sábado, 16 de dezembro de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Representação consentida

 


A CORTESÃ SEM NOME

 

Três vezes me visitou o espírito de Qu Yuan. Buscava em mim uma alma que transcrevesse a árvore luminosa de sua vida. Alguém que resumisse em pictogramas a relva oracular de seus ensinamentos. Suas palavras nasciam flutuando no espaço. Na primeira vez que me veio pude ler, aos poucos se formando em uma névoa, uma máxima que viria a ser o signo de suas incansáveis viagens: Enquanto houver caminho, continuarei buscando em todos os lugares. Em todos os tempos essa luz ecoou, sendo repetida e refeita como algo singular. Governos, artistas, religiosos, todos os amantes do plágio a repetiam por onde andassem. Seus poemas caminham com o vazio e a dor da partida. Em nosso segundo encontro ele me leu composições que falavam de trevas acumuladas no íntimo de seu povo. As orquídeas o seguiam como uma nuvem de pássaros. Ele próprio caminhava como se desenhasse um ideograma no ar. O mestre me disse que combinamos as datas e os temas, mas nos perdemos no labirinto da tessitura de nossas ideias. E logo me dava uma nova carta enigmática: Esperando o divino, esqueço de ir para casa. O ano está atrasado. Quem agora vai me enfeitar? Eu usava todas as minhas contas para melhor registrar o colar de seus versos. Qu Yuan queria me mostrar que quanto mais estranha mais a metamorfose gerava em nós uma energia que nos levava a outro modo de ser. A pincelada de seu corpo no ar era o jade de sua expressão. O tempo nos atravessa como um rio. E por uma última vez reconheci a meu lado o espírito do poeta. O sol foi incansavelmente implacável sobre o dorso da montanha. Os homens se adaptaram a todas as épocas, sempre desconhecendo a si mesmos. Eu já havia preparado meu último chá, quando lhe ouvi a voz serena: Saí da baía de madrugada, e cheguei à cidade à noite.

 

 

FAKHRA YOUNUS

 

Nada do que fazemos está reservado a um fim. Por mais exóticos que sejam os rituais, em seus rolos de madeira ou em suas peças esvoaçantes no cobre ou no jade, nada sonha com a representação do destino. Cada verbo é uma abundância de movimentos. O orgasmo é como a investida de uma serpente. Uma hipótese que se deita sobre a pedra para sonhar com um mundo melhor. Somos todos uma personificação do mal como as divindades demoníacas do bem. Não está nunca cedo ou tarde. Viver não passa de uma parecença de raízes. Criamos o que acreditamos, mas a criação é uma trapaça do ser. E a realidade nos desfigura com uma violência silenciosa. Os deuses não querem ninguém a seu lado. A violência pode nos cegar o olho, porém não nos impede a visão. Talvez eu tivesse me matado ao ler os versos de Torquato, embora eu não ache que um dia vivemos todas as horas do fim. No entanto, deve haver um momento em que não há mais linguagem a ser destruída. Pode ser uma ilusão e nos matamos em vão, Torquato e eu.

 

 

GŪWALGIYA YOULAN

 

Todos andavam atrás de minha morte e nenhum motivo me pareceu revelador do que eu tinha em mente no momento em que me livrei da vida. Cenários adotados para que a memória ganhasse uma fluidez aceitável. Ninguém faz tanta questão de esquecer o mundo, porém as almas acordam com gostos curiosos nos lábios e um olhar perdido no esquecimento da noite. O suicídio está tomado de visitantes políticos. Uns versos que eu escrevi e poucos leram, e logo eles ganham uma fagulha que faz o mundo à minha volta trepidar como se fosse minha a intenção de humilhar as tramas sociais. Recordo bem um verso, aquele da porta da jaula onde eu dizia que preferia estar excluída. Esse estado de coisas que nos demovem da vida. O verde convertido em lodo, os verbos que jamais pronunciamos em vão, as milhas que separam a realidade de nossos corpos submersos. As asas que teci em um instante eram o símbolo de uma história já conhecida. Nossos corpos atingem o chão de modo ríspido. Somos a barbárie. A idade perdida do tempo. Nenhuma de nós abrirá a porta para os fantasmas de nosso degredo.

