as noites que habitam as primeiras casas do espasmo
essas noites pelas quais nos fazemos passar e
cintilam
na plenitude das cores que só identificamos no
íntimo
de todas as vozes que suspiram seu nome esquecido
essas noites que ao entrarem nos dias se desfazem
através delas nos perdemos e somos seu reino aflito
cada vez que pronunciamos um destino decifrado
elas embaralham nossas vozes e todas somos uma só
LIVRO DAS SUTILEZAS, 1898
PRIMEIRAS CENAS ILUSÓRIAS
Talvez nós
devêssemos olhar bem atentamente o que está se passando. Li Sung despertou e se
pôs a abrir as janelas da casa para que entrassem todos os pássaros. Os poucos
que lhe atenderam ao chamado o fizeram em silêncio, deixando o canto lá fora.
Uma enigmática quietude tomou posse do ambiente, o transformando na cena
estática de uma pintura viva.
– O que estás achando?
– Não sei. Queres mesmo começar assim?
– Certa vez eu vi um quadro, retrato de uma jovem oriental, em seu rosto
ia se desenhando toda a cena de uma casa vazia invadida por pássaros negros que
buscavam alimento no chão. O que me impressionou foi o modo como aqueles
pássaros se moviam na pintura, o quadro me pareceu verdadeiramente vivo. Eu
podia ver os pássaros bicando o piso da casa.
– Isso poderia estar presente em teu romance, a vida evoluindo no rosto
de cada uma de nós. Uma descrição precisa desse quadro seria como experimentar
a própria vida correndo em nossas veias. Se é verdade que nós somos filhas do
que imaginamos, as coisas ocultas são um santuário onde descobrimos o mundo a
que pertencemos.
– Por maior que seja a precisão com que uma cena é descrita, ela jamais
equivalerá à imagem que evoca no olhar de quem a observa. Não preciso me
preocupar com a exatidão das coisas. Elas estão sempre modelando outras
vertentes.
– Tens razão. É esta minha maldita mania de cortejar a perfeição.
Continua teu romance, Lenilde. Vou preparar a mesa lá fora.
Rebeka abre
a porta da sala e se aproxima da mesa na ampla varanda. Distribui a cada um dos
sete lugares sua parte de papéis, lápis, taça, ao centro da mesa o balde com
duas garrafas de vinho resfriadas no gelo. O crepúsculo rascunhava no céu os
primeiros sinais de sua chegada. Parada na porta, Lenilde observa a leveza
feliz dos movimentos de sua amada. Ela era dotada de um sentido de exatidão
talvez invejável. Os objetos dispostos na mesa permitiam esse entendimento.
Seus olhares logo se encontraram.
– Nós somos tão indefesas debaixo da imensidão desse céu. Se o horizonte
abrisse agora as suas portas e espalhasse alguma forma de terror nós não
teríamos a menor chance.
– Não penses nunca nisto, ‘Beka. As portas do horizonte estão sempre
abertas e as forças que por elas adentram em nosso mundo são o reflexo daquilo
que somos. Se trememos de terror, em nossa vida exaltada, não será outra a
colheita que teremos.
– Tens sempre razão, ‘Nilde. Desde que trouxe para a memória aquela
criança…
– …Eleanor Elbe, tens que dizer, este era seu nome.
– Sim, desde que Eleanor entrou em mim eu tenho pensado nos fiapos da
vida fora de lugar.
– Não te esqueças que os deuses vivem fora de lugar, que as abominações
fazem parte do mundo e que elas constantemente mudam de forma e lugar. Não há
como acabar a matança nos mundos inferiores. A mesa ficou perfeita, graças ao
apuro de teu trabalho, a tua dedicação ao desenho das curvas certas. Vem me
beijar.
O céu
fechava as cortinas para o ato noturno daquele dia. Pela estradinha que vinha
dar na casa apontavam as cinco bicicletas que traziam Ada, Lueji, Komako, Emilia
e Bertha. As sete mulheres se reuniam na primeira noite de cada lua nova, como
se renovassem as circunstâncias imperativas de suas vidas. Lenilde as recebia
com um abraço enquanto Rebeka servia o tinto nas taças. O negro tecido da noite
desafiava o invisível a tomar acento entre elas. Lenilde fez a saudação que
antecedia o primeiro gole da bebida. Os olhares abasteciam de alegria o lugar.
Elas eram o puro alento do renascimento, seus espíritos providos de
encantamento. Komako foi a primeira a perceber, no entanto, que um pequeno
vulto sorrateiramente vagava pela brancura de um olho de Rebeka. Uma pequena
dose de silêncio mesclou-se com o vinho e Lenilde intercedeu:
– Em nosso último encontro ‘Beka trouxe consigo, ao despertar, um sinal
de asfixia, desde então sua respiração por vezes parece conter um sortilégio.
Ela tem melhorado, graças a um unguento que lhe preparei para massagear as
costas. As plantas labiadas ajudam a dissipar essas pequenas manchas que
corrompem a respiração. Está bem melhor, porém a verdade é que ela se deixou
comover pela criança se alimentando com a carne de sua mãe morta, o corpo
espedaçado pelos morteiros, todo aquele cenário de horror que a guerra
abençoava como certo. Um paradoxo mítico.
– Confesso que aquelas cenas também me visitam com alguma constância –
disse Bertha –, embora elas nos tenham sido apenas narradas por Rebeka.
Pobrezinha, ela esteve ali, presenciando a repugnância daquela guerra.
– Não se trata apenas de recordar, eu me sinto tragada pela atrocidade,
vejo a menina dentro de mim, vasculhando em meu íntimo, procurando mais pedaços
de carne de sua mãe.
– Foi então o vulto que eu vi passar em teu olho – falou Tomako.
– Eu tenho essa menina em meu ser, ela não me deixou mais. Hoje quando
li o que ‘Nilde escreveu sobre Li Sung parece que regressei àquela vida, é como
se ela não tivesse simplesmente passado.
– Quem é Li Sung? – indagou Komako.
– É a personagem de um romance que ‘Nilde acaba de começar. Li Sung abre
as portas de sua casa para a entrada de pássaros, porém eles entram em completo
silêncio. O que é um pássaro sem o seu canto? Diante do silêncio daquelas aves
eu comecei a pensar nos mundos inferiores, nas conexões entre o bem e o mal, o
modo como os grandes espíritos erguem as colunas sobre nossos corpos e nos
lembram que estamos na terra para sofrer. Nós somos as herdeiras dessa
soberania do caos. Em nossas preces uma névoa primordial vai tecendo os véus
que cobrem esses espíritos triunfantes. Por isto nos vestimos de branco, para
que as silhuetas do sacrifício sejam talhadas em nossos corpos.
– ‘Beka, Li Sung foi apenas uma centelha fora do lugar, não sabes como
lamento haver começado com ela esse meu romance…
– Não tens que lamentar nada, meu amor.
Enquanto se
desenrolava a conversa Ada, Lueji e Emilia rabiscavam nas folhas à sua frente.
Lueji e Emilia usavam o lápis, enquanto que Ada criava uma aquarela singular
com o vinho, mesclando digitais e unhas. As três pareciam arrebatadas para
outra paragem.
Lueji mantinha os olhos fechados enquanto desenhava em um ritmo que ia
aumentando na medida em que parecia ceder ao domínio das imagens. Rapidez e
leveza combinadas a caminho de um frenesi que começou a exigir novas folhas de
papel.
Emilia tinha um traço forte, a ponto de quebrar a ponta do lápis, o
desenho parecia ranger, a vida naquelas figuras enigmáticas começava pela voz.
Vultos espigados que não ocultavam a falácia de um martírio. O prejuízo das
formas transcrevia as penas imputadas a cada um daqueles sacerdotes cuja cabeça
não parecia humana. Sentia-se neles a imposição de uma desconcertante ereção.
Os aparentes borrões sanguíneos de Ada eram uma oferenda às almas que
deixam a terra para fazer a vontade de seus duplos. Os pequenos riscos feitos
com as unhas criavam uma espécie de ritual de deformidades em meio ao recital
de uma grande nuvem vermelha cujos segredos eram ordenhados em uma variação
esmiuçada de tons.
TRIBOS DA MEMÓRIA
– Eu quero que o meu trabalho seja guiado pelos fios da palmeira. A
força com que eu aprendo os caminhos do sol. A direção dos ventos se
ramificando no enlace dos fios. Eu pego na palma e agito seu destino para que
ela me dê um sinal, uma trilha na floresta que faça renascer os deuses a cada
manhã. Eu mostro a meus filhos e netos que não há maneira melhor de acreditar
que as coisas podem mudar. Talvez eles aprendam, eu não posso garantir, porque
o meu papel é mostrar a todos que há uma verdade preparada para cada
ensinamento, e que aquela árvore rege a fortuna de nossas crenças. Nós somos o
povo da palmeira. Este é o meu trabalho, a devoção com que alimento a minha
alma. Eu sou a primeira pajé-mulher em nossa aldeia. Nossos homens estão
perdendo o frescor antes mesmo de dobrarem o espinhaço. E muitos foram
engolidos por essa guerra que de tanto ser vizinha já invadiu nossas terras.
Flechas e lanças não podem muito contra o inferno que sai da boca dos morteiros
invisíveis. As palmas ensinam a chuva a molhar cada recanto da terra, porém os
morteiros não querem aprender nada sobre a vida que destroem. As miragens iam
passando de uma flor para outra, porém a rosa da morte fazia com que nela
cessasse todo movimento.
Vó Niara
possuía a determinação dos ventos. Sua voz repercutia por toda a aldeia graças
ao timbre decisivo das frases. Ao receber seu espírito Rebeka Naceri sentia-se
alimentada por milagres. Soletrava com suas bênçãos as distinções entre as
palavras brancas e negras, a pesagem dos dialetos, a previsão das grandes
ocorrências. Impossível prever, no entanto, que tenha sido encaminhada para
aquele momento para presenciar o triunfo do horror. Em poucos segundos
contemplou a aldeia repleta de vida, as lebres, os pássaros, a fogueira, as
crianças, pais e mães, as peles de veado e a boca do demônio cuspindo os selos
da destruição. Não houve tempo sequer para perceber o ruído das bombas
transformando a paisagem em cinzas e bagaços de corpos. Rebeka era o espírito
de vó Niara embebido de sua consciência. O manto excruciante do fim de tudo. O
olhar terrificado descobrindo, tão logo a fumaça começou a se dissipar, que um
único corpo sobrevivera àquela tragédia. A pequena Inaiê chorava uma dor
incompreensível. Aos poucos aprenderia que a sobrevivência é a mais grotesca
das penúrias. Vó Niara desfalecia ao reunir últimas forças para que Rebeka
desse à criança uma guia, um aviso para que ela se fosse dali, em busca de
alguma ajuda em outra aldeia. O espírito da velha definhou até sua completa
desaparição. Os olhos de Rebeka ainda ficaram por ali algum tempo, de
impossível contagem, reflexo de abutres se recompondo em negras ataduras. Inaiê
chorava sem reconhecer a pronúncia de seu mundo destruído. Os olhos de Rebeka
foram devorados pela fome de Inaiê, com a pavorosa cena em que ela mastiga uma
carne ressecada sem saber que se trata de um pedaço de sua mãe.
– ‘Beka, ‘Beka…
A voz de Lenilde
tentava trazer de volta a sua amada. As demais mulheres tocavam seu corpo em
gestos improvisando um ritual, um chamado. Menos Ada, que começa a mesclar ao
vinho o sangue de seus dedos rasgados pelas unhas. Seu desenho parecia ganhar
vida e a grande nuvem vermelha aos poucos se convertia em um pequeno monstro
que saltava do papel. Era preciso afastar dali aquela desordem que ia fazendo
com que cada reação se agarrasse com seus extremos. Não havia monstro algum e o
surto de Rebeka foi ordenado pela memória, tudo ampliado pelo automatismo dos
desenhos e os portais alucinatórios do vinho. Komako conseguiu estancar aquela
aflição derramada, todas retornaram a seus lugares na mesa.
– Nós precisamos parar com isto. Essas forças que estamos desatando
começam a ganhar um domínio de nosso espírito. Talvez não devêssemos nos
encontrar por um bom tempo.
– Nós havíamos planejado uma sessão de hipnose – Emilia tinha olhos
iluminados ao falar –, eu estava tão animada de fazer isto hoje à noite. Não
sei o que houve, de algum modo me pus a rabiscar no papel, logo o próprio lápis
foi ganhando identidade, forçando a minha mão, esses vultos cumpridos começaram
a surgir em movimentos lúbricos, uma excitação me tomou, eu acreditava estar
libertando forças que iriam me levar para uma espécie desenfreada de orgia, eu
tremia de desejo, até que ouvi os gritos de Lenilde chamando por Rebeka. Eu
voltei de outro horizonte trêmulo. Não queria voltar. Talvez eu já estivesse
antecipando uma forma distinta de hipnose, em que somos magnetizadas por outras
formas de vida. Mas que não fosse como essa influência do passado, mesmo que de
um passado não vivido, que viesse nos provocar. Não deveria ser como se a
memória fosse saqueada. Talvez uma vida paralela ou algo muito distante do que imaginamos
ser a existência humana.
– Não adianta, Emilia – interrompeu Komako –. Eu presenciei outro
espólio, o da consciência, olhando a agitação de Lueji, cuja mão ia ganhando em
velocidade e sutileza de traços, na medida em que ia preenchendo as folhas de
papel. De algum modo, ela estava prevendo os acontecimentos vislumbrados por
Rebeka, havia uma espécie de proximidade sendo estabelecida, que eu pude
perceber pelo movimento dos dois corpos. Vejam agora como eu tinha razão, olhem
os desenhos de Lueji, são uma fina teia através da qual podemos encontrar as
cenas da aldeia dessa vó Niara cujo espírito vinha se alimentando de Rebeka.
São uma contagem enfebrecida de mistérios, o brilho inexplicável do divino, eu
sinceramente já não sei o que pensar. Nós estamos perdendo o controle. Isto
pode acabar conosco.
– Komako, acreditas que eu e Rebeka devamos também nos separar?
– Talvez seja o melhor, Lenilde. Inclusive eu penso que nenhuma das duas
deva seguir morando nesta cabana. Desconfio que aqui mesmo na varanda nós
criamos uma espécie de centro de irradiação do imponderável. Nossos lábios e
pernas, gargantas e nádegas, vaginas e ombros, estão sendo costurados em uma
máquina invisível, eu sinto como estamos sendo tragadas por uma correnteza,
como se fôssemos a oferenda de um deus disposto a tudo para a perpetuidade de
seus gozos.
EMILIA AHMADJIAN
O deserto
caminha em busca de um refúgio onde pudesse orar. As terras se elevam diante da
monstruosidade de um enigma que roça a exaltação de um deus. De que é feita a
perenidade ao nosso alcance? A voz melodiosa dos ventos guia as formas das
nuvens que a todo instante transcrevem símbolos maiores e menores. Quem pode
resistir à fúria desses fragmentos da realidade? Os desfiladeiros conservam as
cavernas que foram construídas para eles por anônimos antepassados. Por ali os
nativos devem tomar nas mãos o esplendor e evitar a companhia do abominável.
Emilia Ahmadjian sentia as cordas atando os pulsos de seu corpo
espiritual. Reconhecia a gruta dos horrores por seus fragmentos ósseos
espalhados por toda parte. Aquele era o trabalho excessivo de um mistério que
oprime a humanidade muito além de todos os tempos religiosos. Nenhum nome
jamais se apresentou como protetor ou emissário daquelas punições
inconfessáveis. A quilômetros dali Emilia dormia em um hotel, enlaçada pelo
sono após um dia a mais de sua peregrinação pelas ruas de Hebrom. Toda jornada
atende a um chamado. As luzes consomem as entranhas do andarilho. Ele se guia
por um manancial de sinais que decidem a sua vida. O coração de Emilia
tamborilava descompassadamente em seu peito. Sua agonia era o júbilo de uma
sentença que a mantinha paralisada na cama.
Ao abrir os olhos identificava as paredes desordenadas da gruta para
onde fora levada Ainoã, capturada por acólitos de um rei com cabeça de cão,
destinada aos cuidados de mundos favorecidos pelo acaso, desde que jamais
revelasse seu nome. As cordas que a impediam de deixar a gruta eram um plano do
mesmo enigma que mantinha Emilia atada pelo sono em sua cama. Essas duas
mulheres, que não se conheceram em tempo algum, se encontravam alinhadas por
uma orientação mística. O que os olhos de Ainoã deveriam revelar a Emilia? E
esta, acaso teria algo a dizer à outra? Sem que se saiba ao certo se havia a
presença de dois tempos, ou se tudo não passava de uma projeção de inquietações
paralelas, nenhuma falha foi descoberta no selo daquelas transformações.
Emilia e Ainoã guardavam uma presença que não queria se manifestar,
cujas refeições gloriosas eram os manuscritos daquela indescritível agonia. As
duas mulheres paralisadas uma dentro da outra, sem a rubrica venerável dos
caminhos, desconheciam até mesmo a dupla jornada do tempo que lhes habitava.
– O que posso ver talvez se passe bem longe daqui. Como um
labirinto repleto de fugas. Um lugar reservado para as notações do abismo.
Seria bom dizer que sim, a tudo que a alma transmitisse, dos arredores extintos
de cada método até o centro de cada mínima certeza. As árvores fazendo
reverência às escadas, pois graças a ela o horizonte se tornava menos privado.
A quem corresponde todas as debilidades humanas? Um jogo de transferências e a
cuia sagrada das exceções. Quem mascara o espírito para que ele pareça mais
alto em sua dieta de vertigens? Continuo pronunciando a filiação dessas lâminas,
as folhas ardilosas da semelhança, o dia em que as virtudes não escolhem mais
seus apreços.
Tudo isto parecia estar escrito nos olhos esbugalhados de Ainoã. Ela
assustada diante do que intuía ser o alvoroço de seu destino. Emilia com seus
cordéis blasfemos e a temperatura insatisfeita do cubículo que a retinha. Como
alguém pode ir tão longe para suspeitar de seus hábitos? Talvez seja isto o que
nos guarda a flutuante morada dos deuses. Onde ela poderia estar para que os
lamentos se reunissem e a queimassem viva? Como o jogo do enforcado ou a
fantasia das castanhas. O insulto do que não sabemos. Os gravetos apanhados em
pleno luto, quando vagueamos por entre demônios descuidados, tentando descobrir
a origem de nossos erros. Também os mortos nos expulsam, ainda que
temporariamente, da vida. Com seus bonecos assombrados imitando velhas dores e
sombrias náuseas. Quando Emilia sentiu os pulsos presos à cama era como se uma
velha canção voltasse a lhe perseguir como o fizera na infância:
as noites não se refazem
do susto das frases secas
e quem não conhecemos
nos pede um favor infiel
a minha virtude escapa
por um fio da fogueira
que acendo na noite vasta
e aqui já não volto mais
Uma vez mais era possível ouvir tudo aquilo como se as cerimônias do
tempo não pudessem evitar a repetição. A noite quebradiça ainda era a mesma.
Emilia presa à cama e o mundo revirando em sua memória. Talvez ela devesse
escovar seus cavalos de madeira ou banhar as marionetes, difícil dizer. Como
poderia caber em si tanta claridade em cada golpe do olhar com que Ainoã lhe
requisitava, sem que soubesse exatamente onde? E haveria mesmo uma Ainoã? Ela
aceitaria declinar aquelas visões. Um lugar onde evitar a violência daqueles
ritos. Acaso ela poderia voltar à casa de Lenilde? Como guiar a árvore de seus
delírios até aquela varanda rodeada de amigas, o vinho, a celebração de seus
encantos, como?
ADA GARCÍA
Na margem
leste do relógio solar guarani, quando a tarde indagava sobre os prenúncios de
chuva, Ada García sentada em sua mochila observava a caligrafia das nuvens no
céu. As pequenas sementes de sua imaginação faziam brotar da terra as árvores
bailarinas de sua desejada imortalidade. Era de sua natureza mover os objetos
com o olhar. Longe da conjectura dos sonhos, o olhar de Ada se aventurava pelo
interior da matéria com o intuito de descobrir seus motivos. Mover o mundo era
sua maneira de alterar o destino. Enquanto ela evocava essa dádiva criadora,
ouviu um pesado baque seguido ao risco vertical no céu, despertando um alvoroço
de partículas, o escarcéu de areia e fumaça provocado pela queda de uma caixa
de metal no centro do relógio do sol. Refeita do susto ela se aproximou do
relógio, seduzida pelo mistério e seu objeto. A caixa não devia ter mais do que
uns 30 cm de lado em sua forma quadrada. O tom de seu bronze indicava a
imprecisa antiguidade. Ao tocar nela, temerosa e fascinada, Ada García
descobriu que seu peso não correspondia ao tamanho, de modo que poderia
facilmente retirá-la dali não fosse o fato de que a uma primeira mexida de
ângulo a caixa pareceu esboçar um breve espasmo. Ao repetir a tentativa, novo
tremor se seguiu, desta vez tornando legível alguns de seus traços, vestígios
de alguma escrita que, embora de todo desconhecida, ela inexplicavelmente
começou a ler. Eu venho a ti, meu sangue. Eu conheço as sete verdades
de teu ser. Eu servirei às transgressões de teu espírito. Não me apropriarei de
teus sonhos ou blasfemarei contra o cajado de tuas semelhanças na terra.
Ada tocava no outro lado da caixa e aquele mínimo abalo despertava novas
riscas. Eu sei que não farás ninguém sofrer. Que as tuas mulheres nada
roubarão dos pobres ou dos deuses. Eu te servirei para que os homens não
falsifiquem o teu legado. Tu és pura e eu venho a ti como um olho que fala.
Não havia mal naquelas palavras que se dispersavam na medida em que eram lidas
em voz alta. Ainda menos do que o seu conceito, Ada García não compreendia como
era possível decifrar o dialeto que lhe parecia um elenco de garranchos. Pensou
em suas amigas, nos quase sete anos que distavam desde o último encontro delas
todas. Os algoritmos sossegaram, a caixa voltou a ser de todo imóvel, porém
ganhara um peso excessivo e por mais que se esforçasse Ada não conseguia
apartá-la do chão. Como parte do mecanismo daquele relógio solar, talvez a sua
presença agora influísse na passagem do tempo. Era impossível prever.
LUEJI LLALEJ
A sua alma
vagava pelas frestas de um pesadelo. Uma tempestade de símbolos se retorcia à
procura de um corpo dentro de si. Jornada que atribuísse à convergência a
representação de arcos exaltados e ruínas de areia descrevendo a antiguidade
sem limite de enfurecidos encantamentos. A ventania demarcava o terreno com sua
doutrina de esgarçamento. As árvores queimadas se erguiam como um promontório
assustador. Vinha dali o medo de Lueji Llalej, daqueles disfarces desvaídos que
habitavam a sua memória. Daquelas figuras insepultas que se contorciam ao redor
da escuridão. Libertinagem de vultos esgalhados prescrevendo o reinado de uma
nebulosa de cinzas. Era difícil para ela compreender o que estava se passando.
Lembrava a contagem regressiva que o anestesista lhe havia pedido na sala de
cirurgia, interrompida por aquele turbilhão que lhe arrastava para o centro do
nada. Lueji acredita que enquanto a memória perdure a morte não virá, e se pega
com isto ao ser tragada por uma voragem de farrapos. O cético é um ser sem
pretensão a morder os cenários que a vida lhe consagra. Se alguém lhe indaga
onde reside a alma imagina que ela se esconda nas grandes cavidades do cérebro
ou talvez na glândula pineal. O cético negligencia o mistério e engendra seus
monstros por desoladas estações. Desconhece que a alma se espalha por todo o
corpo, que ocupa cada mínimo fragmento do visível e do invisível, pois
transcreve a floração dos seis sentidos. É preciso ser maior do que deus para
inventar um. E logo deixá-lo crer que emular o criador o torna uma semelhança
renascida e acima de todos os dialetos e portas. O pesadelo de Lueji Llalej era
agora um panteão transfigurado. Uma voz repercute em seu pensamento uma ordem
para que abra os olhos. O lugar onde se encontra – não mais a sala de cirurgia
– é de uma imensidão azul, a sutil ambiguidade de um espaço que a acolhe e ao
mesmo tempo sugere um vazio iniludível. O azul luminoso se encerra em si mesmo.
Não era um céu ou mesmo um oceano. Ela se levanta tomada pela mão do invisível.
Aos poucos, aquele sítio azul sem matéria lhe permite desvelar algumas curiosas
figuras, a cabeça desprovida de cabelos, boca e orelhas. O corpo alongado ia se
desvencilhando de seus contornos logo abaixo do peito, até não haver mais
sinais de identificação de suas pernas. Os três personagens atraíram a sua
presença para perto deles. O silêncio atenuava o vazio e Lueji começou a captar
a reverberação de um discurso que ela recebia com naturalidade. Uma telepatia
manifesta como ela jamais poderia imaginar. Se uma das vozes lhe falava de um
livro ela de imediato o sentia em suas mãos e passava suas páginas invisíveis
em um ritmo impensável de leitura. Se outra voz referia os desastres climáticos
e o mercado de degradação humana em seu mundo, Lueji via surgir diante de seus
olhos as cenas correspondentes. Talvez o tempo não fizesse ali registro de seus
costumes, pois o volume de ensinamentos que recebia não era importunado por
sede, fome ou fadiga. O capítulo dedicado às máquinas de irrigação e técnicas
de aproveitamento dos ventos e da luz solar, assim como o reordenamento dos
ritos de caça e pesca, era composto de livros e imagens em movimento. O olhar daquelas
três figuras lhe dava uma confiança oracular. A pedido deles ela fechou os
olhos. Ao reabri-los se deparou com a retirada do tubo de respiração mecânica.
Sua tranquilidade se dissipara e embora na sala de cirurgia tudo parecesse
satisfatório, Lueji Llalej era possuída por um incômodo destruidor. Ela parecia
não caber em seu corpo, a alma requeria uma matéria maior, talvez tivesse que
escavar abismos por toda aquela substância orgânica. Abstenções mortais,
tremores incontroláveis nas mínimas partículas do ser, a boca seca, os três
sacerdotes indo e vindo em um turbilhão de vislumbres… tudo parecia se
desencaixar a caminho de um conjuro ou de um santuário em ruínas. Talvez
levasse dias a recuperar a inteireza de seus símbolos.
KOMAKO RACHIRI
Kioshima é
uma ilha inabitável, onde nem mesmo o fantástico planta suas árvores. O bailado
de suas erupções desperta com precisão o tinteiro do acaso para que este se
ponha a reconhecer as formas que saem de seu íntimo e conferem àquela pequena
terra visível a relojoaria de seus encantos. O automatismo da lava e sua
caligrafia de vultos em permanente transformação. As letras da alquimia
vulcânica não retornavam nunca ao alfabeto dos tempos anteriores. Kioshima
tinha por princípio de sua linguagem que cada mínimo gesto no mundo será sempre
insubstituível. Como postais da ilusão que descrevem terras onde jamais
estivemos ou a lógica arbitrária das semelhanças. O indecifrável somente assim
permanece até o instante em que o livramos do fantasma da analogia. Vista do alto
Kioshima parecia um olho do oceano, à espera de um intercâmbio de vislumbres. A
realidade não resiste à envoltura de suas imagens. Pelo fio de uma dessas
imagens suspensas desceu Komaro Rachiri, destinada ao preparo da partilha
numinosa de um catálogo de seres incomuns. A fabulação da lava criou um traçado
de fossas e arcos no interior da ilha, mapeamento de suas idades mais
abstratas. Komaro sabia que não poderia dar uma forma ao tempo, pois Kioshima
era a prova de um tempo múltiplo, escorregadio, irrefreável. Assim como as
cores de seu quimono as formas da ilha eram infinitas e possuídas pelas mais
excepcionais expressões do olhar. Acolhidas pelo imprevisível, a mulher e a
ilha se encontrariam pela primeira vez.
BERTHA MALIK
Decidida a
não ir a lugar nenhum, Bertha Malik desenhou no chão à sua volta um círculo de
proteção. A magia ancestral do carvão filtra a loteria dos espelhos, as imagens
são invertidas, a influência dos mundos inferiores não possui serventia. Desde
que saíra da casa de Lenilde Fablas que buscou um lugar onde pudesse se tornar
invisível. Nada havia assim no mundo. Não importa o truque que pratiquemos,
somos sempre, por algum inevitável instante, apanhadas pela visibilidade. O
homem tem obsessão pela consistência de suas virtudes, não importa que elas o
emancipem ou traguem para um inferno primordial. Essas faíscas da compulsão
desalinham a multidão de seres que cada um de nós leva consigo. Bertha queria
fugir dessa anomalia tornada real. As noites passadas em lugarejos obscenos buscando
conhecimento e energia, praticando as ciências mais avançadas dos rituais
sexuais, nada a tornou invisível aos olhos da terra. Nem a distância ou a
diminuta estatura. Não se tratava de um truque que pudesse conciliar uma cama
dura e um espaço arejado, um acordo entre entidades evocando as melodias de
incansáveis orgasmos. Bertha chegou a acreditar que ao embrenhar-se pelo
labirinto dos excessos seu corpo poderia alcançar o momento em que ninguém mais
desse por sua presença na terra. As estatuetas de todos os cultos são a
garantia de suas falhas. O totem é um momento de fraqueza. Os vultos que
participam de um coito desenfreado não estão preparados para durar, pois isto
acabam caindo em desgraça quando se apegam aos rituais. Uma frase trazida pela ventania
noturna teve em Bertha o impacto de uma revelação: o culto deforma o
mito. Apócrifa, talvez escrita por alguém destinado a dar à vida as suas
causas destrutivas, aquela verdade teve a firmeza de sugerir a ela traçar um
círculo de carvão concentrando ao centro seu corpo imóvel. Era preciso aceder a
esse lugar despida de hierarquias ou desejos. Somente assim poderia ser a
precursora de si mesma.
LENILDE FABLAS
Todos os
pássaros são um só, como as folhas manuscritas de um livro. Na mesa colada à sacada
de um bar, diante do porto, Lenilde Fablas seguia escrevendo seu romance. Assim
como o céu, o livro mantinha a primazia do voo. Desde quando Li Sung constata
que ao abrir as janelas de sua casa para a entrada de todos pássaros, apenas
uns poucos acatam o chamamento e mesmo assim adotam a mudez ao adentrar a sala,
o livro se inquieta como um corpo que ao despertar lhe falta uma parte de sua
alma. A ideia da obra como um quadro vivo era fascinante, porém a ausência de
canto arriscava deixar as páginas em branco. Li Sung recordava as águas
ensanguentadas do lago, os corpos mutilados boiando, os gritos espancados ainda
nos lábios daquelas mulheres e crianças. As águas recolhiam a brutalidade de
uma escuridão inumana. As casas incendiadas por toda a margem ainda guardavam
visões de espancamentos e estupros. Somente os pássaros sobreviveram a toda a
barbárie. Caberia a eles guardar a memória daquela podridão. Li sung não
entendia a relutância dessas aves em ecoar ao mundo a dimensão de tanta
maldade. Trabalhos forçados, execuções sumárias, violações sexuais, há certos
lugares na terra que parecem destinados a uma repetição laboriosa desses
conflitos quase sempre de natureza religiosa. Quando Lenilde Fablas conheceu a
história de Li Sung sabia que poderia ser o seu pássaro desejado, o pássaro
cantor que era todos os pássaros, o livro que seria todas páginas daquela
tragédia.
– Eu não quero nunca voltar a este lugar. Tento esquecer seus traços, as
cores surpreendentes, os jogos desconhecidos das sombras, as abstrações
evocando figuras em seu íntimo, como folhas desenhando árvores em seu dorso, o
horizonte se multiplicando como uma analogia apavorada. Era para não confiar
nos alimentos. Evitar abrir os arquivos das cerimônias adormecidas. De um jeito
ou de outro, era melhor esquecer os elementos antes mesmo de conhecê-los. Cada
um de nós sabe que água dar a cada jardim. Como refrescar a possessão da terra
sem que ela se converta em trevas. A memória não pode ser tratada como um
rival. Mesmo as coisas desaparecidas diante de nós acendem uma busca que não
pode ser extenuada. As noites também são dias nos pátios abertos de nossas
crenças. Os deuses vão até a margem do rio dos sobressaltos, com um estrépito
reconhecem a filiação de seus fantasmas. Quem poderia imaginar o entardecer à
margem de rio desgastado por um culto às ruínas? Está bem. Há deuses para tudo.
Esta poderia ser uma página do romance de Li Sung. Porém até onde arrastar o
tremor de suas contradições? Ela não me dizia nada. Escrevia em mim a intriga
de seus costumes. Eu poderia ser a senhora de seus mares, de suas casas
noturnas, do culto de suas mulheres antecipadas. Mas ela talvez não confiasse
em mim o suficiente para me dar a chave de seu santuário. Eu fui uma deusa
proscrita. Tanto que devotei meus dias a tentar compreendê-la.
REBEKA NACERI
Nos últimos
meses ali passados, diariamente Rebeka Naceri se banha nas águas do Juruá. Ao
mergulhar a cabeça seus olhos são devorados por lampejos que descrevem um
cenário em evolução. Uma caravana de miragens. O rio guarda um deserto em seu
íntimo. As histórias repercutem fragmentos invertidos do mundo com que
sonhamos. Os vultos nômades que buscamos dentro de nós, ao serem expostos,
tornam a vida diferente do que fora idealizado. Como se a vigília fosse rival
do sonho, uma opulência do paradoxo, cadeia de instintos desfigurados. Somos a
luxúria que consome nossos corpos. As casas que frequentamos são um desapego, a
bofetada na consciência que não nos deixa criar laços. Quando precisou de algum
dinheiro Rebeka se fez passar pela putinha de Elvira Broghèse em seu suntuoso
prostíbulo em Contamana. As noites transcendiam em todas as formas de luxúria.
A devassidão, no entanto, desaguava na precariedade dos dias. Despertada na
cama com leite e castanhas, ela submetia seu corpo aos caprichos da cafetina.
As suas fendas eram perseguidas com esmero. Elvira dedilhava ânus e vagina como
se propagasse novas virtudes. As leis da natureza humana decretam que todos
somos vítimas, por mais que acreditemos no contrário. Os caprichos da
ambiguidade ridicularizam a moral e as religiões. Os demônios que somos levados
a expulsar de nós arrastam consigo uma fatia da deidade que nos regozija. Os
jogos licenciosos nos tornam impotentes e mentirosos. A imaginação só encontra
lugar no sofisma. O prazer pela indiferença define os melhores truques a cada
novo episódio da existência. A crueldade não se deixa incomodar pelas lágrimas
ou arrependimentos. Os horrores se alimentam de todas as mulheres com o
inconfundível estilo de seus ornamentos. E iludem os homens de que são
dominadores e inventivos. Rebeka Naceri jamais teve um homem dentro de si. As
meninas índias com seus olhos de fogo, encontradas à margem do rio, faziam as
honras de seus deleites. Cada uma delas era coadjuvante da memória de seus dias
com Lenilde Fablas, a primeira mulher e guia indispensável. As meninas
apreciavam seu corpo nu afundando nas águas do Juruá. À noite acendiam uma
fogueira para ouvi-la contar os vislumbres daquele mergulho, enquanto lhe
massageavam a pele com resinas das árvores locais. Os animais virtuosos se
reviraram em seu íntimo propiciando uma rendilha de pequenos orgasmos
entrelaçados com as histórias que ela recordava. Rebeka sabia que um dia teria
que deixar aquela região. Já estava por se concluir o ciclo de sete anos e
teria que percorrer o caminho de volta à casa em que vivia com sua amada
Lenilde. Seus olhos refeitos por aquela imensidão fluvial, pela volúpia das
linhas sinuosas, aclaravam a inexistência de retornos. Ela sabia que atenderia
ao chamado de uma outra vertigem. Os sete anos de andança lhe ensinaram que não
teria nunca mais que se conter. Por mais que lhe fosse oferecido um quadro
negro onde combinar as carnes gastas com as deportações do desejo, ela teria
que esbugalhar os olhos da graça, dando vida ao repugnante abismo das coisas
inanimadas. Era hora, portanto, de tornar a volta um ir em frente. Na próxima
semana tomaria a primeira barcaça.
LINHAS INCERTAS DO FULGOR
Quais a
verdadeiras realidades secretas hoje quando o mundo se encontra aniquilado pela
infâmia? As viagens proibidas como falcões peregrinos com as asas decepadas. Os
barcos naufragados na cabeça do céu. O corpo busca outras fortunas. Os cordões
aos quais atar um horizonte múltiplo. Lenilde Fablas abre a porta da velha cabana
e é recebida por uma saudação luminar de móveis e utensílios, a casa inteira se
manifesta renascida em seu vigoroso esplendor. Sete anos se passaram e seus
artefatos cintilantes foram guardados em um cofre, selos e discos de sua
energia vital. Lenilde vai ao armário da sala e retira de uma de suas gavetas
os incensos de âmbar e suas pequenas bacias. Como uma devota do olho que
brilha, ela acende os vários incensos pela sala, deixando um último para o
centro da grande mesa na varanda. Ao sair observa curiosa a aproximação de um
táxi, que traz consigo sua amada. As duas se abraçam como se a eternidade
tivesse sido suprimida. Aquele abraço revelava as linhas de um decreto cósmico.
Lenilde e Rebeka celebravam o júbilo de seu grande amor. O centro sexual da
transmutação que alcançaram nos sete anos em que ficaram afastadas no plano
físico. O abraço abençoado pelo âmbar, uma luz sublime as envolvia enquanto
elas se desfaziam de suas roupas. Cada movimento de uma era seguido pelo da
outra, com suas células partilhando o jorro ilusório da cena, as imagens indo e
vindo no quadro em que o visível se refugiava. Cada toque materializa as
inúmeras formas do deleite. Rebeka sentia o cheiro recôndito de sua amada, o
espectro fulgurante da umidade. Suas orações naquele templo vaginal despertavam
uma rigorosa ascese. Lenilde era uma árvore remota atraindo a radiatividade
como objetivo iluminado de seus êxtases. Seus fluidos eram um rio crescente
rompendo a casca do ovo alquímico. As duas não queriam acumular nada além das
emanações de seus orgasmos. Alternaram as posições sem a mínima moderação. Só
os tontos permanecem castos. O mundo sensível é uma suculenta orgia dos
espíritos. Em meio à magnificência de seus excessos um carro se aproxima da
cabana e quando elas percebem a chegada de uma interrupção em seus gozos, as
portas do veículo se abrem e dele saem Bertha, Komako, Lueji, Ada e Emilia. Os
sorrisos grafados em seus rostos são arrebanhados pelas risadas de Rebeka como
uma fábula em que o bosque se enche de assinaturas primárias do entusiasmo. As
cinco mulheres se aproximam para aquele abraço múltiplo, um privilégio dado
pelos sete anos que ficaram sem se ver. Os beijos são um instrumento de
reencarnação da força vital. A nudez de Lenilde e Rebeka é contagiante, mas elas
riem e prolongam o júbilo daquele reencontro. A cena inteira não requer vozes,
os risos são a única linguagem audível. Os risos acompanhados pela melodia
volátil do sino de vento que pendia de um dos ângulos externos da varanda.
Lueji foi a primeira a chamar a atenção para o modo como a bacia de incenso no
centro da mesa levitava.
– Não se assustem, meninas – disse Ada –, sou eu, por vezes não consigo
evitar.
– Ah mas nós precisamos saber do que se trata – ponderou Emilia.
– Não agora. Primeiro vamos buscar no carro as surpresas que trouxemos,
enquanto essas duas assanhadas vão por uma roupinha – disse Ada, dirigindo-se a
Bertha e Komako.
Vasilhas com algumas comidas, garrafas de vinho, incensos, uma pequena
caixa alongada, elas todas entraram na cabana guardando o conteúdo daquelas
sacolas, sala, cozinha, gavetas, mesa.
– Eu trouxe esses óleos de semente de uva para as nossas festinhas –
realçou Bertha com um sorriso travesso.
Os pecados são todos veniais. É preciso afrontar a vida para que ela se
prolongue em nosso íntimo. As sete mulheres guardaram si, durante a longa
ausência, a vasta jornada de cada uma, a certeza de que concederiam à casa um
novo batismo de suas almas. A alma de Emilia vinda da Cisjordânia. A alma de
Ada vinda do céu. A alma de Lueji de muito além. A alma de Komako vinda do
Japão. A alma de Bertha vinda de Singapura. A alma de Lenilde vinda de Bachim.
A alma de Rebeka vinda do Amazonas. As noites recolhidas de todos os lugares.
As noites sobre a terra. As noites vagando no éter. As noites que consolidam o
olhar de todos os deuses. As noites que alimentam um mundo sem deuses. As
noites deixadas à porta dos mitos. As noites sem sítio. As noites que serão
sempre as primeiras. Rebeka é o nome de um disco da água. Lenilde é o nome de uma
vinheta do desejo. Bertha é o nome de um círculo de proteção. Komako é o nome
de um fio de luz. Lueji é o nome de um planeta desconhecido. Ada é o nome de um
relógio do sol. Emilia é o nome de um sono cativo. Agora elas estavam ali com a
abundância de tantas vertigens, prontas para entrar em um plano elevado de suas
vidas.
Era preciso mais do que isto. Uma decorrência do insuspeitável. Os
arquipélagos atiçados no interior de cada ilha. Por que essas inscrições
encontradas a perder de vista, essas influências insuspeitadas, as coordenadas
de um mapa imaginário, por que esses espíritos distintos entre si trazem até
elas os assuntos de suas almas mordidas, despedaçadas, desencontradas? Não era
essa a ideia de diferença. O que elas são pode despertar cedinho e abrir a
janela, elas podem assimilar as últimas notícias do horizonte, as provas
deduzidas das dores, qualquer ideia que lhes permita seguir vivendo.
– Como as noites adormecidas ao relento, os beijos deixados justamente
onde acabaram de ferver. Quantas vezes em cada orgasmo nós poderíamos
reaparecer como um culto acabado de nascer? Era isto? Queríamos comemorar
apenas isto em nós?
– Não vamos dizer o nome de ninguém, apenas deixar fluir a multidão de
anjos, a saga de espantos. Nenhuma de nós poderia agora recordar que onde
estivemos era uma reprodução do que aqui vivemos. Por que fomos tão longe para
entrar na medula dessa agonia?
