler o título me veio, mais do que a ideia, o desejo de que tratasse de sutilezas eróticas.

 

[Lenilde] Eu sei, amor. Foi isto mesmo. Mas a tua eletricidade sempre me propiciou as mais preciosas safiras do desejo. Quem de nós poderia prever que Emilia, ao vagar pelo deserto da Judéia, encontraria um alçapão destampado que em seu íntimo guardasse aquelas cinco folhas de kraft encorpadas, sem uma amassadura, reproduzindo as fotos de uma curiosa exposição de animais exóticos gigantescos. Mais ainda, que o verso dessas folhas estampasse um manuscrito não menos raro retratando o absurdo diálogo entre os dedos de uma mesma mão. Quem o preveria?

 

[Emilia] Nem mesmo eu poderia imaginar que aquela travessia que por vezes tocava o âmago do insuportável me levasse até esse mistério que ainda o tenho na conta do irreal.

 

[Lenilde] Como irreal, se mantemos conosco esses papiros?

 

[Emilia] É certo que os temos, mas deles nada sabemos. Nem mesmo a que tempo pertencem, uma vez que sua autoria é de menor importância.

 

[Lenilde] O tempo é também uma forma de assinatura, e não me parece que caiba satisfazer seu orgulho. Por mais que estejam próximos dois corpos um do outro eles se alimentam melhor do que ainda desconhecem entre si. O pitoresco em uma história não é descobrir a sua origem, mas sim entrever o que ela ainda nos tem para contar. Por isto eu recordo as esculturas de Iuma Takashi, que são uma espécie de antevisão de um passado obscuro. Eu insisto nesse paradoxo, porque é impossível saber se Iuma teve acesso a outras fotos iguais a essas que Emilia encontrou. No entanto, suas esculturas parecem ter saído da memória daqueles gigantescos e assombrosos animais.

 

 

OS CINCO DEDOS DE UMA MÃO ESQUECIDA

 

Palco escuro e vazio. Na lateral direita há um baixo tablado com duas cadeiras com encosto para os braços e uma pequena mesa tendo sobre ela dois pequenos castiçais. Sentados nas cadeiras estão Um e Dois. Quando eles acendem as velas podemos distinguir o cenário com suas três laterais cobertas por agigantados tecidos negros que ocupam do teto até o chão. Desde quando a primeira vela é acesa, eles conversam:

 

– Que se faça a luz!

– Como?

– A luz. Esta que estamos acendendo.

– Sim, é verdade, mas estamos acendendo algo mais do que a luz.

– Não, será sempre a luz, seja uma vela ou uma ideia.

– Talvez a sua vela tenha essa dificuldade de ver o mundo.

– Pelo contrário, a minha possui uma chama que absorve toda a escuridão do mundo.

– Qual mundo?

– O que temos diante de nós.

– Ora, o mundo se estende por muitos mais ângulos.

 

Assim que as velas são acesas e enquanto eles falam surgem em cena três outros personagens que aos poucos vão levando para o palco cubos com 70cm de base, ensacados em um plástico escuro. De repente um dos que estão sentados se levante e indaga a um dos que estão de pé:

 

– Você tem acaso um pedaço de queijo?

– Queijo? E por que eu teria um queijo?

– Seus motivos não me interessam.

– E quais os seus motivos?

– Ah isto sim, eu quero mudar de tamanho.

– E um pedaço de queijo tornaria você maior ou menor?

– Maior, bem maior, no momento eu quero ser maior. Para ser menor eu teria que molhar o queijo no leite.

 

Dois permanece sentado na cadeira, enquanto acompanha a conversa entre Um e Três. Quatro e Cinco haviam saído e agora retornam ao palco com mais dois cubos. Dois indaga a Três:

 

– Para que vocês estão trazendo esses cubos?

– Você quer saber a ideia dos cubos? Talvez seja melhor indagar a eles.

– Aos cubos?

– Há sempre uma possibilidade que eles respondam.

– E de que me serviria sabê-lo?

– A sua curiosidade estaria assim acobertada por uma nova onda de mistério.

– Qual?

– A de haver descoberto cubos falantes.

 

Escutamos a risada de Dois, que se dirige aos dois outros personagens:

 

– Ei vocês, é verdade que esses cubos falam?

 

Cinco responde:

 

– Isto eu não poderia dizer, pois jamais ouvi um pio deles.

– Nem um gemido, em meio a esse deslocamento incompreensível?

 

Quatro responde:

 

– Nenhum deles jamais se queixou?

– E tens ideia de qual seria a queixa?

– Nunca se sabe. A história prova que todas as obsessões por entender o futuro nada conseguiram.

– Que história?

– A única. Essa que nos enganamos sonhando que a temos.

– Bobagem. A história é um retalho do tempo.

 

Um interrompe:

 

– Quem de vocês tem um pedaço de gengibre?

 

Cinco responde:

 

– Para que diabos queres gengibre?

– Para mascar e ficar invisível.

 

Quatro indaga:

 

– Que maldita vontade essa agora?

 

Dois confirma:

 

– Está incomodado com nossa conversa.

 

Quatro e Cinco conversam:

 

– Mas isto nem mesmo de conversa pode ser chamado.

– É verdade. Estamos vendo até que ponta a língua se mantém fora da boca.

– Talvez devamos deixar a língua descansar dentro de uma dessas caixas.

– A imensa língua dos descabimentos.

– Uma delas em cada caixa, naturalmente.

 

Três interrompe:

 

– Vejam o cenário que está surgindo!

 

Um retorna à cadeira, ao lado de Dois:

 

– Talvez seja a hora de descortinar algum mistério.

 

Dois se dirige a Três:

 

– Ei, encontrou aquele pedaço de queijo?

 

Três confabula com Quatro e Cinco:

 

– Aquele é doido. Imagina que pode crescer mastigando um pedaço de queijo.

– E o outro que pensa que pode ficar invisível comendo gengibre!

– Olha, nós viemos aqui apenas para entregar esses cubos, acho que deveríamos ir embora.

– Não, fiquemos mais um pouco, quem sabe o que pode acontecer!

– Vejam a imagem surgindo ao fundo…

– O que pode ser?

 

 

– Um de nós diante do imenso.

– Não existe isto. A imensidão não passa de um ângulo furtivo.

– Claro que existe. Há sempre um momento em que um de nós é maior do que tudo.

– Porém não maior do que todos.

– Ser maior do que todos é apenas uma ilusão?

– Tanto quanto ser menor.

– O que a imagem nos diz?

– Nada que sirva como baliza. Porque cada um de nós pode ver algo distinto do outro.