 

 

HAI ZI

 

Talvez o deserto recolha água da lua. Na imensidão de minha alma há um riscado de trilhos que me levam de um ponto a outro dessa bússola rarefeita do destino. É possível que alguma metáfora coincida com a realidade. A lua mora longe e eu já disse em um poema que ela é um macaco branco cavando um poço. Aqui estão meus nomes e sua fábula enterrada em areias esquecidas. Tudo o que há de mais primitivo na vida se passa antes de tudo em nossa alma. Como um céu que se esconde do celeiro devastado da imensidão. Os cabelos em chamas de um oceano sonhando em ser um campo de papoulas. Escrever é como atravessar um rio, sabendo que no caminho uma outra existência pode mudar a sua. A lua não está em nossa cama. Nem o rio. Nós somos apenas o coração e sua extensão do vazio. Quando o vento sopra nossas palavras, quem imaginamos ser? As metamorfoses não dizem uma única palavra. Em silêncio as estações se retorcem. Um dia o inferno se reconhecerá como uma violentada troca de fenômenos naturais. Mas quantas vezes terei escrito isto antes que meu coração fosse dormir bem longe de mim?

 

 

JEON MI-SEON

 

Era para ser a última vez que um véu adentraria a ondulação de outro. As luzes declinadas sobre a vertigem dos tecidos, o vento em sua leveza tortuosa, os números de traços que iam surgindo como a descoberta de novos mundos a cada nova técnica evocada. Essas imagens que inventam uma tridimensionalidade a cada súbito gesto do pincel. A última deusa encontrada morta. Móveis, corpos, sombras. A formulação de que o mundo morre a todo instante, apenas a visão religiosa permanece. Deixamos lugar ao insondável. Lavamos a vestes do absurdo. Até mesmo guerreamos contra inimigos descarnados. Nunca sabemos porque estamos aqui. Uma terra fúnebre. Uma capela mortuária. Uma máxima que sempre nos afasta de nós mesmas. Talvez a noite tenha chegado a seu fim. O templo da percepção é múltiplo e estimo que não se repita.

 

 

LI YANMO

 

O corpo é um risco. Devora o tempo em seu íntimo e se mostra como uma vítima do mesmo. A noite se engasga com uma paleta de cores fornecidas pelo corpo. Quando transformamos o corpo em templo aceitamos encomendas da corte para diversas representações. O estilo mais vertiginoso ofertado em catálogo é aquele que mescla partes nossas com partes de animais. Uma anã com cabeça de elefante. Serpentes, macacas, ninfas, somos sempre deusas marcadas pelo desejo de quem nos compra. A religião do atrativo não aceita recusas. As imagens são memorativas enquanto alimentam uma tara. No instante seguinte a submissão engasga em sua própria fala. A arquitetura do corpo é um reino do caos, a perfeição disposta às consequências da iluminação. Os véus são um autêntico tear de peles que invadem as dependências do vento e da fria noite chuvosa. Era para contar uma história a cada noite, inventar uma lenda, simular a conquista de um mundo sem fim. Porém eu dançava para morrer. As tripas do tempo que tratassem de viver sem mim.

 

 

LIN DAI

 

Estou tão cega de mim, tão nua de meus anseios. Como uma lágrima que pudesse afogar um estado da alma. Os tempos um dia se amontoarão de tal forma que não saberemos mais separar suas aflições. Quantas vezes nos inscrevemos como aqueles que queremos mascar a eloquência, tingir a memória com suas cores prediletas, embriagar a matéria com infinitas formas fantasmáticas. Também as árvores são fantasmas que arranham as janelas e alimentam os peixes com uma fantasia de corpos afogados. Os dedos são noites fora do quarto. As metáforas contam cinco minutos até que possam revelar a altura de nossa ansiedade. Eu vim de longe até compreender que os sinais são alterados a cada ciclo. A verdade revelada em um poço, uma lenda, uma depressão, em muitos casos são fatores modificados, uma sedução movediça para aqueles que se desesperam pelo encontro de uma grande obra. Eu quis cair bem aqui, antes do selo e da agonia nacional. Eu nunca estive em parte alguma. Não fui a lágrima, o nascimento antecipado, a derrota do império. Em alguns versos considerei a impotência do fim. Até hoje o meu corpo é um peixe que ninguém identifica. Como os tambores sacrificando o silêncio, os dragões antecipando as lendas, os arrozais cobertos pela fome.