– Um jeito de impressionar o rumo, ainda que perdido. Dar a ele uma
efígie para que cumpra seu calendário de espantos. Ninguém virá nos dizer
quando devemos deixar de crer no que somos. Nada nos estimula a negar as
imagens tangíveis que nos visitam como um farol.
– Era para estar aqui o tempo inteiro, como uma deusa que alugou o
santuário errado? A moça veio limpar o quarto e os pequenos deuses de cascas de
banana se agitavam como se uma assembleia estivesse por decidir a introdução de
um novo hino.
– Seria tão simples assim tornar o insondável a palestra recorrente da
fertilidade. Como uma de nós poderia dissolver o enigma que nos levaria do
ventre ao abismo de tantas consagrações? Com que frequência o mito brinca com
os bonecos transparentes de suas vicissitudes? Quando cremos que o mistério
tatuou em nossa carne a última flama do impossível, ali, na mesma pele, ao
lado, encontramos a remissão ou regeneração de tudo o que perdemos.
– O que deveria ser esquecido, de um modo ou de outro, por que razão
deixa guardado em nosso íntimo uma última pista para a ilusão do retorno? Seria
assim tão previsível que as luzes se reunissem em torno da escuridão, como o
tema central de uma nova percepção do espaço? Que estranha tinta usa o abismo
para manter invisíveis as suas fendas mais disputadas?
– Quanto cabe não se deixar sufocar por esse fervilhar de penumbras? Os
rios serão sempre impetuosos. O horizonte não aceita que voltemos amanhã para
sua casa como um romance assegurado. Caímos o tempo inteiro. Como uma noite mal
dormida ou um mito extinto. Nossas vidas não valem nada até que aprendamos a
recusar seus vícios.
TABULETA DE ESPÍRITOS
Os goles de
vinho se misturam aos sorrisos e falas. Todas sabiam da existência de um
pórtico invisível que daria a aprovação para que elas adentrassem aquele
círculo de associação com o cosmos, a mesa dos presságios e oferendas, a tábua
dos enigmas revoltos do firmamento. Ada regressa da cozinha trazendo uma
travessa com uma salada de algas marinhas e pimentas-rosa, banhada em vinagre
de arroz. Enquanto ela distribui pequenas porções em pratinhos começa a contar
onde esteve por sete anos.
[Ada García]
No dia em que saímos todas daqui eu larguei a minha bicicleta logo à frente e
caminhei por algum tempo. Jamais me havia passado pela cabeça deixar vocês. Os
borrões sanguíneos que desenhei me seguiam com seus cascos penosos roubando meu
ânimo. Que espécie de provação se avizinhava? Uma fúria controversa foi
surgindo em mim e movendo objetos por onde eu passava. Quando me acalmei tudo
voltou ao normal. Em casa, por algumas noites sonhei com um mesmo relógio de
sol, que acabei descobrindo localizar-se em um centro de estudos em Foz do
Iguaçu, para onde resolvi seguir. Pedi a um amigo que cuidasse de minha casa e
tomei um avião em busca do que passei a considerar um sinal do destino. Durante
o voo pude ver a facilidade com que eu movia com o olhar pequenos objetos, o
copo, o lápis, meu caderno de anotações. Eu vinha ganhando confiança e já não
me assustava aquela habilidade. Logo chegando na cidade fui informada de que o
relógio do sol ficava em um polo astronômico, até onde me dirigi. Tudo aquilo
era um obscuro desígnio. Diante do relógio eu me prostrei hipnotizada até que
vi despencar subitamente do céu um objeto pesado, pelo estrondo que fez ao
tocar o centro do relógio. Quando a poeira se dissipou percebi se tratar de uma
caixa de metal, algo como uns 30 cm de cada lado e quando tentei lhe tocar ela
esboçou um princípio de convulsão, parecia estar possuída por alguma forma de
eletricidade. E na medida em que tremia surgiam em seu corpo umas riscas como
se fossem veias saltadas. Aos poucos as riscas iam tomando a forma de adágios
em um idioma que, embora eu desconhecesse por completo, algo em mim o
compreendia e passei a ler em voz trêmula os seus dizeres. Eu serei o
que ainda não estás preparada para ser. Eu te guardarei, porém jamais me
apossarei de teus bens. Os feitos que são teus, nenhuma tempestade pode apagar.
O que tudo aquilo queria dizer? Um tremor me assaltava o corpo inteiro,
enquanto eu me sentia impelida a continuar lendo. Tu és pura e as
formas que ocupas são as minhas façanhas na terra. Eu jamais usurparei as tuas
semelhanças. E te servirei enquanto a vida persistir em teu ser. Comecei
então a pensar em vocês e aquela escrita foi desbotando até desaparecer de
todo. Voltei a tocar a caixa, que permanecia estática e com um peso excessivo
que não me permitia movê-la, seja com a mão ou com o olhar. Quando deixei o
lugar fui a uma lanchonete tomar uma água e ali me deparo com um calendário na
parede que acusava a passagem de sete anos desde que eu chegara.
PÓRTICO
Deves entrar, és pura, és nossa.
[Komako
Rachiri] Não sei se me assombra mais o que nos contas ou se o aparecimento
dessa voz misteriosa vinda do nada ou de todas as partes. Eu também tive às
voltas com os alfarrábios do tempo e até o momento considero que passei sete
anos dentro de um sonho. A começar pelo modo como cheguei àquela ilha no Japão,
descendo do céu por um fio de luz, ignorando as leis físicas, superando todos
os apegos da realidade. E aos poucos fui percebendo se tratar de uma ilha
vulcânica, inabitável, com sua cratera colossal. Do alto o esverdeado do
enxofre se confundia com uma espessa vegetação entornada por toda a extensão de
terra. Quando toco o chão confirmo que era apenas um mar rochoso sem fim,
variando sua silhueta entre arcos e fossas. Talvez eu estivesse ali para criar
uma fauna absurda que pudesse dar vida àquele sepulcro verdejante. Permanecia
intacto, fazendo a ponte inquebrantável entre céu e terra, o fio de luz por
onde eu descera. Ao tocá-lo dei por conta de que poderia extrair de sua
claridade intangível uma exaltada espécie de feto, de origem desconhecida, cuja
forma seria dada por mim. Eu não podia pensar em uma forma humana ou animal,
pois nenhum ser vivo sobreviveria àquela terra desolada. Fui buscar em minha
imaginação uma fusão dos três reinos. O primeiro golem a que dei vida tinha a
cabeça de cão, o tronco de cobre e os membros de pequenos ciprestes. A reunião
desses reinos deu ao primogênito um caráter melancólico. Era preciso pensar em
algo mais expansivo. Então me veio a ideia de fundir a um tronco de mercúrio, a
cabeça de uma águia e os membros de uma ameixeira. A fórmula dera tanto certo
que cuidei de algumas mais variando apenas a cabeça, evocando águias, faisões e
mesmo flamingos. Descobri nas aves um contraste com aquela paisagem petrificada
que não pude encontrar em répteis ou mamíferos. Aos poucos eu fui tratando de
povoar o ermo que me recebeu como uma sacerdotisa que fora levada até ele
justamente para lhe recuperar vida. Tais figuras fantásticas seriam a nova
expressão de uma existência. A evolução possível de um mundo feito de
escombros. Sete anos se passaram até que uma manhã eu despertei em um hotel em
Kioto e tinha em minhas mãos um cartão postal de Kioshima, a ilha vulcânica que
um dia teria soçobrado. Era a minha hora de voltar para casa.
PÓRTICO
Deves entrar, és pura, és nossa.
[Bertha
Malik] Novamente a mesma voz que parecia vir de um oratório que não podemos
distinguir. Ouço o que as duas acabam de contar e por alguma razão eu tinha
muito medo de me perder em andanças pelo mundo, um temor de não encontrar o
caminho de volta que permitisse nosso reencontro. Decidi então não ir a lugar
nenhum. Imaginei que se criasse um círculo de proteção espiritual eu poderia
atravessar os sete anos sem nenhuma interferência externa. Logo na primeira noite,
ao dormir eu me vi sentada no chão tendo em minha volta um círculo desenhado a
carvão. Eu me sentia como uma realizadora proeminente. Alguém que se punha ali
para desbravar os elos entre todas as coisas no céu e na terra. Aos poucos
senti que uma febre crescente ia me elevando e eu desconhecia repouso ou
atividade. A febre, no entanto, foi assumindo a configuração de um excesso, e
com ela nascia um impulso atrevido, de que somente na demasia era possível ter
equilíbrio. Senti meu espírito deixar o corpo e vagar em busca de um sítio em
que pudesse se alimentar dessa voragem febril que o guiava. Nos prostíbulos de
Saigon encontrei uma lúbrica oficina de relógios da noite, na medida em que fui
visitando o corpo daquelas meninas descalças. Experimentei exaustivamente o
sexo em todos os seus domínios, uma corredeira de íncubos e súcubos, a glosa
desenfreada da dissolução da carne. Tudo me era revelado em espírito, sentada
no círculo de carvão eu podia acumular os artifícios de um demônio em cada
mulher. Era como se eu tivesse fabricado aqueles corpos para me dar prazer e
vencer o tempo. Cada noite compunha seu próprio ritual de transferências
anímicas. Em momento algum cheguei a pensar que aquela imersão teria que
retumbar em meu ser por 2.500 noites. Eu me lembrei daquele poema que Lenilde
gostava de dizer, cujo final asseverava que todo mito é deformado pelo culto.
Eu estava me consumindo e os riscos de não voltar a estar aqui com vocês se
tornava maior a cada noite. A ilusão de que eu poderia ser a precursora de mim
mesma foi se tornando uma casa em ruínas, eu teria que cessar tão resplendente
astúcia. Recordo que em algum momento consegui esticar uma perna e manchar a
integridade do círculo. Meu corpo desabou sobre o chão, desacordado. Desconheço
a duração de meu desfalecimento. Acordei com um peso no coração e a incerteza
se acaso teria vivido tudo aquilo.
PÓRTICO
Deves entrar, és pura, és nossa.
[Emilia
Ahmadjian] Tivemos experiências bem próximas, Bertha. Eu viajei para a
Cisjordânia, porque sempre quis conhecer o deserto da Judéia. Fiquei em um
pequeno hotel em Hebrom, a cidade que resplendia um labirinto de pedras, com a
abundância intransferível de sua antiguidade. Ali conheci Ainoã, com seu
discernimento sepulto em vida, os pulsos marcados pela opressão, a língua
mutilada. Tão pequena e sofrida, porém com um olhar que de algum modo
preservava ainda a revelação de uma morada em dois mundos. A força daquele
olhar não disfarçava as violações que sofreu, a maldição que lhe corroía as
carnes, era a fonte de uma insubornável resistência. Nada em Ainoã cheirava a
renúncia. Ela me transmitia sabedoria. E quando deixei seu corpo foi como se
uma lâmpada abandonasse sua luz, a partida de um íncubo, a fuga de propriedades
mágicas. Durante sete anos fiquei naquele país, convivendo com seu povo. Em uma
única noite eu fui humilhada por uma paralisia do sono. O corpo parecia um
bloco de pedra, talvez a mesma pedra de que é feito o labirinto de Hebrom. No
desespero para me libertar daquele cativeiro, mal pude abrir os olhos e me vi
largada ao canto de uma gruta, com os braços amarrados por uma corda
espinhenta. Não havia sentido naquilo. Não poderia ser eu. Foi quando
identifiquei Ainoã, o meu espírito ocupava seu corpo abatido. Senti a ausência
de língua. Ao vasculhar sua memória dei-me pela conta de que havia sido
capturada pelos vermes seguidores de um rei estúpido. Aquela aliança mística
não durou senão poucos minutos. Finalmente consegui mover meu corpo, e saí da
cama. Nas próximas noites, por maior que fosse meu temor, jamais voltei àquela
morbidez de sentidos.
PÓRTICO
Deves entrar, és pura, és nossa.
[Lueji
Llalej] Busca mais vinho, Ada. Essa voz que se repete talvez venha do fundo
vazio de nossas taças. Uma coisa me impressiona nessas histórias que estamos
contando. Elas partem de uma mesma origem, o caminho que deveríamos tomar por
sete anos, como uma espécie de limpeza das nódoas que estavam tomando nosso
espírito naquelas reuniões mensais. Estávamos sendo chafurdadas pelo acaso, que
nos martirizava pela falta de experiência. Komako percebeu muito bem que uma
jornada era imperativa, uma peregrinação não propriamente pelo mundo físico,
mas pelas estradas chamejantes da alma. Os deslocamentos se deram de maneiras
bem aproximadas, o que significa que mantivemos certa linha de confluência em
nossas expectativas. Quando eu cheguei em Cuiabá, decidida a perambular pelo
centro-oeste brasileiro, sofri um acidente de trânsito que me levou à
necessidade de extração do baço. Na sala de cirurgia, tão logo veio o efeito da
anestesia, senti o chamado que me levou ao centro de um espaço azulado,
estranha forma do vazio. Quando me ergui percebi que não havia cama, tudo era
um esplendor azul desabitado. Em segundos surgiram ao longe três vultos que me
lembraram aquelas figuras espigadas desenhadas por Emilia em nosso último
encontro. À diferença delas as que se encontravam diante de mim eram etéreas e
suas silhuetas, incompletas. O rosto lembrava o descrito por tantas pessoas que
foram abduzidas, a reiteração descritiva de fatos e ficções. O azul era uma
espécie de fogo primordial e me chamava para si como se eu fosse uma amante da
chama. Eu sentia as suas vozes dentro de mim. Elas me faziam ler um livro
intangível e vislumbrar à altura de meus olhos grandes telas que reproduziam cenários
de destruição. Nossa comunicação era telepática e mesmo o som das imagens não
me chegava pelo ouvido. Tudo era revelado em meu íntimo. O modo como estamos
destruindo o planeta e o que poderia ser feito. O inferno que levamos dentro de
cada um de nós, um golpear perene de crises viciadas que fecham todos os
caminhos. A nossa vida está por um fio, Lenilde.
PÓRTICO
Deves entrar, és pura, és nossa.
[Lenilde
Fablas] O nosso discernimento se encontra inteiramente desfigurado. Não é que
vejamos a escuridão em que mergulhamos. O que ocorre é que nossos olhos estão
negros e contaminam a percepção. Assim como vocês eu também estive em dois
lugares ao mesmo tempo. Naquela mesma semana em que nos despedimos viajei para
Sydney, decidida a continuar escrevendo meu romance. Flanar pela grande baía
era um sonho. E poderia escrever quanto livros quisesse naqueles cafés,
escutando o burburinho de idiomas que por ali passavam, as gaivotas e o excesso
de beleza com que o sol pintava de azul o céu. Seria o momento precioso de
vasculhar a vida de Li Sung, descobrir o que verdadeiramente houve com ela em
Bachim. A metáfora dos pássaros entrando em sua casa deixando o canto lá fora
aponta na direção de uma dissidência brutal entre corpo e alma. Em meio às
perseguições a seu povo, por suas crenças milenares em múltiplos deuses, a
pequena área que habitavam à margem do rio Neprum foi invadida por militares a
mando do governo cristão, ordenados a intimidar os cultos. A maioria dos homens
havia sido convocada para a guerra, de modo que a localidade estava guardada
por velhos, mulheres e crianças. Os soldados viram naquelas mulheres um
primeiro poço de martírios. Era preciso livrá-las de suas confusas crenças, e
abriram caminho forçado em seus corpos para uma violência lasciva. Os gritos
das crianças se juntaram aos das mulheres estupradas, e logo algumas delas
também foram violentadas, espancadas, mortas. O agouro das aves negras
preparava seu banquete na medida em que os primeiros cadáveres começaram a ser
jogados no rio. Os corpos dos anciões foram seguidos pelos das crianças. As
mulheres foram barbarizadas até o último fôlego. Ao final, as águas tingidas de
sangue, a terra putrefata, Li Sung, que se escondera no alto de uma árvore,
estava paralisada pelo desespero, diante do horror daquele cenário. Ela
construiu dentro de si uma morada que a protegesse das sombras delirantes da
carnificina, porém algo nela se recusava a esquecer o que houve. Ao convidar
para entrar em sua casa os abutres os poucos que lhe atenderam ao chamado o
fizeram em silêncio. O pavor estava ali, ela o percebia, mas ele rejeitava sua
narração. Durante os anos que passei na Austrália escrevi um extenso romance
que era a história sem nomes de um povo cuja chacina negava ser contada. Não
havia encantamentos ou homenagens em suas páginas. Apenas o rastro sinuoso e
constantemente interrompido das incertezas. Nada servirá de exemplo. O mundo
deve continuar a sua jornada a caminho do abismo.
PÓRTICO
Deves entrar, és pura, és nossa.
[Rebeka
Naceri] Creio que todas queremos que leias teu romance para nós. Não importa se
é real ou não o que se passou conosco. Nós também vivemos as histórias que nos
contam, assim como os sonhos que se agarram à nossa memória, desejosos de uma
vida própria. Eu precisava de uma experiência selvagem, buscar a natureza
primordial dentro de mim. Viajei para o Amazonas e descobri à margem do rio
Juruá o lugar quimérico para instalar uma dessas barracas maiores para cinco ou
seis pessoas. Peixes, cocos e pequenas frutas silvestres foram meu alimento por
muito tempo. Minhas lições de ioga foram proveitosas e também pratiquei um
pouco de levitação. O único nome de que me recordo é o de Elvira Broghèse, dona
de uma espelunca de prazeres sexuais, de quem eu me tornei sua libertina
particular e a visitava sempre que necessitava algum dinheiro. O prostíbulo
ficava em Contamana, cruzando a fronteira e um barqueiro me levava até lá. Eu
sempre trazia comigo de volta a Juruá uma ou duas meninas que fariam a festa de
minhas delícias diante do rio. Cheguei a ter comigo seis delas e me perdia em
seus afagos. Sempre que eu mergulhava nas águas do Juruá me acontecia uma
curiosa manifestação que não sei se do acaso ou de outra forma de desvario. Ao
fechar os olhos dentro do rio surgiam lampejos de barragens detonadas, corpos à
deriva, árvores naufragadas, como se toda uma história viesse à tona. Tudo em
absoluto contraste com a beleza edênica daquela região. As meninas gostavam que
eu lhes contasse esses relatos incompreensíveis da destruição da natureza. Não
sei o quanto daqueles relatos eu inventei. Meu corpo estava viciado nas
carícias erráticas daquelas meninas. Eu poderia viver o resto de meus dias com
elas. Pura tolice. No fundo eu sempre quis estar aqui com vocês e que vocês
fossem as minhas meninas.
PÓRTICO
Deves entrar, és pura, és nossa.
A última voz
a repetir aquele chamado mantinha o enigma de sua origem. Os sete anos de
ausência entre elas finalmente pareciam cumprir as exigências de uma senha
propiciatória de novo encontro. Porém o dia agora deveria caminhar em que
direção? Elas estavam certas de que não poderia retornar àqueles encontros
anteriores. Tanto escavaram sua alma que certamente encontraram novos
fantasmas, assim como novas torrentes de ser.
SELVAS DELIRANTES
O jantar era
carne de vitela com castanha e mel. Água e vinho eram dois amantes
inseparáveis. As sete mulheres eram feitas de olhares luminosos, sorrisos e
carícias. Seus corpos por vezes pareciam um só. Sem nenhuma noção do que
poderia se passar lá fora. Não havia maior experiência deífica do que o
instante e a soberania de seu relâmpago. No entanto, qualquer deus difere de
sua sombra de prenúncios, pois nos visita carregado de paradoxos. A dúvida é a
única fé possível. Ela exige que toda autoridade seja renegada, somente o
imprevisível nos presenteia com uma utopia reveladora. Em meio a esses
enunciados silenciosos, entrecortados pelas risadas enlevadas, o tempo não
encontrava lugar para suas fábulas. Ada García foi a primeira a manifestar as
linhas equidistantes do que acontecera com todas elas, como se estivessem
sempre reunidas por um mesmo princípio. Em seguida, observou a curiosidade que
tinha lhe despertado o relato de Lueji Llalej, cujo cenário descrito era o
único que se passava em um mundo alienígena, mesmo considerando que talvez
fosse fruto unicamente de sua imaginação. E prosseguiu:
– Ao evocar a cor azul e suas nuances, Lueji mergulha no infinito e o
ambiente extraterrestre talvez seja uma imagem dessa necessidade de ir mais
além. Eu queria saber um pouco mais até que ponto esse azul não foi a tua busca
de uma vacuidade.
– Não estás certa quando dizes que a minha experiência foi a única a
referir um ambiente fora da Terra. De algum lugar no espaço veio a caixa de
metal que viste cair do céu. E estou certa de que o modo como ela se comunicou
contigo foi algo mais do que apenas um êxtase místico através do qual tentavas
manter uma ligação entre nós todas. Em parte, querias levar até o limite do
absurdo essa talvez irônica manifestação de uma linguagem surgida de um latejo
das veias de metal. Mas a caixa era um objeto físico e caiu mesmo do céu. De
onde ela terá vindo? Em meu caso foi uma inversão, eu caí dentro da caixa
(risos). O azul deve corresponder não a um abismo estelar, mas à afirmação de
uma consciência, onde as forças contrárias se reúnem em torno de uma linguagem
que seja a fusão de todas as formas. Como aqueles pássaros que se recusavam a
cantar, que Lenilde acaba compreendendo, em seu romance, que eram a única
realidade restante no íntimo de Li Sung.
– Assim como este vinho, as palavras em meu romance foram bebendo a
tensão entre desejo e realidade. Confesso que jamais me preocupei com a
exatidão correspondente entre os fatos históricos – que eu havia lido na
imprensa há poucos anos, que vocês todas devem conhecer – e a minha decisão de
comover a leitura com as joias da indignação.
– Eu estou muito curiosa em relação ao teu romance. Tens razão ao dizer
que a analogia independe da veracidade de seus tópicos. A arte não pode se
confundir com ciência ou religião. Não pode ser catequese ou paradigma
inquestionável.
– Mas a tua conotação de um espaço alienígena reflete uma realidade
paralela que permanece questionada, não?
– Não, Ada. Primeiro não podes esquecer que o ponto de partida de minha
experiência se deu em uma sala de operação, eu estava sendo operada de um
acidente que sofri. Quando a anestesia me apagou os sentidos, um inusitado
mecanismo se instalou e me vi transposta para outro lugar. Eu jamais havia
planejado aquilo e nem mesmo o assunto costumava me prender a atenção. Algo que
permanece me assombrando diz respeito ao tempo. Eu poderia pensar em
explicações para a conexão entre dois mundos, as minhas preocupações com as
agonias climáticas, meu ativismo ambiental, até mesmo a percepção de um acaso objetivo
que tenha provocado a urgência de extração do baço. Em nenhum desses ângulos eu
consigo encaixar o abismo real de anos que se passaram no hospital, uma
cirurgia que tenha tomado mais de seis anos em sua realização. Onde estive
durante todo este tempo é algo que não consigo assimilar. Enfim, o real por
vezes pode ser uma coisa absurda.
– Tão absurda quanto a paralisia do sono que me transportou a alma para
o corpo daquela jovem sequestrada. Tudo poderia ser apenas fruto de minha
imaginação, não fosse o fato de que, ao recuperar o domínio de meu corpo os
meus pulsos estivessem marcados pelas mesmas cordas ásperas que aprisionavam
Ainoã.
– Tens razão, Emilia. Eu creio que essa tua aprendizagem traz em si um
mecanismo desafiador. O que houve comigo na ilha japonesa foi um jorro infindo
da imaginação, como uma deusa errática criando mil formas.
– Ora, Komako, mas a verdade é que nunca estiveste em Kioshima, uma ilha
que talvez sequer exista, e não há nada que explique que tenhas durado esses
anos todos naquele hotel em Kioto, despertando sem o menor sinal de como o
tempo se passou. Eu poderia pensar que estavas sob efeito de ópio. Sinceramente
não encontro outra explicação.
– É verdade, Rebeka, eu esqueci que tudo começara no hotel e não na
ilha. Permanece a teimosia do maior de todos os mistérios: o tempo.
– Por vezes eu penso se algum dia chegamos a deixar esta cabana.
– Não me venhas com tuas loucuras, ‘Beka.
– É verdade, ‘Nilde. Lueji não tem a cicatriz de sua cirurgia. Emilia
possui os pulsos bem limpos. Bertha sempre teve a mesma sofreguidão que eu. Não
creio que tenhas comprovação de tua viagem à Austrália, assim como eu não tenho
evidência alguma de haver estado no extremo norte, sem falar no fato de que sou
demasiado indolente para acampar sozinha.
– E durante essa lacuna de sete anos em nossa vida…
– Mas quem disse que se passaram sete anos? Começo a pensar que há
poucas horas Komako manifestou seu temor de que estávamos caminhando para uma
perda de controle e nos sugeriu deixarmos a cabana e nos ausentarmos de tudo
por sete anos.
– Que diabos está se passando! Vejam, as nossas bicicletas ainda estão
lá fora.
– Lenilde, onde estão os manuscritos de teu romance?
PRESENÇA INESPERADA
Pequenos
objetos, taças, garrafas, almofadas, folhas de papel, lápis, flutuavam no ar e
se moviam formando um círculo em ritmo cada vez mais acentuado, se deslocando
da altura da mesa na varanda para o espaço vazio a seu lado. À margem daquele
êxtase se mantinha em curiosa quietude um pequeno cesto que resistia à força telecinética
desprendida por Ana García, um transe vigoroso que mantinha sob hipnose as
demais mulheres. Uma enfermidade do instante. Um mercado de ilusões. Um
redemoinho de rostos. Sete vezes o sacrifício de portas que se abrem e fecham.
Candelabros, templos, selos – sete videntes renegam a repetição do mundo. O
cesto emana um choro de bebê, como uma serpente alada que percorre o ar na
medida em que cessa aquela suspensão ou encantamento, as sete mulheres
despertando de seu torpor. O choro se intensifica com o barulho dos objetos
caindo ao chão, os vidros quebrados, o tempo exaltado disposto a aceitar uma
nova direção. Lenilde é a primeira a se levantar de sua cadeira em busca do
cesto.
– Como esta criança terá vindo parar aqui?
As horas mortas no cabide dos sonhos. A gravidade imprevisível como fim
de um desastre. As luzes sussurram do interior de cada objeto. Rebeka ainda
aturdida indaga:
– O que fizeste, Ada?
– Algo além de mim, eu não sei explicar. Eu apenas senti uma conexão com
tudo à minha volta, e um centro de energia parecia querer sugar até mesmo
vocês. Como se fôssemos tragadas para uma outra dimensão. Curiosamente eu a
tudo observava com incrédula lentidão e cheguei a pensar que seríamos levadas a
um cenário distante daqui. Mas nenhum portal era visível. As coisas aconteciam
como se fossem um desgaste da mente. Nada parecia real. Só despertei daquela
estranha forma de letargia quando ouvi o primeiro choro da criança. Era quase
como estar nascendo, como se fosse eu mesma a deixar o abrigo materno. Aquele
choro era meu. Talvez não fôssemos nós a cumprir uma passagem, mas sim a
criança, ela que teria adentrado nossa vida através desse portal imaginário.
– Por onde então começamos?
– Certamente que pelo infinito.
Ada suja os dedos com carvão e rascunha o infinito na mesa. Aos poucos a
rota do carvão emana uma luminosidade rara, como o esboço de uma trilha a ser
seguida. Rebeka se aproxima do cesto no canto da varanda e dali recolhe uma
pequena brochura xilogravada cuja capa revela tratar-se de um Livro das
sutilezas. Seus versos lidos produzem o efeito de um encantamento.
as noites como pequenas cicatrizes na pele da luz
esses cortes sentenciados a denunciar os pecados
as horas mais fáceis de engolir como seitas
as queixas um número prodigioso de queixas
as espirais de nossos corpos ungidos um labirinto
carcomido em sua medula uma espiga apodrecida
as pedras rolando com um incêndio em seu íntimo
Em algum momento da leitura a voz de Rebeka foi substituída pela de
Komako, nas mãos de quem o livro já se encontrava e este ritual se repetiu até
que as sete mulheres houvessem lido cada uma delas uma passagem:
as caricaturas se corrompem como esfinges perseguidas
por um mesmo destino não importa a dimensão da noite
a semelhança é uma desfiguração impensável
um rastro que perpetua o aviltamento dos sentidos
procurem bem por outros livros dentro de cada leitura
sem deixar que os fanatismos apertem seus laços
as últimas tramas hospedadas trazem um calafrio sem fim
Elas seguiram lendo a brochura como se fosse inesgotável seu conteúdo.
Impossível prever quanto tempo levariam a desatar aquele mecanismo ilusionista.
15 ANOS DEPOIS
Eleanor Elbe
era a grande filha de sete videntes. Sua vida parecia determinada ao êxtase
ininterrupto. Há anos fora anunciada em um transe de Lenilde Fablas e a menção
a seu nome não provocou a menor reação. De algum modo as outras seis mulheres
sabiam de quem se tratava. E o acaso conspirou para que o equilíbrio entre elas
fosse alcançado através de uma criança deixada à entrada da velha cabana onde
todas se reuniam na primeira lua nova de cada mês. Inefáveis luas se passaram.
O nome de nenhuma delas poderia ser dito, sob pena de todas convergirem para a
lua do morto, aquela que rege um ideário progressivo de devastações e aniquilamentos.
Sob sua condução as chagas proliferariam, os tremores de alma e terra, a soma
de infortúnios seria perene. Um regime passivo em que todos os seres vivos eram
receptáculos de adversidades. Somente a lua sem nome transmitiria beleza e
conhecimento em uma fórmula transformadora. Por 180 luas Eleanor foi nutrida
com as folhas e raízes mais fecundas do firmamento. Mesmo agora, quando ela
dava início a uma primeira migração, levaria consigo os trevos de tantas luas,
as lâminas do instinto, os símbolos de uma dupla iluminação.
– As tuas luzes estão prontas para uma nova prática, minha filha.
– Eu me sinto forte, mãe Komako. Consagrada pelo entusiasmo. Estou
segura de que nossa separação será apenas no plano físico. Levo comigo vocês
todas, como bússolas indispensáveis à transfiguração de meu ser.
SETE ESPIGAS
Há três anos
Eleanor Elbe havia partido. Sua primeira parada foi em Al-Quiaṭyra, o
nicho dos três sóis, com suas
moradias como que paridas pelas areias. Naquela vasta planície, as
casas eram filhas do deserto, erguidas em dupla jornada pelo homem e a
natureza. O alcance simbólico de seus braços, permitia
a Eleanor orientar novas construções, abrindo canais de irrigação que dariam
àquela província uma riqueza subliminar. Em casa, as sete mulheres a observam
através dos olhos de Rebeka Naceri. Uma vez a cabeça imersa em água, seu olhar
se convertia nas pedras cristalinas que evocam em detalhes a amplitude de todos
os lugares na terra. Vinha de seu dom a certeza de que em momento algum a filha
estaria sem proteção. Elas eram as sete mães e Eleanor a raposa civilizadora.
Seu corpo espelhava as faltas e desajustes de todos quanto dela se
aproximassem. Tudo procedia desse metal que captava os dissabores da
consciência humana. Todos os erros se reconheciam em sua pele vítrea.
A segunda jornada foi em Uluru, a imensa rocha natural no centro do
deserto australiano. Seus rios de terra se espalhavam por todo o terreno. As
listras negras com seus afluentes numerosos, uma caligrafia de mistérios que
revelavam a Eleanor que o monólito vermelho sangrava de expectativas de sua
chegada, ela que traria os ensinamentos de como levar água àquelas estrias
ressecadas. Escavadas a certa profundidade, a imperativa chegada das chuvas
seria a sombra e o reflexo de um múltiplo manancial. A terra cantaria por todas
as veias: eu trago da altura insuspeita dos céus os acórdãos iluminados
dos deuses, eu trago a alma de todos os curandeiros que varrerão para longe a
poeira da morte, eu trago as torrentes que renascem em contato com o espinhaço
da terra, evoé, evoé, as bacantes são nossas guias, Uluru agradece a grande
obra das águas.
A terceira jornada levou Eleanor até os pastos desancados no
centro-oeste brasileiro. As forrageiras no Cerrado entoam cantos à aveia
ucraniana que lhes trará uma estirpe de prosperidade. Era preciso expulsar as
efígies da fome. Lavar o espírito do grão para que ele voltasse a reinar em
todas as estações. As árvores também cantam e se erguem, as copas em ritos
buscados em várias partes do planeta, uma renascença de cerimônias férteis.
Cantam ainda as borboletas com suas asas ensinando aos ventos onde roçar seu
corpo. Uma antiga teoria da natureza esplende abrigando a fadiga dos nativos. A
cada mulher esgotada uma raiz de angico ou jatobá, a cada lamento um gole desse
chá restaurador. Os deuses beliscam a terra para manter o plantio.
Eleanor atendeu ao chamado, em sua quarta jornada, dos papiros submersos
no delta do Nilo, onde o rio esgalha sua árvore genealógica. Um braço de Deus e
o fogo das águas. A exaltada vastidão de seus mantras juntava-se à eletricidade
quimérica de sua foz na forma de um ventre. A partir de sua vagina o rio azul
se movia como uma serpente harmoniosa anunciadora de seus míticos ancestrais.
Quetzalcoatl pronta a sacrificar-se pelos povos de suas margens arenosas. A
serpente inspirada do Nilo deveria percorrer todo planeta. A vida não é uma
condenação. A ideia de pecado é uma fístula que o homem talvez ainda possa
reparar, as águas deveriam banir as religiões, a união livre de todos os seres
não seria uma sedução demoníaca. Os rios unificados renegam o obscurantismo
bíblico. A serpente do Nilo recebe em seu útero o dragão de outras águas.
O inferno queima por dentro e expele os verbos do inconsciente, as
chagas invisíveis das perversões humanas. Uma iniciação de opostos atormenta o
mais insondável de seus mistérios. O inferno quer livrar-se de si, de sua
desventura absoluta. Porém as suas vísceras se perpetuam como uma maldição
mítica. Os homens não querem o inferno para si, porém não se desfazem de seus
vícios e ilusões. Assim como o inferno, os homens cultivam os excrementos da
avareza e do horror. Em sua quinta jornada Eleanor deveria apagar o reflexo do
inferno, impedir que ele tomasse todas as formas, revogar o trabalho de suas
lágrimas.
Kalasasaya aguardava há milênios a chegada de Eleanor, com seus
guardiões de pedra fundidos à pele da grande muralha. De todas as portas do
sol, seria por ali que os deuses migrariam quando os homens estivessem prontos
para o cultivo de sua própria natureza. Um dia Tiwanaku amanheceu e tinha
diante de si a proteção requerida. Cada pedra olhava em seu íntimo e ruminava
com júbilo a joia do mito. Todas as civilizações perdidas encontraram lugar
naquela epifania, graças à qual se determinaram a partilhar os tratados da
natureza. Por essa porta que tomava acento no mundo tinha início a sexta
jornada.
Os livros sacrificiais se postam diante da mulher e da árvore como não
compreendessem que a balança essencial não corresponde à deposição de valores e
sim à seiva encontrada na fricção de dois mundos. O céu e a terra se distinguem
entre si apenas por um efeito de perspectiva, como a influência fugaz dos
espelhos. Eleanor se dirigia à sua sétima jornada enquanto refletia sobre o
paradoxo das sombras. Em um mundo de trevas elas não são visíveis. Tampouco
sobrevivem a um reinado exclusivo da luz. O sonho e a vigília são frutos da
respiração e nenhum deles suporta a ausência do outro. A criação se estende
pelo planeta graças ao plantio infatigável de hinos. Os tambores sacrificiais
não são o ovo do mundo. Eleanor seguiria sua viagem como uma caravana de
estrelas até que o último oásis desperto erradicasse os infortúnios.
REFÚGIO ACIDENTADO
A velha
cabana é um refúgio fora da cidade. As sete mulheres não se reúnem ali mais
apenas ao princípio de cada lua nova. Desde a chegada de Eleanor Elbe elas
passaram a morar juntas. O carteiro costuma deixar a correspondência sobre a
mesa na varanda. Na última semana chegaram dois postais da filha, no último
deles o pedido para que todas elas, na primeira hora do 25 de setembro,
estivessem dormindo, pois as visitaria em sonho. Agora a noite chegara e as
sete mulheres se deitaram na sala, no sofá e em colchonetes improvisados. Luzes
apagadas e o habitual incenso de âmbar. A noite petisca as primeiras imagens
dispersas dos sonhos. Lenilde está em um corredor em cuja curva encontra uma
pequena garota agachada. Dela se aproxima pensando ser a sua filha. A menina
ergue a cabeça, o rosto tomado pelas lágrimas. Ela desconhecia como foi parar
naquela casa.
– Eu estava sonhando com um jardim verdejante e florido. A minha mãe
sentada em um banco me olhando. Ela havia morrido há alguns anos, mas agora
estava a meu lado. Nas últimas semanas as minhas noites foram todas preenchidas
pelo mesmo sonho. Ontem ela me disse que eu jamais fechasse os olhos quando
estivesse no jardim. A mãe era uma passagem secreta para um mundo que
desaparecera com a sua morte. Tudo nela me protegia do que a vigília impunha.
Meus olhos começaram a pesar e logo foi impossível mantê-los abertos. Uma vez
fechados vim dar nessa casa escura, repleta de corredores embruxados que se
debruçam sobre meus anseios sem que nada me digam. Eles me assustam, eu perdi a
minha mãe uma vez mais. A alucinação é uma forma bizarra da realidade. Quem é
você?
– Eu me chamo Lenilde e estou procurando a minha filha. Podemos
descobrir uma saída dessa casa, vem comigo, nós também procuraremos a sua mãe.
– Onde você perdeu a sua filha?
– Eu não a perdi. Ela me pediu para dormir que viria se encontrar comigo
em meu sonho.
As duas caminharam por aquele estranho labirinto de corredores sem uma
única porta ou sinal de passagem.
– Isto não pode estar acontecendo. Este lugar pode estar se repetindo e
nem percebemos, pois tudo nele é absolutamente igual, uma agonia que se repete
incessante.
– Talvez devêssemos fechar os olhos. Em algum momento devemos encontrar
um sentido para tudo isto.
As duas se deram as mãos e juntas fecharam os olhos. Um único corredor
se estendia como uma reta imensurável. Em uma das extremidades uma luz
cintilava, as duas dela se aproximaram, as paredes se tornaram um vão
tenebroso. Ao centro uma fogueira e corpos infantis espetados prontos para
serem assados. Pelo chão outros corpos se multiplicavam, ao lado de esqueletos
e restos de carne. Diante daquele cenário medonho a garota saiu correndo em
direção contrária até desaparecer na escuridão que definia a outra extremidade
do corredor. Aquele não podia ser o lugar onde Eleanor queria se encontrar com
sua mãe. Lenilde não sabia mais o que fazer. Agachou-se no chão, o corpo
contraído esvaindo-se em lágrimas quando então ouviu seu nome. Ao erguer a
cabeça encontrou as suas amigas no centro de uma casa cujo salão era tomado de
escadarias que pareciam dar no infinito. Rebeka a tomou pela mão.
– Ande, ‘Nilde. Demoraste a vir. O que houve?
– Eu encontrei uma menina que havia perdido a sua mãe e a estava
ajudando a encontrá-la. Mas tudo de repente se transformou em um horror
insuportável. Eu só queria sair dali, então fechei meus olhos e me pus a
chorar.
– Agora já estás conosco. Vamos esperar por nossa filha.
Komako observou que são sete as escadas que se abrem como um plano
secreto da consciência daquele abrigo onírico.
– As luzes que se perdem no caminho já não servem para nada. Os olhos se
banham em avidez por sete motivos e depois desaparecem. As proteções se
desfazem a cada novo risco alcançado. Como transes que assumem as formas de um
nevoeiro.
– O que estás vendo, Komako?
– Uma esfera que não é mais azulada como a que encontrou Lueji na
migração de sua alma. Este é um volume negro, cujos pontos estão carregados de
ambiguidade. Os degraus são assimétricos e se destinam à criação da imensidade.
A sua presença significa que agora devemos enfrentar nossos temores. Nenhuma de
nós sabe o que encontraremos ao final dessas escadarias.
– Talvez seja isto o que Eleanor quer nos mostrar. Que devemos buscar
uma saída para o enigma terrível de nossas vidas.
– É possível, Ada. Uma trilha imaginária que não caberia em mapa algum.
Não sei vocês, mas eu não me sinto cativa como em meus sonos paralisantes.
– Estamos livres, Emilia. Mas se trata de uma liberdade ilusória, que
nos desafia a encontrar o elemento exato em que ela se converte em real.
– Um talismã invisível?
– Uma correia de transmissão que nos levará por terras insondáveis.
– E o que fazemos agora? Nos separamos?
– Sim, ‘Beka, uma vez mais nos separamos.
Cada uma
delas começa a transpor aqueles degraus como uma miragem de caminhos
retorcidos. Os tecidos esvoaçantes da imaginação. O tempo fulgindo em uma
dimensão que parecia perdida. Um tempo sem hierarquia ou truques sorrateiros de
evolução. Tanto escalaram aquele encantamento que era como as sete mulheres
tivessem desaparecido de si mesmas. Uma sensação de formas dispersas, uma
ascensão em sentido inverso, uma travessia pelo vácuo.
[Emilia] Eu vim oferecer o meu corpo, uma plumagem de voos, as sombras
esgarçadas da memória. O mundo se desgasta nos aspectos da fé. Uma comitiva de
fantasmas opulentos que imitam as aparições humanas nos templos negros. Eu
quero me desfazer de mim até que seja possível encontrar um elo perdido, onde
os ritos aprendam a superar seus ornamentos.
[Ada] Eu vim para buscar os provérbios da harmonia, aprender com eles a
decifrar a consequência de cada movimento, a raiz possível de cada coisa que
desloco de seu lugar aparente. Eu quero entender por que o limbo, ao desfrutar
sua infusão de incertezas, rejeita as figuras mais repulsivas.
[Lueji] Eu vim para acender os fogos confinados ao âmago dos abismos,
onde as dores tateiam no escuro os mortos que se amontoam em um sítio
abandonado. Afastadas de seus pés as sandálias não reconhecem os caminhos que
traçaram. Eu quero banir a mágoa das hóstias, os deuses não podem cobrar de nós
mais do que lhe podemos dar.