– Mas essa imensa escultura de bronze…

– Não passa de algo que se agiganta ao nosso olhar.

– Sim, uma carranca bem grande.

– Ou uma miniatura colocada em ponto estratégico do olhar.

– Basta visitar a sala em uma hora em que não haja ninguém.

– O que está acima de nós nem sempre nos é superior.

– O contrário também se aplica.

– Conversa fiada. Um gigante é sempre um gigante.

– É verdade. Ele não tem como ser menor. Porém um anão pode ser maior.

– Que tal se os dois entrarem em uma sala de espelhos?

– Talvez se percam olham para a altura que aparentam ter.

– E uma vez perdido jamais voltarão a se encontrar.

– Perdido? O que está perdido?

– O que não sabe onde está.

– E o que está faltando achar?

– Um espelho mágico. A vida só começa quando o encontramos.

– Alguma ideia de onde ele esteja?

– Nunca se sabe onde se esconde. Certamente em um desses cubos.

– Dizem que os espelhos não conseguem enganar a si mesmos.

– Com o tanto que nos enganam nem seria preciso.

– Um espelho só é espelho quando reflete algo.

– O que não falta no mundo é algo que seja refletido.

– Como qualquer coisa que dê sentido à nossa existência.

– Como um beijo?

– Um beijo?

– Sim. Não há melhor modo de reinventar o mundo do que uma boca nova.

 

Enquanto conversam entre si eles cinco reviram de um lado a outro do palco os sete cubos. Suas falas imprimem uma balbúrdia quase sem nexo. Como se apenas falassem e não se escutassem. Um sugere que retirem os cubos de seus respectivos sacos.

 

– Hora de ver o que esses cubos escondem.

– Talvez sejam espelhos.

– Pouco importa. O que quer que eles ocultem uma hora terá que nos dizer algo.

– Como uma pequena chama cansado de afastar a escuridão.

– Como um cantil que reluta em secar.

– Mas não se comparam a sede e o medo da escuridão.

 

Um a um os cubos são retirados dos sacos. Cada um deles revela em suas faces imagens variadas que são como consequências daqueles projetadas no fundo do palco.

 

– As imagens se repetem.

– Como uma floração de miragens.

– Um torvelinho de devaneios.

– O efeito de alguma droga.

– Uma salada de espelhos.

– A dor remoendo até não caber mais em si.

 

Dois, com o dedo de uma mão apontando o centro da outra:

 

– Cadê o queijo que estava aqui?

 

Todos respondem:

 

– O rato comeu.

 

Dois reage:

 

– Mas vejam bem. Nem sempre as coisas vão de mal a piau: esta noite sonhei que estávamos em um palácio de pelica.

 

– Uma luva?

– Sim, mas uma luva palaciana.

– Sem portas ou janelas.

– Apenas um imenso salão.

– Posso continuar?

– Conta esse sonho meloso.

– Não temos mesmo mais nada o que fazer.

– Que infames.

– Não adianta xingar, pois somos inseparáveis.

– Agora isto. Nenhum de nós jamais pensou nisto.

– Conta.

– Não havia no que pensar.

– Mas agora talvez haja. Estamos aqui por um tempo que suprime quaisquer expectativas.

– E no que pensaríamos?

– Em como escapar dessa miragem?

– O sol deve estar por trás de tudo.

– Insistes nisto.

– Ele não tem mais nada a dizer.

– Não se trata disto. Observe a imagem que surge. Um dragão que se retorce sem saber onde fica a própria cabeça.

– Mas sempre dependerá do ângulo…

– Nada disto. Um pedaço de alma será sempre uma ratoeira carregada de ataduras.

– O prazer não conta com os teus insultos.

– Não gritas no ouvido de meus ressentimentos.

– Alguém nos livre dessas desgraças furtivas.

 

 

– Não importa o que se diga. Será sempre um dragão que não sabe ler os escritos que acaba de encontrar.

– Eu posso ler para ele.

– As luzes que se apagam traduzem o sobressalto de árvores insones.

– O amor lavra os seios murmurantes e o ventre fresco da última promessa.

– Quem mais acredita nisto?

– As imagens necessitam uma boca que lhes ensine a pecar.

– Alguém me traga a confidência mais próxima.

– A argamassa florida dos mistérios.

– Há mais de cinco semanas estamos aqui e há manhãs em que acordo sem saber o que dizer, como se não pudesse pensar em nada.

– Mas há sempre uma história por contar, não?

– Talvez, mas… e quando não nos lembramos de nada?

– Inventamos, deixamos a loucura aflorar.

– Ou repetimos a mesma história, até que ela se recuse a ser contada.

– Como a noite em que entrei no quarto escuro e ouvi a minha mulher chorando. As suas lágrimas roubavam toda a cena. (risos)

– Do que diabos você está rindo.

– Se o quarto estava escuro como você a viu chorar?

– Seu imbecil, muitas vezes o que ouvimos traz em si toda a sorte de imagem.

– Não ligue para ele, termine a história.

– Ela chorava e de repente as lágrimas foram interrompidas por um disparo.

– Ela se matou?

– Foi o que pensei e acendi a luz transtornado. Quando olhei à minha frente o quarto estava vazio. Não havia ninguém ali.

– Talvez ela estivesse em outra parte, se matando naquele exato momento.

– Eis algo que jamais saberei, porque eu me perdi naquele quarto…

– Como assim?

– Eu simplesmente jamais encontrei a saída.

– Mas você está aqui agora.

– É outro mistério que duvido alguém possa explicar.

 

Há uma chuva lá fora. O palco é um abrigo dessa dilatação selvagem do tempo. Os dedos tênues e cavilosos se estreitam e alongam como serpentes inatingíveis. Um quer para si a eternidade fumando seu cachimbo negro. Cinco retalha o labirinto espinhento para melhor distribuir os pães. Dois interroga as hipóteses sobre as lágrimas aturdidas dos sonhos. Quatro quer sair dali o mais rápido. Três contempla a impossível fuga de seu vizinho.

 

– Como alguém que quisesse partir hoje mesmo…

– Eu decomponho as cordas com que atravessar o abismo…

– Uma noite exige do corpo que ele seja bom para o amor…

– Eu estendo o absurdo como um lençol apavorado…

– Como alguém que quisesse ficar até o último instante…

 

Os dedos estavam escritos na efígie irônica de seus fugazes conhecimentos. Cada um deles um pássaro morto que a qualquer momento poderia despertar.

 

– Luzes por toda a noite. Eu quero abrir uma casa dentro da outra.

– Eis o que faremos: vamos abrir uma fresta por onde espiar a fera que tem sonhado conosco.