 

 

LIU RUSHI

 

Todas um dia somos vendidas. Como as noites de porcelana e os orgasmos de seda. Convicções e talentos devem ser disfarçados. Uma de nós durante o dia se veste de homem e escreve poemas. Era a mais bela e nunca permitiu que os amores frustrados a ferissem. Sabia ser casta e ousada em um mesmo papel. Suas vestes ondulavam de acordo com os acordes de seu espírito. A música estava em seus gestos. A pintura, em seu olhar. Dos bordéis trouxe poemas heroicos ambíguos, pois o apogeu das conquistas masculinas sempre foi o reflexo de um declínio moral. Quando criança soube que nenhum nome, ao sair de casa, poderia ser o mesmo. Travestir a própria identidade era um hábito. Fomos criadas em um mundo onde a renúncia ao genuíno era a principal das normas sociais. Toda vida é um bordado lento a caminho do desespero e da tragédia. Tornar-se uma lenda é como ser proscrita duas vezes. Duas pinturas vendidas a bom preço e apócrifas, como a própria realidade de nossa existência.

 

 

LU ZHAOLIN

 

As dores começam a abandonar meu corpo. Um silêncio aleatório as acompanha em sentido inverso. Uma de nós sente o esmero delicado com que o guache nos estimula seus ideogramas. Como uma fábula gráfica, o artesanato da alma. Os verbos ondulantes do carvão. A palidez como um leque alternando a morada de cada traço. O bambu mergulhado no rio da imaginação. Toda a origem e destino das imagens que cada um possa dedicar a seus feitos são cobertas por nuvens que descrevem o céu de acordo com seus caprichos. Já lemos em um verso de Lu Zhaolin: Os insetos voam ao redor da porta da lua brilhante e as aves circulam pelos galhos das flores. Não sabemos outro modo de cobrir os nomes daquelas flechas que não podem nos atingir. O grito das flores, o desmaio das árvores, as janelas subjugadas – nada fixa a cortina no teto das casas vazias. O que vemos é quase sempre o que apenas nos resta. As noites por dormir, os embriões da névoa, os dragões enrolados nas folhas de alumínio do desejo. Se eu fosse dedicar um verso a cada euforia de meu espírito, o corpo seria um terraço com mil cores diferentes. Por incontáveis bosques ou sátiras palacianas eu jamais encontrei a mulher a quem pudesse dizer que veio até mim como quem pode pegar emprestado o vento e levantar o céu de uma só vez. Os verbos serão acaso uma flor de imprecisão? Será este o enigma único que temos a resolver em nossa vida? Ao final de tudo, as nossas dores retornarão.

 

 

LUPE VÉLEZ

 

Não somos senão objetos cerimoniais. O chá, a amêndoa, as vozes notáveis. Somos recipientes de ondulações contínuas do mundo. Mesmo quando descobrimos a duração da existência de cada um de nós, as imagens ao nosso redor permanecem em expansão. A aceitação dos corpos nos tornam sensíveis e fascinados pela mutação. Tudo é aparentemente idêntico. Como um fenômeno de explosão ou o mistério humedecido antes de revelar seu nome. Os personagens e a cerâmica. O modo de absorver ou copiar. Uma alma perdida e a restauração de suas visões cozidas e a época desentranhada de suas pedras. Talvez as máscaras guardem meu nome esquecido na floresta. Quem sou, quem tu és. Assim os amantes se revelam. Assim os nomes queimam os lugares em que são cravados. Eu tive mil filhos e nenhum homem com quem compartilhá-los. Melhor que eles nunca nascessem e que eu jamais fosse apiedada por tamanha dor.