[Komako] Eu vim para desterrar as injustiças, revogar o mandado das
traças e a vocação usurária da humanidade. Os textos que alimentam o mundo
devem estar escritos pelo altruísmo. Eu quero ver as águas subindo por um fio
mágico de transposição, revendo as leis da gravidade, nos banhando por dentro e
por fora como um rio que germinasse em nosso espírito.
[Bertha] Eu vim para devorar as equivalências e a degeneração das
catarses, as pedras quentes que ridiculariza os presságios. Quem quer que se
debruce sobre a aversão que sente pelos seus confunde as depressões do próprio
calvário. Eu quero revelar os pormenores da culpa e o manto de infortúnios que
ela prepara para nos abrigar.
[Lenilde] Eu vim para preparar os papiros que darão o testemunho das
iniquidades, a ausência completa de justiça desde que homem se reconhece como
tal, desde o espelho das águas e as chamas de seu obsessivo desejo de domínio.
O inferno sempre foi muito lisonjeiro com seus escolhidos. Eu quero escavar o
fogo até que ele perceba a efígie de suas iluminuras.
[Rebeka] Eu vim para reler as diferenças manifestas e seu caudal de
elevações persuasivas, os mantéis com que a superfície nos impede de conhecer o
paradeiro de nossos erros. Não há um sentido sagrado sem que se aceite suas
encostas heréticas. Eu quero dormir ao relento e acordar em outro palco.
Cada uma
delas, ao chegar ao que julgavam ser o final daqueles degraus, se encontrava
com a própria imagem, como se fossem uma alma fora de seu corpo, e ouvia o que
seu outro tinha a dizer. Subir aquela escadaria não lhes permitiu ver os
deuses, mas sim compreender algo do patamar de seus paradoxos, espécie de
tabuleiro móvel em que as hipérboles estendiam cordas no centro abissal de cada
existência. Komako Rachiri foi a primeira em compreender a correspondência
entre elas e a criação. Suas virtudes atendiam pelas sete exigências das
metamorfoses: calcinar, sublimar, dissolver, deteriorar, destilar, coagular,
tingir. Cada uma das sete mulheres teria que decifrar a sua relação com o
mundo. As suas escolhas teriam que superar os lampejos dos pequenos rituais
mediúnicos, os vislumbres eventuais, os objetos suspensos no ar sem controle de
seus princípios. Qualquer que fosse a forma que assumisse o espaço, seu traçado
nascente, a fonte de seus eixos irresolutos, nada as conduziria às dimensões
simultâneas da transmutação buscada. Eleanor Elbe soprou uma alegoria no ouvido
de cada uma de suas mães. A audição representava o primeiro contato com o
tempo, a percepção de seu fraseado ativo, a elevação das formas ainda
invisíveis. Da conjugação dos contrários nasceram as árvores da abundância. Era
preciso revelar o duplo em suas criaturas indivisíveis. Desfazer-se das
máscaras onde foram aviltados os instintos. Mesmo com as suas efusões espíritas
as mães ainda tinham que entregar-se às escrituras de um mundo mais profundo.
Decifrar o móvel inconsciente de cada estrato de seu pensamento. Mudar o antigo
em perene, ensinar o múltiplo ao restrito, destravar o quebranto de toda
inércia. Recriar o cenário que torne seus atos evidentes.
O grande salão ressurge como um corpo mítico. Dentro dele se vislumbra o
mundo, como em um livro ou em um estalo secreto da mutação. Uma voz oficia o
que está aquém do entendimento. Lagos, pássaros revoando, uma palavra realçando
a margem, uma viagem debruçada da abóbada subterrânea.
– Como te chamas?
– Eu tenho sete nomes. Queres ouvi-los?
– O teu passado não me impressiona. Interessa-me saber a que nome
chegaste. E o que aprendeste com essa decisão.
– Aprendi a ser o centro da pedra. Aprendi o enigma das pernas do sonho.
Aprendi a jamais proferir palavras de julgamento.
– Porém não sabes por qual nome te decidiste. Ou manténs a ilusão de que
possas não ter nome?
– Eu sou um doador de céus.
– Teu nome é tempestade.
– Eu sou um doador de destinos.
– Teu nome é reencarnação.
– Eu não posso escolher as crenças, os retratos ou mesmo os nomes de
cada indivíduo.
– Mas deves ter o teu próprio nome. A tua filha terá que saber a quem
devotar a sua alma.
– Ela permanecerá em cada uma de nós. Com seus braços exaltados ela nos
receberá como as sete mães que a tornaram melhor do que toda semelhança.
– Este é um julgamento teu.
Aqueles eram
os termos do ludíbrio, a assinatura flamejante das mentiras. As sete mulheres
viam como era tecido o diálogo no centro da grande sala, entre seus espectros e
um vulto portentoso cujo rosto era um borrão confuso. O impreciso sobrevive de
muitas formas. As imagens cobertas por um manto de aspectos desolados. Os
atributos do abandono refazem a realidade.
– Eu sou tudo o que existiu em ti. A legenda das forças que foram
minguando a cada estação. A matéria evasiva que constitui a tua memória
absorvida pela dor.
– Eu me desfiz das inundações e dos triângulos imperfeitos, da depressão
e da sinuosidade das interpretações. Vejo no mundo o que nem mesmo ele
compartilha comigo. O que ele é e não como se mostra.
– Mas continuas apoiada na ideia de um ser múltiplo que abriga toda a
sabedoria desorientada.
O gigante
perpetuava a perversão de suas aparências falseadas. Dava a entender que as
verdades não tinham mais em quem acreditar. Insistia em saber o nome que
restara daquelas sete mulheres como a representação de sua união na filha
errante. Para ele os corpos superiores dependem da resignação de seus antípodas.
O mundo é um jogo tolerante de fantoches. O salão então subitamente foi
envolvido por uma ondulação e uma névoa, seus traços desapareceram, um estigma
incalculável daqueles desígnios fraudados. Era preciso um novo ardil gnóstico,
uma insígnia cuja veneração não aceitasse objeção.
OS NOMES REVIGORADOS
Os sete
poços descreviam uma agonia peculiar. Ada foi a primeira a se manifestar: –
Tem alguém aí? Emilia abria os olhos para a escuridão interna de seu
cativeiro. As demais também expressavam dor e pânico. Por um instante se
entreviram, como se houvesse um fio indecifrável de comunicação entre os
poços. – Alguma de vocês me escuta? Komako guardava em si a
certeza de que mesmo a dor, quando em abundância, propiciaria alguma forma de
milagre. As sete torres terra adentro tinham a profundidade de um silêncio
recôndito. Um abismo dissimulado era o único albergue possível do emblema de
sua aflição. – Alguém me tira daqui, desesperava Lenilde. A
escuridão é o lar profundo do conhecimento. Em seus domínios são concebidos os
espelhos sombrios de uma dúvida primordial: quantos seremos na outra margem da
vida? Quantos nos aguardam enquanto sopramos a poeira do universo? Os poços
estavam revestidos de um drama representado pela ausência do outro. Os olhos foram
se acostumando à escuridão e cada uma daquelas mulheres reconheceu o lugar onde
estava como se fosse uma sala de interrogatório. Paredes limpas, mesa e cadeira
fixas ao piso, uma portinhola diante do olhar atormentado. Entreaberta em seu
metal rangente se viam espreitadas pelo olhar do anão gigante, aquele vulto
oscilatório que propagava confusão e temor. A respiração foragida, o corpo
trêmulo, a comichão das pernas. As indagações surgidas telepaticamente,
encravadas na mente delas todas.
– Não sei dizer. Eu fui atraída pela água do rio. Ao mergulhar meus
olhos reabertos me levaram para o que poderia ser o interior de um pesadelo.
Talvez eu estivesse mesmo dominada por um sonho ruim. A mortificação orgíaca de
meu corpo sendo brutalmente apalpado e penetrado, braços e pernas em um frenesi
ondulante sem fim. Em contraste absoluto com as jovens índias que me afagavam o
desejo quando eu retornava à terra, ao nosso acampamento nas margens do Juruá.
O rio mantinha ao meu alcance o ponto de integração espiritual, um
entrelaçamento de círculos metafísicos, que, ao mergulhar em suas águas, eram
rompidos e desorientavam as energias. Eu não sabia o que estava se passando,
qual o motivo daquele divisor de sensações. Fui àquela região amazônica como
quem busca hibernação. Havia planejado passar sete anos naquele berço de
plenitude.
Rebeka Naceri acreditava firmemente em suas palavras, embora o olho na
portinhola pusesse dúvidas em seu relato. Teria que contornar as adversidades,
a frequência com que as inquirições eram grafadas em sua cabeça. Por vezes
voltava a sentir-se no poço, arranhando as paredes lisas buscando fugir
dali. – O que queres que eu diga? Sua voz era uma esmaecida
película da consciência. Mentiria para ter a sua vida refeita. No entanto, tudo
levava a crer que seu captor a havia condenado à dúvida perseverante. O mesmo
vinha se passando com as demais mulheres. Emilia Ahmadjian também não conseguia
explicar o que fora fazer no deserto da Judéia. Ela mesma não acreditava mais
que se tratasse de uma paralisia do sono, que tenha sido arrastada até a
Cisjordânia por um cordame de desvarios de sua mente.
– Eu jamais ouvira falar em Ainoã. Quando percebi estava em seu
lugar, no corpo da vítima, minhas mãos fortemente atadas por uma corda
espinhenta. Aquelas amarras eram um meio de me fazer sofrer, estou certa de que
suas fibras tinham mais importância do que a identificação de Ainoã. As cordas
vibravam dentro de si e me confidenciavam em uma espécie de telegrafia que me
envolvesse com sua linguagem selvagem. Porém o que elas me diziam não estava
relacionado aos conflitos da região. Seus laços eram possuidores do acaso,
espécie de ironia que me levava a crer que somente aquela forma de cativeiro me
conduziria à ponte onde eu cruzaria os sete anos de desgastes de meu espírito.
Eu estava no centro de suas palhas apertadas e seria reduzida a um fantoche que
saberia bradar apenas os acidentes de um pesadelo, até que houvesse anulado
todo um calendário de repetições. Sem antes vencer as etapas fortuitas da imitação
eu não poderia me reconciliar com o universo. Não, eu não sei quem era Ainoã, o
que mais posso fazer para que me acredites?
Emilia sofreu os efeitos daquela torrente de impiedades. O anão gigante
por trás da portinhola na sala de interrogatório flechava-lhe a consciência até
que ela se desfizesse de suas virtudes. O mesmo vinha acontecendo com as outras
amigas, corvos famintos bicando as palavras fustigadas de cada uma delas. O
olhar ameaçador do anão nefasto se alimentava das feridas de sua alma. Logo foi
a vez de Lenilde Fablas ser tiranizada até explicar os motivos que a levaram a
dar guarida, nas páginas de seu romance, à fugitiva Li Sung, procurada por
múltiplo homicídio. Tudo soava de modo improcedente. Uma farsa que não teria
como ser revidada, pois a verdadeira face das vítimas será sempre improvável.
– Li Sung é fruto de minha imaginação. Eu a criei como
representação aflitiva da solidão extrema a que podemos chegar. Mais
alto do que as terras arremessadas ao meu olhar, eu posso vê-la vencendo seus
medos, cantando e retendo em suas mãos o vapor divino que apagaria meus
ferimentos. Escrevi esses versos como uma canção de berço, para que a
pequena Li Sung recuperasse, em sua idade madura, a força dispersa na
juventude. Era uma espécie de canção para com ela alguém atravessar o tempo e
seus dissabores. Esta é a Li Sung que concebi e não uma criminosa, mesmo que a
realidade pudesse se esconder sob o manto da ficção. Na canção alguém olha para
o modo como o abismo semeia suas angústias em nosso ser, como se fôssemos
prisioneiras de um poço ou de uma sala de interrogatório.
Uma forte pancada no metal da porta fez Lenilde compreender a
infelicidade de suas referências. – O que eu quis dizer é que a canção
nos ajuda a resistir às penúrias da vida. De nada adiantava tentar remediar
a reação do anão gigante, que trancou a portinhola e a deixou ali na escuridão.
Naquele celeiro de pânico era impossível contar os dias. Como não lhes foi
servido água ou comida, e como não sentiram fome ou sede, as sete mulheres
começaram a perceber que o tempo não escorria pela pele das trevas. De algum
modo Ada García sentiu-se fortalecida ao ser forçada a declarar-se culpada de
haver roubado uma caixa de papiros apócrifos do Polo Astronômico em Foz do
Iguaçu. – Mas era uma caixa de metal, hermeticamente lacrada! Suas
explicações precisariam ser mais convincentes.
– Desde criança eu posso mover objetos com o olhar. No início eram
chaves e pequenos utensílios de cozinha. Um dia deixei cair um pequeno frasco
na oficina de meu avô e quando o vidro se rompeu no chão eu li em seu rótulo:
“Cibele – Crânio cremado”. Fui tomada por um transe e logo toda aquele pó sobre
o tapete hesitava no espaço enquanto suas unidades foram se encaixando a
formando um crânio que certamente seria o de Cibele. Ao final peguei em minha
mão aquele objeto refeito e o coloquei na prateleira, me desfazendo dos
fragmentos do frasco original. Aprendi então que poderia não apenas mover
coisas, mas corrigi-las ou refazê-las. Com a caixa que despencou sobre o relógio
do sol não me foi possível criar nada. Mesmo aquelas rajas que surgiram no
metal de sua pele, como veias saltadas que aos poucos foram revelando uma
mensagem, nada esteve ao meu alcance, exceto a súbita compreensão daquela
linguagem. Não, não se tratava de uma escrita cifrada. Se fosse alguma
conspiração outra pessoa poderia ter lido. Recordo uma das frases – Eu
te servirei para que os homens não falsifiquem o teu legado – que me
foi de grande impacto, como um sinal de proteção. Eu sempre pensei na caixa
como o prenúncio de existência de um guia, alguém com quem eu podia contar
durante a travessia daqueles sete anos.
Os verbos sacrificam o instante em que são transcritos. Ao abrir a
portinhola da quinta sala o anão gigante se deparou com seu vazio. Ao gritar
surpreendido o nome de Komako o silêncio lhe respondeu com o indecifrável.
Talvez o útero da sala ainda estivesse formando aquela figura. Ao procurar com
seu olhar uma crisálida defeituosa nada era mais completo do que o vazio da
sala. Caminhou até a próxima portinhola e o mesmo se repetiu, assim como na
última. Onde estariam aquelas mulheres? Seriam elas os hieróglifos que tanto
lhe aconselharam evitar? Os animais iniciáticos que dariam à vida um novo curso
que há décadas eram identificados como pontos desconexos em todos os cálculos
de extermínio da natureza humana? O anão teria que reportar aquele insulto,
explicar o desaparecimento de três corpos. Evocar os intérpretes antigos de
outras civilizações para indagar a eles o que houve em outros momentos.
Incrédulo, deixou o lugar sem saber ao certo para onde ir.
ABISMOS FLUTUANTES
Por uma
tortuosa galeria subterrânea mergulhada em algum terreno desconhecido corriam
as três mulheres, fatigadas em suas vestes úmidas, arranhadas em suas pernas
ardentes. A fuga buscava apenas um lugar para refazer a vertigem. O cansaço, no
entanto, as fez parar antes do previsto. Extenuadas se sentaram no piso. – Não
aguento mais, tenho que respirar um pouco. Bertha Malik estava
desfalecida. – Dois minutos e seguimos, objetou Komako
Rachiri. – Temos que encontrar a saída desse pesadelo. Lueji
Llalej recorda que elas atenderam ao pedido de Eleanor, o propósito era
localizar uma encruzilhada onde a filha as aguardasse.
– Onde estarão todas? Desde que nos separamos nas escadarias que
não soube de mais ninguém. Estive presa no que parecia ser um poço, impossível
identificar pela gelatinosa escuridão que me abatia o ânimo. Os únicos sons que
pude escutar vinham de meu íntimo. De repente uma voz começou a estalar em minha
cabeça um interrogatório absurdo, querendo saber o motivo dos relógios que eu
vendia para os prostíbulos em Saigon. A voz era severa em sua assertiva
de que eu estava contrabandeando o tempo. Eu estava muito fragilizada e comecei
a chorar. Ela enterrava o metal de suas questões aviltantes em meu cérebro,
tudo aquilo doía muito, eu pedi várias vezes que parasse. Antes de desmaiar
ainda lhe ouvi indagar sobre as minhas atividades clandestinas na Ásia. Nós
todas sabemos que o que passamos não foi senão um teste para ver como
sobreviveríamos a sete anos longe de nossos encontros na casa de Lenilde e
Rebeka.
– Eu sei disto, Bertha. Eu também passei pelo mesmo tormento que
contas. Fui acusada de fazer experimentos genéticos em uma ilha vulcânica no
Japão. Por mais que eu dissesse que compunha seres imaginários em um caderno de
notas, na sacada de um hotel em Kioto, como forma de penetrar os mistérios que
me estariam reservados naqueles sete anos de jornada solitária. A impressão era
de desprezo pelas minhas justificativas. Se queriam me envolver em uma história
repleta de crimes, talvez as memórias de um taxidermista ou a saga de demônios
embalsamadores, por que insistir em perguntas acusatórias? Poderiam
simplesmente revelar quem eu era, segundo a decisão de sua seita…
– Seita?
– Sim, Lueji, aquilo tudo me parecia a artimanha de uma seita, um
truque de fariseus. Queriam me levar ao extremo de minha fragilidade, até que
eu aceitasse integrar a ordem de suas trapaças.
– Não creio, Komako. Há muitas coisas que relutam em permitir uma
explicação. Algumas delas são condicionadas por nossas superstições. Quando eu
fui hospitalizada para extração do baço, aquela imensidão azul que surgiu do
que parecia ser efeito da anestesia me fez pensar no mito astral por trás das
pinturas pagãs, os extremófilos escondidos sob mesas e mantos, em armários e
altares misteriosos. Muitas profecias são arquivadas como absurdas ou, quando
se realizam, não são vistas senão como milagres. Deus não é o único milagre
possível. Ao menos isto nós deveríamos ter em mente. Recordo coisas assombrosas
de minha infância: fósseis encontrados no quintal da casa de meus pais –
carcaças do que pareciam répteis alados ou hipocampos –, o campo magnético em
volta de árvores flutuando na noite, as bizarras fotografias de exoesqueletos
deformados. O que posso contar agora me foge completamente da ideia de tempo,
não sei se de fato ocorreu há poucos instantes. A escuridão será sempre
imprecisa e a partir dela é que formamos a nossa noção da realidade. Através da
pele e dos sons externos é que começo a perceber a minha existência. Os surdos
são mais melancólicos do que os cegos. A voz que eu ouvia em meu cérebro era de
certa forma o que me mantinha viva. Por mais que me violentasse o espírito
aquela provação, ao mesmo tempo o som era meu amuleto e graças a ele pude
atravessar o vácuo que talvez até possa ter sido apenas o caráter sombrio da
minha imaginação.
– Do que exatamente te lembras?
– Da vastidão azul e aqueles vultos que se misturavam a uma penumbra
onde seus corpos por vezes se tingiam de uma névoa impressionante. Creio que
flutuávamos todos no espaço, mas não era como a sensação de ausência de
gravidade e sim como se estivéssemos no mais absoluto nada, um lugar onde
nossas noções físicas haviam sumido por completo. As vozes vinham carregadas de
imagens, elas não emitiam sons, eu simplesmente as compreendia como um quadro
vivo: as asas eram erguidas para alimentar os ventos, com a pele das serpentes
as cordas eram fiadas e dedicadas a retirar as crianças do abismo, os raios do
sol decoravam as nuvens espalhadas pelos campos como montanhas flutuantes.
Sobrepostos a essas estampas as lanternas de catástrofes que poderiam ser
evitadas: o desatino climático induzido, o ressurgimento das grandes pestes, os
deuses expelindo populações inteiras sufocadas por seus gases químicos.
Lueji Llalej tinha o rosto coberto de lágrimas durante seu comovente
relato. Na medida em que ela seguia descrevendo o que lhe aconteceu, as outras
mulheres foram surgindo do nada, materializadas naquela atmosfera onírica em
que se encontravam. Sentada ao chão, cercada por suas amigas, Lueji repetia um
breve diálogo telepático que manteve com os três vultos, que se expressavam de
modo uníssono:
– A raiz de toda vida é uma orquestração harmônica de ritmos. A
dança é um mistério que somente o espírito harmonioso pode explorar. Isto vale
para todas as peças em movimento, seres vivos, planetas, firmamento. Vocês
estão descompassando o universo. Todo esse desfalque de caráter, as crendices
fétidas e seus desvios incidentais, o triunfo corrosivo da morte, os amuletos
frustrados, as ninhadas de serpentes demoníacas no interior de corpos humanos,
não haverá mais lugar para transição ou aprendizado, o planeta está corrompido
em seu âmago, e se desfaz em síncopes que testemunham um fim irremissível.
– Mas se estamos no plano do irremediável, o que vocês fazem entre
nós?
– Estamos em uma dimensão etérea, acrônica. Ao negligenciar a
essência alquímica de toda vida na Terra, os homens foram condenados ao desamparo,
ao devaneio de falsas premissas, toda a história se converteu em artifício.
– Por que me diriam tudo isto se não houvesse mais nada a ser
feito?
Talvez porque não quisessem induzir Lueji a nada, ou simplesmente porque
nesse momento o anestesista estava removendo o tubo de respiração, o núcleo
azulado em que ela se encontrava foi se dissipando e ao abrir os olhos sentiu o
seu espírito dilatado em relação ao próprio corpo. Como eu poderia
caber ali? – Indagou a si mesma. – Vamos parar um pouco,
procure se acalmar. Temos que procurar nossa filha. A voz de Lenilde
alcançou um êxito possível. Elas ainda estavam no interior daquele sonho
coletivo e talvez o encontro com Eleanor Elbe já tenha ocorrido como uma
metáfora de tudo o que experimentaram naquela múltipla escala. Não
creio que nossa filha apareça, disse Rebeka. O que me preocupa
agora é não saber como saímos daqui, prosseguiu.
CONFABULAÇÃO DE FANTASMAS, 1
As sete
mulheres vagaram por incontáveis galerias oníricas, até que finalmente encontraram
a sala da cabana onde elas estavam dormindo. Komako foi a primeira a tentar
despertar a si mesma, logo constatando sua impossibilidade. As demais
inutilmente a seguiram em uma mesma e desesperada tentativa. Seus corpos eram
inalcançáveis. O outro em que se encontravam agora nesse experimento de sonho
coletivo reconhecia sua condição incorpórea, mesmo que entre si, nessa outra
dimensão, elas pudessem se tocar. Nesse estranho vácuo elas também eram
tangíveis, o que as levava a pensar que o sonho conduzia a uma espécie de
realidade paralela. – Talvez o mesmo se passe com a morte,
chegou a mencionar Ada García. – Eis algo que jamais saberemos,
pois certamente se um dia despertarmos algo me diz que não recordaremos o que
se passou, confabulava Emilia Ahmadjian. – Vocês acreditam que
estamos condenadas a esse estado? Rebeka Naceri foi dolorosamente
sucinta em sua inquietação. Enquanto elas refletiam sobre o que poderia ser um
ardil, aos poucos perceberam que seus corpos iam sendo alterados. Na medida em
que se alongavam surgiam brânquias e escamas, uma pigmentação multicor, a queda
dos cílios, a ondulação vertebral única, toda essa metamorfose as afastava de
vez de seus corpos deitados na cabana. Primeiramente confundida com um teatro
de perdas, logo Komako foi também a primeira em se manifestar: – O
que antes nos parecia uma réplica de nós mesmas vemos agora que se trata de um
corpo duplo, é como se cada uma de nós contivesse em seu íntimo duas formas,
como se fôssemos mulher e peixe a um só tempo. Nessa perpetuidade de
perspectivas, quem sabe quantas vertentes não podemos despertar! Em
seu novo aspecto físico Bertha Malik notou que agora passaram a se comunicar
telepaticamente. – A alteridade é também um enunciado alienígena,
suspeitou ela. – Instabilidades e dissimulações nos revestem de
gestos afetados, cenas primárias, associações histéricas, seguiu
formulando. A quem interrogar quando a memória se despedaça e reconhecemos
apenas o abalo de seus fragmentos indisciplinados? Como refutar a inversão do
tempo se um de nossos estados físicos a todo instante nos evita? As suspeitas
iam exibindo seus sintomas como uma fartura de riscos. Lenilde Fablas presumiu
que talvez persistissem irreconhecíveis aquelas desconfianças. – Não
me parece que o peixe que somos venha a decifrar os enigmas dessas mulheres
adormecidas na sala, mesmo que também sejamos parte delas, quase chegou a
sentenciar. E novo desassossego se estabeleceu entre elas. – Toda
forma de prudência é suspeita. É impossível haver exatidão em cena, mesmo quando
um ato é mera réplica de outro. As imagens correspondentes à verdade serão
sempre ambíguas. Na medida em que Lueji Llalej ia acumulando seus
provérbios automáticos, a imensidão azul que abrigava os sete peixes foi
perdendo sua condição líquida e imitando a ondulação de uma cortina etérea e
uma vez mais os corpos foram alterados, agora alongados e surgiam inesperadas
asas e garras, como serpentes mitológicas, que logo foram reproduzindo em sua
face o semblante de cada uma das sete mulheres. Talvez ali finalmente se
delineasse a chave da posteridade. Uma projeção de mundos germinados de
retalhos de evidências e paradoxos que só alcançariam sua riqueza expressiva em
uma simultaneidade de contradições. Um mundo em que o tempo não faria mais
sentido. Em que a verdade não faria falta. O mundo de plena perplexidade
simétrica. Seria possível algo assim? Quem estaria disposto ao impulso vital
para sua criação? Na medida em que as serpentes moviam suas asas as sete
mulheres começaram a se agitar, até que se ouviu um ruído exaltado e o súbito
despertar de seus corpos.
CONFABULAÇÃO DE FANTASMAS, 2
Ao despertar
nenhuma das sete mulheres sabia o que estava fazendo naquela sala, nem mesmo se
reconheciam entre si. Entre confusas e espantadas, cada uma murmurando uma espécie
de linguagem incompreensiva, subitamente mal haviam sentado foram atraídas de
volta ao sofá e colchonetes. Os braços à altura da cabeça, o olhar de
desespero, como se estivessem presas de alguém. Por toda a casa era possível
escutar sons desconexos, uma quebradeira de louças e vidros, a estridência de
metais, a água escorrendo nas torneiras do banheiro e da cozinha. A própria
cabana parecia suspensa no espaço, a entoar um lamento de desamparo. A cena
inteira não deve ter ultrapassado a cota dos segundos que a perplexidade lhe
permitia. Um estrondoso silêncio se seguiu, nenhuma das mulheres esboçava ter
consciência do ocorrido. A evidência é um braço do discernimento. Os fantasmas
não reconhecem a moralidade, zombam de seus atributos, infringem todas as
tábuas do pudor. Lenilde Fablas se senta no sofá e vocifera o nome da filha:
– Eleanor, Eleanor…
– O que houve, ‘Nilde?
– Eu fiz um caminho por onde deveríamos ter passado. O caminho
queria crescer dentro de nossos passos. As pernas queriam um caminho escrito na
medida em que avançavam. O caminho entoava seus carvões e nós crescíamos dentro
dele. O chão prosseguia não importa em que mundo penetrasse. As pernas se
fartavam de mistérios de toda sorte. Os caminhos são um louvor àqueles que
perderam o coração no abismo. A terra se levanta provando que é possível
extrair caminhos do nada. Eu fiz um modo dos ventos serem sempre favoráveis.
Uma estrela que descansa em nosso ventre e nos guia. Eu fiz as pernas que nos
dariam um caminho sem fim.
Lenilde entoava o que parecia ser o hino, quase cantarolado, na suave
firmeza de uma voz que não era sua, o olhar fixo no vazio, decerto possuída por
alguma desconhecida entidade. Em seguida parecia dirigir-se a cada uma de suas
amigas. A Emilia pediu que escondesse melhor sua estrela. – Terás
que me ensinar como fazê-lo. Rogou a Ada que desse a seu caminho um melhor
propósito. – Terás que me ensinar como fazê-lo. Dirigiu-se a
Lueji evocando um descanso nas noites tempestuosas. – Terás que me
ensinar como fazê-lo. Na vez de Komako implorou que ela jamais dissesse uma
mentira que não contivesse a verdade. – Terás que me ensinar como
fazê-lo. Buscou em Bertha a certeza de que a eternidade não seria
castigada. – Terás que me ensinar como fazê-lo. Sustentou que
Rebeka protegeria o manancial de suas dádivas. – Terás que me
ensinar como fazê-lo. Cada uma delas parecia igualmente não ter controle
sobre suas falas. A cena reproduzia um ritual escrito à revelia. E se desfez
tão logo atingiu seu desígnio. A pequena voz de Lenilde foi a primeira a
manifestar uma combinação de frio e fome. Algumas velas ainda estavam acesas
pelo chão da sala. A noite mantinha sua majestosa sedução. Lenilde e Rebeka se
dirigiram à cozinha decididas a preparar algo para comer, seguidas por Emilia e
Lueji que trataram de abrir duas garrafas de vinho. Ada foi ao banheiro. Komako
sentou-se diante de uma das paredes para desfiar as sílabas de sua devoção.
Bertha reacendeu as velas apagadas. A velha cabana parecia recuperar um pouco
de sua tranquilidade. Observando de longe o que víamos era um breve ensaio de
plenitude. Como se o acaso desse uma trégua àquelas mulheres.
PRIMEIRO MANUSCRITO EXTRAVIADO
O horizonte
deve conter a cilada de seus extremos. A travessia acidental dos desapegos.
Tudo em sua pele será escrito como se fosse a feição triunfante do caos. Uma
alegoria com suas faixas de extravios e a rebentação das águas que levamos em
nosso íntimo. Os deuses insistem na decomposição das causas humanas, de modo
que é preciso não deixar os corpos perecerem sob o selo das falsificações
clericais. É preciso guardar o vigor que nos protegerá das sutilezas da moral.
Manter abertas as portas para que o ar agitado do imprevisto circunde nossos
corpos permitindo que as forças ocultas não cessem de buscar a rubrica de suas
bênçãos. Eis onde viemos dar. Eis onde estamos.
Em outra página desgastada também estava anotado:
Não importam os mundos esquecidos, as chacinas na memória, os frequentes
atentados contra a preservação do mistério. Há um furor mortal nos fanatismos
que não devemos deixar invadir o palco de nossa representação da história.
Ainda que toda escrita seja queimada, algo em nosso espírito deve se manter
radiante como a fiação elétrica das descobertas incessantes. Pássaros ou
serpentes, deuses ou vultos irreconhecíveis, não devemos temer o empirismo
desde que ele não se limite a criar uma teia de ilusões. Os caminhos da
eficácia não devem ser perturbados pelos falsos iniciados. Mesmo quando os
vestígios de algumas civilizações são destruídos, devemos manter a irradiação
do milagre. Recordemos com a sombra astral de Robert Charroux: O mistério não está na interpretação ou na
influência caprichosa dos astros, mas na capacidade diferente de recepção dos
indivíduos.
SAGRADAS OFERENDAS
– Alguma de vocês ouviu falar em Eleanor Elbe?
– De onde veio este nome, ‘Nilde?
– Não sei. Eu senti a presença de um vulto passando à minha frente e
logo me surgiu o nome. Nenhuma ideia de quem seja ou o que possa significar.
– Ele me lembra algo…
– O que seria, Komako?
– Um cartão postal sobre a mesa lá fora, havia a foto de um cubo
transparente e dentro dele uma criança chorava. Quando te ouvi perguntar
imediatamente pensei nisto. Vou ver se ainda o encontro.
– Mas por que não me recordo disto?
– Não sei, Lenilde. Talvez apenas eu tenha visto o cartão.
Ao abrir a porta Komako se espanta ao ver sobre a mesa na varanda não o
cartão, mas sim o cubo que ela mencionara. Um pequeno objeto que cabia em sua
mão cintilava um enigma incompreensível. – Vejam a criança lá dentro.
Como é possível? Rebeka foi a primeira a se aproximar. – Eu a
vi em um sonho, seu nome é Inaiê. Porém apenas elas duas viram uma
pessoa dentro do cubo. Cada uma das demais teve um vislumbre distinto. Emilia
viu uma água corrente com alguns peixes saltando. Ada não quis pegar na caixa
temendo ser queimada pelo fogo que lhe tomava todo o interior. Lueji não viu
nada, porém levou as mãos às orelhas por conta dos fortes gritos que escutava.
Bertha viu um santuário de espelhos que evocavam o infinito. Quando Lenilde se
aproximou empalideceu de horror ao reconhecer a presença de sete mulheres sem
rosto, o corpo escuro como se fosse apenas as sombras delas. – Somos
nós, vejam, como é possível que estejamos dentro desse cubo? As visões
se perdiam na passagem de um olhar para outro. – Não é possível que
cada uma de nós veja algo diferente, disse Komako. Algumas vezes ela mudou
de posição o cubo, inclusive o emborcando, sem que nada alterasse a perspectiva
assimilada pelo olhar delas. Em seguida o colocou sobre a mesa. Ada permanecia
afastada e Lueji contraía o rosto, as mãos abafando os gritos.
– A nossa força é a mesma desses vultos, essas sombras que se alimentam
de minha visão. Não podemos ter ilusões distintas. Eu peço que todas fechem os
olhos. Não há fogo ou rio, gritos ou espelhos, ancestralidade ou profecia.
Somos apenas nós. Abram os olhos e vejam como nossa força nutre as imagens
manchadas do que vemos. Embora não saibamos como fomos parar no interior desse
cubo, muito menos como é possível que nos vejamos ali em gestos
dessincronizados do que temos aqui fora, mesmo assim, ali estamos, em um lugar
que desconhecemos, sem saber que ritos cumprimos ou se acaso estamos fugindo de
algo. Talvez se nos concentrarmos em nossa força derrubemos essa barreira
indecifrável e abracemos a nossa essência. Temos que delinear com nossos corpos
as colunas que nos prepararão para sustentar a ausência do tempo e a
dissimulação do espaço.
– Começo a sentir a nossa presença, ‘Nilde, no interior do cubo.
– Eu te quero sempre a meu lado, o meu amor se derrama sobre o teu em
uma mesma direção. Mas agora temos que ser as sete em uma reciprocidade
soberana.
[Komako] A miragem se foi. Somos nós as sete pilastras.
[Bertha] Os espelhos se foram. Somos nós as sete eras.
[Ada] O fogo se foi. Somos nós as sete terras.
[Lueji] Os gritos se foram. Somos nós as sete árvores.
[Emilia] As águas se foram. Somos nós as sete luzes.
[Rebeka] Os mitos se foram. Somos nós os sete saltos.
– Agora vocês compreenderam. A nossa força nos trouxe para a medula
desse cubo que esplende o princípio de todas as coisas. Agora podemos sair à
procura de Eleanor Elbe. Ela certamente deve estar no interior de uma esfera.
REBEKA NACERI
A morte é
irrelevante. Como tudo que é inevitável. As luzes estão pequenas para que
as árvores cresçam dentro delas. As pessoas repetiam isto. Uma amiga
estava comigo quando em meio a um vento mais forte eu tive uma cegueira
momentânea. Ela me disse que surgiram no céu três círculos de luz que logo se
fundiram em um só assumindo a forma de uma bola luminosa que lentamente se
aproximava do centro da praça. Alguns anos se passaram e de algum modo as
pessoas se acostumaram com a presença daquele objeto que emitia uma luz em
sincronizada rotação. A minha amiga permaneceu a meu lado, gostava das
histórias que passei a recordar como se as tivesse vivido. Ela se impressionava
tanto e a todo instante me pedia que as repetisse. Quase sempre as mesmas
histórias, embora aos poucos eu fosse criando variações e em algum momento até
mesmo introduzindo novas lembranças. Quem sabe em meu íntimo eu acreditasse que
a memória aprimora a existência.
Uma noite despertei com a presença em meu sonho de uma garota que
entrava no ônibus em que eu estava e si dirigia direto a mim gritando: Saia já
daqui! O mesmo sonho marcou diversas noites sequenciadas, sem que eu
compreendesse seus motivos. É difícil acreditar que os sonhos não tenham um
motivo, sobretudo quando são tão nítidos. Em meu caso, também me assustava que
aquele mesmo sonho procurasse por mim, como se tivesse algo a revelar. Não
contei quantas noites, porém um dia tudo aquilo acabou e nunca mais voltei a
sonhar com a moça e o ônibus. Meses depois eu estava na casa de uma amiga e
quando batem à porta eu reconheci a garota do sonho. Não escondi a palidez de
meu assombro, o tremor da alma. Sem saber ao certo o que fazer, saí da casa em
disparada pelas ruas. Tudo aquilo me parecia algo medonho, o sonho retornara a
me dizer algo sem que, uma vez mais, eu compreendesse o seu recado. No dia seguinte
a arte real das revelações vem ao meu alcance, quando escuto uma vizinha
conversando com a minha mãe, as duas comentando o brutal assassinato que houve
na casa de minha amiga. A resistência a um roubo fez com as três mulheres
naquela casa fossem mortas. O inevitável vive à sombra do desconhecido? O que
fazer com a vida quando ela se interrompe de modo tão imprevisto?
– Mas não soubeste das mortes graças à conversa da vizinha com tua mãe!
– Sei que não, porém acredito que assim desenho melhor a entrada do
enigma no mundo real. Foi a solução que encontrei para vestir melhor a grandeza
dessa incógnita.
– Rebeka, a todo instante tens que estar inventando algo. Mas já que
falaste em tua mãe, conta aquela outra história dela.
A mãe costumava ver à noite um fantasma, uma mulher toda de branco, que
entrava na casa atravessando as paredes e se dirigia a um local na sala ficando
ali parada por algum tempo e depois ia embora. Sempre o mesmo lugar, como
um sinal. A mãe pensou em uma botija e convenceu o pai a cavar. Três metros de
profundidade e se viu uma espécie de túnel revestido de uma madeira
envelhecida. O túnel se ramificava em cavidades que iam dar em pequenas grutas.
Em uma primeira delas foram encontrados esqueletos humanos. A pequena estatura
parecia ser de crianças, porém o formato do crânio era alongado e encurvado
para trás. A cena parecia ser o desenho de uma alegoria, o alerta de uma
parábola, como nos sonhos. Uma segunda gruta era abrigo de um amontoado de
minúsculas esculturas em madeira, carcomidas pelo tempo, as peças mescladas e
fundidas umas nas outras, formando uma espécie de cenário vivo de uma
catástrofe ocorrida em plena orgia de todos os habitantes de um lugar. Rostos
apavorados, braços, pernas, torsos sinuosos, formas apodrecidas e úmidas, se
misturavam a restos de mobília. Após um longo canal era possível chegar à
terceira gruta, habitada unicamente por uma escada fincada ao chão, no centro
do cômodo, cuja extensão se desconhecia, pois, acompanhando seus degraus com o
olhar, a escuridão logo tomava conta de tudo. As três pessoas que trabalhavam
com o pai, uma a uma, subiram pela escada, a ver onde ela daria. Cada uma delas
por lá ficou, nas alturas daquele estado absoluto do breu. A engrenagem do
mistério se completara com aquela excentricidade exacerbada. O pai temia pelo
desdobramento do inexplicável e me tirou dali. Voltamos pelas duas grutas, das
esculturas e dos ossos, o pai me fez subir primeiro à aparente normalidade da
casa, que agora se encontrava vazia. Nem a mãe, nem os móveis, não havia nada
ali. Era como se tivéssemos dado em outro lugar. Quando olho para o pai, o
buraco que fora aberto não está lá. Também o pai havia desaparecido. Onde eu
estava era algo impossível de desvendar. Parecia a mesma casa, esvaziada de
seres e objetos. Inutilmente tentei abrir portas e janelas. Eu estava presa
naquele lugar, privada de sentidos.
– Mas a história não era assim, Rebeka.
– As histórias mudam. Ninguém extrai da repetição o sentido prodigioso
da vida.
– Se é verdade, então podemos inventar destinos diversos para uma mesma
pessoa. Conviver com inúmeros significados que representem as aparentes
semelhanças entre homens e animais. De quem seriam aqueles ossos encontrados na
primeira gruta?
– Os preconceitos puritanos prostituem os princípios sagrados do
espírito. O que criamos, o que movemos, aquilo do que nos desfazemos, os
significados que plantamos como uma nova perspectiva da existência, tudo isto,
nós vamos retaliando de forma regular, intoxicando a percepção, até que
deixamos de ser estrelas e os únicos estímulos que perduram são os da
repetição. E os nossos duplos – bem como os duplos de nossos duplos e sempre
sucessivamente – passam a reproduzir os mesmos espasmos, com a mesma frequência
de caprichos.
– Mas… e os ossos?
– Imaginemos que aqueles três círculos de luz que eu vi quando estavas a
meu lado, que eles representavam os três reinos da natureza. É possível que
esta compreensão tenha vindo de muito longe, o que nos tornou conscientes de
nosso destino na terra. Que os três círculos tenham se fundido em um só, bem
podemos imaginar que seja o alerta de que, ao separá-los, apressamos a
destruição do que somos. O homem é a raiz de todas as coisas, pois é dele a
consciência de cada partícula de vida. A primeira gruta representa a infância,
o formato dos ossos nada mais é do que a origem, os primeiros seres aqui
chegados. A segunda gruta é a sexualidade, sugere as nossas descobertas, e o
estado de decomposição que ali encontramos não é outra coisa senão a imundície
gerada pelas convenções e a intolerância. Quando chegamos na terceira gruta,
era inevitável que déssemos de cara com o vazio, o mundo despovoado.
Não havia mais nada que eu pudesse dizer que não fosse um naufrágio de
paradigmas. As drogas, as religiões, os mercados, tudo isto nos levou ao centro
de produção industrial das repetições, onde a morte – como uma programada
ausência de variação de sentidos – é verdadeiramente irrelevante.
ADA GARCÍA
Eu preciso
encontrar o ponto onde as formas se retorcem e criam a miragem que orienta
nosso olhar. Onde as pedras relutam em fixar suas semelhanças. O olhar explora
a dança dos sentidos. Eu teria que pintar a queda. Há um ninho em que o
maravilhoso prepara sua alma. Um acidente em que a noite fala sozinha. Eu nunca
estive aqui. E as formas que imaginei não param de ser outras. Devo então
começar assim o meu dia:
As estradas por onde passo…
O fato de que eu não toque nos fios dos fantoches não significa que eles
não atendam os meus desejos. Sete vezes andei por aqui, circundando a rigidez
dos pontos. Nenhum deles abandonava seu posto. No entanto as cordas
entrelaçadas em todos eles regiam uma representação voraz dos movimentos. Foi
de tanto percorrer a arbitrariedade dos modelos que me perdi em traços eróticos
que fulminavam as simulações da morte. Dar forma a tudo, a cada instante. E não
desprezar nunca o requinte de vulgaridade da madona que sorri.