 

 

– O olhar é um peixe que aprisiona o pescador em seu anzol.

– O boi é uma prateleira repleta de pássaros testemunhando a mansidão do acaso.

– Não me digam que estão vendo peixes e bois no corrimão dessa imagem!

– Um feitiço descreve a idade de cada palavra.

– As parteiras cegam o sol com sua ilusão de nascimentos.

– Alguém conte outra história. Ainda vamos ficar muito tempo submersos nessa bacia fosforescente.

– Aprisionados como sardinhas que herdaram um oleoso abrigo metálico.

– Os ratos tiram a sorte para ver a quem cabe o último pedaço de queijo.

– Este é o jogo da morte.

– Passageiro admirado com a inércia que lhe força a saltar da miniatura do trem sobre a mesa.

 

 

– Aquela porta eleita se recusa a deixar passar a última sombra.

– Não haverá diferença alguma quando as escolas se converterem em prisões prematuras.

– O quadrante mortificado onde todos os centauros agonizam.

– Quantas vezes os nossos moldes foram tirados em gesso?

– Com o firme propósito de converter em estátuas as nossas reflexões.

– Como se o amor não passasse de um culto.

– Ou gatos banidos do milagre das quedas.

– As nossas oscilações são tão íntimas dos espelhos que sofrimento algum duraria mais do que o efeito de uma cintilação.

– Quantas vezes a beleza caudalosa castigaria seus corpos?

– Nem mesmo ela acumulou lenha suficiente para as estações frias e abandonadas pelos relâmpagos.

– Algum livro que se possa escrever com os olhos fechados?

– As chamas se reproduzem com a exatidão dos abismos sacrificados.

– Como uma lâmpada de sete gênios?

– Como a lenda torta confiscada por um relógio.

– A memória tem os seios translúcidos.

– Não

– Não o que?

– O sexo grita como um vício inconcluso.

– Sim. Mas o que é este não solto como um animal indiferente?

– Um não cortesão como a letra viscosa procurando desfigurar uma palavra.

– Que palavra?

– Ah agora queres saber? Não digo.

– Não?

– O que era aquele primeiro não?

– Uma antevisão.

 

 

– Uma peleja de almofadas úmidas…

– Um casebre deslizando pela encosta gelada…

– A melancolia de um ferrolho na janela abandonada…

 

Retirados da bacia, ainda encarquilhados de frio, os cinco dedos tremiam ofegantes, sem que houvesse uma gota de fogo por perto que os aquecesse. Uma trégua para flexões como um segredo que convém elevar o espírito. A mão cheia de lágrima. A terra violada. Aquela jornada logo teria que seguir…

 

 

O SONHO AGITADO DE EMILIA AHMADJIAN

 

Aquela noite eu precisava de uma janela para acompanhar os vislumbres de um sonho que havia criado uma centelha superior às dimensões de minhas horas de sono. Uma janela que tivesse confiança em suas veias metálicas, no piscar de suas ilusões do interior e exterior. O sonho imitava um confronto de sombras, a selva devota a espectros que nos desconhecem. A casa que nos desafiava a entrar e sair em seus acidentes. A velha casa onde vivi com todas elas boa parte de minha vida, a juventude de tantos caprichos. Ali estava ela, no sonho, porém na forma resumida de uma maquete no centro enegrecido do ambiente. Uma maquete decorada pelo vazio onde se podia sentir o sabor de um vento irregular. O sonho naquele momento me dava o ângulo de ver a casa desde a varanda, entrevendo, com a permissão de uma porta aberta, a ausência de móveis no interior da sala. Era impossível não recordar a época em que a varanda ganhara uma vida turbulenta nos levando a revelar as intimidades mais insensatas. A varanda havia nos afrontara a mostrar tudo o que poderíamos ser e nós atendemos com perturbado gosto as suas obstinações. Na medida em que fui dedilhando aquele cenário os vultos em miniatura de minhas amigas foram se desenhando até a percepção de seus contornos. Ada, Berta, Komako, Lenilde, Lueji, Rebeka. Quando elas morreram, eu pude finalmente aceitar que as suas reminiscências são um ideário de máscaras que fui delineando em minhas andanças pelo mundo. O lugar aonde elas me levaram, as comidas compartilhadas, as vertigens paralelas, os lábios do caos.

O corpo de Rebeka como uma serpente elétrica submersa nas águas mais escuras. A travessia de Lueji em volta de uma esfera desgarrada. O caderno de anotações de Lenilde onde as letras dissimulavam luzes e trevas. As areias descrevem os saberes do vento. A casa abriga tantas miragens que a engrenagem dos milagres trocava de significados a toda hora. Por vezes uma gravidade sem consistência e logo o voo de pequenos monstros em volta de suas tragédias. A casa sucede como uma tarefa de esquadrinhar o acaso. Uma pequena mesa retangular, com pouco mais de um palmo de altura, se arrastava sozinha vindo lá de dentro até o centro da varanda. Ada se agachava no interior de uma caixa que flutuava no ar. Bertha imitava o murmúrio de suas meninas provocantes que ninguém evitava no ouvido. Komako banhada em suas águas vulcânicas como um roteiro de subterfúgios. A casa comia as aparições por onde quer que elas brotassem. As obscuras razões do mofo estavam escritas muito antes de nossa morada. O absurdo recolhia falsos testemunhos. As evidências pareciam pertencer a outra ordem. Um ritual de penumbras vagando pela casa. A maquete sonhava comigo. Jogava com a sociedade secreta de suas paredes.

Lenilde contava os fantasmas que pretendia embarcar nas páginas de um romance. Lueji se fechava na melancolia de uma de suas esferas. Rebeka embaralhava o conteúdo de sete caixas destampadas. Quando os primeiros peixes começaram a surgir eu percebi que a maquete era um aquário e que a memória estava submersa na água preciosa do que estava por vir. Komako era a primeira a acordar e acertava os relógios para as horas imprevisíveis. Bertha se encontrava sempre nos últimos detalhes da costura das sedas azuis de seus anjos. Ada engolia as sombras de olhos abertos como um farol que garantisse a pesca no temporal. A casa se repetia em numerosas tentativas de renascimento. Os acidentes disfarçados vigiavam as intervenções extenuantes do desejo. Nenhuma de nós sabia mais no que acreditar. O aquário iludia o testemunho da gravidade. O sonho havia perdido o endereço de novas vítimas. Não houve como fazê-lo confessar que outros planos ele tinha para o jantar. A casa era uma companhia solitária do abismo.

Uma súbita névoa força o olhar a dilatar a magia de seus vislumbres. Como alguém que estivesse sempre criando na plenitude da escuridão. A casa reproduzia as faces inacreditáveis de seus códigos. Embora o sonho não me permitisse ver senão a varanda, dali de sua perspectiva oceânica – o aquário era a fantasia de um mar sem fim – eu poderia roubar as imagens fugidias, o mobiliário imaginário e as cicatrizes nas paredes fiéis a seus tremores de terra. Debruçado sobre os destroços de uma noite mal dormida o sonho pescava os vultos a quem eu poderia contar as histórias desaparecidas em outros dias. As cenas não se deixavam perturbar e entravam e saíam pela mesma porta aberta da varanda, que dava para o interior inexplorado da casa vazia. Apenas os peixes guardavam a memória daquelas fontes profundas. Certa vez, quando estive em Manizales visitando o Centro Espírita Mundos Paralelos, encontrei uma dançarina de cabaré que há muito vivia oculta em meu íntimo, guardiã em outra época de moinhos perdidos e adegas abandonadas. Ela me havia escrito uma carta, que foi ditada pela senhora que me atendeu.

 

– A carta é o tesouro que até hoje ela não sabia como te entregar.

 

Como um fogo de artifício renomeando as luzes dissipadas. Ao ler a carta a voz da senhora era outra, da dançarina árabe que se dizia chamar Lucía Shemakhi.

 

– Um rio cogita oferecer à noite a lenda enterrada em suas águas, a história do amuleto guardada no íntimo de uma pedra negra e seu olho de profanações, a fúria arcaica de um livro que dava passagem para as orações submersas que recriavam os reinos prodigiosos. Que sejas a noite e que sejas o rio, e durante o percurso, sendo um e outro, que permaneças dedicado à provisão de mitos análogos. Uma cidade nascerá em uma das entradas entrecortadas desse ritual. À sua porta alguém te aguarda. Confia que a sua descrição anunciará uma notável evidência.

 

Parecia inacreditável que aquelas palavras estivessem ocultas em meu íntimo. A pedra negra caiu à minha frente quando eu vagava pelas areias famintas do deserto. Diante de seu sinal eu fui transcrevendo no ar os nomes das seis mulheres que constituíam o tesouro da minha imaginação. Não importa de onde elas venham ou o que trazem à memória para que eu entenda o que devo fazer. Talvez eu tenha que partir. A pedra negra parecia conter uma remota cidade embutida em uma de suas faces. Sua estranha forma, oscilando entre o fosco e o metálico, mudava quando menos se esperava, por vezes dando a impressão de uma caverna ou de um inclinado casarão. Ao fechar os olhos os grãos de areia introduzidos em minhas pupilas pareciam criar a arquitetura de nossa casa, um Brasil delirando na Palestina, querendo não mais sair de mim. Eu teria que voltar a qualquer instante e a hora parecia ser aquela. A pedra negra era a hora que há muito eu deixara escapar. O sonho se retorcia querendo despertar. Em um canto inferior do aquário havia um pequeno duto fechado. Era a hora da vigília e retirei do orifício a pedra negra.

Enquanto o aquário esvaziava eu tinha a sensação horripilante de estar me afogando, debatia os braços tentando escapar. O sonho saía de uma noite para outra. Ou era a noite a mudar de cenário. A casa recuperava suas formas e cores, a gramática de seu mobiliário, os nossos corpos iam se materializando. Elas estavam ali comigo. Eu havia chegado. O sonho alcançava aquele estágio de nitidez e verossimilhança que a realidade poucas vezes pode compreender. Eu me agitava feliz até o último instante em que meu corpo foi refeito. Não havia mais distância entre nós, a maquete se tornara uma lembrança como qualquer outra.

 

 

O CONFLITO DO ESPELHO

 

Como método, o realismo é um fracasso total.

OSCAR WILDE

 

As dores divagam pela casa como enigmas aflitos. Eu te vejo do outro lado do espelho e torço para que esperes por mim. Finjo que me reconheço nas aderências desse mundo absolutamente indiferente aos meus anseios. Os fatos deverão todos desaparecer agarrados à sua mania de perfeição. Cada um de nós, do lado de cá dessa intenção de realidade, tende a ficar cada vez mais isolado, os seres repugnantes que se limitaram a encobrir os sinais de outras vidas. Aqueles que oscilam entre o espelho e as cortinas, os que escavam eternamente a mesma ferida, como se procurassem as raízes de suas angústias em lâminas de um microscópio míope. Nossas comédias purulentas nos fazem chorar. Como o extravio de obras que não tiveram tempo de melhor ocultar seus segredos. Eu te imito indo até à cozinha, esquentando a água para um chá, acariciando a perna esquerda com o pé direito. As nódoas em nosso passado vão perdendo audiência. Muitas coisas preferem não ser interpretadas. Como essas dores que tremulam sob a escada, insignificantes até que alguém as assuma. As reminiscências fracassaram pela escolha que fizeram de parecerem reais. O homem é um selvagem que foi exagerando seu fascínio pela vida edificante. Desinteressado no significado de seus assuntos, rugia de satisfação ao destruir tudo aquilo que a sua imaginação convertia em arquétipo. As sombras hipnóticas boiando pela casa, a triste mulher retratada em uma tela na sala que à noite se ouvia chorar, o assédio de uma paisagem que forçava a janela do quarto. Os meus truques perderam o sentido. A arte ficou para trás. Somos todos investigados por um dramalhão criminoso. Tanto nos misturamos às vítimas que já não há mais a quem responsabilizar por nossos atos. As dores nos concedem uma última refeição. A alma de um homem condenado está açoitada pelos conceitos mais desprezíveis que orientaram a sua existência. As larvas decompostas sob efeito da desidratação de seus métodos. Tudo para chamar a atenção antes da injeção letal. O corredor da morte como uma galeria de arte. Até onde a poesia teria se tornado perigosa. É óbvio que as perdas foram se acumulando na latrina. O assunto nunca foi a lâmpada queimada do mistério. Ainda estás do outro lado do espelho. Eu não consigo me livrar da impossível realidade. Eu vejo o mesmo quadro todos os dias. Muitos dizem que é seu, as gerações se iludem com seu teatro perverso, as cores caem de moda, os cultos suspiram, os vultos esvaziam os bolsos, a literatura retoca seus males, todos sabem que ainda é o mesmo quadro, porém a ilusão transforma os dragões em beija-flores. Um passado para cada sarcasmo e o código de acesso a seu camarote aveludado. O teatro é uma síncope que manifesta sua própria ideia do absurdo. O teu corpo esvaziou o meu. Tanto me dediquei a te amar que não dei pela falsificação das mortes, a mudança das marés, as carroças que nos afastavam dos símbolos. Havia um claustro em cada cenário e uma sutileza crescente das escolhas manipuladas. Depois não havia mais nada. Somente o teu corpo cada vez mais distante do meu. As emoções perderam sua forma física. Os sentidos se exprimiam de forma confusa, embaralhados, despedaçados, derivados de outras indiferenças. A imaginação esgotada como um quebra-cabeças perdendo suas peças. Agora era tarde para o anonimato como método. A criação predestinada a todos. A inabilidade de colocar as mãos sobre o peito de um romance pitoresco. Todos os dons. Todos os transes hipnóticos. Toda a louça no armário. A humanidade fazendo o possível para se desfazer de si mesma. Enquanto eu te busco como uma delicada metáfora. A minha mão parece adentrar a água do espelho ao encontro de teus seios. Aceitas as letras que guardei para ofertar a teus mamilos flamejantes. Os líquidos travessos de uma veemência sedutora. Essa frequência lasciva da moral. A vontade intransigente de fazer as coisas certas ainda que desconhecendo as suas origens. A confissão dos mitos e a indolência ofegante de suas imagens caídas. Quantos dias se passaram e ainda éramos uma rara semelhança. O reflexo exausto do amor que fizemos há pouco. O êxtase crepuscular de nossos suores. A dialética empregada nos beijos. As dores como uma introdução alquímica após haver vasculhado a essência das perdas. Os rastros da imaginação são intensos como o horror da casa abandonada. Eu dirijo meus passos por seus escombros e não te encontro mais. Sob o véu da ilusão devo ter reservado um lugar para teu nome. Porém a simetria dos acidentes me deixou em mil pedaços e estou muito cansada para refazer a nossa jornada. Espero que me entendas. Deixemos o mundo carregar consigo sua destruição espontânea. As ilusões acabam por acobertar seus próprios fracassos.