As silhuetas se desprendiam do corpo criando dificuldades para os
caminhos que virão. Na decomposição dessas serpentes de água eu identificava a
aura dos desafios. Criar não permite lamentar morrer. As dores apressam o passo
dos deuses. Tudo o que sabemos pode ser esquecido se a modelo deixa cair o
tecido antes do tempo. Uma ironia virtuosa nos leva da lâmpada sangrenta à
pálida duplicata de seus caprichos. O traço feroz possui o seu engenho
meticuloso e não há pássaro que se reconheça no voo de outro.
As estradas passam todas por aqui…
As árvores não veem no bosque um desterro óptico. Elas estão ali como se
houvessem descoberto outra versão do mundo. Essa culinária de vertigens não dá
um falso testemunho da realidade. As coisas que se mostram fora de lugar nem
sempre se dissipam como um engano. Muitas evoluem como uma civilização
imprevisível. O majestoso banquete do paraíso refeito, com uma letra, uma
pincelada, uma gota d’agua na folha. Nada em meu olhar quer ser um ícone.
Quando reuni o meu pequeno grupo de sonhadoras, Myriam foi a primeira a lembrar
que os meios mais poderosos são aqueles que não estão ao nosso alcance. Sem o
arrebatamento do impossível não é possível criar nada. Logo se juntaram a nós
Zainah, Carmem e Giuliana – nosso quinteto dedicado a desvendar a matéria
oculta em todas as forças da natureza.
CARMEM
Não há razão
de ser na duração da felicidade.
ZAINAH
O casto é
manipulado pelos malefícios da perda da libido. Assim como aquele que jejua
cultua apenas a miséria de seu próprio ser. Os sacrifícios programados eliminam
toda a perspectiva de renascimento.
MYRIAM
Giuliana
outro dia nos lembrou que os nossos sentidos não atuam como a necessidade de
controle, mas antes com aquela densidade líquida de um transe automático. As
sombras podem ser localizadas em seus esconderijos, à espreita dos estados
fugazes da matéria, mas como um fluxo revigorante do fogo que a todo instante
nos transporta para o interior de novas formas.
GIULIANA
Um enunciado
acidental da chama que tanto queima quanto ilumina. Nós somos perpetuamente
acesas pelo fogo.
As estradas que não deixamos passar…
Nosso quinteto buscava uma harmonia das formas, desde o primitivo
segredo oculto sob o universo identificado como princípio de tudo, até os
vendavais da perfeição que traz o mundo às suas costas. Éramos as cinco
harmonias sucessivas, as cinco mulheres indissolúveis.
Mesmo quando planejávamos o excesso sabíamos que a resultante seria
sempre inacabada. A morte não é uma manifestação do destino cumprido. As
origens, os sabores, as vísceras, sob a tábua harmônica em que nos reuníamos, a
quintessência de nossas propensões era sempre a busca de uma regeneração
incansável.
A ideia de que tudo é inconcluso sempre nos despertou um estímulo pela
combinação perene de cifras e signos. Juntas avançamos em tantas casas, mais do
que poderia suportar o destino de cada uma de nós. Até que um dia não estávamos
mais ali.
Tanto se misturaram as estradas que deixaram de passar…
KOMAKO RACHIRI
Eu sempre me
senti fora do mundo. Desde pequena passava horas deitada de bruços no centro de
meu quarto, rabiscando traços e letras, fingindo personagens que me visitavam
de romances e filmes, sonhando com o dia em que poderia fazer com que eles se
encontrassem todos em uma história em quadrinhos. Era preciso ir até o fundo
daquelas mentes, descobrir a raiz de seus prodígios. O desenho deveria vir com
a escrita, somente ao friccionar as duas linguagens eu criaria um mundo à
medida de minhas extravagâncias. Sonhava com o momento em que pudesse criar um
cenário de predações. Fui manipulando todo aquele ouro de sombras que ia
surgindo, até que um dia surgiu diante de mim a enfermeira Juana Guaita e me
disse: Há muito não há mais realidade possível. A realidade é a soma de
algumas fortuitas impossibilidades. Diante daquela imagem eu compreendi que
havia chegado a hora de deixar que ela mesma me guiasse pelo labirinto de suas
artimanhas. Juana e a pincelada objetiva de seu devaneio. Dei asas à sintaxe de
meus instrumentos delicados: guache, pincéis, carvões, sedas, lápis, tesoura,
cola, usei de tudo como uma verdadeira máquina de espasmos, até que… Ali
estava, a firme expressão primordial de tanta ambiguidade. Talvez nem houvesse
outro modo da arte dizer a si mesma que teve atendidas as suas aspirações. E no
centro daquele teatro onírico, Juana Guaita me dava sua aprovação.
Página 1 – Visão de fora do casarão. Com certo aspecto de uma
mansão mal-assombrada vulgar.
Página 2 – Detalhe da porta vista por dentro, uma mulher dando
passo a uma visitante.
A CONDESSA TRAMPOSA
Eu gosto das
noites cobertas de mistério. Uma sombra espelhada e outra espalhada até onde a
vista alcança. Eu vim aqui buscar a minha mãe. Uma carta me disse o lugar e me
prevenia que não devo confundir origem e fim.
Página 3 – A enfermeira recebe a visitante:
JUANA GUAITA
Lamento o
que houve com a tua mãe. Ela certamente não gostaria de estar aqui. Mas não
sabemos quem a trouxe.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Não é o que
importa. Suponho que ela soubesse o que estava se passando.
As duas adentram um quarto onde no centro se encontra uma maca com o
corpo da mãe.
JUANA GUAITA
Tudo o que
podemos fazer nesta vida é presumir.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Nada
equivale ao esplendor da aventura.
Página 4 – A filha beija os lábios da mãe morta.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Um céu… Por
conta de tudo o que nos falta nessa vida.
JUANA GUAITA
Talvez eu
deva recordar o que se passou aqui com a chegada de seu corpo.
A CONDESSA
TRAMPOSA
As
revelações do cadáver…
CADÁVER DA
MÃE
Eu não direi
nada.
JUANA GUAITA
Ela é
contrária à ideia que temos de cova. O senhor terá que decidir qual destino dar
à tua mãe.
Página 5 – Segue o diálogo entre os personagens:
A CONDESSA
TRAMPOSA
Tenho que
devorá-la. Porém não posso fazê-lo enquanto ela tenha algo a dizer.
CADÁVER DA
MÃE
Não vou a
parte alguma.
JUANA GUAITA
Desejas
ficar a sós com ela em uma página?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Eu a conheço
como uma flecha a quem jamais lhe importou o alvo.
JUANA GUAITA
Não terá
então o que dizer?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Tampouco nos
deixará tranquilos. Há uma fornalha aqui?
Página 6 – Outros planos internos do casarão. Corredores
com um aspecto lúgubre. Do interior de duas portas distintas saem dois novos
personagens: uma retraída, outra expansiva.
COMIGO
De que lado
fica a ausência?
CONTIGO
Quem se
importa com ela?
COMIGO
Não me
repreendas. Quero apenas saber onde estou?
CONTIGO
Seguramente
não estamos em parte alguma.
COMIGO
Eu me sinto
sozinho quando não sei ao que correspondo.
CONTIGO
Eu
detestaria não ter a quem revelar meus planos.
COMIGO
Há modos
infinitos de fazer parte do mundo.
CONTIGO
Mas nada
supera consagrar aos deuses a emanação das formas que não compreendemos.
COMIGO
Para que
sejam eles a dizer que não há sentido algum na existência?
CONTIGO
Os símbolos
são misteriosos. Os deuses deveriam saber disto. Quem gostaria de tomar para si
um deus que desconhece seu prelado?
Página 7 – Dois quadrinhos, cada um expressando o rosto de uma
das loucas, sua reação singular ao tema do mistério.
Página 8 – Outro aposento, mobiliado apenas por um espelho de
tamanho natural de corpo humano, rente ao chão em uma das paredes. Entram em
cena a enfermeira e a exorcista cega.
JUANA GUAITA
O senhor
deve aguardar aqui.
SOFIA
MOURISCA
Mas eu disse
que queria ficar a sós…
JUANA GUAITA
Eu sairei.
SOFIA
MOURISCA
E os demais?
JUANA GUAITA
As câmaras
foram desligadas.
SOFIA
MOURISCA
A matéria
nem sempre possui a forma que desejamos.
JUANA GUAITA
Quem mais
está aqui conosco?
SOFIA
MOURISCA
A garota que
fica o tempo todo a desenhar a casa para onde quer regressar.
JUANA GUAITA
Mas ela está
em outro quarto.
SOFIA
MOURISCA
Não há
muitos quartos aqui. Muitos estamos no mesmo.
Página 9 – O consultório central. A enfermeira se encontra à
frente da mesa da psiquiatra chefe.
JUANA GUAITA
Devemos nos
preocupar com o cego?
DRA GENARA
FIORD
Não, pelo
contrário. Ele nos trará essa garota desenhista, uma jovem quebrada pela
obsessão…
JUANA GUAITA
Mas de onde
ela virá?
DRA GENARA
FIORD
Do espelho,
quem sabe…
Página 10 – De volta ao quarto onde está a exorcista cega,
sozinha. Aos poucos vemos um corpo tomando forma no espelho. Toda esta página
descreve a magia do surgimento do personagem anunciado.
Página 11 – A jovem diante da cega. Ela indaga:
SOFIA
MOURISCA
Já conhecias
esta casa?
KALIGA POTT
Os
vislumbres mais nos aproximam do que nos afastam da realidade.
SOFIA
MOURISCA
Já estivemos
aqui?
KALIGA POTT
Talvez. Para
identificar um crime.
SOFIA
MOURISCA
Para isto
servimos…
KALIGA POTT
O mundo está
repleto de crimes.
SOFIA
MOURISCA
Quem matou a
mãe do satanista?
KALIGA POTT
Ela já
chegou morta em qualquer lugar.
SOFIA
MOURISCA
Isto não
existe.
KALIGA POTT
A existência
é tudo aquilo em que cremos.
SOFIA
MOURISCA
Quem crê na
loucura?
KALIGA POTT
Quem crê na
razão?
Página 12 – A satanista diante do cadáver de sua mãe.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Uns minutos
antes de sua morte, eu poderia saber o que houve.
CADÁVER DA
MÃE
Eu não direi
nada.
A CONDESSA
TRAMPOSA
De algum
modo eu teria me devotado aos nossos laços.
A enfermeira retorna, juntamente com a psiquiatra chefe.
JUANA GUAITA
Lamento,
senhora, porém ela já não poderia nos revelar nada.
DRA GENARA
FIORD
Isto muito
me desconforta, pois gostaríamos de contar com tua ajuda.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Não vejo em
que uma coisa impeça outra.
Página 13 – De volta ao consultório, encontram-se agora
psiquiatra e satanista:
DRA GENARA
FIORD
Quantas
vezes os encantamentos de amor podem transbordar o alcance de seus efeitos?
A CONDESSA
TRAMPOSA
A todo
instante. Não é como gostar ou desconfiar. Prever sol ou chuva. Todo mal
conhece o risco que corre de tornar-se um bem.
DRA GENARA
FIORD
Temos
aberrações de sobra.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Elas são
anunciadas por toda parte.
DRA GENARA
FIORD
Uma mulher
sabe a hora de seu traje vermelho, e logo se reconhece entre uma credulidade de
rostos que passam.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Os códigos
de campo foram distribuídos como medalhas ao revés.
DRA GENARA
FIORD
Por que te
chamam de satanista desatualizado?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Porque todos
creem que a magia foi enterrada pela mesma pá da vulgarização dos símbolos.
DRA GENARA
FIORD
Somos o
passado?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Há muitos
passos. Somos aquele que ninguém quer.
Página 14 – A enfermeira sozinha em seu quarto, uma cama, ela
deitada, nua, toca seu corpo em um solilóquio:
JUANA GUAITA
Eu dei a
minha vida para estar aqui. Os corpos surgindo com sua lubricidade fascinante.
Mórbidos, cada um, em seu dilema. Porém viris e fieis. Cheguei a tê-los de mil
formas, cada um com seu espectro reservado. A cada um deles dediquei uma
fantasia de meu corpo, uma hipótese de meu orgasmo. Ahhhhhhhhh aonde nós iremos
agora, quando o mundo se tornou tão similar?
Página 15 – Passeando pelo corredor, as duas loucas:
CONTIGO
Algo te
falta aqui?
COMIGO
Nem por
sonho! A natureza é a mesma, como uma fábula espigada, sempre que a convocamos.
CONTIGO
Por isto te
aquietas como uma estátua calada por sua absolvição?
COMIGO
Eu gozo com
todas as divindades. Não evito a presença sugestiva de qualquer sexo. Há tanto
mortos com personalidade quanto fantasmas bem-dotados. Aqueles que eu quero,
pela frente, os outros, que só aceito por trás. Estabelecer a diferença, entre
dois seres paridos pela mesma natureza, isto sim, é diabólico.
CONTIGO
Ah ah ah
Divindade o inferno! O que queres é foder, nada mais!
COMIGO
O que posso
fazer com teu espírito quando ele queima diante de ti sem uma única chama?
CONTIGO
Diz que me
ama…
COMIGO
Quem sabe em
outra vida…
Página 16 – O corredor vazio.
Página 17 – A enfermeira sai de uma porta e se dirige até outra,
onde entra.
Página 18 – Dentro do quarto há apenas um espelho na parede,
rente ao chão, e uma mulher agachada, cabelos desgrenhados, metida em uma
camisa-de-força.
RENÉ DEL RÍO
Quantos
nomes eu dei ao acaso até que viesses me ver…
JUANA GUAITA
Mas por que
ainda precisas de mim?
RENÉ DEL RÍO
És a única
que sabes o que se passa aqui. A única a compreender que não posso ser culpada
pelo que vejo.
JUANA GUAITA
O doutor não
está certo de que sejam visões.
RENÉ DEL RÍO
E por que
diabos eu me fingiria de louca?
Página 19 – Continua.
JUANA GUAITA
A loucura
não se conclui. É uma ambição sem ponta ou margem.
RENÉ DEL RÍO
O meu desejo
também não tem fim.
JUANA GUAITA
Porém a
loucura é sinistra. O desejo é um tormento feliz.
RENÉ DEL RÍO
Os corpos
que vejo saírem de mim possuem uma expressão sensual.
JUANA GUAITA
Mas são
muitos…
RENÉ DEL RÍO
Não tenho
como contá-los…
JUANA GUAITA
Sabes de
onde eles vêm?
RENÉ DEL RÍO
Nenhum deles
conversa comigo.
JUANA GUAITA
E este
silêncio, não te revela nada?
Página 20 – Close do rosto da ninfomaníaca espírita. Em sua fronte
se reflete o espelho da parede e de seu interior sai um lagarto.
Página 21 – Recorte lateral do quarto, mostrando o lagarto
saindo do espelho. Na medida em que sai ele se transforma em um anjo negro. O
anjo paira suspenso no ar.
JUANA GUAITA
Vejo agora
como atua o desejo no centro de tuas visões.
RENÉ DEL RÍO
Se me
tocasses verias ainda melhor.
JUANA GUAITA
Resisto ao
princípio numinoso de tuas virtudes esgarçadas.
RENÉ DEL RÍO
Não tens que
resistir. Não estamos aqui para renovar ou destruir nada.
JUANA GUAITA
Mas os
nossos sonhos…
RENÉ DEL RÍO
Nós apenas
imitamos as forças destrutivas e renovadoras da natureza.
JUANA GUAITA
E as fontes
humanas?
RENÉ DEL RÍO
Sexo, minha
linda, não somos mais do que esse fogo avassalador e orgíaco.
Página 22 – Continua. O anjo se excita na medida em que perde as
asas, porém segue levitando.
RENÉ DEL RÍO
O sexo dá
sentido à brutalidade do mundo.
JUANA GUAITA
Como uma
dissolução de tudo?
RENÉ DEL RÍO
Como a
grande força indiferenciada, que não reconhece nenhuma outra.
JUANA GUAITA
Deus!
RENÉ DEL RÍO
O meu deus
feito carne dentro de mim!
O anjo feito homem envolve o corpo da enfermeira, sem que ela o perceba,
e em um segundo ambos desaparecem, ante a risada descarnada da ninfomaníaca.
Página 23 – Em meio à sua crise de riso entram no quarto a
psiquiatra e a exorcista.
DRA GENARA
FIORD
Tudo nela se
realiza no olhar.
SOFIA
MOURISCA
Há quem
tenha o sol na boca. Ela o tem guardado na íris.
RENÉ DEL RÍO
Mmmm, dois
de uma só vez…
DRA GENARA
FIORD
Veja como
insiste em definir seu corpo como uma mansão vazia.
SOFIA
MOURISCA
É ele. Não
há dúvida. O mesmo arquétipo banal.
RENÉ DEL RÍO
Qual dos
dois me desamarrará primeiro?
DRA GENARA
FIORD
Pincela o
próprio corpo com uma clarividência anárquica.
SOFIA
MOURISCA
Não te
deixes iludir por sua assimetria.
RENÉ DEL RÍO
Rogo por um
pedacinho selado do primitivo de cada um.
Página 24 – Continua.
SOFIA
MOURISCA
Vamos
começar.
DRA GENARA
FIORD
Sem
paramentos?
SOFIA
MOURISCA
Os
paramentos quando muito fornecem as guias para a decomposição do espírito.
RENÉ DEL RÍO
Um
instruído!
SOFIA
MOURISCA
Deixemos que
ele se entupa de si mesmo, até que o corpo que ocupa se torne insuficiente.
Página 25 – Corta para o quarto onde se encontra o cadáver da
mãe sobre a maca. Há ali agora uma pequena mesa, onde a garota desenhista
rabisca as suas imagens. A satanista desatualizada está ao seu lado.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Eu pus um pé
no nome e outro na estrada. Por onde andei tudo parecia ser o mesmo, embora
mudasse de nome.
KALIGA POTT
As formas
são uma adoração do lugar onde estão.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Sempre
pensei que fossem como um céu caindo o tempo inteiro fora de lugar.
KALIGA POTT
Veja quantas
vezes desenhei o cadáver imóvel de tua mãe. No entanto nenhum desenho se
assemelha ao outro.
CADÁVER DA
MÃE
Procurem não
falar comigo.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Eu ainda me
calo sobre os antigos sortilégios.
KALIGA POTT
Eles não
existem mais. Tudo gira em torno da receptividade. Negociada como hóstias fabricadas
no quintal ou sonhos roubados.
Página 26 – Continua.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Porém sua
imagem me amarra e nada mais me satisfaz tanto quanto o seu fantasma exaltado.
CADÁVER DA
MÃE
Não
insistam.
KALIGA POTT
As noites
fazem desaparecer as razões do dia. Os dias somem com os malefícios da noite.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Como um
plano divino?
KALIGA POTT
Como uma
abundância da pior impotência: a crença. Observa o que desenharei:
Página 27 – Ela desenha a cena em que o anjo tornado homem
envolve a enfermeira e ambos desaparecem diante do sorriso descarnado da
ninfomaníaca.
Página 28 – Ela mostra o desenho ao satanista:
KALIGA POTT
O que vês? O
que chama para dentro ou o que expulsa?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Uma ilusão.
KALIGA POTT
Exato. A
mesma pedrinha vista por dentro ou por fora. O deus que por vezes trazemos para
dentro de casa não é senão o diabo que nos dá imenso trabalho de expulsar.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Como
distinguir entre mau-olhado e semelhança?
KALIGA POTT
Ainda crês
nisto? Que uma só palavra guarde em si toda a jactância do mundo?
A CONDESSA
TRAMPOSA
A verdade é
que já não sei o que buscar…
KALIGA POTT
Por que
estamos aqui neste casarão?
A CONDESSA
TRAMPOSA
A Dra. Fiord
me convidou para auxiliar no caso de uma ninfomaníaca que manifestara poderes
mediúnicos.
KALIGA POTT
E não
estranhaste essa cumplicidade entre ciência e religião?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Sempre
imaginei que o homem um dia alcançaria uma espécie de harmonia improvisada…
KALIGA POTT
Agora sabes
o que querem de ti: a tua inocência.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Eu não posso
estar de acordo ao mesmo tempo com o ferro e o ferrolho.
Página 29 – O quarto vazio, exceto pela maca onde se encontra o
cadáver da mãe.
Página 30 – O corredor.
COMIGO
Eu dei à
imaginação um jeito dela se libertar de si mesma.
CONTIGO
Eu concluí
que ela sempre olha para seu pé indagando pela cabeça.
COMIGO
O que fazem
da vida os ponteiros de um relógio depois que o tempo foi abolido?
CONTIGO
Mas assim?
Vamos crendo em toda moda lançada por Deus?
COMIGO
Não sei, não
sei, não. Este lado parece riscado para cima.
CONTIGO
É que estás
olhando por outra brecha.
COMIGO
Mas toda vez
que chego aqui já se passou uma hora.
CONTIGO
Vê só, estás
confundindo tempo e espaço. Isto é perfeitamente racional.
COMIGO
Queres dizer
que estou louca?
CONTIGO
Pelo menos
não sei mais o que pensar de ti.
Páginas 31 a 33 – Reprodução de página inteira de três quartos
esvaziados do casarão. Num deles a maca vazia. Em outro o espelho na parede. No
terceiro a mesa da desenhista.
Página 34 – Área externa do casarão, gramado, debaixo da copa de
um cajueiro pequena mesa redonda e duas poltronas, sentadas a psiquiatra e a
satanista.
DRA GENARA
FIORD
Cada sombra
que projetamos nos indaga de onde acabamos de sair.
A CONDESSA
TRAMPOSA
A ninguém
importa onde estamos chegando.
DRA GENARA
FIORD
O futuro
inexiste. Pode até indagar por nós, mas é o passado que nos revela.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Por que me
trouxeste aqui?
DRA GENARA
FIORD
Ainda não
sabes? A morte de tua mãe atua como uma consciência automática dos erros que
não podes repetir.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Não creio…
DRA GENARA
FIORD
Este é o
ponto chave…
A CONDESSA
TRAMPOSA
Não creio na
convergência que traças entre o acaso e o desejo.
DRA GENARA
FIORD
Como uma
ramagem flexionada.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Nada nos
decepcionaria então…
DRA GENARA
FIORD
Torpe
analogia entre o queijo e o rato.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Entre o fogo
e a angústia do demiurgo.
Página 35 – Continua.
DRA GENARA
FIORD
As formas se
reproduzem como símbolos de sua soberania.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Conversa
fiada. Quem não sabe ceder não acede ao enigma do desejo.
DRA GENARA
FIORD
Quantas
intenções se desmembram por medo de uma correspondência?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Não te
entregues ao pasto, ao prato, à receita de uma razão reencarnada.
DRA GENARA
FIORD
Não crês em
teu próprio ofício?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Tudo aquilo
que construímos encontra uma razão de ser. Não importa que simbolize algo que
nos desagrade. Somos complementares em tudo.
DRA GENARA
FIORD
Crês no que
defendo?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Cada mínimo
gesto humano é um anagrama.
Página 36 – Continua.
DRA GENARA
FIORD
Que bela
solução mística encontras para tudo.
A CONDESSA
TRAMPOSA
Veja, há
tanto de unidade quanto de divergência entre o profano e o sagrado. Por que
imaginas que a farmacologia seja uma varinha mágica?
DRA GENARA
FIORD
E o que
fazemos com esses corpos devastados pela mente?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Deixamos ser
a expressão de seu inconsciente.
DRA GENARA
FIORD
E quando
cresçam, e tomem toda a realidade?
A CONDESSA
TRAMPOSA
Nós então os
invejamos. Quem sabe seja um recomeço.
Página 37 – O casarão visto de longe.
LENILDE FABLAS
O tema da luz compartilha com seu complemento, a escuridão. Desde a minha
infância os dois vieram ao mesmo tempo. A escuridão dos amplos e abertos pátios
da casa da avó e a luminosidade dos segredos trazidos pelo acaso. A luz é a
alegria dos encontros e a escuridão é o despertar dos estímulos. A imensidão da
casa da avó semeava em mim a argúcia dos labirintos. Também havia o mistério de
uma parede inteira de livros, eu me sentia vigiada por ela enquanto um portal,
ali em seu centro magnético, me levava até a casa da mãe. Fui criada entre duas
casas, cada uma com suas fissuras, seus corredores, os caminhos misteriosos que
a todo instante me transportavam de uma para outra. Em algumas paredes, a
evocação muito sutil da luz nas pinturas de um tio-avô, as naturezas-mortas que
marcaram meus escritos, muito antes de eu começar a escrever.
Infância é tudo. O resto é uma sementeira psíquica
e a fabulação técnica. Desde muito cedo a luz me interroga dos ambientes
externos, dos lugares onde minha avó me levou: praças, fundações, ruas, além
dos domingos enfrentando o mal com meus pais. Tudo isto me levava a crer que
não há arte sem vida. De qualquer forma, aquelas naturezas mortas foram de
imensa importância em minha infância, como os quadrinhos, a chegada da
televisão com suas animações. Ainda muito jovens, as primeiras leituras. As
tragédias trouxeram um charme mágico para os meus dias, com sua escuridão que
me convidou a desvendar o outro lado do espelho. É claro que tudo isto aflora
em meu romance, porque em mim a curiosidade é imortal, e leva à compreensão dos
relacionamentos amorosos entre os opostos. Iguais à relação entre as coisas
dadas como distintas, as possíveis conexões entre o cosmos e o cérebro humano,
a importância de discussões sobre a matéria negra, que são dadas pela
bifurcação de luzes e trevas.
Viver é uma especulação do inconsciente. A parede
de livros na casa dos pais foi o espelho de minha infância. Eu entrava em suas
páginas como quem enraizava estrelas no olhar. Nos livros eu sempre me banhei,
com as minhas sombras mescladas à de todos aqueles personagens. Uma épica da
imaginação. Os lugares percorridos, os horrores desvendados, a sabedoria do
vácuo. Assim como aquela curiosa biblioteca me levava até a outra casa, em suas
idas e vindas eu embaralhava os vultos desentranhados das páginas de tantos
romances que durante anos eu não sabia devolvê-los ao seu território de origem.
O espelho é uma tábua de adivinhação. Na medida em
que eu escrevi era como se pintasse uma língua em cada superfície do papel e
desse a elas a liberdade de falar o que bem quisessem. A magia era inconfundível.
Os cachimbos voadores mantinham no ar uma exigência vital: a alma tem que
reconhecer seu próprio corpo – mesmo que seja em outro – ou então se despedir
da cena. Sem que eu desse por mim, havia interrompido o fluxo natural das
relações entre corpo e alma, propiciando uma nova arte da conversa entre dois
mundos. A partir daí, e por muito tempo, eu perdi o controle sobre a minha
escrita. Beleza e feiura, temor e coragem, desabrigo e proteção, eram sintomas
que, uma vez embaralhados, demonstravam que a moral era uma vitrine que já
ninguém queria desfrutar.
O fim disfarçado em princípio. Quando a moral se
dilacera os vasos de flores sobre a mureta enunciam um novo desafio a ser
desventrado. Uma versão bem distinta dos fatos com seus atributos e manchas
larvares. Aos poucos o mundo que eu conheci foi se transformando, baseado no
conhecimento inverso das coisas. Quando dei por mim eu estava no interior de um
espelho e, ao abrir os olhos, percebi que tinha à minha frente um outro
espelho, de onde eu era convocada pela minha própria imagem refletida no olhar
daquele incômodo personagem. Eu podia ler a essência individual dos seres
encontrados nas páginas de todos os livros que tantas vezes reli. Mas agora
outra ambição se projetava. A exigência de uma subversão perene. Eu teria que
percorrer a espiral que me separava de meu outro, até que a sua
extremidade me revelasse um movimento original de meu próprio ser.
Sem que eu desse por mim, havia começado a escrever
outro romance.
EMILIA AHMADJIAN
Houve uma época
em minha vida em que eu estava tão perdida, em meio a uma vertigem de
peregrinações, que comecei a enviar cartas a mim mesma, cartas que eu sabia que
jamais as receberia. Um rio de linhas que talvez um dia desventrasse algum
futuro, a vertigem impressionista de um mundo que eu talvez devesse abandonar.
As cartas são como um sinete, uma tatuagem do destino e sua indecifrável
arbitrariedade. Em algum remoto lugar da terra certamente haveria uma Emilia
Ahmadjian que me leria e encontraria em cada verbo um efeito de presença, a
figuração de meus fantasmas, o universo submetido às sutilezas da decomposição.
E se nenhuma Emilia Ahmadjian me lesse, ao menos as cartas teriam sido
escritas, dando fé que a obsessão pela confluência pode se prolongar pelas bordas
do infinito.
Querida Emilia
Talvez estranhes que seja eu a te dizer que Deus nos marca com um selo
fervente que nos impõe a criação de algo. O meu primeiro impulso foi me sentir
destinada à criação de meu próprio eu, este ser ausente do lugar onde me encontro.
Mesmo correndo o risco de um desvio de percepção, eu te envio linhas
embaraçosas que pretendem inspirar novos tempos. Talvez não haja maior utopia
do que sair em busca de si mesmo. Quem dera essa carta te alcance e possas me
responder contando um pouco a meu respeito.
Com amor,
Aos poucos comecei a aprender vários idiomas, pois me veio a dúvida
sobre qual deles falaria Emilia Ahmadjian. Diversas vezes esquadrinhei esse
mistério, sem encontrar a menor sombra de solução. As semanas se atropelavam e as
cartas seguiam viagem imaginária entregues ao acaso. A minha confusão vagava
entre a solidão e a melancolia. Não sabendo quem era Emilia Ahmadjian perdi o
sentido da subjetividade e só via diante de mim um horizonte de objetos
descorados e dispersos entre eles. Eu estava crescendo em meio a uma
civilização sem alma. Talvez eu devesse encontrar um símbolo que me levasse ao
íntimo fervilhante de meu ser.
Emilia
As minhas visões são tão incomuns que sempre que reflito sobre elas me
perco ainda mais. A ausência de uma resposta tua me leva a pensar que eu talvez
deva cessar essa tormentosa espera. Um temor exponencial me faz crer que as
suspeitas pintam melhores paisagens do que as certezas. Eu queria criar uma
árvore dentro de mim, cuja ramagem fosse tão vasta que não precisássemos mais
nos sentir isoladas uma da outra. Porém ao meu redor só vejo coisas em
miniatura. Eu me tornei um monstro cujo reino está perdido.
Tua
Foram dias de uma profundidade relutante. Eu me deixava inflamar pela
ilusão do que estava por vir. A esperança estava se convertendo em um castigo
perpétuo. Eu estava paralisada em meu próprio corpo, como um rio em uma
fotografia. Neutralizada pelos demônios da encruzilhada, desconhecia a quem
invocar em meu íntimo. Só podia pensar nessa distante Emilia Ahmadjian que
talvez sequer me conhecesse. E a ela incansavelmente devotei o meu desespero.
LUEJI LLALEJ
Certa noite
despertei com um disparo que me parecia vir da crueza de uma linguagem
brutalizada. A cidade distorcida em meu olhar ofegava em uma mineração de
lágrimas. Tudo parecia talhado pela destruição. Talvez ainda fossem as ruas de
um sonho. A terra desolada de tantas bíblias, o desgaste crescente dos
símbolos, as proezas de uma barbárie que nos ameaça com seus bônus requintados de
torpeza. Não era mais o sonho. Tudo era tão real que um sonho não conseguiria
reproduzir. Porém a dúvida persistia. A qual mundo pertencia aquele disparo?
Viesse do sonho e poderia ser um alerta de que o terror nos varreria do mapa.
Viesse da vigília e seria o último som que escutaríamos antes da completa
devastação. Deitada na cama, prolonguei minhas suposições. Eu costumava dormir
abraçada com Micus, um desajeitado macaco de pelúcia que me dera uma amiga
ironizando meu medo de dormir sozinha. Micus me divertia por horas a fio
imitando os animais que eu lhe mostrava em um livro de fotografias. O seu
silêncio me impressionava, pois eu interpretava tudo o que ele queria me dizer.
Ao ouvir aquele disparo eu me agarrei tanto com ele que talvez ali naquele exato
momento nos tornamos uma essência única, meio sangue, meio pelúcia. E graças a
seu dom de imitação pude evocar a consciência alterada daquela noite que pendia
do torso do mistério.
– As manhãs costumam esperar por nós, por mais tarde que acordemos. Mas
não vejo nenhuma manhã por aqui, Micus. Estás acordado a mais tempo?
– Não acordamos mais, Lueji, agora nós somos assaltados pela vigília, e
de nada adianta discordar de seus ardis. Esta senhora tem parentesco com os
diabos das sete chagas.
– Sendo assim, o disparo veio dela.
– Acho que jamais saberemos. As viagens cerimoniais pelos domínios do
sono estão suspensas, como estratégia para reduzir as irrupções de homens e
lagartos para o reino avançado das caricaturas.
– O que estás me dizendo, Micus? Isto não pode ser.
– Não há mais nada que não possa ser. A realidade tornou-se uma
tempestade facultativa. E quando desconsidera seu próprio método não faz mais
do que nos aterrorizar. Somos uma sociedade capturada pelo vácuo, nos
reservaram os santuários de rituais maléficos.
– Sentes o cheiro de enxofre vindo daquela abertura?
– Não é enxofre. Trata-se do suor desprendido de um protesto de
esfinges. Cada uma leva consigo a sua escada e a foto de um poço onde fez sua
morada. Não querem mais ser guia ou representação de ninguém.
– Eu temia que um dia chegaríamos a um ponto em que nem mesmo as
esfinges sentiriam orgulho de seu destino.
– E por que sentiriam? Elas foram brutalizadas pelo acúmulo de
revelações que transmitiram ao mundo. Um excesso que cedo deu indícios de que
viria uma onda violenta de vulgarização.
– Sem elas, de algum modo, perdemos nossa orientação no espaço. Tivemos
que improvisar caminhos e desistir do retorno a algum ponto de origem.
Desde que Micus e eu nos tornamos um híbrido víamos estranheza em tudo,
as linhas da semelhança foram cortadas e os seres se atropelavam nas ruas como
autômatos parafusados em série. O mundo não carecia mais de interpretação, os
algoritmos eram distribuídos em tíquetes e tinham já definidas as suas funções.
Eu teria que sair dali e o disparo ouvido naquela noite foi um sinal de que eu
deveria escolher entre o sonho e a vigília. Eu teria que buscar uma paragem de
proporções desiguais, apanhada por um salto, ciente de que a mudança de lugar
ocasionaria também a mudança de tempo.
Nossa morada pode ser o pântano ou um regaço de nuvens. Impossível a
privação em um lugar onde não temos nada. Aquele mundo há muito havia acabado.
Seu futuro era tão incerto quanto a ressurreição. Eu estava ciente de que não
poderia levar Micus comigo a parte alguma. E naquela noite, enquanto o disparo
se completava, fechei os meus olhos e me deixei ir, simplesmente.
BERTHA MALIK
Quando eu
tinha 13 anos não fechava os olhos no chuveiro temendo estar em outro lugar ao
reabri-los. Um dia ouvi um barulho de água vindo do banheiro. Parecia o
som de um vazamento, a água minava por todas as partes. Ao entrar a porta se
fechou e o volume d’água foi se acumulando a ponto de me cobrir todo o corpo. O
banheiro se transformara em uma espécie de tanque que me aprisionava, onde eu
me debatia com desespero. Ao abrir a porta minha irmã me viu deitada ao chão, o
corpo se agitando, gritando. Ela me abraçou e logo despertei do que parecia ser
um grande sonho e chorei em seus braços. Outra noite, em minha cama, sempre que
eu fechava os olhos sentia os meus ossos estalando como se eu me desfizesse
toda. Tudo não durava mais do que segundos, era uma sensação insuportável que
me forçava a manter os olhos abertos. Comecei então a vislumbrar como poderia
ser um corpo sem ossos, como se eu fosse uma serpente com braços e pernas, até
que o cansaço me forçava a desmaiar.
Essas coisas me aconteciam com frequência. Desde as mais sutis fantasias
que se apossavam de mim até umas vertentes mais violentas, que levavam à asfixia
e ao delírio histérico. Era como se eu vivesse entre a fuga e o fingimento,
conflito em que eu acabava por distorcer uma tão precária noção da realidade.
De muitos daqueles desvios temporais a minha irmã me salvava, e me ensinava uns
truques de dissimulação, talvez – dizia ela – disfarçando
as sensações aqueles paradoxos fossem aos poucos se disseminando até o completo
desaparecimento. Talvez a impostura fosse a única forma de apagar os
estigmas daquela cadeia de devaneios. Em algum lugar eu havia lido que tudo o
que serve para expressar a queda faz parte dela. Era o que eu deveria fazer.
Dar um nó em cada sensação escabrosa e lhe fixar o olhar até que ela se
curvasse, fragilizada, negada, separada de seu fulgor. Foi um longo
aprendizado, o de imitar a histeria.
Aos poucos fui sustentando em mim o desejo de ser outra. Era preciso
criar uma combinação cênica em meu íntimo que me tornasse parceira de um
personagem imaginário. E não havia modo que se mostrasse naquele momento mais
eficaz do que a imposição de uma sedução, um tipo de exaltação passional em que
eu me tornaria uma amante singular de mim mesma. A fortuna sigilosa de uma
identidade dilacerada, cativada por olhares licenciosos e orgasmos
deslumbrantes. Eu seria testemunha dessa expropriação do outro. Meu corpo
transformado em asilo e campo aberto. Cedo descobri que não bastava marcar o
palco, o chão da aparência. Era preciso deixar-me embriagar por aquele jogo de
atração. Eu teria que fazer com que cada truque se reconhecesse em suas
consequências. E, com o tempo, a repetição era inevitável.
Minha irmã foi a primeira a perceber que eu vinha me repetindo muito,
como uma espécie de mecanismo viciado em encenações. As imagens daquelas
torturantes fantasias iniciais agora haviam sido transferidas para um cenário
em que eu polemizava pecado e inocência. As masturbações agora iam mais além
dos toques físicos. Eu fiz de minha imaginação um teatro em que diversas de mim
compunham um roteiro orgíaco de estripulias consentidas. Vasculhávamos a
intimidade de cada uma, proliferando a medida de todos os risos, imprimindo ao
sentido genital inúmeras fronteiras que se preenchiam na medida em que
floresciam novas formas de desejo. Nós nos transformamos em modelos
experimentais do ser. Todos os desvios eram testados como a presença de um
princípio maior. As dores e devaneios, os sonhos decaídos e a morbidez de
certas ilusões fora de lugar, as crises similares da memória, tudo havia se
tornado secundário.
Eu finalmente pude me reconciliar com o sono e a escuridão. Uma pantomima
de carícias acabou por se mostrar mais eficiente do que os eletrochoques e as
sessões hipnóticas. Não havia melhor modo de vencer o pânico do que encenar
repetidamente seus atributos.
O ROMANCE INACABADO DE LI SONG
Todas as
vidas estão conectadas. Os dias ficaram fora dos frascos. As noites dormiram
longe das camas. As vozes não sabiam o que falar. Talvez fosse o princípio de
uma nova aposta. Diante desse enunciado irredutível, qual o sentido de uma
pertinaz conexão entre todos os seres vivos? O interior da casa visitada pela
maldição das mudas aves negras, o dilaceramento da mobília desfeita de suas
funções, a desordem imediata da consciência. Li Sung aturdida diante das coisas
fugindo da razão. Onde ela esteve, os ermos para onde fora levada, a teoria dos
excessos imaginários, tudo agora se derramava diante de si como um triunfo
líquido do fogo. As transgressões do horror de sua memória, a divindade doentia
que lhe afastara das religiões, o peso pavoroso das definições. Li Sung
atribuía seus novos vícios ao instinto suprimido do coletivo. O aspecto
sacrificial da solidão, essa perturbadora violência do silêncio. A casa
habitada pelos truques do impassível, as células gastas da linguagem. Quando
todos nos tornamos vítimas, o regozijo é uma conduta perversa dentro da qual
justificamos nossos tormentos. Uma casa de cada vez, sem termos para onde
voltar. Não importa o inferno distribuído em tantos colos. As sagas estão
infestadas de arbitrariedade. As semelhanças são formais e acentuam a vantagem que
tiram das relações a cada sentimento expressado. A identidade é secundária. Os
sítios interditados que Li Sung vê surgir diante de si, na casa e na memória,
traficam seus estados místicos, a vida inferior do sagrado, e ela aos poucos
vai perdendo a noção do que determina a brevidade de um vislumbre entre o piso
e o telhado. Ela também terá que dormir longe das camas e desabrochar sua
consciência fora dos frascos. Os limites foram contaminados, as prudências
desterradas, os paramentos denunciados. Li Sung estava decepcionada diante das
novas fornalhas do ser. Não queria escolher os caminhos tatuados na pele
daquele cenário ardilosamente ambíguo. Ela também repugnava a melancolia. Não
seria fácil simplesmente desistir de tudo e deixar-se vagar pelos limites do
alheamento. Talvez o livro devesse ser escrito de outro modo. As aldeias
violentadas da memória, o café improvisado com Lenilde Fablas no espelho da
sala vazia, os pássaros negros bicando seu espanto – as páginas deveriam dar em
outra esfera. Lenilde teria que concordar com ela que as histórias se tornaram
indiferentes à vida humana. Era preciso vasculhar a alma até encontrar um
fogo-fátuo, uma fagulha, um estalo. Até lá, não lhe restava senão rejeitar a
realidade, essa trapaça fascinante que está acabando com tudo. Abandonou então
aquelas páginas, acreditando que elas seriam brevemente substituídas por uma
espécie de folheto alquímico que abrangesse o espírito resoluto dessa nova
mulher que ela intuía estava por chegar. Os dias assim foram folheando o acaso,
até que em uma manhã outra casa se mostra diante dos olhos de Li Sung, não
menos perturbadora que a anterior, porém agora mais segura de que seus tremores
a levariam por caminhos de uma descoberta mais visceral. Uma casa repleta de
fantasmas que ao invés de gerar pânico a desafiavam a embaralhar as máscaras à
procura de um rosto singular que acabasse por ser a soma de todas elas. Um
desses fantasmas insistia em seu código telepático: Não sejas outra
pessoa se não és capaz de ser tu mesma. Li sung se via tomada pela escrita,
as páginas se multiplicando em uma série irrefreável de vestígios, um
personagem que ganhava vida em seu íntimo: Lavínia di Lúvia e seus fantasmas.