 

 

REBEKA NACERI NAS PEÇAS QUE FALTAVAM

 

Se eu vou receber anjos em minha casa devo estar preparada porque um dia também entrarão pela mesma porta os demônios. A casa não se atreve a mudar meus hábitos, mas vejo como ela se contorce quando meu corpo salta de uma amante a outra e seus cuidados são negligenciados. Ela me distrai com sua cozinha enfeitiçada, a árvore dos temperos, as escadas cantarolando pelos corredores. Subir ou descer é como sair da cidade a caminho do campo ou retornar com os vícios consumidos. Talvez se eu trapaceasse o baralho refizesse meu destino. Mas a verdade é que não tenho ideia se ainda quero ficar por aqui mais algum tempo. Envelheci sem me dar conta. Desde os primeiros desenhos eu sabia que era outra a mão que me conduzia. Uma partilha de dons e a sutil percepção de que aqueles personagens todos já existiam e me revelavam seus gostos incomuns. Eu dizia ao mar que não viesse mais me ver. As horas não poderiam mais me ferir. O meu traço era horrível, embora tenha me servido para explicar o motivo daquelas cenas e os diálogos repercutidos por tantas páginas. Não sei o que fizeram de mim todos eles. As noites batendo à porta me pedindo sexo. Eu queria me punir por aquelas vozes. No entanto, eu me reconhecia nelas. Seguia riscando traços e frases. Meu corpo queria me beber em sua taça vulgar. Deixei que sua mão me masturbasse e apenas sorri para a miserável truculência do acaso. Que nome dar àquilo? Ela se confundiu e me disse:

 

– Pode me chamar de Juana. Meu nome é Juana Guaita. Eu posso ser o seu anjo ou demônio. Só não me peças nada em troca, pois há muito que me encontro em mim mesma. Alguém está me devendo uma vida inteira e certamente não receberei mais essa dúvida. Se fizermos sexo agora será a minha última vez. Ou decerto nem isto ainda terei. As escadas não têm piedade de meus passos confusos. A louça suja empilhada não tem piedade de minha enxaqueca. Nada em mim tem piedade de meu vômito.

 

Seu corpo desnudo levita no centro do quarto. Nada mais nele parecer ter significado. As carnes perderam seu limite. Não há como voltar a ser ela. Eu deveria seguir sem Juana. Sem a sua penitência angustiada, sua lamúria bíblica, o que ela houvesse guardado para seu último dia. Eu deveria agora ir ao mais apagado refúgio da alma. Desistir dos pecados recolhidos e das páginas ainda em branco. Não me reconhecer em ninguém. Não dizer mais nenhuma palavra.

 

 

A ANTIGUIDADE CLÁSSICA DO INFERNO

 

– Este foi o dia mais longo de nossas vidas.

– Por que dizes isto, se o dia ainda está começando?

– Nenhuma de nós poderá explicar o que está por vir. A cafetina Elvira Broghèse foi quem chegou mais perto, ao mudar o nome de suas meninas todas. Nem mesmo tu, Rebeka, com as tuas visões submersas no rio, definiria um vocabulário para as sofridas personalidades de nossas amigas.

– Tens razão, Lenilde. Eu mesma me indago de que forma regeneramos a memória quando ela se deixa infiltrar de testemunhos tão veementes. Recordo Lueji naquele hospital, como ela ia e vinha no tempo, sempre trazendo consigo um relato indescritível. O tempo era seu leito. Graças a ele Lueji se refazia das anomalias de seu centro espiritual.

– Sempre que a víamos transpirando era fácil compreender que ali estava se formando uma memória de acidentes quase como a representação de uma atividade divina. Lueji tinha um coração tomado de empréstimo de uma deusa esquecida.

– Isto se algo queremos explicar.

– É verdade. A vigília da imaginação nem sempre produz espelhos visíveis.

– Eu sempre te amei por essa tua ourivesaria de imagens sincopadas. Ah minha tão meiga Lenilde, ainda hoje me dá calafrios a dialética de nosso amor.

– E como chegamos até aqui! Os atributos de nossa persistência…, tudo aquilo que inventamos com a força infatigável de nossa cumplicidade…

– Decerto que as meninas esticavam as nossas cordas. Vivíamos toda aquela tensão simbólica, o modo como vibrávamos como se nossos corpos passassem de um a outro, como animais sensíveis adivinhando os impulsos um do outro. De algum modo nós éramos todas amantes…

– Lembras que por vezes eu te dizia que Komako estava nos escrevendo do Japão. Era como se eu acasalasse com a sua escrita. A vitalidade de um complexo manuscrito que poderia estar se formando em qualquer parte, mas que eu o sentia bem dentro de mim. Era tanta a minha certeza que jamais perguntei a ela se de fato me escreveu alguma carta.