Talvez Lenilde Fablas devesse intervir, pela devassa tão incomum que um
personagem estava provocando em seu romance. Li Sung no entanto perseverava que
não seria mais aquela que a autora decidira que ela deveria ser. A partir
daquele momento ela seria Lavínia di Lúvia e sua vida tomaria um curso
distinto. Não havendo como dissuadi-la de sua decisão, Lenilde Fablas concordou
em lhe dar novas páginas, para que ela, em seu raro renascimento, agora como
Lavínia, expusesse as vertigens de sua memória ou as inquietudes de seu desejo.
OS 12 FANTASMAS DE LAVÍNIA Di LÚVIA
A minha vida
talvez não passe uma sincronia de erros, com sua enxurrada de acidentes, os
disparos devoradores da ansiedade. Impossível sabê-lo. Talvez se eu desse a
outra pessoa as chaves para, ao refazer meus passos no mundo, evocar uma
criatura que definisse meus temores adormecidos, as dissimulações de meu ânimo…
Alguém que pudesse chafurdar nos escombros de minha memória e dali trazer à
tona os meus fantasmas. Pensei em uma inteligência artificial que pudesse ser
programada para invadir o meu íntimo e me arrancar de uma prostração que vem me
contaminando al alma. É possível que assim criaríamos – sim, a quatro mãos,
como um exercício visceral de escrita automática – a atmosfera de um enredo
elucidativo, um teatro com seus fantasmas desafiadores.
1, FANTASMA
DO ESPELHO
Lavínia di
Lúvia acordara espantada com a mancha escura na cama logo abaixo de seu braço,
naquela abafada manhã de chuva em Turandot, um 3 de março de 1947. Algo se
passara, talvez um sonho, porém não havia lembrança alguma. Olhou fixamente a
mancha e ainda mais assustada ficou ao perceber que ela pouco a pouco mudava de
forma, assumindo contornos distintos. O que a mancha teria a dizer a Lavínia
talvez elucidasse algo acerca dos constantes esquecimentos que vinham lhe
preocupando. Ao levantar-se da cama foi ao banheiro buscar sua escova de
cabelos e retornou, constatando o crescimento daquela sombra misteriosa que
agora se movia de um canto a outro da cama, contorcendo-se e assumindo uma
forma quase humana. O que estaria guardado naquela evidência funesta? Uma
revelação da noite, a chave de um pesadelo que aguardara a vigília para se
manifestar? Imóvel, Lavínia temia a qualquer momento ser devorada por aquele
infortúnio. Fosse uma desdita onírica e ela logo despertaria. Talvez um reflexo
tardio da época em que ela foi por seguidas noites perseguida pela paralisia do
sono. Em meio a seus pensamentos, a mancha ganhara volume ao sentar-se na cama,
fixando o olhar negro e vazio em seu rosto apavorado. Mal conseguindo gritar,
embora nada ali fizesse sentido, ela indagou o que aquele vulto queria. Nenhuma
resposta, enquanto a mancha se erguia, prostrando-se diante dela, passando a
repetir à exatidão os movimentos de seu corpo, o mínimo possível, os braços
trêmulos, a nudez irremediavelmente pânica.
– O que queres de mim?
Novamente o silêncio era interrompido apenas pelas palpitações agônicas
de Lavínia. A conveniência de um desmaio não lhe era permitida. Ergueu um braço
e a mancha lhe repetia o movimento. Era como se estivesse diante de uma sombra
tridimensional. Observou que tudo no quarto permanecia imóvel. O tempo
congelado, apesar da chuva escorrendo pela janela. As horas em desalento. Suas
pernas dormentes.
– Não vês que isto é impossível? Se és o reflexo de minha loucura, então
entremos em um acordo. Posso abrir a janela e saltar, ou sair gritando pelos
corredores do prédio. Só não me deixes assim, diante deste vazio inconfessável.
Quem és, afinal?
Não há caos que não alcance um momento de aparente normalidade. Quando
tudo parece conspirar à nossa volta acaba por surgir uma quietude que nos
permite ver que é apenas o acaso em sua versão intraduzível. Lavínia tentava se
convencer de que a qualquer momento aquela mancha obscura desapareceria sem
deixar vestígios. Ou ela despertaria de um sonho ainda acuada pela memória
terrificante e a mancha de urina reconhecida pelo cheiro seria a única
circunstância fora de lugar. No entanto, seus esforços foram subitamente
inutilizados, no momento em que o vulto ergueu as mãos em volta de seu pescoço
e Lavínia sentiu a pressão daquele impulso por lhe enforcar. A voz tragada pelo
medo e a asfixia, ao olhar de lado viu a sua imagem solitária refletida no
espelho, em movimentos horripilantes e desconexos.
– O que está acontecendo comigo? Nada disto pode ser real.
Porém a realidade não estava presente, ou nada que se assemelhasse a
ela. Não se tratava de sonho ou pesadelo, de instável memória de algum
suplício, uma dor recortada do passado que viera lhe afligir a manhã chuvosa. O
que seria então? Lavínia sentia esse verboso desespero por um mundo plausível.
Agora estava diante de algo sintetizado ao acaso, uma fortuita ilustração do
impossível. Já quase sem fôlego, as forças sucumbindo, ela não duraria muito
mais. Certamente a vida lhe saltaria fora e no dia seguinte a faxineira a
encontraria morta ao pé da cama. Do que morrera afinal jamais seria possível
constatar. O corpo nu e aparentemente saudável, sem uma única mancha na pele.
Apenas a morte em uma manhã chuvosa e o atrevimento de um mistério que não
deixou carta alguma de despedida.
2, FANTASMA
DA MACIEIRA
Esta é a
árvore da vida, os ramos da liberdade. Olhem bem, este é o verbo que confere a
imortalidade a todos que guardem um pentagrama em seu íntimo. Olhem bem como a
matéria carnal se reproduz em tudo quanto se alimenta de seu conhecimento. Esta
é a catedral das profecias, o refúgio sagrado do maravilhoso. Esta é a árvore
de mil mundos e a advertência mística dos prenúncios. Olhem bem a água que
corre sobre o princípio de todas as coisas. A luz que nos enriquece o desejo.
Lavínia di Lúvia lia fascinada as páginas daquele romance. Pela primeira
vez sentia-se como designada para um fim absoluto, a tempestade ascendente de
todas as naturezas híbridas. Ela que conhecia um mundo em que tudo se distingue
pela palavra, agora se deixava mergulhar no inconsciente e ali uma potência
subterrânea que poderia dar a cada gesto ou coisa incontáveis significados, não
mais a palavra úmida e única, mas sim uma voragem de tesouros que se descobrem
a si mesmos a cada ovo rompido, a cada embrião desperto, a cada senha revelada.
Esta é a caverna onde cresce o ímpeto. O abismo da casualidade, onde os
seres só são temíveis quando não correspondem ao turbilhão dos símbolos. Olhem
bem como todos nós podemos ser a encarnação dos limites mais invisíveis, das
correntes que podem unir os cinco elementos. Esta é a caverna onde se acumulam
as sementes da grande árvore da vida.
A leitura retomava as cifras inspiradas em um tempo em que tudo era
possível, em que os mundos paralelos saltavam de uma frase para outra, rio de
vísceras onde todos os números se encontravam no olhar, nas cinzas primitivas
do renascimento. Lavínia di Lúvia aguçava em seu íntimo a construção de um
esplendor. Para ela a sua vida era com frequência invocada pela encarnação de
algo que não sabia explicar. Havia frequentado grupos de estudo, se viciado na
retórica de alguns guetos, especulado sobre totens rodeados de tabus. Agora um
romance lhe parecia devolver a um estado giratório de descoberta de si mesma.
Não há templos onde não atue o redemoinho dos paradoxos. Cada coisa dá
uma primeira volta em torno de suas consequências e percebe que a cada
movimento se abrem as trilhas que não acenam propriamente com significados, mas
sim com a representação de abismos que dão a todas as forças terrenas as chaves
do inacessível. As portas por onde descobriremos os conflitos criativos, os
privilégios da dissonância.
Ela lia e lia, naquela imensa biblioteca alegórica que criara em torno
de seu corpo. As horas mascavam o cofre do conhecimento. Uma senhora veio lhe
avisar que o lugar iria fechar em minutos. Lavínia di Lúvia mastigou o último
pedaço da maçã e, ao fechar as páginas do romance, viu erguer-se a árvore
anunciada.
Olhem bem que nossos votos sustentam os abismos e os passos se agrupam
onde as estrelas não podem alcançar. Tudo é símbolo, na medida em que nos
movemos pelo mundo. Os sentidos fumegam como um cometa deixado para trás.
Ao caminhar de volta à sua casa Lavínia di Lúvia ainda refletia sobre
aquela macieira encontrada nas páginas de um romance.
3, FANTASMA
DO FAROL VERMELHO
Escavando no
jardim a gata Justina aguça sua curiosidade ante a luminosidade daquela boca de
vidro que se abria a suas patas. O mistério é um vidro frágil de metonímia
volátil. Justina arranhava a boca da garrafa, aos poucos descobria seu pescoço
brilhante tocado pelo sol. Suzana e Luiza corriam de um lado para outro no
jardim, salpicando de alegria as miudezas da manhã.
– Justina, o que estás cavando?
Um rosnado moleque e continuava a rondar aquele objeto. Suzana se
aproximou e ajudou a cavar. Luiza lera que os felinos são os mais sábios dos
animais por sua percepção de que levam dentro de si, em porções iguais, o bem e
o mal. Justina era imprudente e sorrateiro. Sua curiosidade ia além das cartas
do baralho e da fábula das sete vidas. Seu miado sabia ser encantatório e
usurpador. Quando Suzana lhe esguichava o pelo, com gestos satíricos de um
espírito malvado, ele não demonstrava a menor aflição, disposto a impedir que
aquele ritual fosse portador de boas chuvas. Justina fazia cair por terra todas
as crendices de Suzana.
Agora estavam as três ao redor de uma garrafa que já se mostrava quase
até a metade. Um frasco destampado guarda o mais prosaico dos filtros, o rio
ressecado das malícias ou a poeira embriagadora dos naufrágios. Se desenterrado
por um gato é possível que exponha ao mundo um conhecimento secreto difícil de
ser alcançado, pois somente o mais ousado dos mistérios deixaria a porta
aberta.
– Justina, afasta um pouco, me deixa puxar de vez esse brinquedo.
Luiza já estava exaltada de curiosidade, quem sabe ali encontraria as
últimas gotas de um néctar que lhe levaria por mundos insondáveis ou a
miniatura em fina madeira de um navio fantasma, tudo era imprevisível. O que
desejar pode deformar o encontro. As máscaras de Dioniso e Narciso se confundem
no fundo do baú dos disfarces. Por vezes as aparências pronunciam um neologismo
irrelevante.
– Luiza, não me vás desejar nada. Bem sabes que a gente nunca deseja
qualquer coisa, que o desejo, por mais vulgar, é sempre especial e deslacra seu
inverso. Esvazia essa cabecinha. Me deixa arrancar a garrafa da terra.
Assim fez Suzana. Como se desenterrasse uma vida. Era a arqueóloga do
jardim, passando por cima do mérito de Justina, era ela agora a usurpadora, a
guardiã de uma fonte evolutiva da existência humana. Na medida em que erguia a
garrafa o sol ia desvendando aquela procriação assimilada do mistério.
– Vejam, vejam, que coisa mais linda!
Justina divagava de um miado para outro. Seus olhos cresciam com aquele
brilho, alheio a seu significado.
– Como é possível? Parece estar vivo!
Vivo como se evocado por forças superiores, como se refeito em sua
mecânica estelar, como se voltasse a cumprir seus valores mais extasiantes.
Suzana e Luiza tinham diante de seus olhos maravilhados a miniatura de um farol
vermelho cujo facho de luz no cimo da torre lentamente girava. Justina dava
pulinhos tentando tocar a garrafa nas mãos de Suzana.
– Cuidado para não soltar, Suzana. Coloca no chão, deixa a Justina ver
de perto.
A gata encosta o olhinho bisbilhoteiro na entrada da garrava e súbito dá
um salto e dispara para longe dali como se tivesse visto uma matilha exaltada.
– O que será que a assustou?
– Olha, Suzana, uma pequena luz se acendeu na base do farol.
As duas irmãs, com olhar bem apurado, identificam uma porta se abrindo
no térreo do farol vermelho e dali surgindo uma mulher. Os caprichos da
fascinação sempre alimentam a fortuna do arbitrário. Gritam para a mulher,
chamando-lhe a atenção, dizendo que estão ali desejosos de saber quem ela é.
A intrigante mulher recolhe alguns pequenos objetos não identificados à
lateral da porta de entrada e então regressa ao interior do farol. Jamais
saberemos quão bruta é a pedra da imaginação. Luiza guarda em seu quarto a
garrafa esverdeada que ela jura conter em seu íntimo um farol vermelho. Suzana
perambula pelo jardim gritando por Justina, que nunca mais apareceu.
4, FANTASMA
DO NAVIO-PRESÍDIO
Lavínia di
Lúvia morrera a primeira vez em 1947. O tempo se multiplica por infinitas
dobras do espaço. Em 1935, quando andou por Pindorama, foi surpreendida com uma
ordem de prisão. No interrogatório ficou bem claro o insólito do assunto.
– A senhora está aqui para depor…
– O governo? Pois me parece que o senhor comandante, no lugar que ocupa,
está em melhores condições do que eu para fazê-lo.
Capitão Frazino Descartes era de todo desafeto do humor, de
sensibilidade passageira e certamente não acataria os subterfúgios daquela
mulher.
– Então a senhora não sabe o que a traz aqui?
– Atrás de muitas notas nem sempre se confirma o montante investido. Por
mais elaboradas que sejam as hipóteses elas não vão além de migalhas prováveis.
As acusações são quase sempre tão suspeitas quanto as heranças. O senhor me
dirá se a porta certa se abriu para minha entrada.
– Como prováveis? Eu tenho testemunhas que viram a senhora no local do
crime.
– Mas todos os quadrantes da geografia humana são potencialmente locais
de crime. Somente as certezas geram prejuízos.
– E o morto?
– Se houve algum, ele dirá mil vezes que muitas foram as possibilidades
de ter sido traído por uns e outros. Além do que não se pode confiar na palavra
de um morto.
– Muito menos contrariá-lo.
– Ah o senhor agora está brincando com a situação…
– Minhas desculpas, a senhora é impossível…
– O senhor sabe muito bem que o país está dividido e que revolução
alguma resolverá mais do que a metade do problema que a desperta. As revoluções
são sempre frustrantes. Não há insanidade maior do que matar ou morrer por
elas.
– Vamos parar com esse despudor. Quero começar do começo. Seu nome:
– Lavínia di Lúvia.
– Sabe ler e escrever?
– Sei ler tudo o que escrevo, mas me recuso a escrever tudo o que leio.
– Pode me dar detalhes de sua participação no crime?
– Não estou segura de ter havido um crime. Há mortos por toda parte,
assim como manuscritos forjando culpas de muitos como eu.
– Que ousadia! A senhora quer dizer que foi incriminada? E por quem?
– As suas perguntas respondem muitas coisas. Eu não diria a verdade melhor
do que o senhor.
Frazino Descartes não aguentaria mais uma troca de frases com aquela
mulher. Chamou um sargento e lhe deu ordens para levá-la dali, seria hóspede do
exército em seu navio-presídio, catre de luxo para as mentes mais perigosas da
revolução.
– Então o senhor admite que há uma revolução…!
– Sargento Minerva, conduza a presa a sua cela.
O navio estava ancorado na grande baía de Pindorama. O mundo provável
surpreendia a todos com suas medidas preventivas. Os crimes políticos eram tratados
na informalidade. A menos que uma das partes reincidisse nada se poderia
provar, de modo que as privações de liberdade não eram senão um método de
perplexidade para evitar as frustrações referidos por Lavínia. Nem mesmo ela
estava certa de seus argumentos. E se escapasse daquela embarcação sinistra –
refiro-me ao tempo e não ao espaço – submergiria em outras aventuras de
descobrimento de dúvidas.
Os meses se empilhavam ao redor daquela população flutuante, em uma
combinação evasiva que talvez desconhecesse de todo o que se passava lá fora.
Teria havido alguma revolução? Que destino haveria tomado? Alguém sobrevivera
ao litígio de ideais? Lavínia di Lúvia teve então a ideia de criar um serviço
de rádio, trazendo notícias imaginárias do exterior e alentando as almas
naquele cárcere à deriva. De manhã cedo acordava a todos com uma voz anasalada:
– As nuvens lá fora são quimeras pintadas boiando no éter e as nossas
penas foram todas anistiadas em um fundo falso dessa caixa metálica. Logo
voltaremos todos para casa, mesmo aqueles cujos lares foram extraviados. Nem
mesmo Deus pensa em cumprir sua sentença até o fim. A todos vocês, submissos e
afoitos, tranquilizem-se que ainda não saímos porque a porta se encontra
emperrada e agora mesmo uma equipe de soldadores tenta abrir caminho para a
liberdade.
– A liberdade não passa de uma ilusão, gritou um descontente.
– O que mais estimo em nossa audiência é que ela seja participativa. As
ilusões são a dilatação de nossas memórias mais gloriosas de tempos que virão. O
humor é a única militância que desmascara a inércia. Nenhuma prisão pode
dispersar as forças do humor. Tenham certeza de que nada será dado ou tomado. A
moral é uma canalhice da amargura.
Lavínia di Lúvia começava então a cantar velhas canções desconhecidas,
certamente improvisadas, que muitos logo aprendiam e a acompanhavam preenchendo
aquele vazio de uma legítima defesa da fantasia. Em seguida pensou em montar
uma comédia e convocou aqueles que pudessem lhe ajudar a compor um script que
espelhasse o nonsense da situação que estavam vivendo. Insistia que não há arte
que não seja autobiográfica.
O sucesso da peça foi tamanho que outros textos se seguiram, já tão
espontâneos que todo o navio se convertera em palco de representação
inesgotável. A arte finalmente se confundia com a própria vida.
5, FANTASMA
DO MUNDO VISÍVEL
O mundo
visível não é senão uma fantasmagoria sugerida pelo mundo invisível. Quando
Salustes Belmonte pôs a pesada pedra sobre a mesa da sala destelhada e ela
refletiu um quarto-crescente no céu, não havia dúvida que resistisse à
compulsão de dizer que ali estava o mundo possível. Pouco importa a confiança
que tínhamos na veracidade dos fatos, a paisagem acaba sendo desmascarada como
cenário de uma tragicomédia que emporcalha nossas vidas de vícios e
frustrações. Um pranto invade os casebres de uma pintura naïf com a mesma
desfaçatez de um relâmpago cortando a cena bíblica em que os apóstolos
confabulam sobre o fim dos tempos. As verdades são como penduricalhos do
cinismo. A moral nunca nos reservou um lugar privilegiado nas aulas de pintura.
Lavínia di Lúvia estava no centro da sala com a sua nudez pousada em um gesto
displicente que lhe enaltecia a beleza. Ao seu redor, em variadas alturas e
ângulos, os alunos da escola de belas artes espedaçavam seu corpo em detalhes
que a revelavam por dentro e por fora. Seu desígnio era ser uma ponte entre
dois universos, graças a ela os alunos poderiam passar de uma margem a outra,
pela estreita passagem que elegemos como os limites do terror e da beleza. Um
braço, uma rótula, a nuca, o mistério refletia a luxúria e inocência das
portas. Suas formas eram reveladas pelo carvão como parábolas do maravilhoso.
Cada aluno parecia tocar o espírito das imagens e a prefiguração de uma nova
combinatória entre o sagrado e o profano. As linhas do nariz, da vagina, dos
calcanhares, as proporções rejeitavam quaisquer hierarquias. A inclinação das
curvas, a insinuação das perspectivas, as vozes secretas que os desenhos
desentranhavam – uma misteriosa ascese libertava os infinitos ângulos do corpo
de Lavínia de seu senso comum. O carvão também fertilizava as intimidades e
memórias da modelo. As metamorfoses incessantes do desejo, o coaxar das sombras
viajantes, seu coração ainda pulsando depositado no prato de uma balança. Os 12
alunos na sala desenhavam os pensamentos fragmentários e os cuidados materiais
daquele corpo imóvel que continha em si todo o movimento do mundo.
– Por trás de nossos inconfessáveis embaraços um segredo procria os
fundamentos do ser.
Aquela misteriosa voz parecia ressoar como um gracioso boato, uma
sabedoria entoada desde o interior de um mamilo cujo seio crescia tomando a
forma de um vulcão, receptáculo litúrgico das explosões de nossas inquietudes.
Lavínia encontrou na voz daquele selo místico um módulo de revelação de suas
seivas mais íntimas. O seio possui a aparência unificada da proporção, a fonte
vulcânica de tudo que precede a realidade. O jorro de seus minérios pronunciava
o nome invertido de todas as convenções. Os alunos interromperam seus desenhos,
liberaram uma folha limpa em seus cavaletes e se puseram todos a esboçar as
artérias e contornos luminosos daquele seio-vulcão. Lavínia prontamente havia
deitado seu corpo sobre a tábua central.
– A persistência na escavação da terra leva à renúncia de todo atributo
moral.
– O conhecimento se apoia sempre em realidades misteriosas, que
representam ora o fim ora o princípio de cada ouro perseguido.
– As línguas se enlaçam para formar não o livro, mas sim as suas páginas
cuja analogia nos leva de um sonho a outro.
As vozes iam surgindo na medida em que os alunos configuravam sua
interpretação da imagem. Evoluímos como uma paródia de cada momento vivido. Os
seios assumiam atributos impetuosos. A destruição edifica as novas formas do
tempo. Lavínia empinava seu corpo com uma consciência irônica, permitindo a
cada desenho a evolução de uma dualidade sedutora. Cada aforismo representa a
entrada e saída naquela misteriosa manifestação do espírito. Não nos esqueçamos
de Salustes Belmonte quando acendeu seu cachimbo após haver posto a pesada
pedra sobre a mesa. Os símbolos foram se ajustando à nova realidade da sala. O
mundo invisível é uma caixa que encerra em si as nossas fadigas e
destemperanças. A sala era uma árvore, um candelabro com 12 braços. Lavínia era
uma deusa que se metamorfoseava segundo a vibração de cada braço. O inesperado
é o único triunfo da forma.
6, FANTASMA
DA ANALOGIA ROUBADA
Meu querido
Pankua Shuk
Muitos se esforçam a vida inteira para que as águas passadas tornem incessantes
os movimentos de seus moinhos, e se banham com o bálsamo da melancolia
reprisando amores perdidos e frustrações acumuladas. As mentiras desordenam o
mundo e quando mentimos a nós mesmos destruímos a linhagem de nossos reinos na
terra. Conservo comigo o gráfico que me desenhaste, quando de nosso encontro em
Jacarta logo após o massacre de milhares de chineses no século XVIII. Ali
apontavas que o caráter das sombras é determinado pelo arrebatamento das
relações entre a luz e a escuridão e que a verdadeira orientação de nossos
gestos não buscava uma pureza das formas, mas antes as linhas vertiginosas dos
abismos.
Os ornamentos são indiferentes à prerrogativa das mutações. Então era
outro o nome de tua cidade e aqueles mortos todos empilhados deram substância a
uma mutação empenhada unicamente em novos métodos de destruição. Ainda hoje
indago qual a força vital daquela devastação. Por trás das mentiras há uma
abundância de signos que pressentem as simetrias abandonadas. A arte traslada
essas proporções esquecidas de uma época a outra, sem que nada lhes garanta as
realidades tangíveis figuradas como a imitação de um novo tempo. Roubamos do
passado os ritmos entrecortados de nossos erros desencontrados.
Não há salvação na memória, quando ela se limita a deleite estético. Os
teus ensinamentos ainda repercutem em mim. Os negócios da morte sempre foram a
balança radiante da razão. As guerras evocavam a grandeza das submissões. Os
desenlaces amorosos também rascunhavam uma cartilha de sujeições. A palavra
central de todos os tratados sempre privilegiou a cessação definitiva da
existência. Até mesmo para imprimir veracidade ao plágio, a morte sempre foi
necessária. O óbito, o perjúrio, a corrupção. Os cordeiros entorpecidos
acumulavam seus crimes, ativos ou passivos, em nome de uma fortuna intangível.
Esqueciam com frequência que também os reinos do céu tinham seus dias contados.
As mentiras acabam pondo as barbas de molho e suas letras pegajosas
trilham caminhos secundários envergonhando os dicionários. Não há sucesso no
que roubamos ou matamos porque a analogia sempre salta de um quintal para outro
da linguagem. Conservo comigo, meu bom amigo, o teu diagrama e as linhas de sua
verdade que deram cabida a tantas abordagens de minhas inquietações. Também
comigo o desenho que fizeste de um moinho com as pás inflexíveis que não
reconheciam a ação dos ventos. Este é o império de nossas desgraças, a alusão a
tudo o que convertemos em ruínas. A única analogia que não conseguimos
desfigurar.
Ah como recordo nossas andanças pela ilha, as conversas, teus radiantes
argumentos. O tempo não permite que leias esta carta. Séculos já se passaram
desde nosso encontro e apenas o silêncio da noite turva os meus olhos e
consagra a tua memória.
Tua
Lavínia de Lúvia
7, FANTASMA
DO CAFÉ
– Tudo o que
temos de essencial é ar nos pulmões. O homem possui a mesma natureza do
diamante. Ambos são o seu único inimigo. Nada mais pode destruí-los.
Lavínia di Lúvia mantinha uma caderneta onde anotava suas reflexões. Aos
78 anos recebeu a ligação de uma repórter interessada em lhe entrevistar sobre
seu último romance. Quando se encontraram Lavínia logo descobriu que o
interesse maior de Vanessa Borgia era bem outro.
O outono parecia ainda mais bucólico naquela tarde de 2029 no Café
Louise. A jovem jornalista mostrara uma foto de Lavínia conversando com alguém
em lugar não identificado, porém a foto trazia impressa no canto inferior
direito a data 24-07-1919. Lavínia fez questão de não disfarçar o sorriso um
tanto burlesco. Algum dia aquilo aconteceria.
– Minha cara, deixe-me contar uma história que, se não trará sentido à
tua curiosidade, ao menos a ampliará.
A garçonete atende ao pedido e quando se retira Lavínia recorda com
satisfação:
– Dez anos antes dessa foto eu vivia em Montpelier, em um charmoso
bangalô que me foi cedido pelo matemático Henri Sobejano, para que eu
escrevesse meu primeiro livro. Na época eu adquiri o hábito de rabiscar em
folhas soltas situações que eu poderia aproveitar no romance. Quando cheguei
era estação fria e eu pouco saía de casa, de modo que fazia caminhadas internas
pelos quartos, corredores, salas e biblioteca. Algo em comum em todos esses
cômodos era a presença de espelhos. Aos poucos observei algo intrigante: se os
espelhos eram fiéis à reprodução de minha imagem o mesmo não se passava com o
cenário que me envolvia. Em cada cômodo eu me via presente em outro. Estivesse
em um dos quartos poderia estar na cozinha, e se me aproximava do espelho de
uma das salas por vezes me via em um quarto ou banheiro. Aceitei aquele
mistério como uma variabilidade possível de conexões com os distintos recantos
da casa. Isto até o dia em que despertei com o que parecia ser vozes dentro do
espelho ao lado da cama. Ali me vi refletida e por trás de mim a espaçosa
biblioteca de Sobejano com seus milhares de títulos. Sobre a mesa que eu
utilizava para os meus escritos repousava uma caderneta com a capa de cor
castanha como a pele de algum animal. De um lado e outro da mesa dois homens
conversavam e, embora eu não pudesse entender o que diziam, deduzi que
discutiam sobre o livrete. Desci as escadas às pressas, ansiosa por saber do
que se tratava. Ao chegar na biblioteca não encontrei senão o pequeno objeto
ali deixado. Suas páginas continham inúmeras sentenças que me deixaram aterrorizada
por duas razões: eu reconheci a minha letra e muitas das frases eram datadas de
épocas impossíveis de terem sido escritas pela mesma pessoa.
A repórter suspirou sobressaltada. Nada daquilo poderia ser verdade.
Sentiu-se ludibriada pela romancista cujo interesse único era fugir das
explicações do motivo que lhe teria feito falsificar a data na foto sobre a
mesa do café. Como acreditar em espelhos que refletissem duas realidades
sobrepostas? E a agenda que ganhara forma física oriunda do nada? Ela não se
deixaria enganar. Tomou um gole de café e ponderou:
– Se bem posso entender o que houve a senhora aos poucos foi
estabelecendo laços com incontáveis versões do tempo, com um resultado que lhe
permitiu compor a narrativa que tanto caracteriza a escrita de seus romances. O
acaso, através daquela insólita combinação de espelhos, ao contrastar ambientes
e situações engendrou um simbolismo que lhe foi de imensa riqueza estética. O
irracional é o grande tambor da arte. Eu me desculpo por haver julgado a senhora
como uma fraude e declaro a minha admiração por seu talento literário. Recordo
uma passagem no romance mais recente em que a protagonista afirma desconhecer
ao certo a sua idade. Ao ler imaginei que fosse apenas um comum erro de datas
no cartório de registros de nascimento. Veja agora que essa confusão de idades
poderia imprimir décadas de abismo entre dois momentos. Não há dúvida de que se
trata de uma belíssima ideia. O tempo imaginado como um labirinto em que a
simples passagem de um vão para outro nos levasse a décadas dali. O Minotauro
seria o guardião não apenas do tempo, mas também de sua duração física, o
regente das forças de atração e repulsão do caos e da criação.
Lavínia se deliciava com as envolventes ponderações de Vanessa Borgia.
Ali estava um modo bastante simpático da realidade se banhar no lago da
imaginação.
– Vanessa querida, estou encantada. Eu jamais encontraria um crítico à
altura de tuas palavras.
As duas conversaram por toda a tarde. Quando Lavínia se despediu a
repórter ficou uns momentos rascunhando as notas para uma matéria que
escreveria. Na pequena desordem de seus papéis encontrou a caderneta da
romancista e, ao folhear ao acaso, sua atenção pousou na seguinte passagem:
– Em geral as pessoas não se importam com o tipo de interpretação que
lhe oferecemos da realidade. Uma jovem repórter me fez entender que a razão é
como um objeto rompido que jamais recupera seu mistério. É preciso
constantemente alimentar a razão com novos mistérios.
Café Louise, outono de 2029.
8, FANTASMA
DA AUTÓPSIA
Quando os
detetives conseguiram abrir a pesada porta de madeira e adentar a plena
escuridão daquela casa quase isolada no bairro de Leviatã em Palmares um misto
de umidade em decomposição e fedor lhes invadiu os sentidos, acelerando a atenção
dos dois em relação a cada detalhe da cena.
O interior da porta expunha um baixo-relevo em madeira composto por
incontáveis corpos desmembrados e organizados como a representação absurda do
abandono. A perfeição dos traços permitia entrever a obsessão de quem entalhou
aqueles corpos.
Uma olhada ao redor e a mobília correspondia ao desamparo do lugar.
Trapos cinzas sobre o sofá, restos rasgados de plástico pelo chão, o cutelo
manchado de sangue sobre a mesa da cozinha. A cada lance do olhar as associações
iam definindo a brutalidade maligna do ambiente.
Siegfried e Kalil levavam à letra aqueles símbolos conectados e a
intuição de ambos apontava para a geladeira delatada por algumas manchas que
pareciam sangue limpo às pressas. Kalil se aproximou e abriu a porta, se
deparando com o esplendor desleixado do vazio. Nem mesmo uma caixa de leite ou
um vidro de geleia. Enganados pela intuição, os detetives reviraram cada fio de
espaço naquela decoração funesta.
Ao abrirem a porta que dava para o quintal, sobre uma velha pia
carcomida encontraram apinhados os sacos plásticos amarrados com barbante, os
bocados de corpos preparados como se desatinados a refeições. Cutelos, facas,
serras, ainda por serem lavados, indicavam que os pedaços daquele corpo foram
desossados. A ausência de sinais de putrefação impunha a existência de dois
tempos, não correspondendo a repugnância fétida do interior da casa aos
cuidados recentes com a mutilação do cadáver.
A impossibilidade de identificação da vítima desapontou os detetives,
que deixaram a cena sem conclusão alguma do que ali acontecera. Ao fechar a
porta da casa, observaram caído no chão um papelinho embolado. Kalil leu para
Siegfried a frase que não lhe pareceu reduzir em nada o mistério daquela tarde:
– Eu não esqueço quantas vezes tive que morrer.
9, FANTASMA
DAS PEDRAS DE CHUVA
Sentei-me a
esperar que venham do futuro os meus momentos perdidos. Anna Chae me trouxe um
suco da mais doce graviola de seus cuidados e uma de suas pedras de chuva que
ela mantinha afagada pelo calor negro de um veludo em uma pequena caixa.
– Eu tenho três dessas pedras, colhidas em momentos de grande
aflição. São uma bênção e me protegem das tempestades interiores e da sedução
pelos sacrifícios. Eu não posso lhe dar uma porque elas devem ser encontradas,
de outro modo são apenas um objeto sem uso.
Anna parecia ter vivido mil vidas pela virtude de suas palavras. E o som
de sua voz parecia regenerar o tempo. Um dia me contou sobre a que considero a
mais estranha narrativa de um amor perdido.
– Conheci Jano aos 21 anos e nossos véus se deitaram como um
milagre. Eu me sentia impregnada nas transições inesgotáveis de seu espírito.
Um dia ele decidiu partir para cá, cansado de ser profeta desacreditado na
própria terra. Quando encontrasse condições de morada seria então a minha vez
de vir. Fui deixá-lo no porto e enquanto nos despedíamos senti sob meu pé a
primeira de minhas pedras de chuva.
Um apanhado de cartas banhava o oceano que nos separava. Nós nos
escrevíamos como vastas plantações de amor e devoção. Até que um dia elas
deixaram de vir, o mesmo se dando com o dinheiro que ele costumava me mandar.
Decidi reunir uns últimos trocados e cruzar o oceano ao seu encontro, levando
comigo apenas o endereço para onde eu mandava as cartas.
O que havia de estimulante naquela conversa era o modo como ela
recordava. Sua voz parecia tocada por Deus, um raio doce e decidido que nos
penetrava a alma.
– O endereço era de uma pensão e a pessoa que me atendeu não
conhecia Jano algum, mas logo acabou por identificá-lo quando o descrevi.
Segundo ela, estivera na pensão um senhor Kitsune, porém há mais de mês fora
embora. Enquanto ela foi buscar algumas cartas que haviam chegado um brilho no
chão me levou ao encontro da segunda pedra de chuva. Em seguida me fui dali,
vagando pelas ruas sem destino. Eu não tinha mais dinheiro e a fome começava a
moer as minhas ideias. Ao entrar em uma lanchonete, disposta a pedir alguma
comida, observei umas fotos na parede. Uma delas era de meu amor, e havia um
pedido para que alguém fosse identificar o corpo no necrotério. A moça da
lanchonete me trouxe um copo d’água para acalmar meu pranto. Ao sair daquele
lugar obscuro onde confirmei o nome de meu amor, as forças me faltaram e só não
fui ao chão porque a senhora me amparou.
Aquela foi uma insólita coincidência. Eu passava por ali a caminho de
uma tenda de frutas. Anna Chae estava na encruzilhada de uma tragédia.
– Ainda me recuperando da tontura, o que parecia ser efeito das
lágrimas me levou à terceira pedra de chuva, esquecida em uma mureta. Enquanto
eu me recuperava, já em sua casa, refleti sobre a jornada incerta do destino em
nossas vidas. Os caminhos fogem desfigurados. Retratam as fontes secas que
temos que regar. Os demônios que espreitam cada travessia acenam com bilhetes
que abrem portas inoportunas. As três pedras de chuva reunidas me deram uma
nova escada: os três selos de despedida de uma dimensão que pesava em mim como
uma maldição, uma ausência de escudo, uma geometria desfeita.
Eu agradeço a todos os espíritos que teceram a nossa amizade. Anna Chae
está comigo há cinco anos, sua companhia muito me conforma, embora ainda me
assuste o que considero seja uma sequela de seus tormentos, pois segundo ela
ainda estamos a duas décadas do dia em que a encontrarei à porta do necrotério.
10, FANTASMA
DO CALÍGRAFO
Sobre o
criado-mudo um dicionário de símbolos e o livro negro de São Cipriano. A rede
guardava a varanda enquanto a maresia rapidamente envelhecia os metais da casa.
Os mercadores do tempo negociavam com os desgastes da mobília. Os mercados
sempre criaram objetivos fugazes que garantem a sua duração. Os amores também
ocasionalmente perdem seus efeitos e exigem uma transmigração. O que permanece
é aceito por seus caprichos. Também a aceitação é um capricho. Como um desejo
de crescer no interior da imagem. Olhamos a miragem das letras embaralhando o
significado das representações e acreditamos que naquele baile insidioso
podemos encontrar nosso verdadeiro destino. Como uma estrela caindo na sopa ou
um pássaro bicando o céu, as letras evocam a imaginação que as transforma em
ligações físicas com o mundo. Mesmo as omissas fazem parte do alfabeto das
migrações, frequentado pelas almas que perderam o acento na metáfora do
paraíso.
Sempre que o homem duvida de seus atributos nasce uma religião. E cresce
o desamparo daqueles que não estavam olhando para o lugar certo. Os santos
apedrejados, as pérfidas orações, a predominância do hábito sobre o instinto. O
domínio do corpo, a amarração vital, a intensificação da evidência sobre as
intuições. Lavínia di Lúvia arranca do túmulo de seus tormentos os galhos secos
e as flores murchas de sua cota de dedicação ao tempo. Os versículos
desgastados de sua constância entre os vivos. Os pecados relutantes poliam a
vidência de sua estagnação. Era preciso infernizar as lendas. Deixar-se devorar
bela banalidade. Embaralhar os sortilégios de modo a surpreender a todos com um
ímpeto que fale mais alto do que o bem ou o mal.
Ao abrir a gaveta do criado-mudo encontrou um pênis de látex ao lado
do novo testamento com uma página marcada por um papelote que
trazia apenas um número telefônico manuscrito. Instantes depois Michel Labán
bateu à porta e seu olhar despojado cativou Lavínia que ao deixá-lo entrar
presumia a dissipação de suas energias naquele quarto de hotel que até então
lhe parecia um simulacro de seus devaneios. Uma lapidação alquímica de orgasmos
ou a leitura de uma carta de exigências metafísicas que ela teria que cumprir
naquele aposento.
Eu sou a ventania das profundezas.
Eu sou a orquídea desaparecida na noite.
Eu sou o orvalho acordado no interior de um vulcão.
Eu sou o último combatente de tua grandeza.
Eu sou um deus que abre teu corpo até o Norte.
Lavínia repetia as frases destacadas no livro que Michel lhe pusera em
mãos. Um rio de óleos descia por seu corpo, sem que ela recordasse em que
momento tirara a roupa. Aquele azeite irreverente lhe dava um sentido de
fraternidade a seu espírito. Aqueles laços intermediários deveriam ser
bastantes para unir as letras extraviadas de seus sentidos. As lacunas de sua
memória talvez aflorassem ou então perdessem de vez a importância.
A luz sai à noite procurando o reino de teus seios.
A selva percorre as estações até encontrar o manancial de teu ventre.
As noites se destinam a fazer gemer a pérola de teu olhar.
Os rios abraçam as nuvens para que elas suspirem um nome que talvez seja
o teu.
Eu quero que me aceites como se eu fosse a balança de tua luxúria.
Os corpos se uniram enquanto Michel Labán murmurava a sedutora oração. As
letras coincidiam em uma mesma escrita. Não havia pausa naquele jorro de
imagens. Um frenesi de sentenças que voavam como uma flauta ou uma flecha,
impiedosas preces cuja trajetória constelava os espelhos e as trevas. E logo
então um silêncio reinou como a descoberta de uma nova linguagem.
11, FANTASMA
DAS METAMORFOSES
A casa é uma
chaga, a chaga é um berço. A pedra decanta as impurezas do canto, passando de
mão em mão. Quem chora diante do pássaro morto altera a rota primordial da
existência. O canto derrama seu mel secreto sobre as estações da carne.
A casa é uma espiral incompleta feita com os restos de mil esqueletos.
As estrelas carregam um fardo da linguagem e caem sem ter onde apoiar-se. A
casa é uma faixa de terra em farrapos. A terra é um lagamar esquecido, um
símbolo cuja cicatriz não se fecha, quinta de gigantes enraivecidos.
O sangue imita a água dentro da chaleira fervendo. Quem chora enquanto
se alternam as perspectivas do caos amarga a similitude de todos os princípios
expostos. A casa parece um trevo desmembrado, o trevo é um tratado de sombras.
O diagrama que não explica o que faz ali sobre a mesa. Os círculos concêntricos
da queda. A fênix banhando-se no fogo enquanto masca uma romã.
A nudez grotesca dos umbrais celebra a regressão dos guardiães do tempo.
Todas as pelejas são uma fecundação de monstros. Aquele que chora por seus
heróis embalsamados mortifica a imagem luminosa do renascimento. A casa é um
tropel de nomes que se desconhecem, a vulgata de sentenças que não foram
cumpridas.
Até aqui as dores cantam, as formas são cúmplices de uma figuração de
vertigens, a origem deriva de acordo com a descida aos becos do inferno. Se a
roda é oca, os caminhos se perdem. Se o caráter engorda sentado, as lendas
jogam fora os objetos dissecados da beleza. O olho também pode ser oco se por
uma curiosidade os oceanos saem em busca de outra morada. As oliveiras
desistiram de simbolizar a paz.
A casa é um deserto onde mascamos o fumo negro de nossos ancestrais. Os
pensamentos tropeçam entre restos sacrificiais. A ideia que tenho de todas as
transições da matéria através de minhas perdas ou portas enevoadas que
desorientam os processos físicos de quantas sou é algo que não consigo elucidar
e talvez não seja mesmo um enigma, uma equação, um conjuro.