– Não creio que a realidade nos sirva de laço para abrigar alguns mistérios.

– Quando Komako nos contou de seu cativeiro, onde ela sentia como seus os pulsos amarrados daquela entidade…

– …Ainoã…

– …Sim, ela mesma. Como a imagem de um cordeiro bíblico na etapa sacrificial da humanidade… Esse tema aviltante da vítima santificada, esse horror que é tanto o fetiche da ressurreição quanto a agonia espúria da presunção. Rebeka minha, eu não paro de pensar nisto, em quanto confundimos o mistério com o misticismo vulgar. Envelhecemos sem que o mundo mudasse um símbolo de lugar.

– Quem consideras tenha sido Ainoã?

– Uma cornucópia de males, um paradoxo. Como o rio mais velho que se torna inumerável pelo esquecimento de suas águas. Ainoã é a regra indissolúvel do sacrifício. Sem ela, nada toma vulto no dia seguinte. Sem ela, jamais Komako teria voltado para nós.

– Todos os filhos são bastardos. As religiões não nos fornecem material para pensar o contrário.

– É certo, como nossos pés são ligeiros, e como cruzamos os rios antes mesmos deles estarem diante de nós.

– Como uma corrente de práticas que não trazem a divindade para nosso sentido de justiça.

– Uma torrente elétrica, Rebeka. A convulsão de uma deidade. Aquele corvo que acabara concluindo que jamais deveria voltar à cena do crime.

– Eu ainda sonho com justiça.

– Eu sei, meu amor. Eu ainda amo a tua pureza.

– O sol marcava as horas no dorso de Ada, ela sempre caindo de uma frondosidade cosmogônica de seu desejo de vida. Uma de nossas virtudes é que posso te dizer o quanto desejei Ada sem que isto afronte contra a extensão de nosso amor. Eu gritava seu nome da língua-relâmpago de um sonho, uma noite de perspicácias, uma harmonia nômade, eu a queria entre minhas pernas. Eu sempre pensei em ti como o meu zênite primordial, Lenilne. Mas houve momentos em que eu pensava em Ada como a tradução de meu desassossego.

– Ela era mesmo isto. Veja como falo nela, no passado. Ela está por chegar. Como todas as outras

– Não desistes…

– Não é isto. É que até mesmo o caos requer uma energia primordial.

– Por que achas que chegamos até aqui? A nossa idade será sempre a mais alta, e continua subindo, como todas as coisas que crescem na direção contrária do que prevemos.

– Este é o modo de nos beneficiarmos das previsões?

– De algum modo a necessidade de prever o passo seguinte é uma fraqueza da alma.

– Eu quero morrer coxa de mil sentidos.

– Não importa. A integridade física está aquém das intempéries do espírito.

– Um pouco de vida para cada uma de nossas mortes.

– Uma medida fora de esquadro do que somos nós e de que modo nos desfazemos da própria evolução da espécie a cada claudicação existencial.

– Um pedaço de cada um sendo desfeito… Como a cremação dos sentidos preparando a psicanálise para seus casulos aproximativos.

– Aquele momento em que imaginamos que um deus possa aceitar um suborno, que a própria ideia de sacrifício não vá além da ruptura de uma inibição moral, cujo passo seguinte seja a miragem de pradarias subterrâneas, de vulcões ramificados em variadas formas de destruição, até mesmo em uma tradição de catarses amaldiçoadas.

– É como estar aqui e ao mesmo tempo não ser possível localizar nosso paradeiro.

– Sim. A honra perdida através de uma forma dilacerada. O tribunal das coisas propícias. A ascensão das sombras gastas.

– Era para estar aqui a qualquer hora. No entanto, ainda estamos só nós duas. Elas virão?

– Evidente que virão. Lembras das cartas de Emília? Quem pensaria nelas como as variáveis de um risco, as buscas desesperadas de uma identificação?

– Eu não as li.

– Ninguém as leu. Ela mesma não sabe de que lado da escrita esteve, se do lado da pluma ou da imaginação.

– Algo como a interrogação do inimaginável?

– Nem tanto. As coincidências por vezes perdem sua forma. O rosto de uma mulher na cena de um crime talvez não seja mais do que a ideia insustentável de uma traição.

– Alguém a estaria traindo quando suas areias eram líquidas.

– A ideia de estar no deserto é uma aporia: talvez falte água ou ar, talvez os símbolos desejosos sejam demoníacos. Ninguém nos define por aquilo que desejamos ser. Os pequenos monstros que se alimentam de nossas vidas não passam de resoluções contrárias aos nossos difamados triunfos da eternidade. Não estamos aqui senão para a perturbação dos sacerdócios.

– Uma escrita ao contrário?

– Não, não. Um jeito de encontrar a letra no calcanhar de cada ambivalência simbólica. Eu considero que as nossas vidas são um casulo atormentado pelos sonhos, cujo pesadelo uma noite qualquer as liberta dessa batalha venerável entre os opostos. Eu quero ser a linguagem livre de seus anéis. Um mito que não venere a si mesmo. Um herói que se recuse a cortar a cabeça do inimigo. Essa ilusão de que uma lenda, talvez, não possa subsistir senão acabando consigo própria.

– Talvez por esta razão as fotos de Bertha sejam aquele espelho agônico, a esmeralda desvanecida, os espaços desorientados.

– Não sabemos nunca onde estamos.

– A física é o lugar da madeira em combustão.

– A tradição do que vemos que por vezes corresponde ao que tocamos.

– A visão como um elixir que se multiplica em meninas erráticas que ali estão para a perversão da cruz e da espada em seus próprios corpos. Elas próprias não sabem a que resistem. A prostituição é um maço de quimeras. Um jeito das sociedades figurarem como espectros de uma justiça cobiçada. Um simbolismo poético.

– As árvores que não despertaram na língua destinada um dia acaso poderão participar da recomposição da moral perdida?

– Não. Temos observado que a mãe não pode ir além de seus filhos, que as manchas são a correspondência com o branco inesperado, que o abismo não é senão uma expressão de si mesmo.

– Elas virão ou não?

– Para onde vamos é como a fornalha de uma medida imprevisível. Elas virão, sim.

– Nós estamos sob a medida do mistério. O segredo do ocultamento. A cobiça cíclica.

– Todas as imagens são tão cegas que o céu parece uma fraude de proteção de sombras, um prenúncio de vertigens removidas, uma pausa de chaminés – o enigma do chapéu que jamais seria um chapéu.

– O olhar assim tão caído, a sabedoria resultaria em nada.