Sei o meu nome, o que persiste nas inúmeras casas, nos séculos e lugares
por onde passei. No livro das proporções talvez o mistério mais próximo da
exatidão seja aquele que envolve o nome e não o lugar. Não há putrefação do
nome, nem mesmo quando atingido pelas fórmulas fúnebres do caráter de quem o
usa.
O nome é o racimo transcendente, o raio flexionado, a cintura do abismo.
Nosso único parentesco com Deus. Quem chora diante do nome perdido terá sempre
vivido à sombra de uma terra prometida.
Eu me chamo Lavínia di Lúvia.
12, FANTASMA
DAS AFINIDADES OCULTAS
Lavínia di
Lúvia voltou a indagar àquela sombra que vagava pela casa.
– O que queres de mim? Quem és?
Mas ela certamente sabia que não se tratava disto. As eleições do acaso
por vezes eram um bom remédio para a inércia. Os pesadelos são gerados como uma
mistura de extravios.
Alguém que bateu à tua porta quando especulavas sobre os humores
exóticos.
Aquele que soprou em teu ouvido a primeira incógnita do caos.
Quem agitou os redemoinhos que alimentaram tuas intuições.
Giambattista, Trithemius, Teofrasto… A cada uma das vozes Lavínia
divagava sobre aquelas aparições reclusas. O tesouro das falas respondia à
ambiguidade de suas suspeitas. Era possível sair dali para qualquer outro lugar
e uma nova época apareceria de imediato. A casa parecia ter sido construída
como um gigantesco mecanismo de agitações espirituais. Enquanto a lareira na
sala sussurrava novos aforismos incompreensíveis ela contou 12 cômodos. A sala
era o domínio do eremita. Lugar escolhido pelos vultos para a sucessão dos
mistérios. Pela primeira vez a mulher tinha voz nessa corte. Talvez não fosse
além de prestidigitação, mas o certo é que Lavínia destinou a cada figura
imaterial um talismã que acentuava à exaustão as contradições de suas
sentenças. As entoações iam marcando um ritmo de projeções embaralhadas. Há um
momento em que todos os provérbios revelam uma única verdade.
– Oh terrível destruidora de nossos mundos, por que existes dentro de
nós?
Aquele era um lamento proferido por uma dessas misturas de adágios. Os
visitantes da casa, agora embaralhados, confundiam as cartas de seu próprio
destino. As palavras não são a essência das coisas, elas não possuem indícios
magnéticos que prefixam o lugar que devem ocupar em uma revelação. Lavínia di
Lúvia aos poucos ia descobrindo a Ísis que tinha dentro de si. Todas as vozes
conduziam à constância elétrica de seus atributos. Estes iam se formando na
medida em que se apropriavam do refluxo de axiomas amantes da instabilidade.
Lavínia e sua nutrição de abismos. A lua boiando no ventre. A sutil semelhança
com todos os seres.
Pelas leis secretas da ótica o que vemos naufraga na memória. O passado
requer uma tripulação de alienados imprevisíveis, pois de outro modo sua deriva
não encontraria um hábito na súbita aparição no litoral das alegorias.
Espantosos cães da lua, hienas sofismáticas, uma serpente moribunda no
subterrâneo da nave. Os espelhos davam origem a toda sorte de pesadelos. A
imaginação era testemunha de todas as divagações do efêmero e dos fatos
invisíveis. Lavínia di Lúvia anotava em sua caderneta as comparações que iam
captando no ardil daquelas vozes retorcidas.
O homem é um blefe muito antigo. Preexiste à invenção de todos os deuses
e à descoberta do acaso. As melancolias se arrastam pela complexidade dos
corredores, a casa é uma espécie de animal fabuloso com uma boca enorme
disposta a nos levar pelos interiores mais recônditos do instante, pelas
saliências retóricas do desejo, as entranhas desesperadas da agonia humana. Todas
as linhas se estreitam antes do último confronto com as sílabas da morte.
– Eu tenho um pecado para cada aparição que me insulte.
Esta frase no livrete de Lavínia não tinha a sua caligrafia. Quem quer
que a tenha escrito o fez enquanto mascava atrevimento e escárnio. A todo
instante somos arrastados para os subterfúgios da linguagem. Quando esquecemos
algo nos cercamos do sadismo dos movimentos repetitivos. Nosso organismo é
impulsionado pelas marcas impressionantes das suspeitas, o vagido crescente da
imprudência e a crença impronunciável na exalação de mundos paralelos.
– Sou eu quem veio te buscar para uma nova pretensão de vícios.
Aquela voz sorrateira se fez escutar e foi embora. Como outras tantas
bisbilhoteiras, talvez tivessem rompido o vestíbulo e se ocultado em algum
recanto de cada aposento da casa. Jamais saberemos a soma exata dos fantasmas
que espreitam a nossa vida. Serão oportunos, encostados, sagazes, infecciosos?
Pouco há como saber de que se nutrem as suas sombras insaciáveis. Se agitam
suas pernas em nome de uma beleza ou de um terror moral. Se abrigam em rostos
sobrepostos as mais delirantes afirmações do desconhecido. Até onde fraudam os
bilhetes de nossa digressão existencial. A opinião de cada um deles nos
atravessa como um cortejo fúnebre e acabam traçando os fundamentos de nossa
ruína. Lavínia refletia como se bordasse uma colcha de trevas.
– A ilusão é uma percepção que não mede consequências. Graças a ela os
rios podem desaguar no céu, as areias galopam contando com a ingenuidade dos
mares, eu volto sempre aqui para representar o que me espanta nas cenas
excêntricas da perpetuidade dos flagelos. O homem ressurge em cada ato e volta
a cometer os mesmos erros. O público acha o sobrenatural risível. Por sorte a
memória desmonta sua carroça de pressentimentos infundados quando a morte baixa
a cortina. Não é outra a confiança de que me alimento. No entanto, nos últimos
dias tenho me indagado sobre esses 12 fantasmas e a sabedoria oculta de suas
manifestações. Não sei até onde eles se lembram de mim quando cantarolam suas
resoluções provocativas. Quase sempre são tão burlescos que me parecem frutos
de uma insônia. O que vejo diante de mim – ou talvez o certo seja diante deles
– nem sempre coincide com o que vivi. Alguns virão do futuro, serão a minha
antevisão das pernas doloridas dos acidentes? Mas como posso estar viva em
épocas tão remotas e distintas? Os fantasmas são os piolhos da imaginação. Não
há matemática ou outra mecânica do infinito que os faça sobreviver ao meu
último fôlego.
Lavínia di Lúvia seguiu preenchendo as páginas de seu diário até a
completa surdez do mistério. Sua morte pesou sobre as ruínas do tempo. Graças a
ela hoje compreendemos que as cifras cabalísticas podem fazer da luz uma forma
de arrependimento das trevas e que a memória será sempre uma incógnita quando
se trata de desvelar a origem de nosso nome.
PÁGINAS INESPERADAS DO DIÁRIO DE LAVÍNIA DI LÚVIA
Ao ler
aquelas páginas todas Lavínia di Lúvia descobrira em seu autor uma extensão de
suas aflições, porém com a força de um desmascaramento de subterfúgios que de
outra maneira não teria conseguido. Talvez fosse o momento dela mesma escrever
um diário, antes que Lenilde Fablas resolvesse dar um fim àquele novelo de
vidas conjugadas que mais parecia uma colagem existencial das sete mulheres
engalfinhas nas cavidades de sua memória. Começou a escrever vorazmente. Os
rascunhos intercalados de muitas vidas em uma só. Onde desvendar os limites
biográficos de Li Sung e Lavínia di Lúvia? É verdade que a própria Li Sung não
havia reconhecido os desdobramentos de sua vida na medida em que Lenilde Fablas
seguiu escrevendo o romance. Mas teria ela se desfeito por completo de seu
antigo eu, ao incorporar o misterioso personagem Lavínia di Lúvia?
Havia ainda que considerar a mudança de casa numérica, saltando do sete que
marca a existência da autora, indo habitar o doze e a complexidade interior das
casas e cidades cuja vibração sonora diversificou o mistério até a sua completa
expansão física. Se as sete mulheres alimentaram a árvore de um mundo marcado
por evocações oníricas, associações imprevisíveis, correspondências paralelas,
os doze fantasmas que foram despertados no íntimo de Lavínia di Lúvia
desfizeram as crenças em ciclos concluídos, semeando planos abruptos onde as
evidências tremiam e mudavam de centro a todo instante. Dar asas a um diário
talvez seja a melhor perspectiva que permite contemplar o destino dessa mulher
cujo nome multiplicado nos leva à totalidade do ser.
AVALON, 1190
Certos
galhos de meu corpo despertam a manhã antes que ela se reconheça deste lado do
mundo. As folhas atendem a um chamado impresso na escavação de um pentagrama no
interior da terra. Serão muitos os tempos erguidos como catedrais de sombras.
Um sepulcro abundante de ramagens e vozes iniciáticas. As seis letras da pureza
mascada ao contrário. Calculo o número de seu equilíbrio indefinido. A
matemática sorrateira de sua ambivalência. A terra cria seus símbolos
divinizados e os alimenta com o pecado. Seu número é o risco. A metade de um
descompasso fecundado a céu aberto. Os seis braços do presságio das
tempestades. A hora lendária em que um corpo penetra em seu oposto e dele só é
retirado quando um duplo se soma a seu arrebatamento milenar. Este é o mapa das
manifestações do refúgio do tempo. Quando o tive em minhas mãos descobri que
sua escrita é a seiva de que nos alimentamos. Cada letra é um sinete do
mistério antecipado. E o silêncio se prolongava como uma síntese:
Grava-me a noite
em teu ventre
para que o dia seja forte
e chegue mais cedo.
No interior de um dos ramos mais úmidos de meu ser marquei as suas
palavras na medida em que elas deixavam algum vestígio:
O que agora conheces como o encontro de propriedades opostas foi, em
tempos antigos, um bosque onde coabitavam todos os elementos. Uma consonância
de acordos em profundidade. Os nomes passavam de corpo em corpo e a ninguém
preocupava designar uma verdade para cada gesto.
O que agora associas a um pântano da linguagem, teve a sua primeira
matéria regida pela abundância. A transmutação elétrica dos seres e animais era
uma constante dilaceração da unidade que se expandia sem feridas, uma dialética
fecundada nas ondulações privilegiadas do caos.
Eu deveria conter em meu íntimo todas as riquezas da terra. As forças
nutritivas da existência, nas duas metades de seus esforços por imitar o bem e
o mal. Uma árvore que se ocupasse de todos os estados da matéria. O sexo
volumoso da dualidade que compreende muitas expressões. A casa das luzes e o
vaticínio das trevas.
Minha mão trêmula em certos momentos perdia a simetria daquelas
anotações semelhantes a um ditado. Uma tempestade passava por dentro de mim e
nem sempre o que eu escrevia reverberava as minhas dúvidas. Não sei como
aceitar o ano em que tudo se passou. Talvez fosse uma alegoria, uma viagem
pelos enredos vibratórios da ilusão. O passado talvez não passe de uma
etimologia do assombro. Os ramos absurdos da árvore que nos foi destinada e não
soubemos decifrar. De qualquer modo segui naquela embriaguez contagiante da analogia.
O tempo escrito em duas línguas simultâneas cujo anúncio era compreendido de
acordo com o testemunho das sombras. Em um mesmo versículo a noite poderia ser
dia e o alimento dos sonhos o veneno da vigília.
A mão também persistia trêmula:
A tua maçã apodrecida um dia se chamou Avalon.
URZELINA,
1647
Estive por
dois ou três minutos tentando me lembrar o que me trouxe aqui. A porta que dava
para o quintal se abriu e vi passar dois homens que se dirigiram à pedra da pia
onde estavam embrulhados pequenos sacos contendo porções de um corpo limpo como
se fosse carne para consumo. Que se tratava de um corpo humano é algo que só
reconheci ao recordar que antes daqueles homens chegarem foram jogados
cuidadosamente fora os vestígios de ossos, as mãos e pés, a cabeça despedaçada.
Não havia indulgência para o que se passara. Os bocados foram levados para a
polícia, porém não ajudaram em nada a evitar que o assunto se tornasse
irresoluto. Durante o tempo em que ali estive nada mais se passou. É possível
que o corpo fosse meu. Não pude chegar a tempo de sentir as dores da violência,
ou identificar quem me tivesse causado a morte. Sei que foi a primeira vez que
morri, porque jamais havia regressado tanto no tempo. As aflições me
convocavam. Eu podia estar em distintos lugares ao mesmo tempo, não apenas como
observador, por vezes cheguei a conviver com outras pessoas. Não foi o caso
daquela velha casa abandonada. Tampouco eu tinha certeza se era eu. Meu corpo
não possuía sinais de nascença, tatuagens, cicatrizes, nada que me pudesse
identificar. Os sinos de uma igreja dobravam longe. Minhas dúvidas me
perseguem. O que eu estaria fazendo ali se não tivesse algo a ver com o
assunto? Se não fui a vítima, isto me preocupava ainda mais, pois não restava
senão ter sido o malévolo destroçador daquele corpo. A memória é um trapo
embebido em sangue. Mesmo a sua retidão pode estar escavada por impurezas.
Algumas dessas minhas transições mais súbitas no tecido ondulado do tempo são
imprecisas e nubladas, recortadas por lampejos e pontos cegos. A frequência com
que se dão por vezes me põe em dúvida a idade certa que me define, a época em
que verdadeiramente estou, o lugar que habito. Jamais retornei a essa casa, e
se agora me lembro dela é porque ainda me assalta ocasionalmente a dúvida sobre
o lugar que ocupei naquela cena.
MACURI, 1873
Todas as
conclusões foram varridas dali para outra realidade. Não havia mais lugar para
as religiões. As explicações eram associadas a uma tática de preenchimento das
lacunas da existência. As aldeias foram devoradas pelo fogo, corpos
carbonizados, velhas, crianças, animais de pasto. Os poucos caçadores da tribo
foram empalados antes de queimados. Seria essa uma lei de sucessão divina, que
garantia a expansão das hordas religiosas? Seriam esses os disfarces dos
deuses? Quando toda uma aldeia sucumbe aos perigos da alma um missionário tece
um novo transe e refaz a vida entre os subjugados aterrorizados. Uma vida de fé
em aberrações. Toda sobrevivência agoniza enferma e sua única convicção é a de
que um paraíso a espera dormir o último sono. Eu vi nascer Macuri das cinzas
daquela barbárie.
O céu se desgarra da terra como um acidente paralelo. A seu lado os
sacerdotes repassam o catecismo da tolerância condicional. As noites são
injustas com os dias. Há uma reclusão de discípulos de sua devassidão. A moral
estabelece seu calendário de vertigens. Ninguém foi indagado se queria atingir
a imortalidade.
Eu sigo anotando as violências do credo.
Toda santidade é herética.
Haverá uma ressurreição feliz?
As digressões fecham suas portas a quem desacate as tradições.
O grande mar é convidado a indagar à pedra em seu leito se ela tão
minúscula poderia restaurar a vastidão agônica dos desertos. A pedra sorriu
diante daquela simplória inquietude do mar e lhe inquiriu se ele acaso teria
como se desfazer de todo o sal que o impedia de ser compartilhado com homens na
terra. Os véus tanto são um refúgio como a toga do poder. Abrigam e despedaçam
a um só tempo.
As metamorfoses bebem o sol.
Os grãos da loucura sacrificam as lendas e enterram seus atavios pelos
sítios mais infecundos do planeta.
Os devaneios sobrevivem às certezas razoáveis.
Um barco cruza as constelações com sua carga de extravios. Seus
fantasmas raspam no casco uma fábula de intempéries. Os mares foram engolidos
pelos portais de metáforas impossíveis. As esfinges se riem dessas inscrições
sem fundamento dos dogmas celestiais.
A semelhança gera abstrações descoradas.
As procissões são um formigueiro que perturba o plano solene das
ocorrências irregulares. Não se pode esperar que a adoração retribua com
melhores dias.
Vejo agora que muitas coisas que anotei chegaram a meu pulso tocadas por
um arrebatamento que não pude decifrar, um ditado que era a demonstração de um
conhecimento que poderia evitar o retorno de arcaicos declínios. Não eram vozes
ou visões. Talvez uma força telepática guiasse a escrita. Não havia trevas ou
iras da salvação. Não escutei os hinos negros ou fui tocada pelo vulto desnudo
das entidades piedosas. Não eram as espigas do ego nem a fornalha dos
dissabores.
As noites deveriam desenterrar a claridade reservada às divindades.
Compartilhar o inesperado. Semear o desconhecido até que fosse possível
alimentar a humanidade.
Aqueles adágios me pareciam perdidos para sempre, embora eu os continuasse
a escrever.
MONTPELIER,
1909
Muito já
escrevi, em meu livro sobre as partículas errantes, sobre a casa que me foi
emprestada pelo amigo e matemático Henri Sobejano. Ali convivi por alguns meses
com enigmas que me obsequiaram a suspeita acentuada de que possa advertir
experiências simultâneas em espaços e mesmo épocas distintas. Impossível
restaurá-las ou devastá-las, mas o impacto de suas correspondências inflamava o
meu espírito e me fazia correr pelos rios de meu ser um manancial convulso que
me desfaziam de tudo o que a vida até então me havia ensinado. Os estudos de
meu amigo deram lugar a uma melhor compreensão do fenômeno das evidências
gravitacionais e um século depois permanecem repletos de novas sugestões. De
algum modo a sua casa criara um vínculo com as energias intermediadas pelos
cálculos de Henri.
Cada imagem que projetamos suga tudo o que está à sua volta, permitindo
um encontro em seu interior dessa população irrequieta de horizontes. O reflexo
daquilo que somos se orienta pelos retratos que traçamos das sombras que
conseguem fugir do plano de sucção das imagens. É possível que tais sombras,
quando excedem seu crescimento, deformem as tábuas de minúcias que regem a
existência, as leis primitivas de nossa presença na terra. Não há dúvida que
foi isto o que me aconteceu em 1947. Suores frios se espalham pela casa
favorecendo o espetáculo dos espíritos malévolos. As influências do medo
sujeitam nossos atos mais correntes, derramam sobre eles um caldo de
hostilidade. Assim é que por vezes nos olhamos no espelho e não correspondemos
ao que imaginamos ser. Como a trajetória das cargas elétricas anotadas por
Henri. A aceleração vertiginosa das ondas concêntricas. A casa encarnara com
assombro exatidão as suspeitas de seu proprietário. E agora me alimentava com
seus vislumbres, com a arca de seus mistérios.
No poço mais fundo que o homem conseguiu cavar ele acumulou a estatura
terminal dos tabus. Ao deformá-los, na medida em que recorria àquele acervo, a
arte foi se transformando e criando novas condutas. A cada tabu esmagado uma
nova impunidade estética. Crescia para o fundo da terra o maior palácio de
espelhos que um dia fora concebido. Não à toa são siamesas a poesia e a
matemática. Minha estadia no bangalô de Henri Sobejano me permitiu projetar uma
sombra na outra. O conhecimento nasce do espanto. Os restos, com seus formatos
complexos, percorrem o exterior da gravidade. A analogia é um tributo selvagem
às leis da sucção.
VERSALHES,
1919
O sol
flutuava no espaço como um archote cercado de névoa. A sua luz de tocaia
ocasionalmente descobria os planos de alguns vultos. O dia era todo um
crepúsculo inusitado. Nem mesmo impostos os tratados de paz alcançariam um fim.
A única lição que a humanidade tira das guerras é como torná-las mais potentes.
O frêmito metálico das trombetas rasgava os véus da ilusão. Os novos tempos
anunciados não convenciam a ninguém. Havia fome se espalhando por todas as
ruas. Construções devastadas pelo impacto dos conflitos. As carcaças se
reproduziam como o aleitamento de infecções. As frutas passadas insultavam as
mesas leprosas. Os selos bíblicos se embaralhavam naquele ambiente proscrito.
As vozes se encardiam em um mesmo grito: aos diabos com a paz! Qualquer
que fosse o ângulo do qual contemplássemos aquela época tudo era prenúncio de
extensão. Apenas uns pequenos guetos formigavam como os últimos suspiros de uma
chama que se acreditava destinada a manter uma réstia de luz e calor no mundo.
Não havia mais nada com que enfrentar a desolação dos espíritos daquele momento.
Meu encontro com o Barão de Spawforth teve o toque incomum de uma mútua
preocupação com os planos de paz e a semântica de um cinismo generalizado que
definia o poder em quaisquer tempos. Falamos do despudor programado dos
governantes. Ele inicialmente se mostrou reticente em emitir sua opinião,
talvez por eu ser mulher ou pelo fato de que meus conhecimentos excediam os
dele. Evitei lhe dizer que eu vinha do futuro, o que certamente teria o efeito
de uma blasfêmia. O Barão me pareceu um homem íntegro e o fato de que eu estava
diante dele era mais do que a comprovação de sua honestidade. Em nossas breves
ainda que intensas conversas sob a luz trêmula do sol, na praça principal
daquela cidade artificial, reiteramos que os sonhos de paz sempre foram
empoleirados para novos abates. Os algarismos negligentes de seus postulados
parafraseavam um vício perene: a avareza ensanguentada com que o homem marca
sua presença na terra.
– Talvez um dia o sol ressurja em nosso íntimo e possa iluminar as
cidades, dando aos homens a perspectiva de uma nova época.
– Meu caro Barão, novas cidades artificiais surgirão no mundo e serão o
centro de sua mesquinhez, o cerne das matanças, o núcleo das avarias.
Qualquer outra coisa que eu lhe dissesse ele desconfiaria de uma origem
mediúnica, talvez me confundisse com uma bruxa, meus riscos seriam excessivos.
Era aconselhado nos despedirmos, agradecendo aos deuses por aquele aprazível
encontro.
PINDORAMA,
1935
A memória
por vezes é o idiota que caiu em um buraco que estava à sua frente. Um livro
raro que apodrecera sem uso em nossa biblioteca. O erro de perspectiva que
limita a abstração ao território do intangível. Somente uma curiosidade dessa
natureza teria me levado à prisão, àquele estúpido catre boiando nas águas de
Pindorama. A autoridade repugnante que me interrogou me convenceu, logo na
entrada, que viriam dias de uma perversa ausência de humor. O imbecil
acreditava piamente que o mundo estava apinhado de espiões. Tal crença é a
grande fonte de presunção que assola os espíritos ordinários. Não há como
convencer essa gente que ninguém perderia tempo os espiando. Para
fundamentar sua tolice essas almas estropiadas encarnam a mais patética de
todas as abstrações: o Estado. Um governo qualquer sempre exclama dentro delas
que são as mais qualificadas para defender suas impropriedades. Impossível
sobreviver a esse extermínio de bom senso.
Como ser o cronista de uma época mediada pelas batinas promíscuas sem
tornar-se louco ou o menestrel desacreditado da corte? A esse tipo de loucura o
melhor remédio sempre foi o cárcere. Não há receita mais indicada para as
botinas voadoras. Ali dentro todos aprendem rapidamente a se passar por surdos.
Cantei que me esgoelei até que um dia eu dei pela conta que ninguém tinha
orelhas. No entanto, aquela estranha população expunha uma curiosa admiração
por meus gestos. Primeiro anotei os versos de algumas canções e logo eles se
puseram a me acompanhar, pois ainda tinham bem guardada em sua garganta uma
fala esquecida.
Com o tempo, em meio à nossa cantoria, decidi montar uma comédia, cujo
texto foi com certa facilidade – afinal, todos éramos loucos – sendo
improvisado em toda espécie de papel que nos permitiam. Aquela verbosa projeção
de ânimos era o cadarço inaugural de nossas autobiografias. Poderíamos então
caminhar com menos desconforto pelos ofícios da razão imposta. Um golpe de
ilusão é indispensável à escrita de todo testamento.
TURANDOT,
1947
As perdas
estão ocupadas com o inventário de suas prendas. Os carneiros da insônia, o
mercado das fábulas, a agonia dos deuses. Tantas coisas na vida parecem reais
e, no entanto, quando reviradas, mordem a própria cauda e revelam uma outra
ordem suspeita que é apenas metade de sua evidência. A verdadeira consciência
dessas coisas é determinada pela indiferença. Por vezes temos que imaginar o
contrário do que vemos, para que o mundo se mostre em sua clareza simbólica.
Porém os sentidos nem sempre estão de acordo e o que avistamos é uma confusa
negação de juízo. Uma chacina moral, uma fraude de ideais, os cascos brotando
da terra seca como centelhas em uma arribação fingida. A realidade se desloca
alheia à impetuosidade da razão. Como uma mancha no lençol, com seu negrume
crescente e seu movimento provocativo.
Um tumulto misterioso por vezes nos redime, e nos leva à irradiação de
outro enigma.
As pedras cadentes podem muito bem ser a construção de uma morada
incerta.
Os cegos cavam a sepultura de mortos que não podem identificar.
Forasteiros vindos dos céus redigem as máximas que subvertem os hábitos
de homens e centauros.
Quem traça um centro desconhece as portas que dão para outras dimensões.
Um amontoado de chifres desorienta as mitologias.
Na medida em que anotei esses aforismos a mancha no lençol foi ganhando
volume e movimento. Se pôs de pé diante de mim, nascida de um salto, como uma
epifania despertada no deserto. Aquele talvez fosse o custo assombroso do
paradoxo. A despensa ilusória da origem. No entanto, na medida em que o vulto
negro ia ganhando a definição exata de meu corpo, algo encantava os princípios
de minha identidade e fazia planos, repletos de atrevimento, de estar em duas
partes ao mesmo tempo. Seduzir a folhagem trivial de um velho arvoredo e o
disco sacramental dos disfarces. Lavínia di Lúvia renascida em dois
hemisférios. Sairíamos de casa tomando direções opostas e se é verdade que o
mistério copula com a curiosidade aos poucos seríamos mais, oito, talvez 12.
A vaidade tem a força de um eclipse. O espelho no quarto não
compartilhava minha crença na multiplicação dos seres, não aceitava meu duplo,
insistia que no mundo não poderia haver outra igual a mim. Desestimulante falta
de perspectiva daquele espelho ordinário.
Esta tua aparência é falsa. Não vês que podemos dar sentidos diversos ao
mundo visível?
Seu silêncio era irritante. Desconhecia a gravidade, o prazer, o
entendimento. Negava os algarismos da levitação e os elementos corporais da
imaginação. Estava preso às vísceras de uma realidade mesquinha. O espelho nos
fez à sua imagem e semelhança.
Porco egocêntrico que não me permite vencer a fadiga da existência.
A tua embalagem deve ser única, como a legenda embrionária de tua
própria vida.
O diabo platônico abriu então o verbo da tolice. O ser humano é fruto da
partição, a complexidade do ser mede acima do espaço que ocupa e da época a que
acaso tenha sido destinado. Talvez os espelhos sejam a vibração agônica de
nossas superstições. Uma ilustração esmaecida de Deus.
A impetuosidade crescente de minhas palavras enredou um sobressalto
entre nós três, e o vulto me apertou o pescoço, decidido a se desfazer de mim.
Enquanto eu me debatia pude ver que aquela inusitada violência não era
acobertada pelo espelho que reproduzia apenas a agitação indecifrável de meu
corpo, o que acabou descrevendo no quarto um desfecho obscuro.
Morte ou metamorfose, talvez nenhum fim seja absoluto.
FORTALEZA,
1957
Volto ao meu
diário sempre que posso. No começo eram anotações dispersas, centelhas ou
formigamento de coisas que me assaltavam ao longo do dia. Uma frase solta, uma
imagem infrequente, um medo, uma irritação, a suspensão de um entusiasmo.
Guardar as coisas comigo de modo que elas não me escapem. Aos poucos fui dando
ao diário a condição de uma criatura invisível que me faria companhia em meus
retraimentos. As imagens anotadas foram ganhando uma intimidade perigosa.
Aquele objeto passou a saber coisas de minha vida que eu jamais havia contado a
alguém.
Quem sabe um dia me assediaria com ameaças de revelar meus segredos ou
mesmo com agressões sexuais, me forçando a levar com ele uma jornada promíscua.
Poderia assim me obrigar a escrever uma biografia distorcida, um relato de
demônios, a visita de um extraterrestre. Não digo que essas coisas não podem
acontecer. Com a prodigiosa facilidade que tenho de atravessar portais
inimagináveis, provavelmente eu já devo ter páginas e mais páginas por escrever
acerca de todos esses temas, dos mais vulgares ao mais insólitos. Como alguém
interpretaria a lascívia de uma história de um amor que se passara em
realidades paralelas? Como tornar aceitável que um espírito elementar tenha se
deitado a meu lado e me empalidecido de luxúria somente com o olhar?
Se há alguma verdade na memória, aquele objeto me seduziu tantas vezes
que mesmo quieto sobre a mesa, com as suas páginas fechadas, ele me penetrava o
sexo e açoitava meus desejos mais lúbricos. Houvera noites em que eu ardia
desesperada, chorando como uma libertina gananciosa. A sombra pálida e
frenética que me espalhava o corpo por toda a cama e me fazia desaparecer uma
mão pelas curvas sutis de minhas formas descrevia um código que eu havia
anotado em uma antiga página, minha visita a Urzelina em 1647. O intrigante
caso de um corpo despedaçado que jamais foi elucidado. Eu sei que se tratava de
uma mulher. Talvez pudesse ser eu mesma. A memória estabelece sua lista de
prioridades, avariando o nosso entendimento de premências e disparates.
A sombra desnudava as minhas lembranças. De algum modo me fazia
renunciar à minha rotina. Converti-me no documento astuto de uma volúpia. Até
mesmo um crime possuía conotação sexual. Agora era o diário que me confessava
suas experiências, uma calúnia de tintas, a obsessão de condenar a realidade a
declarar-se inconsequente. Fui constantemente convocada para sua tigela de
orgasmos, a nutrição do êxtase, o testemunho de uma irrupção de espíritos no
ar. Mesmo conhecendo seus recursos, eu me deixava possuir por aquele bailado de
réplicas, as minhas amantes todas tinham a exatidão de meus contornos, eu havia
me convertido na mulher invisível amante de um íncubo. Até mesmo o silêncio súbito,
aquele rascunho de imperfeição da angústia, que abocanhava a cena e logo
desaparecia sem deixar motivo, mesmo essas passagens vagamente aprimoradas ele
reproduzia nas páginas de meu corpo.
O diário me escrevia como o refluxo de um transe. Quem decifraria
aquelas notas invertidas? Sessões de suores alternados. Um médium devasso que
eu abrigara dentro de mim. Os sinais dissolutos de nossas transfigurações. Uma
orgia de vultos que singravam a memória. Um dia eu tinha dentro de mim um
psicótico, um alienígena, um palaciano violento. A memória materializava em meu
ventre os personagens mais impensáveis. O diário insistia que por ali passavam
os meus mitos primários, a substância carnal de meus anseios. E erguia meu
braço onde acabara de escrever uma exaltação de adultérios. Uma adoração de
magos, eu quero todos em meu pasto febril. A iluminação desse fogo mágico
acendia em meu íntimo as tochas de uma passagem para muitas noites. Uma
ingestão de espermas e sangues menstruais, eu não fazia mais distinção entre os
sexos, as leis de meus ímpetos já não eram mais secretas.
O diário tinha sobre mim domínio absoluto e me fazia praticar os mais
incessantes martírios. Tudo era incontinência no acúmulo de suas imagens, as
palavras pareciam sangrar de tão frenética atividade. Escrevo como quem cavalga
um tigre, com a tinta suculenta dos excessos e as faculdades fulgurantes do
impossível. Escrevo destinada a ser a escrita no requinte de sua erupção.
SANTARÉM,
1974
10 de março
Minha cara
Lavínia di Lúvia
Há muito não nos reencontramos, porém eventualmente recebo notícias de
suas pesquisas pelo interior do Nepal. Atualmente estou morando em Santarém e
há poucos dias chegou uma carta de Anselmo Salerno da ilha de Marajó onde
relata uma série de crimes dos mais violentos, envolvendo moradores de uma
vila. Os corpos foram encontrados espalhados nos arredores carbonizados como se
tivessem recebido uma fulminante descarga elétrica. Uma moradora de nome Salete
contou a Anselmo que a carnificina não durou mais do que um susto do olhar. Um
cheiro ruim rapidamente se espalhou e ao cessar o salpico de fagulhas ela
observou uma mulher se afastando da cena, caminhando calmamente por entre os
mortos. Ao indagar se ela estava bem, a mulher se virou e então se apressou a
desaparecer de seu olhar. Anselmo quis saber se Salete conhecia a pessoa, mas
ela afirmou que jamais a havia visto na ilha. Um dia depois, ao ir formalizar
testemunho na delegacia, a senhora, ao aguardar ser chamada, folheou
displicente alguns livros na mesa e, ao abrir a capa de um deles, ao ver a foto
da autora em uma das orelhas, súbito deixou o livro cair no chão e deu um
grito, reconhecendo a mulher do livro ser a mesma que vira há duas tardes. Como
o livro havia sido emprestado ao delegado por Anselmo, este foi de imediato
chamado para esclarecer o fato. Acontece que o livro era teu, minha amiga,
exemplar de A fuga das
transparências, que me deste no ano passado e Anselmo me pedira para ler e
emprestar ao delegado. Peço que me escrevas contando o que é possível de toda
essa nossa agitação.
Recebe o meu abraço apreensivo,
Argênteo Soros
∞
16 de abril
Lavínia
querida
Volto a te escrever após um período de cinco semanas desde a minha carta
anterior. Em vão esperei por uma resposta tua. Ao contrário, o que se passou
foi algo assombroso e que trato aqui de narrar. Na noite de ontem apareces em
meu sonho de forma tão nítida que mesmo que o impacto de tua presença tenha me
despertado ainda assim ali permanecias e toda a cena prosseguia diante de meus
olhos como se estivesse projetada na parede. Os corpos espalhados pelo chão,
como descrevera a moradora da vila em minha outra carta. E curvavas teu corpo
sobre eles, deixando um círculo de teu próprio sangue em cada fronte. Em
seguida te aproximavas de mim e, ao me tocar entre as sobrancelhas, tudo se
dissipava. O sono prosseguia, como se nada tivesse acontecido. Porém pela
manhã, ao despertar, tudo veio à minha memória. Ao ir ao banheiro, diante do
espelho me vi, com um círculo de sangue marcando a testa.
O que está se passando, Lavínia? Não encontro explicação para nada
disto. Não deixe de me escrever e, se possível, venha me ver.
Recebe o meu abraço cada vez mais apreensivo,
Argênteo Soros
RIO DAS
ALMAS, 1980
Acordei no
que parecia ser o meio da noite, com uma dúvida flamejante de Deus. Sob a copa
decaída do imenso cajueiro no Grande Lago boiavam sete corpos sem vida. Uma
esvaída caligrafia da morte que as águas iam tratando de apagar. Meus olhos
começaram a busca ainda em sonho, na complexidade vetorial dos abismos. Aqueles
corpos expandiam a imaginação, desafiavam a parcela migratória dos sentidos.
O sonho é a primeira escrita de uma liturgia do desejo. Não era outro o
argumento de meu olhar ao descobrir aquelas sete mulheres. Substituímos cada
verbo pelo atrito psíquico de sua morada. O que vejo no sonho jamais deixará de
estar presente na vigília, não importa o mecanismo de minha visão. O sol
alternava os timbres daqueles sete enigmas, sete versões de um mesmo crime.
Retirados da água os corpos rascunhavam os vestígios de cada morte.
Os crimes ocorreram em lugares e momentos distintos. As vítimas foram
guardadas à espera do momento em que seriam ritualisticamente emborcadas no
lago. Não havia sinais de luta, cortes, hematomas, ossos quebrados, marcas de
agulha ou cordas, cada corpo envolvido por um drama onírico que não permitia
desvendar a fonte do óbito. Teriam sido asfixiadas, porém em condições raras,
cada uma delas imersa em um ataúde de acrílico, sem que tivessem como se
debater enquanto o ar ia se dissipando. As jovens mulheres expiando em
relutante agonia.
No âmago das associações pude revirar os bastidores de meu sonho, onde
as sete caixas iam sendo preenchidas uma a uma. Os últimos instantes foram como
ter em mãos as chaves do inferno e não vislumbrar as portas. Também em mim a
vida se desfazia. Não era um filme ou a leitura de um relato. A minha
respiração sutil ia emitindo seus últimos acordes. Eu escondia a minha face e
com isto não podia identificar aquelas mulheres. As letras foram jogadas em um
balde e não havia como recuperar a tempo as palavras de onde elas foram
arrancadas. Distinta era a extensão do sopro vital das sete jovens
assassinadas.
Não esquecer como a agonia vai substituindo as pretensões de vida. Como
deuses foram substituídos pelos palimpsestos de uma civilização agônica. Os
corpos boiando no lago desafiavam a clarividência. Sem deformidades aparentes,
aquelas tábuas do mistério algo queriam nos dizer. Como se quem as dispusera
ali, em maquinação com o acaso, rabiscara um acidente profético. Uma caligrafia
proverbial do contágio, a praga das sete semanas, um mundo em permanente
ausência de repouso, a execução do desenlace. Nem mesmo Deus anularia tal
sentença. E a minha dúvida desmantelava o tabuleiro dos símbolos.
Os conflitos são pedras decorativas. O instinto talvez nada possa contra
a razão. E esta não é uma combinação de padrões diversos, mas sim a imposição
de uma alegoria: o corpo perdendo a vida no abraço frio de uma caixa de
acrílico.
ESTREITO DE
MAGALHÃES, 2021
Esta talvez
seja eu mesma. Uma curiosidade que me acena convincente. Os mares que trago
dentro de mim, a fiação do horizonte com suas correspondências com incontáveis
jornadas. Se não me agrada ser um atrativo entre fantasmas, ao menos sei que
aqui posso acolher minhas simpatias, as poções benfazejas que venho
colecionando por onde as noites me levam. As reminiscências secretas de tantos
sonhos frustrados. A procriação pânica dos desastres. Todos esses cadarços
puídos do destino, que vêm dar à minha porta como uma canção das origens do
mundo, eu os recolho dentro do farol, como cereais de minha saga solitária.
O cenário arqueado de todos os incidentes acaba semeando um plano de
vertigens do olhar de quem me vê rabiscando luzes pela colcha inaudita dos
temporais. O aguaceiro santifica a noite salpicada de sacrifícios. Os ventos
vão e voltam tão vertiginosamente que uma multidão de sinais floresce como
relíquias. Algumas manchas no céu são declaradamente humanas, extraviadas como
grãos de um prognóstico falho. As chuvas são atraídas pelas lágrimas selvagens
de uma deusa decapitada. Uma harmonia estilhaçada em seu refúgio místico. As
tempestades implantam asas nas árvores e metais em um manancial de riscos.
Há tanto tempo estou aqui que devo ser eu mesma. Sequer recordo outras
ganâncias ou distâncias percorridas por incertos motivos. Sou a luz em forma de
aves que bicam as espigas da escuridão indicando a terra que deve ser evitada.
A minha solidão ecoa desde os antigos sete mares e representa um segredo que
jamais poderá ser compartilhado.
∞
Noites
embaralhadas por um cardume de catástrofes. Desconheço por que a vista me
faltou. Assim como o tempo que permaneci cega. Nenhum grão de luz consegui
emitir. Os mitos querem matar o touro, os gritos da aurora anunciam as quedas,
as minhas epifanias se tornaram inexatas. De tanto querer voltar a ser quem sou
uma débil claridade esverdeada se associou ao meu olhar. Aquele parecia um novo
lar inesperado. Uma garrafa ancorada em alta prateleira do quarto de uma
menina. Nova cédula de naufrágios, as minhas luzes agora guiavam os mundos
interiores, sopravam para dentro de mim, despertando ansiedades indefinidas.
Certamente ainda sou quem sempre fui, uma ilha suspensa, uma miniatura
do caos, os animais perigosos de todos os vislumbres. Quem me distingue à
distância sabe que tem que evitar a serventia da fatalidade. Mesmo agora,
dentro dessa garrafa, tenho que inventar mares e nevoeiros, impedir que os
homens atraquem em seus infortúnios, evocar os demônios para que dancem comigo,
pois devo ser luz ininterrupta, mesmo que não haja escuridão.
Eis quem sempre fui, aquela que se antecipa às trevas.
EM CASA,
2029
Se eu tivesse chegado mais cedo ela certamente
ainda estaria viva.
MEREDITH SINCLAIR
Desde menina
tinha particular curiosidade por saber se há vida antes do nascimento.
Alguma ideia de por onde começamos? Há lugares-comuns em que
ninguém acredita. Eu me chamo Lavínia di Lúvia. Meu corpo foi encontrado morto
quando eu acabara de fazer 30 anos. Ao olhar para a memória ainda me vejo ali,
desfalecida ao lado da cama. A casa permanece fechada. Lembro que na sala principal
eu havia posto uma grande mesa cumprida de madeira usada para fazer as minhas
maquetes. A hera ramificada pelas paredes acusava a idade do abandono. Meu
corpo então se moveu, lentamente me ergui e voltei a me deitar na cama. Talvez
fosse a hora de voltar a sonhar. Ou simplesmente a casa precisava se alimentar.
Algo me dizia que apenas um sonho poderia me tirar dali. O relógio de parede
abrigava as cicatrizes de um tempo inerte. Para onde eu poderia ir?
∞
Por vezes eu
tirava uma noite só para mim, aguardava Lavínia dormir, e saía da prateleira
quase um ninho que ela reservara para mim. Adorava o jeito como me chamava de
Laila, como se fosse a primeira, como se meu nome tivesse saído de sua
imaginação. Ao contrário das primeiras vezes eu agora saltava do móvel com
facilidade ritual, subia no tapete fofinho ao lado da cama de Lavínia e deixava
meu corpo crescer até o ponto em que poderia aventurar-me pela janela. Naquela
noite preferi vasculhar a casa, o corredor imenso repleto de portas e quadros,
propositalmente não cresci tanto, tornando mais desafiantes os passos,
facilitando vislumbrar o conteúdo das fechaduras. Uma primeira porta e vi o
mar. Já conhecia água, os banhos que Lavínia me dava em sua banheira. Porém ver
todo aquele infinito líquido em sutil movimento, foi como haver entrado certa
vez no olho de um peixe azul no aquário ao lado da cama. Como aqui voltarei
muitas vezes resolvi colar à porta uma tabuleta indicando ração de mar como
seu nome aberto a múltiplas viagens. Uma pequena luz se equilibrava na linha do
horizonte e algo em seu olhar vinha me dizer que evitasse as noites de chuva em
alto mar. Talvez fosse melhor eu dar ouvidos e abandonar a fechadura, mas fui
engolida pela curiosidade e me aventurei fazendo votos ao infinito para que não
chovesse. Na medida em que me aproximava da luz escutava mais claramente suas
palavras:
– Desde a infância, luz e escuridão vieram ao mesmo tempo. A escuridão
dos amplos e abertos pátios da casa da avó e a luminosidade dos segredos
trazidos pelo acaso. A luz é a alegria dos encontros e a escuridão é o
despertar dos estímulos. A imensidão da casa da avó, como uma nave mãe que me
explorasse com seus labirintos. O mistério de uma parede inteira de livros, eu
me senti vigiada por ela enquanto um portal me permitia passar para a casa de
minha mãe. Fui criada entre duas casas, cada uma com suas fissuras, seus
corredores, os caminhos misteriosos que até me levavam de uma para a outra. Em
algumas paredes, a evocação muito sutil da luz nas pinturas de um tio-avô, as
naturezas-mortas que marcaram as minhas tintas, muito antes que eu começasse a
pintar. Infância é tudo. Desde muito cedo a luz me interroga dos ambientes
externos, dos lugares onde minha avó me levou: praças, ruas, parques. As
naturezas mortas foram de imensa importância em minha vida, como os quadrinhos,
a chegada da televisão com suas animações, o teatro de Shakespeare, tragédias
que trouxeram um charme mágico para os meus dias de menina, até hoje permanecem,
porque em mim a curiosidade é imortal, o que leva à compreensão dos
relacionamentos amorosos entre os opostos. Como a relação entre as coisas dadas
como distintas, as possíveis conexões entre o cosmos e o cérebro humano, a
importância de discussões sobre a matéria negra, a épica travada entre luzes e
trevas.
Tanto distanciei-me da porta que deixara atrás de mim que não percebi
haver caído no truque do horizonte. Certamente não era a luz que falava comigo.
Era outro truque, só então percebi, não me restando senão fechar os olhos como
último recurso, o que de algum modo funcionou, pois, ao reabri-los eu estava
novamente no corredor. De volta à verdade que tomara então o lugar de origem.
Assim as coisas à nossa volta se deixam passar, esquecidas ou não, confiantes
de que o tempo lhes dará uma nova imagem. Novamente o corredor, porém antes que
eu me inclinasse por outra fechadura, dentro de mim Lavínia começou a se
remexer, talvez abrindo as páginas de um pesadelo ou simplesmente acordando.
Melhor retornar à máxima proximidade do ponto de partida, única espécie de
retorno que nos permite a vida. Imóvel uma vez mais na prateleira escutei a voz
de Lavínia balbuciando meu nome em seu sonho.
∞
Se eu fosse
contar meus sonhos de imediato reclamaria a presença de uma subversão, pois a
história somente se completa em sua deformação da linguagem. O relato espezinha
as diferenças entre sonho e vigília, com uma astúcia reservada ao fio com que
tecemos as contradições da memória. A todo instante trocamos a vida por uma
ideia dela mesma, um gracioso palimpsesto que nos devora por dentro. A minha
irmã cresceu em outra casa e eu a via aos finais de semana, como se fôssemos
lançadas ao centro de um labirinto, de costas uma para outra. Durante cinco
dias o tempo gotejava de uma torneira consumida pela ferrugem e aquela água
precária das horas fazia de cada uma de nós a sua mutação preferida. Laila na
prateleira era a nossa verdade comum, a autonomia de uma utopia reverberada em
nossa imaginação. Somente a ela conto meus sonhos. Os nomes próprios nos
disfarçam quando perambulamos pelos arredores da fantasia. Talvez cada uma de
nós deva ter mais de um, pois assim podemos enganar as imagens que se voltem
contra nós no labirinto. Ou talvez seja Laila o fio invisível que nos leva aos
finais de semana em nosso tear de mistérios. Somente a subversão nos garante
uma linguagem própria.
∞
Eu quero
contar um segredo, mas não digo a quem. Hoje pensei em escrever um capricho,
deixá-lo anotado em meu diário com a página vincada, confortando sua ironia de
constranger a curiosidade de quem o abrisse. Um capricho sobre a arrogância
daqueles que adaptam sua aparência para buscar um consenso. A arrogância é a
medida de todos os paradigmas. Talvez seja verdade que não temos escolha em
relação a eles, mas igual verdade nos leva ao leito de uma quimera, o
sentimento deslocado que nos faz crer que as coisas poderiam ser outras. Sequer
nos esforçamos para estabelecer uma diferença entre o provérbio e a assertiva.
Quando muito nos revezamos nos braços, ora de uma, ora de outra. Quando
começamos a vagar no interior da linguagem, as nossas frases se repetem
buscando produzir uma verdade a cada repique dos sinos de sua procedência. As
denúncias cavam seu próprio sacrário. Quero contar um segredo, porém só consigo
me esconder atrás dessa página marcada, um segredo que talvez não passe do
arrepio de um manuscrito.
Assim que Lavínia dormiu eu dei início à repetição de um ritual.
Provoquei a cópia de vários movimentos, de modo a retornar ao corredor da casa,
onde uma segunda porta me aguardava. Silenciosa em sua indefinição, seu
olhar-fechadura piscava como um delirante segredo, a exaltação de uma imagem
que nem mesmo tocada imprimia a causa completa de seu chamado. Ao colar meu
olho ao seu o que vejo é o escândalo maquinal da repetição, vejo-me ali
recortada, montada, vestida, a mim e a meus outros duplos, as variações
polissêmicas de uma mesma existência, Laila multiplicada. A preparação de
pertinências que darão ao mundo novos sentidos. Em quantas casas estive e
seguirei estando, sem jamais compartilhar a pluralidade de reações, sem
comunicar-me com o gosto de cada criança que me recolhe na dialética de seu
crescimento. O que vejo repercute como um fragmento de meu ser, até onde a vida
em mim pode se destacar com iluminada precisão. Impossível prever-me, e nisto
reproduzo em mim os mesmos dilemas de Lavínia, como uma fotografia amarelecida
cujos detalhes esmaecidos pelo tempo retornam ao privilégio errante dos
abismos. Ao contemplar o duplo sentido de minha existência, não me vejo mais a
mim mesma e sim a uma câmara de ecos que exploram a minha impotência. A miniatura
em que sou reproduzida se agiganta no seio de um conflito: sendo igual na
forma, serei distinta no batismo. Desloco meu olhar daquela porta, suficiente
para mim haver compreendido o que não poderei ser. Vejo o corredor ondular como
um feitiço. A noite ainda não saiu do lugar. Vejamos que outra realidade me
reserva o sonho de Lavínia.
∞
Eu tenho
muito medo do que carrego dentro de mim. Recordo com que facilidade migro entre
meus sonhos. Uma noite sonhei com a estreia de Karsavina em Paris, 1909, do
teatro voltara para casa e à tarde me encontrei com a bailarina em um café,
onde lhe mostrei um desenho feito enquanto eu a via dançar. Marcamos novo
encontro no hotel onde Karsavina estava. Sentadas no chão diante da grande cama
comecei a desenhar um nu improvisado entre olhares lascivos. Karsavina se
deixou seduzir acreditando que eu a estava retratando, mas logo viu surgir nos
desenhos as primeiras linhas de meu próprio rosto. Tão logo fizemos amor, ainda
nuas e deitadas na cama, eu lhe contei como rabiscara um desenho enquanto,
décadas depois, assistira à estreia em Fortaleza do filme O sétimo selo,
de Ingmar Bergman. A mão se movendo no escuro do cinema em um jorro do
inconsciente o que depois veria fascinada por se tratar de traços de um sonho
que se concretizaria anos depois. Confesso agora não entender como se deu meu
encontro com a bailarina russa, pois naquele ano ela ainda não havia nascido.
∞
Oito minutos
me separam de ti. Quando li
esta frase em meu diário, manuscrita ao lado de um círculo negro, me pus a
chorar, mesmo sem entender o alcance de seu significado. Certamente não se
tratava de uma relação de distância em função do tempo, mas sim de uma negação
do espaço e suas leis. Longe desse alguém a quem a frase se destinava – não
ouso pensar que falasse de mim – a sua vida seria convertida em uma escuridão
plena, o último símbolo como a ambígua concentração de todos os demais, para
onde ninguém quer ser enviado. Oito minutos para que a elipse se instale em
todos os nossos movimentos. Não se trata mais de descer aos infernos nem mesmo
do abismo intemporal aonde nos conduz a morte. Creio que ela se refere a uma
mística da ausência, onde se perde inclusive a noção daqueles oito minutos que
a separavam de alguém. Um ser amado? Uma derivação divina? Já não importa.
Imagino que essas palavras estejam carregadas de um sentimento do agora. A vida
não pode ser a penitência de quem aguarda seu instante final. Ao contrário,
deve ser uma germinação infinita das mais imanentes fagulhas da existência. Sem
recapitulação ou ansiedade. Uma afirmação intransigente de que esses oito
minutos jamais ocorrerão.
∞
Quando eu
ainda estava na casa da mãe de Elise eu a via escrever seu diário todas as
noites antes de dormir. O inconsciente é o lugar onde se processa o
erro. Por isto não se pode criar sem a sua presença. Elise escrevia um
diário projetivo, anotações de suas premonições, perambulações no imaginário, a
linha de um horizonte que um dia ela supunha cruzaria. Guardo ainda de memória
algumas frases. É preciso que ao menos uma de nós duas esteja do outro
lado de tudo. Jamais me atrevi a decifrar aquelas mensagens. Nas páginas
havia também alguns desenhos, precários rabiscos, lembro bem uma série que me
parecia uma mesa redonda com seu vidro todo rachado, como as linhas rasgadas de
um deserto ressequido. Em três ou quatro repetições do desenho alternava os movimentos
de um corpo cadavérico sobre a mesa. Como a súbita voracidade de um relâmpago.
Ao lado estava escrito: Este corpo representaria o princípio da negação
que nos leva a refletir sobre as chaves ocultas de todos os mistérios da
existência. Ao recordar me ponho a pensar em qual idade teria Elise naquele
momento. Certamente não era a menina de 10 anos que brincava comigo como se eu
fosse um amuleto delicado por quem ela tem imenso carinho. Quantas vezes dormi
colada a seu rosto, sentindo a sua respiração. O ar farejando minha ausência de
movimento. A ponta do lençol sobrevoando a mansidão de cena.
∞
Suspenda a
descrença. Pode haver mais de uma de nós aqui. Eu falo com as flores que
murcham em todos os vasos na sala. As luzes tremulam dentro de mim como um
sacrário de velas. Vieste me ver, mas é possível que tenhas trazido alguém
contigo. A tua respiração parece uma pele de gelo se partindo na medida em que
a ondulação do corpo envolve o espaço negro. As luzes se foram. Agora eu sei
quem está aqui. Tens que me buscar bem fundo. Não deixes que os sons da
casa nos atrapalhem. O teu corpo alcançará as minhas dobras mais enraizadas, e
comerá o meu bocado mais encoberto. O seu nome está na ponta da minha
língua, a sala envolve a sinuosidade de seus sussurros. A sala se encrespa como
se fosse uma pira sacrificial. Continue adentrando meu âmago,
adivinhando cada letra de meu nome. Não grite. Deixe que o nome se complete
sozinho, entregue a seus caprichos. Mesmo que o repitas continuarei sendo a
oculta. Permanecerás em suspensão. Nenhuma de nós pronunciará teu nome.
Abre os olhos, Elise, uma pequena luz descerra a janela e sairás daqui
consciente de que Laila jamais poderia ter ganho vida. Apenas em sonhos ela
conversa contigo. Suspende o temor pelo mistério. Sempre haverá mais de uma de
nós dentro de ti.
∞
Minha doce
irmã
Aceito tua decepção em face de meu silêncio. Há dois meses estou aqui e
só agora me disponho a te escrever. Eu sempre quis que o tempo se desse muito
além de mim. Que não ficasse apenas me rondando como um cão dedicado. São
muitas as coisas que tenho para te contar. Esta carta não será escrita de uma
só vez. Será como uma espécie de carta-diário. A cada dia virei aqui dizer-te
algo. Ao final receberás o que imagino seja um pequeno pacote manuscrito.
Posso expurgar o demônio do interior de uma pessoa, porém não consigo
reacender uma alma moribunda. Em que espécie de pessoa terei me convertido, é
pergunta que me acompanha há muito.
Meu coração jamais suspirara tanto como quando desci à gruta das
bonecas, onde crianças vivas eram convertidas em autômatos de todos os
tamanhos. Ali aprendi que nada no mundo existe sem o seu duplo. E foi
justamente ali, naquela espantosa gruta, onde conheci a sem nome. Eu a
encontrei arqueada de tanta amargura, embriagada pelas lembranças incuráveis e
uma bebida nativa…
Lavando minhas roupas em uma pensão no Equador, pressenti que a noite se
mexia por toda a casa.
Nepal, portal para vidas paralelas.
Abra a veia de qualquer plano divino sem temer a escuridão.
∞
Por vezes
apenas frases soltas eram coladas em meu diário, sem que eu pudesse explicar
sua origem ou entender seus motivos:
Eu não vou me prender às queixas de tua ansiedade. Não me verás como uma
inconsistência de tua vida. Os dias que passamos juntas foi algo mais do que o
espelhamento de um sacrifício. Nós nos demos tanto uma à outra e a motivação
dessa entrega não era obscura ou gratuita.
O fundamento de suas palavras me penetrava como se fosse o frenesi de
sua língua em meu sexo. Qualquer de nossas noites, escolhidas aleatoriamente,
revelaria um amor que era tudo menos incerto. Tínhamos a mais plena convicção
do papel que cumpríamos uma na vida da outra. Ela então tamborilava com seus
dedos em minha coxa ao dizer:
As dores se alimentam da inconsistência e fazem de tudo para ocupar o
lugar de uma inadequação, como se não fosse real o teu corpo envolvendo o meu.
Os feitiços costumam reivindicar suas virtudes dispersas e creem –
defendem uma crença hipotética – que não há maior significado no sacrifício do
que a agonia instável de sua metáfora.
Quando ela deixou de me enviar seus misteriosos bilhetes eu senti a mais
abominável de todas as dores, como se a sua ausência me impusesse agora um
silêncio cruento, a entrada em outro feitiço, no espelho de uma nova
inconsistência.
∞
Tia Armênia
não nos chamava pelo nome. Dizia que estávamos todos amaldiçoados e que repetir
nossos nomes era dar mais força aos demônios. Alguma razão ela devia ter. Nas
férias escolares, quando nos encontrávamos todas as primas na fazenda de um
tio-avô, costumavam acontecer coisas curiosas. Anita levava consigo sua amiga
invisível e por vezes se afastava de nós para ficar a sós com ela. Ângela
repetidamente nos pedia que não contássemos à sua mãe o que ela havia feito, sem
que soubéssemos do que se tratava. A pequena Arlete costumava subir no telhado
da casa grande, com seu binóculo e um caderno, onde parecia anotar tudo o que
via lá do alto. Quando íamos para o quarto, antes de dormir, as luzes já
apagadas, ela nos contava pequenas histórias assombrosas que afastavam o sono
de todas.
Não me acostumei jamais a descrever a mobília das casas onde vivi. Até
mesmo alguns móveis desapareceram da memória. Sem falar daqueles tantos que a
cada lembrança mudavam de lugar. Se uns reclamavam da presença de alguns
visitantes, outros não diziam uma palavra, talvez temendo a reação de algum
espírito sentencioso.
Há noites que sonho com uma cena que se repete até certo momento.
Desperto com a garganta seca e me dirijo à cozinha. A frieza súbita nos pés
revela que o cômodo está alagado e mesmo assim caminho até a geladeira. Ao
abri-la, quase vazia, me espanto com o coelho morto que ali encontro, porém a
minha mão avança para pegar a garrafa. Este gesto não se conclui. Insisto, mas
é como se algo invisível não me permitisse tocar a garrafa. O sonho sempre se
encerra assim.
∞
Desejar
saber onde estamos. Quando
a escuridão repleta de silêncio transborda sua taça e nossos olhos tropeçam na
invisível trança do horizonte. As histórias pressentidas no transe da insônia.
Algo nos diz que ainda estamos lá. Na cumeeira do abismo. Quantas noites mais
até que recuperemos os sentidos dilacerados?
∞
Meu encontro
com Anita se deu em uma dessas tantas vezes que viajei entre mundos, como quem
mergulha em um espelho ou abre a porta que nos leva a outra dimensão. Eu não
saberia nunca prever quando se daria a jornada. Anita estava muito assustada e
me confessou que vira seu outro errático, talvez um pouco mais
velha do que ela, porém idêntica em tudo. Teve muito medo de se aproximar,
apenas a seguiu com o olhar à distância quando ela entrou na floricultura onde
trabalhava Anete e através da parede parcialmente de vidro olhou terrificada as
duas se beijarem. Anete não percebera distinção alguma ao beijar a outra Anita.
Eu tampouco soube o que lhe dizer. Certa noite acordei e podia jurar que estava
sendo observada por um vulto que repetia com exatidão as minhas feições. Ao
acender a luz não havia ninguém. Não creio que saibamos quantos somos. O que
nos leva a essa duplicação incomum e faz com que nos projetemos em um outro
aparentemente ficcional talvez seja mesmo real.
∞
Hoje acordei
pensando em escrever para a minha amiga Cleide, mas logo fui tragada pela
dolorida lembrança de sua morte. Por vezes é quase impossível conviver com
esses lampejos, o desejo de reencontrar um amigo morto, o vazio em que
naufragamos o cotidiano. Ester me pedira para revisar os manuscritos de um
livro seu e morreu antes que eu começasse a leitura. Ela não deixou familiares,
e me vejo agora responsável por editar seus escritos. Laura havia comprado
passagens e reservado hotel para uma temporada no Oriente Médio. Uma noite
conversamos sobre seu desejo de fotografar o vale do Nilo. Foi nosso último
telefonema. Dias depois eu liguei para sua casa e a irmã mais nova me atendeu
dizendo que ela morrera naquela mesma noite em que nos falamos. Há certas
viagens que são feitas de um modo inesperado, como escrever um livro que jamais
o vemos publicado ou as férias planejadas que se realizam em outra dimensão. De
que modo posso escrever agora para Cleide, senão rompendo com todos os pilares
da realidade? Quando somos nós que deixamos de viver, de que modo as pessoas
que amamos se comunicam conosco?
∞
Por vezes
não sei como sair de meus sonhos. Em uma delas minha mãe me levou a visitar uma
menina em seu quarto, deitada e enferma. Haviam lhe dado um remédio para baixar
a febre. Estava delirando e falando uma estranha língua. A senhora que cuidava
dela nos disse que Deus a havia abandonado. Quando me viu, indagou se eu
poderia salvá-la.
– Do que você quer ser salvo?
– Não tenho ideia. Imagino que você esteja aqui para isto.
– Na verdade, desconheço o que faço aqui.
– Poderíamos sair para uma melhor conversa.
– Você poderia?
Quando lhe indaguei em segundos o quarto escurecera por completo e no
instante seguinte caminhávamos em uma praia deserta.
– Se você quiser me salvar terá que mergulhar no mar e encontrar uma
cura.
Ela me levou mar adentro e imergiu todo meu corpo com decidida
delicadeza. Não sei quanto tempo fiquei ali. Ao emergir estava de volta ao
quarto, diante de sua cama. A menina estava sentada e parecia estar bem.
– Eu lhe devo a minha vida, embora não saiba o que fazer com ela.
∞
1. Alguém
havia tomado o seu lugar, se passando por ela sem que ninguém percebesse. Porém
algo lhe escapou, o dedo mínimo de sua mão esquerda havia perdido
movimento...
2.
Abdução. Uma palavra que sempre me soa estranha, pois não compreendo
exatamente a sua dimensão. Claro que posso ser conduzida através do tempo e do
espaço, porém ao retornar, serei apenas eu?
∞
Fui criada
entre tias e primas. Para que eu nascesse minha mãe teve que morrer. Quando vi
um homem pela primeira vez meus olhos tremiam, tentando decifrar aquela
estranha visão.
∞
Certa noite
eu e minha irmã mais velha entramos uma no sonho da outra e quase não
conseguimos voltar ao sonho de cada uma.
– Por que não fica aqui conosco?
– Não sei onde estou...
– Do que você lembra?
– Antes de desaparecer eu estava na costa italiana. Fui jogada pelo mar.
Estávamos em 12 em um barco que provavelmente não suportaria mais de seis
pessoas. Também não lembro como fui parar ali. Eu precisava sair da Etiópia,
não era mais possível viver daquele modo.
– Quem cruza consigo mesmo sem notar o que está fazendo jamais
conseguirá alcançar o que pretende.
∞
Em 2016
Meredith Sinclair apresentou ao mundo sua tese de que o mal era fruto da
religião e que somente a ciência poderia erradicá-lo. Na forma de roteiro de um
filme intitulado O credo dos hereges, Meredith defendia que as
sociedades que conheceram a guerra jamais se livraram dela. A liberdade buscada
através da violência converteu tais sociedades em discípulas da Grande
Submissão. Algumas vezes já ouvimos que a dor nos fortalece e que o amor nos
torna fracos. Também que somos iludidos pela perspectiva da liberdade. Poucos
duvidam que o amor nos deixa tão ausentes do mundo quanto a poesia e que a
liberdade é um ardil que pode nos levar à morte.
∞
Um dos 12
fantasmas está a escrever sua autobiografia, um aforismo manuscrito em cada
folha que vai jogando ao chão.
As noites são como estátuas que saíram em busca de suas sombras. Tudo
nelas existe em função do outro que projetam no espaço.
Anita não compreendia a ambiguidade de sua nudez naquele quarto
despudoradamente solitário. Viajava velozmente pela memória, tocando o ponto
mais negro do passado e as fórmulas confusas do imprevisível. Seus escritos
imitavam a si mesma, como se plagiasse a humanidade e seus votos de
indeterminação.
Nem sempre a vida resulta em morte. Aqueles que perdem a memória não
morrem jamais.
A areia da ampulheta desceu por completo. Pode soltar a mulher. Não há
nada que ela possa nos dar. Certamente enlouqueceu e vê sombras e a matéria de
que elas são feitas. Consideremos que os mortos não saem de suas tumbas. Os
espíritos são invisíveis e por onde quer que eles andem não os podemos
ver.
Lucila desfiava sua solidão com um relato que repetia todas as noites
sentada no chão de seu quarto antes de dormir. Era a história de uma menina
que, desejosa de ganhar uma boneca, entrara em uma fila infinita acreditando
que ali realizaria seu desejo. O tempo assumia mil vultos disfarçados de
esperança e destemor. Uma noite Lucila percebeu que seu relato tomou outro
curso e quando deu por si viu que a menina estava a seu lado e tinha uma boneca
em suas mãos. Como isto é possível? Não vem ao caso. As suas noites estão sendo
consumidas por um desejo que não é o meu. Eu precisava lhe dizer que a minha
boneca, que se chama Lucila, sempre esteve comigo. Você tem que acordar e nos
deixar seguir viagem. Deixe para trás essa noite que lhe aflige. Ela jamais
acontecerá.
Devo a meus sonhos muitas vidas que de outro modo eu não teria.
Naquele ritmo de desprendimento a autobiografia jamais cessaria sua
vazante de revelações.
∞
– Este não é um quarto de criança.
– Certamente que não. Eu mesma não sei o que é uma criança. Até onde me
lembro sempre tive esta idade.
– Qual a sua idade?
– Não sei ao certo, porém jamais foi outra.
– Não sei como ainda não morreu de excesso da mesma idade.
– Eu não me canso dela. Não é um fardo.
– E por que me trouxe para morar aqui?
– Porque achei que a casa gostaria de conhecer outra idade. Qual a sua?
– Eu tenho nove anos. Eu sou uma criança.
– Aqui não servirá de nada ser criança. Melhor aprender a ser outra
coisa.
– Eu não sou uma coisa.
– Todas somos. Tudo no mundo é sempre uma coisa. E uma coisa-criança não
terá serventia alguma aqui.
– Então irei embora amanhã.
∞
Conheci Iuma
Takashi em uma das vezes que estive em Osaka.
∞
A noite me
diz: Quanto mais nua, mais tua.
Porque a nudez não é um modo de abandonar o corpo, mas sim de lhe
adentrar até o caroço.
A nudez é o que soletras quando o corpo chama por ti, quando sentes que
lá bem dentro algo está a ponto não de sair, mas de ser revelado, mantendo-se
no íntimo. O íntimo não é limbo. O limbo é uma negação do ser, sua
transitoriedade é enganosa, porque afinal o próprio tempo não sugere senão ilusão
perene.
Mas tudo isto porque tens um reservatório em teu ser que sabe exatamente
qual mina escavar, qual hálito recolher.
De nada adianta o outro se não sabemos como preenchê-lo dentro de nós.
A minha língua pode falar em tua boca, porém não pode ser a tua língua,
pois a tua língua é a que sabe compreender os dizeres da minha língua.
Cada coisa somente se perde nela mesma. Não há como a realidade
perder-se de si na outra face do espelho, onde ela contempla a si mesma, mas
sabe que ali está uma fatia de si que não pode ser habitada.
– Eu ando muito animada pelo desafio, Lavínia.
Quando descobrimos um ponto de meditação em nosso íntimo estamos prontas
para um novo desafio. É o que está se passando comigo agora.
SETE CABANAS INVISÍVEIS
Em 2021 os
mecanismos de compreensão do mundo sofriam uma nova forma de desintegração. A
perspectiva de fragmentação da vida não se daria mais do ponto de vista
geográfico, mas sim cronológico. O homem está perdendo a noção de passado,
presente, futuro. O que era antes uma ilusão de espaço, agora é uma ilusão de
tempo. As sete mulheres, após a leitura das páginas do diário de Lavínia di
Lúvia, conversam a respeito de suas percepções e antevisões desse confuso
atributo da época que habitam.
[Lenilde] Este talvez não fosse o momento de discutir com Lavínia sobre
a sua rejeição a Li Sung e a visão perturbadora daquelas imagens que ela havia
começado a semear em nosso leito de pedras. Quem eu poderia ser agora, no
detalhe da escritura confessional? As dores são passionais, não há como evitar
o subúrbio de seus rasgos. As sombras existem em confiança à verdade de nossas
agitações. Elas também doem quando arrastadas pelo pântano inclemente de nossas
ruínas.
[Berthe] Tudo na vida nasce de um susto. Não havendo susto todas as
coisas deixam de existir.
[Lenilde] É verdade. Eu havia planejado que Li Sung um dia nos deixaria
uma carta acerca de seu suicídio. O manuscrito conteria o segredo de seus
arrependimentos, a mina do impossível, a proporção desconfortável de tantas
dores.
[Rebeka] As minhas visões dentro d’água sempre me disseram que
não se pode planejar os bastidores de qualquer enredo. A história estipula seus
danos de acordo com as provações de cada um.
[Lenilde] Talvez seja isto que Lavínia soube acentuar nos esconderijos
aventurados sob as vestes de seus fantasmas.
Por todo
lugar elas procuraram uma correspondência com as esferas queimantes da
existência. Os dias, os graus, as direções. Certamente seriam associadas aos
números, com suas esponjas de emanações. E a velha cabana acabaria se
ramificando em criaturas fabulosas que acolheriam em seu íntimo cada uma delas.
[Ada] Eu percorri a pé as estranhas formas do mundo. Em tudo eu me
tornei a saudação da unidade. Quando li a floração de aforismos que saltavam
como veias daquela caixa que me foi um presente do céu, eu nunca estive tão
ciente de que ali poderia ser tocada a essência de reconciliação do homem
consigo mesmo.
[Bertha] É incrível como eu senti, em meu círculo de proteção, o eco de
tuas certezas, Ada. Uma força que só se realiza no âmago dos antagonismos.
Talvez por isto eu tenha me deixado arrastar pelo mundo como uma histérica,
criando pontos opostos em tudo o que tocava.
[Emilia] Eu tirava a sorte enquanto pensava nessas relações entre a
unidade e o eco. As cartas que escrevi a mim mesma não eram senão a procura de
uma síntese. A soma de todos os descarrilamentos e suas bagagens por decifrar.
A todo instante somos atropeladas pelo abandono. E ficar só é uma cerimônia que
pode abolir o centro de nossos limites.
[Komako] Eu conheci muito bem os meus limites na medida em que descia
por aquele fio de luz. Uma viagem que obedecia a uma direção espontânea, sem
que fosse determinada por princípio ou fim. Eu apenas estava ali, naquele
transcurso, enquanto reconhecia a identidade perecível de todas aquelas
imagens.
[Lenilde] A matéria de todas as tuas linguagens, Komako. Era isto o que
vias na medida em que trafegavas pelas linhas do inúmero. A matéria de que
somos feitas. A matéria que eu trago em mim como uma harmonia apanhada na
tempestade. As províncias primitivas de todas as transformações, aquela secreta
lição dos abismos integrados que me deu a enfermeira Juana Guaita quando estive
em suas páginas. Ou talvez seja melhor falar das incríveis esculturas de Iuma
Takashi, onde o poder da metamorfose se expande além da matéria e o bronze
assume uma personalidade mítica.
[Lueji] O livro das ambivalências que ela te deixou escrever em sua
pele. O livro das falhas e dos artifícios que nem sempre dão certo. Por isto eu
me inclinei para o cálculo das alucinações. O meu temor sempre foi perder a
qualidade de um equilíbrio impreciso. Eu preciso a todo instante me perder de
mim mesma.
[Rebeka] Bem sabes, Lueji, que, de todas nós, és a que mais se aproxima
da perfeição. Esse rumor imperturbável da totalidade que só escutamos quando
aceitamos as graças incontáveis do mistério. Quando nos livramos da temperança
e da justiça como fatores prolongadores de uma mórbida quietude.
[Ada] A todo instante eu provoquei o abismo a mudar de forma. Se era
para tê-lo comigo, ele deveria ser a mecha inesgotável das mutações. Eu sempre
quis escavar todas as lâmpadas, curiosa de saber o que elas escondiam sob o
murmúrio de suas luzes.
[Bertha] Eu sempre tive inveja do modo como conseguias mover as coisas.
Eu queria escrever com o olhar e criar um mundo de objetos flanando no espaço,
fantoches sem fios, voos sem asas, uma profusão de milagres. Ada, sempre foste
a minha fada dos milagres do olhar.
[Ada] Isto é tão bonito de saber, Bertha. Mas devo dizer que essa
queimação elétrica que sinto em meu íntimo, que me leva a abrir as portas de
tantos refúgios que posso dar a cada objeto, isto tudo tem uma dor entranhada.
Uma película sobreposta que dá ao meu olhar uma condição imprecisa.
[Emilia] Como uma miragem? Podes te enganar ao transpor as coisas de um
lugar para outro?
[Ada] Posso ferir alguém, seja com um objeto pontiagudo ou a mudança de
significado que o deslocamento permite… É sempre um risco.
[Emilia] Quando eu estava caminhando pelo deserto os meus olhos a todo
instante renasciam. As areias transmitiam seus segredos a meus pés, as
civilizações enterradas de seus vestígios mais antigos, um mundo esquecido que
se perdeu em uma fábula de migrações.
[Komako] Como a Kioshima mítica que aflorou de minha pele, do arrepio
irrefreável em que fui me convertendo em ilha, cidade-marco, máxima consciência
que poderia acabar com tudo à sua volta. Não fosse haver conhecido Juana
Guaita, eu certamente teria sido devorada por Kioshima e sua obsessão por ser
um universo total.
[Lenilde] Os pássaros negros que Li Sung convidou para entrar em sua
casa foram a minha Kioshima, a falha de transmissão de minhas ideias-forças.
Antes de conhecer a enfermeira Juana, meu suplício se prolongou e por muito
pouco não fui transformada em uma maldição.
[Lueji] Oh tu que és a minha casa pelos ares, eu me arrasto até
o limite de tuas metamorfoses… Lembras esta passagem do Livro das
sutilezas, Lenilde?
[Lenilde] Rebeka encontrou esse raríssimo exemplar esquecido em uma
mureta por trás de uma coluna na catedral de Sevilha, quando lá estivemos. Uma
edição de 1898 chamuscada pelo tempo. Oh tu que escavas o céu em que te
esvais, eu me arrasto por teus corredores de tua precavida loucura…
[Lueji] Ainda me lembro quando me mostraste o livro dizendo que Rebeka
imaginou ser uma espécie de manual de magia sexual.
[Rebeka] Não foi bem assim. Lenilde e eu estávamos fazendo um percurso
acidental pelas tendas de bruxaria em várias cidades espanholas. Era a viagem
de nossos 10 anos de amor. Em cada lugar onde entrávamos procurávamos poções,
objetos, livros, tudo com uma picante implicação sexual. Quando chegamos em
Sevilha, eu queria conhecer a catedral, e certamente estávamos ainda tatuadas
por aquela aura de sexualidade. Quando meus olhos pousaram no livro, ao ler o
título me veio, mais do que a ideia, o desejo de que tratasse de sutilezas
eróticas.
[Lenilde] Eu sei, amor. Foi isto mesmo. Mas a tua eletricidade sempre me
propiciou as mais preciosas safiras do desejo. Quem de nós poderia prever que
Emilia, ao vagar pelo deserto da Judéia, encontraria um alçapão destampado
que em seu íntimo guardasse aquelas cinco folhas de kraft encorpadas, sem uma
amassadura, reproduzindo as fotos de uma curiosa exposição de animais exóticos
gigantescos. Mais ainda, que o verso dessas folhas estampasse um manuscrito não
menos raro retratando o absurdo diálogo entre os dedos de uma mesma mão. Quem o
preveria?
[Emilia] Nem mesmo eu poderia imaginar que aquela travessia que por vezes
tocava o âmago do insuportável me levasse até esse mistério que ainda o tenho
na conta do irreal.
[Lenilde] Como irreal, se mantemos conosco esses papiros?
[Emilia] É certo que os temos, mas deles nada sabemos. Nem mesmo a que
tempo pertencem, uma vez que sua autoria é de menor importância.
[Lenilde] O tempo é também uma forma de assinatura, e não me parece que
caiba satisfazer seu orgulho. Por mais que estejam próximos dois corpos um do
outro eles se alimentam melhor do que ainda desconhecem entre si. O pitoresco
em uma história não é descobrir a sua origem, mas sim entrever o que ela ainda
nos tem para contar. Por isto eu recordo as esculturas de Iuma Takashi, que são
uma espécie de antevisão de um passado obscuro. Eu insisto nesse paradoxo, porque
é impossível saber se Iuma teve acesso a outras fotos iguais a essas que Emilia
encontrou. No entanto, suas esculturas parecem ter saído da memória daqueles
gigantescos e assombrosos animais.
OS CINCO DEDOS DE UMA MÃO ESQUECIDA
Palco escuro
e vazio. Na lateral direita há um baixo tablado com duas cadeiras com encosto
para os braços e uma pequena mesa tendo sobre ela dois pequenos castiçais.
Sentados nas cadeiras estão Um e Dois. Quando eles acendem as velas podemos
distinguir o cenário com suas três laterais cobertas por agigantados tecidos
negros que ocupam do teto até o chão. Desde quando a primeira vela é acesa,
eles conversam:
– Que se faça a luz!
– Como?
– A luz. Esta que estamos acendendo.
– Sim, é verdade, mas estamos acendendo algo mais do que a luz.
– Não, será sempre a luz, seja uma vela ou uma ideia.
– Talvez a sua vela tenha essa dificuldade de ver o mundo.
– Pelo contrário, a minha possui uma chama que absorve toda a escuridão
do mundo.
– Qual mundo?
– O que temos diante de nós.
– Ora, o mundo se estende por muitos mais ângulos.
Assim que as
velas são acesas e enquanto eles falam surgem em cena três outros personagens
que aos poucos vão levando para o palco cubos com 70cm de base, ensacados em um
plástico escuro. De repente um dos que estão sentados se levante e indaga a um
dos que estão de pé:
– Você tem acaso um pedaço de queijo?
– Queijo? E por que eu teria um queijo?
– Seus motivos não me interessam.
– E quais os seus motivos?
– Ah isto sim, eu quero mudar de tamanho.
– E um pedaço de queijo tornaria você maior ou menor?
– Maior, bem maior, no momento eu quero ser maior. Para ser menor eu
teria que molhar o queijo no leite.
Dois
permanece sentado na cadeira, enquanto acompanha a conversa entre Um e Três.
Quatro e Cinco haviam saído e agora retornam ao palco com mais dois cubos. Dois
indaga a Três:
– Para que vocês estão trazendo esses cubos?
– Você quer saber a ideia dos cubos? Talvez seja melhor indagar a eles.
– Aos cubos?
– Há sempre uma possibilidade que eles respondam.
– E de que me serviria sabê-lo?
– A sua curiosidade estaria assim acobertada por uma nova onda de
mistério.
– Qual?
– A de haver descoberto cubos falantes.
Escutamos a
risada de Dois, que se dirige aos dois outros personagens:
– Ei vocês, é verdade que esses cubos falam?
Cinco
responde:
– Isto eu não poderia dizer, pois jamais ouvi um pio deles.
– Nem um gemido, em meio a esse deslocamento incompreensível?
Quatro
responde:
– Nenhum deles jamais se queixou?
– E tens ideia de qual seria a queixa?
– Nunca se sabe. A história prova que todas as obsessões por entender o
futuro nada conseguiram.
– Que história?
– A única. Essa que nos enganamos sonhando que a temos.
– Bobagem. A história é um retalho do tempo.
Um
interrompe:
– Quem de vocês tem um pedaço de gengibre?
Cinco
responde:
– Para que diabos queres gengibre?
– Para mascar e ficar invisível.
Quatro
indaga:
– Que maldita vontade essa agora?
Dois
confirma:
– Está incomodado com nossa conversa.
Quatro e
Cinco conversam:
– Mas isto nem mesmo de conversa pode ser chamado.
– É verdade. Estamos vendo até que ponta a língua se mantém fora da
boca.
– Talvez devamos deixar a língua descansar dentro de uma dessas caixas.
– A imensa língua dos descabimentos.
– Uma delas em cada caixa, naturalmente.
Três
interrompe:
– Vejam o cenário que está surgindo!
Um retorna à
cadeira, ao lado de Dois:
– Talvez seja a hora de descortinar algum mistério.
Dois se
dirige a Três:
– Ei, encontrou aquele pedaço de queijo?
Três
confabula com Quatro e Cinco:
– Aquele é doido. Imagina que pode crescer mastigando um pedaço de
queijo.
– E o outro que pensa que pode ficar invisível comendo gengibre!
– Olha, nós viemos aqui apenas para entregar esses cubos, acho que
deveríamos ir embora.
– Não, fiquemos mais um pouco, quem sabe o que pode acontecer!
– Vejam a imagem surgindo ao fundo…
– O que pode ser?
– Um de nós diante do imenso.
– Não existe isto. A imensidão não passa de um ângulo furtivo.
– Claro que existe. Há sempre um momento em que um de nós é maior do que
tudo.
– Porém não maior do que todos.
– Ser maior do que todos é apenas uma ilusão?
– Tanto quanto ser menor.
– O que a imagem nos diz?
– Nada que sirva como baliza. Porque cada um de nós pode ver algo distinto do
outro.
– Mas essa imensa escultura de bronze…
– Não passa de algo que se agiganta ao nosso olhar.
– Sim, uma carranca bem grande.
– Ou uma miniatura colocada em ponto estratégico do olhar.
– Basta visitar a sala em uma hora em que não haja ninguém.
– O que está acima de nós nem sempre nos é superior.
– O contrário também se aplica.
– Conversa fiada. Um gigante é sempre um gigante.
– É verdade. Ele não tem como ser menor. Porém um anão pode ser maior.
– Que tal se os dois entrarem em uma sala de espelhos?
– Talvez se percam olham para a altura que aparentam ter.
– E uma vez perdido jamais voltarão a se encontrar.
– Perdido? O que está perdido?
– O que não sabe onde está.
– E o que está faltando achar?
– Um espelho mágico. A vida só começa quando o encontramos.
– Alguma ideia de onde ele esteja?
– Nunca se sabe onde se esconde. Certamente em um desses cubos.
– Dizem que os espelhos não conseguem enganar a si mesmos.
– Com o tanto que nos enganam nem seria preciso.
– Um espelho só é espelho quando reflete algo.
– O que não falta no mundo é algo que seja refletido.
– Como qualquer coisa que dê sentido à nossa existência.
– Como um beijo?
– Um beijo?
– Sim. Não há melhor modo de reinventar o mundo do que uma boca nova.
Enquanto
conversam entre si eles cinco reviram de um lado a outro do palco os sete
cubos. Suas falas imprimem uma balbúrdia quase sem nexo. Como se apenas
falassem e não se escutassem. Um sugere que retirem os cubos de seus
respectivos sacos.
– Hora de ver o que esses cubos escondem.
– Talvez sejam espelhos.
– Pouco importa. O que quer que eles ocultem uma hora terá que nos dizer
algo.
– Como uma pequena chama cansado de afastar a escuridão.
– Como um cantil que reluta em secar.
– Mas não se comparam a sede e o medo da escuridão.
Um a um os
cubos são retirados dos sacos. Cada um deles revela em suas faces imagens
variadas que são como consequências daqueles projetadas no fundo do palco.
– As imagens se repetem.
– Como uma floração de miragens.
– Um torvelinho de devaneios.
– O efeito de alguma droga.
– Uma salada de espelhos.
– A dor remoendo até não caber mais em si.
Dois, com o
dedo de uma mão apontando o centro da outra:
– Cadê o queijo que estava aqui?
Todos
respondem:
– O rato comeu.
Dois reage:
– Mas vejam bem. Nem sempre as coisas vão de mal a piau: esta noite
sonhei que estávamos em um palácio de pelica.
– Uma luva?
– Sim, mas uma luva palaciana.
– Sem portas ou janelas.
– Apenas um imenso salão.
– Posso continuar?
– Conta esse sonho meloso.
– Não temos mesmo mais nada o que fazer.
– Que infames.
– Não adianta xingar, pois somos inseparáveis.
– Agora isto. Nenhum de nós jamais pensou nisto.
– Conta.
– Não havia no que pensar.
– Mas agora talvez haja. Estamos aqui por um tempo que suprime quaisquer
expectativas.
– E no que pensaríamos?
– Em como escapar dessa miragem?
– O sol deve estar por trás de tudo.