– Como quem deserta uma cifra. E não á mais onde encontrá-la.

 

Os dias estão contados. São poucos e podem sucumbir a qualquer momento.  Porém ninguém sabe disto, além delas, e é melhor manter o sigilo. Lenilde e Rebeka podem finalmente ser o labirinto revelador de sua vida. O encontro com as cinco amigas define as camadas de vertigens na relação entre elas como que aspectos adversários de um labirinto onde cada uma ali fosse responsável pela descoberta da outra em si mesma. O espaço não permitido, ou não desvendado, é a mãe do sinistro que não revela o que somos. As lápides que ativamos na memória como sintomas de uma precária imortalidade.

Quantas filhas poderiam se chamar Eleanor Elbe? Como fantasmas vadios que surgiam com a noite e antes que o sol despertasse recolhiam seus ruídos e faíscas, e desapareciam reunidos em uma mesma entidade. Os rastros deixados eram uma mancha, uma cicatriz, uma impressão de desordem, um aceno do caos, talvez porque estivéssemos olhando a cena com os olhos trocados, talvez o primordial não fosse a identificação da filha e sim a revelação do paradeiro da mãe. Quantos princípios foram distorcidos pela consequência verbal desse descuido, dessa perda de abrigo, desse corpo pendurado que parecia dançar como um cadáver?

As filhas desaparecidas, seus nomes esvoaçantes, as coordenadas simbólicas do óbito, o desatino, as células repartidas perdendo sua unidade mística. A mãe é o monstro com sua precisão indomável. O mago mimado que concentra no inconsciente os instintos de toda uma época. A ninfa que repassa os grãos da ilusão por toda a tribo de arcanos menores, inquietos diante dos truques da harmonia. Era para ser assim. Deixar a selva trovejar dentro da cidade. Mostrar aos infiéis que as imagens precedem os sentidos. Uma vida coberta de adorações é um manequim pervertido, um mantra fugitivo, um algoritmo extraviado. Era para deixar a ausência fervilhar no centro de cada filha. Para que elas aprendam a pender de incontáveis raios. Para que as suas mãos um dia se encontrem após tocar todas as formas do infinito. As filhas devem aprender a nascer antes de suas mães.

O mar cresce no interior de todos os símbolos de fecundidade. As filhas se reúnem em volta de uma mesa onde se riem e preparam as marionetes de suas mães. As miúdas protagonistas de seus desvarios. As filhas travestem essas bonecas articuladas para que sejam deuses e humanos. Para que sejam a consciência da dor e da ilusão. Para que através de seus fios, de sua eletrificação ambulante, sejam a representação dos enigmas. Esses pequenos fantoches teriam que ganhar vida e ajudar a escrever a trama frívola das religiões. Assim as filhas não iriam nunca querer permanecer em casa. Talvez algumas deixassem ali alguma máscara controlando o teatro das semelhanças. Qualquer narrador veria nisto uma saturação motora dessas estatuetas difamadas. As máscaras são um mar reanimado. Seus arcanos desconhecem a escrita dos tambores. Não há uma mediadora entre elas. As filhas de Lenilde e Rebeka são elas mesmas. E suas amigas a elas se uniam como a dádiva da assimilação.

 

– Elas finalmente chegaram.

– Elas teriam que chegar.

 

Toda realidade só é profunda se reconhece suas falhas. As filhas são uma miniatura desse reconhecimento. A sala da casa estava voltada para o centro de um universo impossível de identificar. Evidente que as sete mulheres entreviam cada uma delas um modo de transfiguração de sua aderência à realidade. A vidência de uma dimensão terrestre. A associação da mobília à matriz de suas distinções esotéricas. Quantas elas poderiam ser em meio àquele enxame de transfigurações. Impossível pensar nelas como alguém que buscasse apenas o zero do sacrifício. Por que são todas elas mulheres? Um miolo eletrocutado, um espinhaço brotando de cada esqueleto retorcido, a muda representação da agonia. Quem viria nos trazer os últimos sinais primitivos de uma humanidade que não fez senão repetir o mito humilhado de sua impotência? A mulher é a nudez não degradada. O mais temível de todos os símbolos de abolição da espécie, porque trazer em seu íntimo a chave das ressurreições. A sala é um verbete do inferno que ainda conta seus últimos números e desafia a todos que queiram contestar suas fraudes.

 

– Eu não sei a que horas exatamente viemos parar aqui. Como nos conhecemos? Ada, quem de nós foi a primeira a cair do céu?

– Eu lembro que chegamos juntas em um carro, uma ideia um tanto vaga, Bertha. Sabes que um dia eu pensei que eu pedalava pelo subúrbio, sem rumo algum, e vi então um carro entrando em uma ruela que dava na casa de Lenilde. Eu não conhecia ninguém, mas fui como que chamada por aquela cena. Mas de repente, não havia mais bicicleta e eu me vi saindo do carro.

– Isto apenas diz o quanto estamos integradas a um mesmo mistério, pois eu sempre me senti uma ausente de tudo, não é fácil ter a própria vida sacrificada pela visão constante de outras vidas. Os mundos precedidos de sentido, o razoável como uma manifestação do incompreensível. Eu nunca disse a ninguém onde estaria. Num instante, estou com vocês. Mas eu não sabia quem eram vocês.

– Emilia, ninguém procurou sacrificar-nos.

– Talvez seja verdade, Bertha. Porém eu jamais quis estar aqui. Eu não imaginaria o sol de sofrimento de minha vida, as aflições, como eu poderia passar boa parte de minha vida indagando sobre esses símbolos dissociados de tudo em que eu sempre acreditei. Eu não sei nada de vocês. Nós todas nos encontramos em uma espécie de cilada cósmica, sinistra como um panteão sem fundamento. Um deus sem nada. Um mistério que não traz em si significado algum. Eu ainda me sinto assim. O que exatamente eu faço entre vocês? Talvez a minha vida se explique por uma maldição, mas eu não teria que acreditar nisto?

– Alguma de vocês tem algo a dizer sobre a violação do corpo? Vocês parecem seres de outros mundos. Eu fui fodida de muitas formas. O pai canalha, a ausência da mãe, o professor sedutor, o frentista de quem acabei fugindo porque era a miserável vida que foi designada.

– Já perdemos os nossos nomes?

– Não, Komako, continuamos a descer por um fio degradante, de promíscuos reinícios. A lava putrefata de nossas imagens terrestres. Como a comparação entre tempo e espaço como um valor cósmico. Os meninos circuncidados na Polinésia são os mesmos judeus batizados pela violação de seus corpos?