– Insistes nisto.
– Ele não tem mais nada a dizer.
– Não se trata disto. Observe a imagem que surge. Um dragão que se
retorce sem saber onde fica a própria cabeça.
– Mas sempre dependerá do ângulo…
– Nada disto. Um pedaço de alma será sempre uma ratoeira carregada de
ataduras.
– O prazer não conta com os teus insultos.
– Não gritas no ouvido de meus ressentimentos.
– Alguém nos livre dessas desgraças furtivas.
– Não importa o que se diga. Será sempre um dragão que não sabe ler os
escritos que acaba de encontrar.
– Eu posso ler para ele.
– As luzes que se apagam traduzem o sobressalto de árvores insones.
– O amor lavra os seios murmurantes e o ventre fresco da última
promessa.
– Quem mais acredita nisto?
– As imagens necessitam uma boca que lhes ensine a pecar.
– Alguém me traga a confidência mais próxima.
– A argamassa florida dos mistérios.
– Há mais de cinco semanas estamos aqui e há manhãs em que acordo sem
saber o que dizer, como se não pudesse pensar em nada.
– Mas há sempre uma história por contar, não?
– Talvez, mas… e quando não nos lembramos de nada?
– Inventamos, deixamos a loucura aflorar.
– Ou repetimos a mesma história, até que ela se recuse a ser contada.
– Como a noite em que entrei no quarto escuro e ouvi a minha mulher
chorando. As suas lágrimas roubavam toda a cena. (risos)
– Do que diabos você está rindo.
– Se o quarto estava escuro como você a viu chorar?
– Seu imbecil, muitas vezes o que ouvimos traz em si toda a sorte de
imagem.
– Não ligue para ele, termine a história.
– Ela chorava e de repente as lágrimas foram interrompidas por um
disparo.
– Ela se matou?
– Foi o que pensei e acendi a luz transtornado. Quando olhei à minha
frente o quarto estava vazio. Não havia ninguém ali.
– Talvez ela estivesse em outra parte, se matando naquele exato momento.
– Eis algo que jamais saberei, porque eu me perdi naquele quarto…
– Como assim?
– Eu simplesmente jamais encontrei a saída.
– Mas você está aqui agora.
– É outro mistério que duvido alguém possa explicar.
Há uma chuva
lá fora. O palco é um abrigo dessa dilatação selvagem do tempo. Os dedos tênues
e cavilosos se estreitam e alongam como serpentes inatingíveis. Um quer para si
a eternidade fumando seu cachimbo negro. Cinco retalha o labirinto espinhento
para melhor distribuir os pães. Dois interroga as hipóteses sobre as lágrimas
aturdidas dos sonhos. Quatro quer sair dali o mais rápido. Três contempla a
impossível fuga de seu vizinho.
– Como alguém que quisesse partir hoje mesmo…
– Eu decomponho as cordas com que atravessar o abismo…
– Uma noite exige do corpo que ele seja bom para o amor…
– Eu estendo o absurdo como um lençol apavorado…
– Como alguém que quisesse ficar até o último instante…
Os dedos
estavam escritos na efígie irônica de seus fugazes conhecimentos. Cada um deles
um pássaro morto que a qualquer momento poderia despertar.
– Luzes por toda a noite. Eu quero abrir uma casa dentro da outra.
– Eis o que faremos: vamos abrir uma fresta por onde espiar a fera que
tem sonhado conosco.
– O olhar é um peixe que aprisiona o pescador em seu anzol.
– O boi é uma prateleira repleta de pássaros testemunhando a mansidão do
acaso.
– Não me digam que estão vendo peixes e bois no corrimão dessa imagem!
– Um feitiço descreve a idade de cada palavra.
– As parteiras cegam o sol com sua ilusão de nascimentos.
– Alguém conte outra história. Ainda vamos ficar muito tempo submersos
nessa bacia fosforescente.
– Aprisionados como sardinhas que herdaram um oleoso abrigo metálico.
– Os ratos tiram a sorte para ver a quem cabe o último pedaço de queijo.
– Este é o jogo da morte.
– Passageiro admirado com a inércia que lhe força a saltar da miniatura
do trem sobre a mesa.
– Aquela porta eleita se recusa a deixar passar a última sombra.
– Não haverá diferença alguma quando as escolas se converterem em
prisões prematuras.
– O quadrante mortificado onde todos os centauros agonizam.
– Quantas vezes os nossos moldes foram tirados em gesso?
– Com o firme propósito de converter em estátuas as nossas reflexões.
– Como se o amor não passasse de um culto.
– Ou gatos banidos do milagre das quedas.
– As nossas oscilações são tão íntimas dos espelhos que sofrimento algum
duraria mais do que o efeito de uma cintilação.
– Quantas vezes a beleza caudalosa castigaria seus corpos?
– Nem mesmo ela acumulou lenha suficiente para as estações frias e
abandonadas pelos relâmpagos.
– Algum livro que se possa escrever com os olhos fechados?
– As chamas se reproduzem com a exatidão dos abismos sacrificados.
– Como uma lâmpada de sete gênios?
– Como a lenda torta confiscada por um relógio.
– A memória tem os seios translúcidos.
– Não
– Não o que?
– O sexo grita como um vício inconcluso.
– Sim. Mas o que é este não solto como um animal indiferente?
– Um não cortesão como a letra viscosa procurando desfigurar uma
palavra.
– Que palavra?
– Ah agora queres saber? Não digo.
– Não?
– O que era aquele primeiro não?
– Uma antevisão.
– Uma peleja de almofadas úmidas…
– Um casebre deslizando pela encosta gelada…
– A melancolia de um ferrolho na janela abandonada…
Retirados da
bacia, ainda encarquilhados de frio, os cinco dedos tremiam ofegantes, sem que
houvesse uma gota de fogo por perto que os aquecesse. Uma trégua para flexões
como um segredo que convém elevar o espírito. A mão cheia de lágrima. A terra
violada. Aquela jornada logo teria que seguir…
O SONHO AGITADO DE EMILIA AHMADJIAN
Aquela noite
eu precisava de uma janela para acompanhar os vislumbres de um sonho que havia
criado uma centelha superior às dimensões de minhas horas de sono. Uma janela
que tivesse confiança em suas veias metálicas, no piscar de suas ilusões do
interior e exterior. O sonho imitava um confronto de sombras, a selva devota a
espectros que nos desconhecem. A casa que nos desafiava a entrar e sair em seus
acidentes. A velha casa onde vivi com todas elas boa parte de minha vida, a
juventude de tantos caprichos. Ali estava ela, no sonho, porém na forma
resumida de uma maquete no centro enegrecido do ambiente. Uma maquete decorada
pelo vazio onde se podia sentir o sabor de um vento irregular. O sonho naquele
momento me dava o ângulo de ver a casa desde a varanda, entrevendo, com a
permissão de uma porta aberta, a ausência de móveis no interior da sala. Era
impossível não recordar a época em que a varanda ganhara uma vida turbulenta
nos levando a revelar as intimidades mais insensatas. A varanda havia nos
afrontara a mostrar tudo o que poderíamos ser e nós atendemos com perturbado
gosto as suas obstinações. Na medida em que fui dedilhando aquele cenário os vultos
em miniatura de minhas amigas foram se desenhando até a percepção de seus
contornos. Ada, Berta, Komako, Lenilde, Lueji, Rebeka. Quando elas morreram, eu
pude finalmente aceitar que as suas reminiscências são um ideário de máscaras
que fui delineando em minhas andanças pelo mundo. O lugar aonde elas me
levaram, as comidas compartilhadas, as vertigens paralelas, os lábios do caos.
O corpo de Rebeka como uma serpente elétrica submersa nas águas mais
escuras. A travessia de Lueji em volta de uma esfera desgarrada. O caderno de
anotações de Lenilde onde as letras dissimulavam luzes e trevas. As areias
descrevem os saberes do vento. A casa abriga tantas miragens que a engrenagem
dos milagres trocava de significados a toda hora. Por vezes uma gravidade sem consistência
e logo o voo de pequenos monstros em volta de suas tragédias. A casa sucede
como uma tarefa de esquadrinhar o acaso. Uma pequena mesa retangular, com pouco
mais de um palmo de altura, se arrastava sozinha vindo lá de dentro até o
centro da varanda. Ada se agachava no interior de uma caixa que flutuava no ar.
Bertha imitava o murmúrio de suas meninas provocantes que ninguém evitava no
ouvido. Komako banhada em suas águas vulcânicas como um roteiro de
subterfúgios. A casa comia as aparições por onde quer que elas brotassem. As
obscuras razões do mofo estavam escritas muito antes de nossa morada. O absurdo
recolhia falsos testemunhos. As evidências pareciam pertencer a outra ordem. Um
ritual de penumbras vagando pela casa. A maquete sonhava comigo. Jogava com a
sociedade secreta de suas paredes.
Lenilde contava os fantasmas que pretendia embarcar nas páginas de um
romance. Lueji se fechava na melancolia de uma de suas esferas. Rebeka
embaralhava o conteúdo de sete caixas destampadas. Quando os primeiros peixes
começaram a surgir eu percebi que a maquete era um aquário e que a memória
estava submersa na água preciosa do que estava por vir. Komako era a primeira a
acordar e acertava os relógios para as horas imprevisíveis. Bertha se
encontrava sempre nos últimos detalhes da costura das sedas azuis de seus
anjos. Ada engolia as sombras de olhos abertos como um farol que garantisse a
pesca no temporal. A casa se repetia em numerosas tentativas de renascimento.
Os acidentes disfarçados vigiavam as intervenções extenuantes do desejo.
Nenhuma de nós sabia mais no que acreditar. O aquário iludia o testemunho da
gravidade. O sonho havia perdido o endereço de novas vítimas. Não houve como
fazê-lo confessar que outros planos ele tinha para o jantar. A casa era uma
companhia solitária do abismo.
Uma súbita névoa força o olhar a dilatar a magia de seus vislumbres.
Como alguém que estivesse sempre criando na plenitude da escuridão. A casa
reproduzia as faces inacreditáveis de seus códigos. Embora o sonho não me permitisse
ver senão a varanda, dali de sua perspectiva oceânica – o aquário era a
fantasia de um mar sem fim – eu poderia roubar as imagens fugidias, o
mobiliário imaginário e as cicatrizes nas paredes fiéis a seus tremores de
terra. Debruçado sobre os destroços de uma noite mal dormida o sonho pescava os
vultos a quem eu poderia contar as histórias desaparecidas em outros dias. As
cenas não se deixavam perturbar e entravam e saíam pela mesma porta aberta da
varanda, que dava para o interior inexplorado da casa vazia. Apenas os peixes
guardavam a memória daquelas fontes profundas. Certa vez, quando estive em
Manizales visitando o Centro Espírita Mundos Paralelos, encontrei uma dançarina
de cabaré que há muito vivia oculta em meu íntimo, guardiã em outra época de
moinhos perdidos e adegas abandonadas. Ela me havia escrito uma carta, que foi
ditada pela senhora que me atendeu.
– A carta é o tesouro que até hoje ela não sabia como te entregar.
Como um fogo de artifício renomeando as luzes dissipadas. Ao ler a carta
a voz da senhora era outra, da dançarina árabe que se dizia chamar Lucía
Shemakhi.
– Um rio cogita oferecer à noite a lenda enterrada em suas águas, a
história do amuleto guardada no íntimo de uma pedra negra e seu olho de
profanações, a fúria arcaica de um livro que dava passagem para as orações
submersas que recriavam os reinos prodigiosos. Que sejas a noite e que sejas o
rio, e durante o percurso, sendo um e outro, que permaneças dedicado à provisão
de mitos análogos. Uma cidade nascerá em uma das entradas entrecortadas desse
ritual. À sua porta alguém te aguarda. Confia que a sua descrição anunciará uma
notável evidência.
Parecia inacreditável que aquelas palavras estivessem ocultas em meu
íntimo. A pedra negra caiu à minha frente quando eu vagava pelas areias
famintas do deserto. Diante de seu sinal eu fui transcrevendo no ar os nomes
das seis mulheres que constituíam o tesouro da minha imaginação. Não importa de
onde elas venham ou o que trazem à memória para que eu entenda o que devo
fazer. Talvez eu tenha que partir. A pedra negra parecia conter uma remota
cidade embutida em uma de suas faces. Sua estranha forma, oscilando entre o
fosco e o metálico, mudava quando menos se esperava, por vezes dando a
impressão de uma caverna ou de um inclinado casarão. Ao fechar os olhos os
grãos de areia introduzidos em minhas pupilas pareciam criar a arquitetura de
nossa casa, um Brasil delirando na Palestina, querendo não mais sair de mim. Eu
teria que voltar a qualquer instante e a hora parecia ser aquela. A pedra negra
era a hora que há muito eu deixara escapar. O sonho se retorcia querendo
despertar. Em um canto inferior do aquário havia um pequeno duto fechado. Era a
hora da vigília e retirei do orifício a pedra negra.
Enquanto o aquário esvaziava eu tinha a sensação horripilante de estar
me afogando, debatia os braços tentando escapar. O sonho saía de uma noite para
outra. Ou era a noite a mudar de cenário. A casa recuperava suas formas e
cores, a gramática de seu mobiliário, os nossos corpos iam se materializando.
Elas estavam ali comigo. Eu havia chegado. O sonho alcançava aquele estágio de
nitidez e verossimilhança que a realidade poucas vezes pode compreender. Eu me
agitava feliz até o último instante em que meu corpo foi refeito. Não havia
mais distância entre nós, a maquete se tornara uma lembrança como qualquer
outra.
O CONFLITO DO ESPELHO
Como método, o realismo é um fracasso total.
OSCAR WILDE
As dores
divagam pela casa como enigmas aflitos. Eu te vejo do outro lado do espelho e
torço para que esperes por mim. Finjo que me reconheço nas aderências desse
mundo absolutamente indiferente aos meus anseios. Os fatos deverão todos
desaparecer agarrados à sua mania de perfeição. Cada um de nós, do lado de cá
dessa intenção de realidade, tende a ficar cada vez mais isolado, os seres
repugnantes que se limitaram a encobrir os sinais de outras vidas. Aqueles que
oscilam entre o espelho e as cortinas, os que escavam eternamente a mesma
ferida, como se procurassem as raízes de suas angústias em lâminas de um
microscópio míope. Nossas comédias purulentas nos fazem chorar. Como o extravio
de obras que não tiveram tempo de melhor ocultar seus segredos. Eu te imito
indo até à cozinha, esquentando a água para um chá, acariciando a perna
esquerda com o pé direito. As nódoas em nosso passado vão perdendo audiência.
Muitas coisas preferem não ser interpretadas. Como essas dores que tremulam sob
a escada, insignificantes até que alguém as assuma. As reminiscências
fracassaram pela escolha que fizeram de parecerem reais. O homem é um selvagem
que foi exagerando seu fascínio pela vida edificante. Desinteressado no
significado de seus assuntos, rugia de satisfação ao destruir tudo aquilo que a
sua imaginação convertia em arquétipo. As sombras hipnóticas boiando pela casa,
a triste mulher retratada em uma tela na sala que à noite se ouvia chorar, o
assédio de uma paisagem que forçava a janela do quarto. Os meus truques
perderam o sentido. A arte ficou para trás. Somos todos investigados por um
dramalhão criminoso. Tanto nos misturamos às vítimas que já não há mais a quem
responsabilizar por nossos atos. As dores nos concedem uma última refeição. A
alma de um homem condenado está açoitada pelos conceitos mais desprezíveis que
orientaram a sua existência. As larvas decompostas sob efeito da desidratação
de seus métodos. Tudo para chamar a atenção antes da injeção letal. O corredor
da morte como uma galeria de arte. Até onde a poesia teria se tornado perigosa.
É óbvio que as perdas foram se acumulando na latrina. O assunto nunca foi a
lâmpada queimada do mistério. Ainda estás do outro lado do espelho. Eu não
consigo me livrar da impossível realidade. Eu vejo o mesmo quadro todos os
dias. Muitos dizem que é seu, as gerações se iludem com seu teatro perverso, as
cores caem de moda, os cultos suspiram, os vultos esvaziam os bolsos, a
literatura retoca seus males, todos sabem que ainda é o mesmo quadro, porém a
ilusão transforma os dragões em beija-flores. Um passado para cada sarcasmo e o
código de acesso a seu camarote aveludado. O teatro é uma síncope que manifesta
sua própria ideia do absurdo. O teu corpo esvaziou o meu. Tanto me dediquei a
te amar que não dei pela falsificação das mortes, a mudança das marés, as
carroças que nos afastavam dos símbolos. Havia um claustro em cada cenário e
uma sutileza crescente das escolhas manipuladas. Depois não havia mais nada.
Somente o teu corpo cada vez mais distante do meu. As emoções perderam sua
forma física. Os sentidos se exprimiam de forma confusa, embaralhados,
despedaçados, derivados de outras indiferenças. A imaginação esgotada como um
quebra-cabeças perdendo suas peças. Agora era tarde para o anonimato como
método. A criação predestinada a todos. A inabilidade de colocar as mãos sobre
o peito de um romance pitoresco. Todos os dons. Todos os transes hipnóticos.
Toda a louça no armário. A humanidade fazendo o possível para se desfazer de si
mesma. Enquanto eu te busco como uma delicada metáfora. A minha mão parece
adentrar a água do espelho ao encontro de teus seios. Aceitas as letras que
guardei para ofertar a teus mamilos flamejantes. Os líquidos travessos de uma
veemência sedutora. Essa frequência lasciva da moral. A vontade intransigente
de fazer as coisas certas ainda que desconhecendo as suas origens. A confissão
dos mitos e a indolência ofegante de suas imagens caídas. Quantos dias se
passaram e ainda éramos uma rara semelhança. O reflexo exausto do amor que
fizemos há pouco. O êxtase crepuscular de nossos suores. A dialética empregada
nos beijos. As dores como uma introdução alquímica após haver vasculhado a
essência das perdas. Os rastros da imaginação são intensos como o horror da
casa abandonada. Eu dirijo meus passos por seus escombros e não te encontro
mais. Sob o véu da ilusão devo ter reservado um lugar para teu nome. Porém a
simetria dos acidentes me deixou em mil pedaços e estou muito cansada para
refazer a nossa jornada. Espero que me entendas. Deixemos o mundo carregar
consigo sua destruição espontânea. As ilusões acabam por acobertar seus
próprios fracassos.
REBEKA NACERI NAS PEÇAS QUE FALTAVAM
Se eu vou
receber anjos em minha casa devo estar preparada porque um dia também entrarão
pela mesma porta os demônios. A casa não se atreve a mudar meus hábitos, mas
vejo como ela se contorce quando meu corpo salta de uma amante a outra e seus
cuidados são negligenciados. Ela me distrai com sua cozinha enfeitiçada, a
árvore dos temperos, as escadas cantarolando pelos corredores. Subir ou descer
é como sair da cidade a caminho do campo ou retornar com os vícios consumidos.
Talvez se eu trapaceasse o baralho refizesse meu destino. Mas a verdade é que
não tenho ideia se ainda quero ficar por aqui mais algum tempo. Envelheci sem
me dar conta. Desde os primeiros desenhos eu sabia que era outra a mão que me
conduzia. Uma partilha de dons e a sutil percepção de que aqueles personagens
todos já existiam e me revelavam seus gostos incomuns. Eu dizia ao mar que não
viesse mais me ver. As horas não poderiam mais me ferir. O meu traço era
horrível, embora tenha me servido para explicar o motivo daquelas cenas e os
diálogos repercutidos por tantas páginas. Não sei o que fizeram de mim todos
eles. As noites batendo à porta me pedindo sexo. Eu queria me punir por aquelas
vozes. No entanto, eu me reconhecia nelas. Seguia riscando traços e frases. Meu
corpo queria me beber em sua taça vulgar. Deixei que sua mão me masturbasse e
apenas sorri para a miserável truculência do acaso. Que nome dar àquilo? Ela se
confundiu e me disse:
– Pode me chamar de Juana. Meu nome é Juana Guaita. Eu posso ser o seu
anjo ou demônio. Só não me peças nada em troca, pois há muito que me encontro
em mim mesma. Alguém está me devendo uma vida inteira e certamente não
receberei mais essa dúvida. Se fizermos sexo agora será a minha última vez. Ou
decerto nem isto ainda terei. As escadas não têm piedade de meus passos
confusos. A louça suja empilhada não tem piedade de minha enxaqueca. Nada em
mim tem piedade de meu vômito.
Seu corpo desnudo levita no centro do quarto. Nada mais nele parecer ter
significado. As carnes perderam seu limite. Não há como voltar a ser ela. Eu
deveria seguir sem Juana. Sem a sua penitência angustiada, sua lamúria bíblica,
o que ela houvesse guardado para seu último dia. Eu deveria agora ir ao mais
apagado refúgio da alma. Desistir dos pecados recolhidos e das páginas ainda em
branco. Não me reconhecer em ninguém. Não dizer mais nenhuma palavra.
A ANTIGUIDADE CLÁSSICA DO INFERNO
– Este foi o dia mais longo de nossas vidas.
– Por que dizes isto, se o dia ainda está começando?
– Nenhuma de nós poderá explicar o que está por vir. A cafetina Elvira
Broghèse foi quem chegou mais perto, ao mudar o nome de suas meninas todas. Nem
mesmo tu, Rebeka, com as tuas visões submersas no rio, definiria um vocabulário
para as sofridas personalidades de nossas amigas.
– Tens razão, Lenilde. Eu mesma me indago de que forma regeneramos a
memória quando ela se deixa infiltrar de testemunhos tão veementes. Recordo
Lueji naquele hospital, como ela ia e vinha no tempo, sempre trazendo consigo
um relato indescritível. O tempo era seu leito. Graças a ele Lueji se refazia
das anomalias de seu centro espiritual.
– Sempre que a víamos transpirando era fácil compreender que ali estava
se formando uma memória de acidentes quase como a representação de uma
atividade divina. Lueji tinha um coração tomado de empréstimo de uma deusa
esquecida.
– Isto se algo queremos explicar.
– É verdade. A vigília da imaginação nem sempre produz espelhos
visíveis.
– Eu sempre te amei por essa tua ourivesaria de imagens sincopadas. Ah
minha tão meiga Lenilde, ainda hoje me dá calafrios a dialética de nosso amor.
– E como chegamos até aqui! Os atributos de nossa persistência…, tudo
aquilo que inventamos com a força infatigável de nossa cumplicidade…
– Decerto que as meninas esticavam as nossas cordas. Vivíamos toda
aquela tensão simbólica, o modo como vibrávamos como se nossos corpos passassem
de um a outro, como animais sensíveis adivinhando os impulsos um do outro. De
algum modo nós éramos todas amantes…
– Lembras que por vezes eu te dizia que Komako estava nos escrevendo do
Japão. Era como se eu acasalasse com a sua escrita. A vitalidade de um complexo
manuscrito que poderia estar se formando em qualquer parte, mas que eu o sentia
bem dentro de mim. Era tanta a minha certeza que jamais perguntei a ela se de
fato me escreveu alguma carta.
– Não creio que a realidade nos sirva de laço para abrigar alguns
mistérios.
– Quando Komako nos contou de seu cativeiro, onde ela sentia como seus
os pulsos amarrados daquela entidade…
– …Ainoã…
– …Sim, ela mesma. Como a imagem de um cordeiro bíblico na etapa
sacrificial da humanidade… Esse tema aviltante da vítima santificada, esse
horror que é tanto o fetiche da ressurreição quanto a agonia espúria da
presunção. Rebeka minha, eu não paro de pensar nisto, em quanto confundimos o
mistério com o misticismo vulgar. Envelhecemos sem que o mundo mudasse um
símbolo de lugar.
– Quem consideras tenha sido Ainoã?
– Uma cornucópia de males, um paradoxo. Como o rio mais velho que se
torna inumerável pelo esquecimento de suas águas. Ainoã é a regra indissolúvel
do sacrifício. Sem ela, nada toma vulto no dia seguinte. Sem ela, jamais Komako
teria voltado para nós.
– Todos os filhos são bastardos. As religiões não nos fornecem material
para pensar o contrário.
– É certo, como nossos pés são ligeiros, e como cruzamos os rios antes
mesmos deles estarem diante de nós.
– Como uma corrente de práticas que não trazem a divindade para nosso
sentido de justiça.
– Uma torrente elétrica, Rebeka. A convulsão de uma deidade. Aquele
corvo que acabara concluindo que jamais deveria voltar à cena do crime.
– Eu ainda sonho com justiça.
– Eu sei, meu amor. Eu ainda amo a tua pureza.
– O sol marcava as horas no dorso de Ada, ela sempre caindo de uma
frondosidade cosmogônica de seu desejo de vida. Uma de nossas virtudes é que
posso te dizer o quanto desejei Ada sem que isto afronte contra a extensão de
nosso amor. Eu gritava seu nome da língua-relâmpago de um sonho, uma noite de
perspicácias, uma harmonia nômade, eu a queria entre minhas pernas. Eu sempre
pensei em ti como o meu zênite primordial, Lenilne. Mas houve momentos em que
eu pensava em Ada como a tradução de meu desassossego.
– Ela era mesmo isto. Veja como falo nela, no passado. Ela está por
chegar. Como todas as outras
– Não desistes…
– Não é isto. É que até mesmo o caos requer uma energia primordial.
– Por que achas que chegamos até aqui? A nossa idade será sempre a mais
alta, e continua subindo, como todas as coisas que crescem na direção contrária
do que prevemos.
– Este é o modo de nos beneficiarmos das previsões?
– De algum modo a necessidade de prever o passo seguinte é uma fraqueza
da alma.
– Eu quero morrer coxa de mil sentidos.
– Não importa. A integridade física está aquém das intempéries do
espírito.
– Um pouco de vida para cada uma de nossas mortes.
– Uma medida fora de esquadro do que somos nós e de que modo nos
desfazemos da própria evolução da espécie a cada claudicação existencial.
– Um pedaço de cada um sendo desfeito… Como a cremação dos sentidos
preparando a psicanálise para seus casulos aproximativos.
– Aquele momento em que imaginamos que um deus possa aceitar um suborno,
que a própria ideia de sacrifício não vá além da ruptura de uma inibição moral,
cujo passo seguinte seja a miragem de pradarias subterrâneas, de vulcões
ramificados em variadas formas de destruição, até mesmo em uma tradição de
catarses amaldiçoadas.
– É como estar aqui e ao mesmo tempo não ser possível localizar nosso
paradeiro.
– Sim. A honra perdida através de uma forma dilacerada. O tribunal das
coisas propícias. A ascensão das sombras gastas.
– Era para estar aqui a qualquer hora. No entanto, ainda estamos só nós
duas. Elas virão?
– Evidente que virão. Lembras das cartas de Emília? Quem pensaria nelas
como as variáveis de um risco, as buscas desesperadas de uma identificação?
– Eu não as li.
– Ninguém as leu. Ela mesma não sabe de que lado da escrita esteve, se
do lado da pluma ou da imaginação.
– Algo como a interrogação do inimaginável?
– Nem tanto. As coincidências por vezes perdem sua forma. O rosto de uma
mulher na cena de um crime talvez não seja mais do que a ideia insustentável de
uma traição.
– Alguém a estaria traindo quando suas areias eram líquidas.
– A ideia de estar no deserto é uma aporia: talvez falte água ou ar,
talvez os símbolos desejosos sejam demoníacos. Ninguém nos define por aquilo
que desejamos ser. Os pequenos monstros que se alimentam de nossas vidas não
passam de resoluções contrárias aos nossos difamados triunfos da eternidade.
Não estamos aqui senão para a perturbação dos sacerdócios.
– Uma escrita ao contrário?
– Não, não. Um jeito de encontrar a letra no calcanhar de cada
ambivalência simbólica. Eu considero que as nossas vidas são um casulo
atormentado pelos sonhos, cujo pesadelo uma noite qualquer as liberta dessa
batalha venerável entre os opostos. Eu quero ser a linguagem livre de seus
anéis. Um mito que não venere a si mesmo. Um herói que se recuse a cortar a
cabeça do inimigo. Essa ilusão de que uma lenda, talvez, não possa subsistir
senão acabando consigo própria.
– Talvez por esta razão as fotos de Bertha sejam aquele espelho agônico,
a esmeralda desvanecida, os espaços desorientados.
– Não sabemos nunca onde estamos.
– A física é o lugar da madeira em combustão.
– A tradição do que vemos que por vezes corresponde ao que tocamos.
– A visão como um elixir que se multiplica em meninas erráticas que ali
estão para a perversão da cruz e da espada em seus próprios corpos. Elas
próprias não sabem a que resistem. A prostituição é um maço de quimeras. Um
jeito das sociedades figurarem como espectros de uma justiça cobiçada. Um
simbolismo poético.
– As árvores que não despertaram na língua destinada um dia acaso
poderão participar da recomposição da moral perdida?
– Não. Temos observado que a mãe não pode ir além de seus filhos, que as
manchas são a correspondência com o branco inesperado, que o abismo não é senão
uma expressão de si mesmo.
– Elas virão ou não?
– Para onde vamos é como a fornalha de uma medida imprevisível. Elas
virão, sim.
– Nós estamos sob a medida do mistério. O segredo do ocultamento. A
cobiça cíclica.
– Todas as imagens são tão cegas que o céu parece uma fraude de proteção
de sombras, um prenúncio de vertigens removidas, uma pausa de chaminés – o
enigma do chapéu que jamais seria um chapéu.
– O olhar assim tão caído, a sabedoria resultaria em nada.
– Como quem deserta uma cifra. E não á mais onde encontrá-la.
Os dias
estão contados. São poucos e podem sucumbir a qualquer momento. Porém
ninguém sabe disto, além delas, e é melhor manter o sigilo. Lenilde e Rebeka
podem finalmente ser o labirinto revelador de sua vida. O encontro com as cinco
amigas define as camadas de vertigens na relação entre elas como que aspectos
adversários de um labirinto onde cada uma ali fosse responsável pela descoberta
da outra em si mesma. O espaço não permitido, ou não desvendado, é a mãe do
sinistro que não revela o que somos. As lápides que ativamos na memória como
sintomas de uma precária imortalidade.
Quantas filhas poderiam se chamar Eleanor Elbe? Como fantasmas vadios
que surgiam com a noite e antes que o sol despertasse recolhiam seus ruídos e
faíscas, e desapareciam reunidos em uma mesma entidade. Os rastros deixados
eram uma mancha, uma cicatriz, uma impressão de desordem, um aceno do caos,
talvez porque estivéssemos olhando a cena com os olhos trocados, talvez o
primordial não fosse a identificação da filha e sim a revelação do paradeiro da
mãe. Quantos princípios foram distorcidos pela consequência verbal desse
descuido, dessa perda de abrigo, desse corpo pendurado que parecia dançar como
um cadáver?
As filhas desaparecidas, seus nomes esvoaçantes, as coordenadas
simbólicas do óbito, o desatino, as células repartidas perdendo sua unidade
mística. A mãe é o monstro com sua precisão indomável. O mago mimado que
concentra no inconsciente os instintos de toda uma época. A ninfa que repassa
os grãos da ilusão por toda a tribo de arcanos menores, inquietos diante dos
truques da harmonia. Era para ser assim. Deixar a selva trovejar dentro da
cidade. Mostrar aos infiéis que as imagens precedem os sentidos. Uma vida
coberta de adorações é um manequim pervertido, um mantra fugitivo, um algoritmo
extraviado. Era para deixar a ausência fervilhar no centro de cada filha. Para
que elas aprendam a pender de incontáveis raios. Para que as suas mãos um dia
se encontrem após tocar todas as formas do infinito. As filhas devem aprender a
nascer antes de suas mães.
O mar cresce no interior de todos os símbolos de fecundidade. As filhas
se reúnem em volta de uma mesa onde se riem e preparam as marionetes de suas
mães. As miúdas protagonistas de seus desvarios. As filhas travestem essas
bonecas articuladas para que sejam deuses e humanos. Para que sejam a
consciência da dor e da ilusão. Para que através de seus fios, de sua
eletrificação ambulante, sejam a representação dos enigmas. Esses pequenos
fantoches teriam que ganhar vida e ajudar a escrever a trama frívola das
religiões. Assim as filhas não iriam nunca querer permanecer em casa. Talvez
algumas deixassem ali alguma máscara controlando o teatro das semelhanças.
Qualquer narrador veria nisto uma saturação motora dessas estatuetas difamadas.
As máscaras são um mar reanimado. Seus arcanos desconhecem a escrita dos
tambores. Não há uma mediadora entre elas. As filhas de Lenilde e Rebeka são
elas mesmas. E suas amigas a elas se uniam como a dádiva da assimilação.
– Elas finalmente chegaram.
– Elas teriam que chegar.
Toda realidade só é profunda se reconhece suas falhas. As filhas são uma
miniatura desse reconhecimento. A sala da casa estava voltada para o centro de
um universo impossível de identificar. Evidente que as sete mulheres entreviam
cada uma delas um modo de transfiguração de sua aderência à realidade. A
vidência de uma dimensão terrestre. A associação da mobília à matriz de suas
distinções esotéricas. Quantas elas poderiam ser em meio àquele enxame de
transfigurações. Impossível pensar nelas como alguém que buscasse apenas o zero
do sacrifício. Por que são todas elas mulheres? Um miolo eletrocutado, um
espinhaço brotando de cada esqueleto retorcido, a muda representação da agonia.
Quem viria nos trazer os últimos sinais primitivos de uma humanidade que não
fez senão repetir o mito humilhado de sua impotência? A mulher é a nudez não
degradada. O mais temível de todos os símbolos de abolição da espécie, porque
trazer em seu íntimo a chave das ressurreições. A sala é um verbete do inferno
que ainda conta seus últimos números e desafia a todos que queiram contestar
suas fraudes.
– Eu não sei a que horas exatamente viemos parar aqui. Como nos conhecemos?
Ada, quem de nós foi a primeira a cair do céu?
– Eu lembro que chegamos juntas em um carro, uma ideia um tanto
vaga, Bertha. Sabes que um dia eu pensei que eu pedalava pelo subúrbio, sem
rumo algum, e vi então um carro entrando em uma ruela que dava na casa de
Lenilde. Eu não conhecia ninguém, mas fui como que chamada por aquela cena. Mas
de repente, não havia mais bicicleta e eu me vi saindo do carro.
– Isto apenas diz o quanto estamos integradas a um mesmo mistério, pois
eu sempre me senti uma ausente de tudo, não é fácil ter a própria vida
sacrificada pela visão constante de outras vidas. Os mundos precedidos de
sentido, o razoável como uma manifestação do incompreensível. Eu nunca disse a
ninguém onde estaria. Num instante, estou com vocês. Mas eu não sabia quem eram
vocês.
– Emilia, ninguém procurou sacrificar-nos.
– Talvez seja verdade, Bertha. Porém eu jamais quis estar aqui. Eu não
imaginaria o sol de sofrimento de minha vida, as aflições, como eu poderia
passar boa parte de minha vida indagando sobre esses símbolos dissociados de
tudo em que eu sempre acreditei. Eu não sei nada de vocês. Nós todas nos
encontramos em uma espécie de cilada cósmica, sinistra como um panteão sem
fundamento. Um deus sem nada. Um mistério que não traz em si significado algum.
Eu ainda me sinto assim. O que exatamente eu faço entre vocês? Talvez a minha
vida se explique por uma maldição, mas eu não teria que acreditar nisto?
– Alguma de vocês tem algo a dizer sobre a violação do corpo? Vocês
parecem seres de outros mundos. Eu fui fodida de muitas formas. O pai canalha,
a ausência da mãe, o professor sedutor, o frentista de quem acabei fugindo
porque era a miserável vida que foi designada.
– Já perdemos os nossos nomes?
– Não, Komako, continuamos a descer por um fio degradante, de promíscuos
reinícios. A lava putrefata de nossas imagens terrestres. Como a comparação
entre tempo e espaço como um valor cósmico. Os meninos circuncidados na
Polinésia são os mesmos judeus batizados pela violação de seus corpos?
– Ninguém me viu chegar aqui. Pode ter sido no carro ou na bicicleta.
Não creio que este seja o ponto. Por muitas encarnações eu acreditei que o
mundo era apenas isto.
– Eu nunca passei por aqui para entender o que éramos.
– Alguém morava mesmo aqui?
– Nós sentíamos, Lueji, a tua presença conosco quando estavas naquele
hospital em Cuiabá. Eras um mistério guardado em um cofre comum de nossas
carnes.
– Mas não havia nada a ser guardado.
– Engano teu. Guardamos sempre a nossa obviedade, como receio de que o
mundo nos responsabilize por aquilo que a todo instante poderíamos evitar.
– Já que estamos aqui, eu tenho uma dúvida: quem escreveu o romance da
Lenilde?
– Não acreditas que tenha sido ela?
– Não é isso. Li Sung era minha figura revelada, alguém que acabei por
aceitar que Lenilde poderia ter vasculhado a minha alma a seu encontro. De
repente, surge Lavínia Di Lúvia e a própria Li Sung se deixa subtrair de sua
vigilância nos mistérios da imaginação. A quem associar essa…
– …dissociação?
– Será este o termo? Os personagens acaso estão nos protegendo de algo?
– Talvez tenhas razão, mas temos que nos perguntar sobre os mais
personagens trazidos à corda bamba de nossas vidas.
– Pensas na Juana Guaita de Komako?
– Sim. Por que não?
– Mas ela trazia à cena o sacrifício de um cordeiro.
– É verdade. No entanto, não há reconciliação entre o mistério e seu
desvendamento.
– Mas nunca há isto.
– Então quem somos? Ou melhor: o que vale indagar isto?
– Os roupeiros guardam as nossas almas descosturadas.
– Por vezes não somos mais do que horas desgastadas.
– Não viemos aqui para isto.
– Estamos velhas, Komako. A minha vida não se inspira mais em nenhuma
ruptura. Já nem me vejo mais em uma encruzilhada. Nada me é mais
inaproveitável. O que tenho é apenas o que tenho. Não penso no que perder ou
absorver. Os mistérios se foram. A própria realidade foi eliminada. Como algo
pela manhã. Jamais gostei de café. Olhos as frutas e os pássaros que ainda me
acenam.
– Mas poderias estar renascida como um feitiço…
– A quem importaria, minha amiga? Nem eu mesma sei se existo. Sei que
estás em mim, e por onde eu andar eu te arrasto comigo.
– A vida é um feitiço.
– Sim. Nós sabemos disto. Mas não há resina na ressurreição. O que por
acaso volte a ser…
– Crês mesmo nisto?
– Não há onde guardar as crenças.
– Talvez, Lenilde, devêssemos dizer adeus ao que virá. É da natureza dos
mitos exagerarem na transfiguração dos símbolos. Um dualismo de miragens. As
inversões frequentes de feitiços duplicados. Então talvez fosse o caso de nos
desfazermos dos emblemas do tempo.
AS NOITES PASSAM LIGEIRAS PELA ESTRADA ABERTA
O tempo é um
cavalo maravilhoso. O desembaraço de suas curvas evidencia as sombras
iluminadas que leva dentro de si. Os afrescos desvendados no espírito de cada
uma das sete mulheres – sobretudo quando regressaram de seus retiros e se
decidiram a morar na mesma cabana – se tornaram pastos de uma alegoria
multicor. O bailado de formas e dimensões em uma correspondência de tons que se
expandiam como a música em uma escala infinita. A devoção da esmeralda. O
excesso demoníaco do azul. A miséria da terra abandonada do preto. Cada uma
daquelas mulheres crescia dentro de uma cor, no interior de um tonel de
relâmpagos com que transbordavam o horizonte. A idade lhes ensinara a ocupar os
bastidores empalhados do excesso e da aparência. Por toda a casa elas se
reconheciam como feiticeiras vindas do céu. Cantavam, preparavam a comida,
faziam daquela convivência uma região extraordinária de encantamentos.
– Eu vi a noite tingida de um azul viscoso descer pelo caramanchão
ao lado da varanda. O azul conserva algo na noite ignoto. Uma camada de
mistério que nenhuma outra cor revela.
– Eu não sei, Ada. Para mim essa punção inesperada quem nos dá é o
vermelho, ao encorajar o fogo a devorar todos os limites.
– Quando as duas se beijam atingem a espiritualidade do símbolo.
Vocês duas não. Eu me refiro às duas cores. Um combate amoroso de fusos, a
tecelagem do incêndio e do trovão. Azul e vermelho se fundem como os verbos de
um furacão. E guardam em seu frasco de enigmas a acentuada embriaguez de duas
proporções.
– O elixir das luzes que fundamentam o renascimento. A geometria
dos espíritos reflorestados. Tens razão, Emilia. A vida não se refaz na luz ou
nas trevas, na exuberância da claridade ou nos tumultos da escuridão. A
abundância criativa está no colóquio lascivo entre o vermelho e o azul. Somente
quando se encontram sangue e sonho a linguagem se realiza, em requinte híbrido.
– Eu cheguei a pensar que Rebeka e eu alcançávamos nosso ponto alto
de fusão na paixão pelos extremos. Um dia li algo que me fez mudar de ideia:
A tua cabeça é redonda como um céu banhado de vinho
A chuva de teus cabelos molha as estrelas do sangue
Eu tenho as minhas cinco vísceras crescendo dentro de ti
Todas as partes de teu corpo sabem ler os meus vendavais
Juntas percorremos a lonjura de nossos humores
O mar de ânimo na dádiva de nossas portas-orifícios
– É um cântico que se reproduz substituindo as pedras, um jogo em
que algumas palavras-chave são permutadas aleatoriamente buscando não um
sentido prosaico, mas a sagração do sublime, a força do espírito que se revela
fora da igreja ou na ilha. Não é mais comunhão ou solidão, e sim a múltipla
forma do acidente, que se expande sem nunca se repetir. Foi quando compreendi
que nós duas éramos mais do que simples fusão de contrários. Certamente a vinda
de vocês todas, quando decidimos morar juntas, fez com que se abrissem todas as
portas e janelas do labirinto.
– Como se a biblioteca perdesse a conotação de refúgio.
– Exatamente, Lueji. Não nos escondíamos mais uma na outra, como
noites que se encaixam em busca de uma repentina inversão. Nossos corpos
deixaram de ser esconderijos. As idades não se acumulam, elas simplesmente se
multiplicam e ganham novas formas e lampejos. Penso que somos sete cabanas que
se abastecem de maravilhas.
– As sete casas de todas as passagens pela terra. As sete casas que
ao final são apenas uma: a casa imaginária.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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