– Ninguém me viu chegar aqui. Pode ter sido no carro ou na bicicleta. Não creio que este seja o ponto. Por muitas encarnações eu acreditei que o mundo era apenas isto.

– Eu nunca passei por aqui para entender o que éramos.

– Alguém morava mesmo aqui?

– Nós sentíamos, Lueji, a tua presença conosco quando estavas naquele hospital em Cuiabá. Eras um mistério guardado em um cofre comum de nossas carnes.

– Mas não havia nada a ser guardado.

– Engano teu. Guardamos sempre a nossa obviedade, como receio de que o mundo nos responsabilize por aquilo que a todo instante poderíamos evitar.

– Já que estamos aqui, eu tenho uma dúvida: quem escreveu o romance da Lenilde?

– Não acreditas que tenha sido ela?

– Não é isso. Li Sung era minha figura revelada, alguém que acabei por aceitar que Lenilde poderia ter vasculhado a minha alma a seu encontro. De repente, surge Lavínia Di Lúvia e a própria Li Sung se deixa subtrair de sua vigilância nos mistérios da imaginação. A quem associar essa…

– …dissociação?

– Será este o termo? Os personagens acaso estão nos protegendo de algo?

– Talvez tenhas razão, mas temos que nos perguntar sobre os mais personagens trazidos à corda bamba de nossas vidas.

– Pensas na Juana Guaita de Komako?

– Sim. Por que não?

– Mas ela trazia à cena o sacrifício de um cordeiro.

– É verdade. No entanto, não há reconciliação entre o mistério e seu desvendamento.

– Mas nunca há isto.

– Então quem somos? Ou melhor: o que vale indagar isto?

– Os roupeiros guardam as nossas almas descosturadas.

– Por vezes não somos mais do que horas desgastadas.

– Não viemos aqui para isto.

– Estamos velhas, Komako. A minha vida não se inspira mais em nenhuma ruptura. Já nem me vejo mais em uma encruzilhada. Nada me é mais inaproveitável. O que tenho é apenas o que tenho. Não penso no que perder ou absorver. Os mistérios se foram. A própria realidade foi eliminada. Como algo pela manhã. Jamais gostei de café. Olhos as frutas e os pássaros que ainda me acenam.

– Mas poderias estar renascida como um feitiço…

– A quem importaria, minha amiga? Nem eu mesma sei se existo. Sei que estás em mim, e por onde eu andar eu te arrasto comigo.

– A vida é um feitiço.

– Sim. Nós sabemos disto. Mas não há resina na ressurreição. O que por acaso volte a ser…

– Crês mesmo nisto?

– Não há onde guardar as crenças.

– Talvez, Lenilde, devêssemos dizer adeus ao que virá. É da natureza dos mitos exagerarem na transfiguração dos símbolos. Um dualismo de miragens. As inversões frequentes de feitiços duplicados. Então talvez fosse o caso de nos desfazermos dos emblemas do tempo.

 

 

AS NOITES PASSAM LIGEIRAS PELA ESTRADA ABERTA

 

O tempo é um cavalo maravilhoso. O desembaraço de suas curvas evidencia as sombras iluminadas que leva dentro de si. Os afrescos desvendados no espírito de cada uma das sete mulheres – sobretudo quando regressaram de seus retiros e se decidiram a morar na mesma cabana – se tornaram pastos de uma alegoria multicor. O bailado de formas e dimensões em uma correspondência de tons que se expandiam como a música em uma escala infinita. A devoção da esmeralda. O excesso demoníaco do azul. A miséria da terra abandonada do preto. Cada uma daquelas mulheres crescia dentro de uma cor, no interior de um tonel de relâmpagos com que transbordavam o horizonte. A idade lhes ensinara a ocupar os bastidores empalhados do excesso e da aparência. Por toda a casa elas se reconheciam como feiticeiras vindas do céu. Cantavam, preparavam a comida, faziam daquela convivência uma região extraordinária de encantamentos.

 

– Eu vi a noite tingida de um azul viscoso descer pelo caramanchão ao lado da varanda. O azul conserva algo na noite ignoto. Uma camada de mistério que nenhuma outra cor revela.

– Eu não sei, Ada. Para mim essa punção inesperada quem nos dá é o vermelho, ao encorajar o fogo a devorar todos os limites.

– Quando as duas se beijam atingem a espiritualidade do símbolo. Vocês duas não. Eu me refiro às duas cores. Um combate amoroso de fusos, a tecelagem do incêndio e do trovão. Azul e vermelho se fundem como os verbos de um furacão. E guardam em seu frasco de enigmas a acentuada embriaguez de duas proporções.

– O elixir das luzes que fundamentam o renascimento. A geometria dos espíritos reflorestados. Tens razão, Emilia. A vida não se refaz na luz ou nas trevas, na exuberância da claridade ou nos tumultos da escuridão. A abundância criativa está no colóquio lascivo entre o vermelho e o azul. Somente quando se encontram sangue e sonho a linguagem se realiza, em requinte híbrido.

– Eu cheguei a pensar que Rebeka e eu alcançávamos nosso ponto alto de fusão na paixão pelos extremos. Um dia li algo que me fez mudar de ideia:

 

A tua cabeça é redonda como um céu banhado de vinho

A chuva de teus cabelos molha as estrelas do sangue

Eu tenho as minhas cinco vísceras crescendo dentro de ti

Todas as partes de teu corpo sabem ler os meus vendavais

Juntas percorremos a lonjura de nossos humores

O mar de ânimo na dádiva de nossas portas-orifícios

 

– É um cântico que se reproduz substituindo as pedras, um jogo em que algumas palavras-chave são permutadas aleatoriamente buscando não um sentido prosaico, mas a sagração do sublime, a força do espírito que se revela fora da igreja ou na ilha. Não é mais comunhão ou solidão, e sim a múltipla forma do acidente, que se expande sem nunca se repetir. Foi quando compreendi que nós duas éramos mais do que simples fusão de contrários. Certamente a vinda de vocês todas, quando decidimos morar juntas, fez com que se abrissem todas as portas e janelas do labirinto.

– Como se a biblioteca perdesse a conotação de refúgio.

– Exatamente, Lueji. Não nos escondíamos mais uma na outra, como noites que se encaixam em busca de uma repentina inversão. Nossos corpos deixaram de ser esconderijos. As idades não se acumulam, elas simplesmente se multiplicam e ganham novas formas e lampejos. Penso que somos sete cabanas que se abastecem de maravilhas.

– As sete casas de todas as passagens pela terra. As sete casas que ao final são apenas uma: a casa imaginária.


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

 

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