 

 

MADAME MAO

 

O olho feio da assimetria nos acusava de desconhecer os efeitos do rumor da vida e da morte. Eu fui o mais tempestuoso de todos os ardis. Mudei tantas vezes o meu nome como um desejo desgastado pela indevida utilização de suas tintas. Fui um rio verde, uma maçã azul, a flor da morte. Não houve profundidade ou reserva na minha oficina secreta de espantalhos. Atriz, deusa de palha, concubina indecifrável, dei a meus homens seus melhores títulos e jamais me reconheceram. O último deles precisou estar profundamente imerso na desilusão até perceber que somente em meus braços poderia retomar sua ilusão de poder. O livro vermelho e o pátio banhado de suicidas não teriam existido sem mim. Eu mesma conduzi meu espírito até onde ninguém poderá imaginar.

 

 

MARINA TSVIETÁIEVA

 

Eu gosto de ver um céu caindo sobre outro céu. Um relato descobrindo seu enigma no instante em que se sobrepõe a outro. Nada é de todo um dilema imprescindível. Quando lembramos o sonho de uma festa em que o vinho se acaba rapidamente indagamos sobre o motivo do sonho ir adiante. Será mesmo necessário um motivo para a dor ou a alegria? Talvez uma casa de gueixas seja uma cópia indevida do modo como vemos o mundo. A eleição do orgasmo sobre a roupa adequada. O detalhe em que tornamos tudo possível ou melhor descrito. Uma combinação de evoluções atrativas: a pele, a seda, o sêmen. Somos todos desconhecidos nessa multidão que venera o sexo. Uma atração flutuante que reforça dia a dia os negócios do prazer. Quando o diabo me deu um beijo na testa, eu sorri para ele. Todos nós sabemos que grande parte da vida levamos a querer conquistar o outro. Tu não me compreenderás jamais. Eu serei a tua melhor pintora. Tudo o que se passa ao nosso redor resulta impreciso e se desgastará com o tempo. Talvez eu resista às tuas obsessões.

 

 

MAY AYIM

 

Uma cidade se constrói enquanto a imaginamos. Os corpos são autoimolados por sonhos desfigurados. Sombras irreconhecíveis em um mapa que vai perdendo suas cores. Sempre pintamos sobre a superfície simbólica de um mundo. As tintas negras sobrevivem a uma depressão severa. As lágrimas simbolizam o testemunho das migrações. Jamais cabemos o suficiente dentro ou fora de nós. As cidades invisíveis que supomos habitar são um mundo flutuante com suas festas deslocadas e seus teatros ambulantes. Se um de nós concentra a sua vida na atenção à palavra no que ela pode nos fazer de compreender a sensualidade da própria existência, esse modo de a todo instante evitar a ruína, de livrar-se da chaga do próprio momento, então podemos trazer ao mundo detalhes de uma grande riqueza anímica. Metade do que somos é uma busca de compreensão da outra parte que nos completa. Não há o que ser feito na ausência de uma delas.

 

 

MINAMOTO NO YORIMASA

 

Mudei meu nome para que a verdade não prevalecesse. É uma frase triste, eu sei, que corresponde à realidade de toda a história humana. Fui preparada para os disparos mais certeiros, mas também para as falhas impostas a tempo. Como o anúncio fantasmagórico de uma pintura que, ao ser contemplada em um museu, nos revela uma estranha ideia do passado. Os relâmpagos não precisam ameaçar ninguém. Eles dizimam o céu e nos deixam no centro de uma batalha perdida. A minha vida foi sempre assim, sem dar frutos senão ao fim. Nenhum túmulo nos traz de volta à vida. Nenhuma sala de ilusões ou a flor quimérica do deserto. Mas eu volto atrás. As nuvens anunciam a curvatura de uma flecha que perdeu a noção de seu alvo. Eu fiz apenas isto, a minha vida inteira: apontei cada verbo como uma flecha. Talvez o alvo precisasse mudar de ideia. A minha ideia de derrota estava além do disparo. Um morto caído diante de mim. Um império deposto. E ninguém saber como um clã arruma suas leis para que outro assuma o seu lugar.

 

 

MISAO FUJIMURA

 

Acreditamos que o mundo é um salto e que toda a vastidão do universo se passa como a sagaz ou tortuosa aventura do contorno de um espaço. Alguém escreve um verso como quem estimasse o desejo de um inexistente leitor. Erguer uma morada ou conquistar um amor, talvez seja apenas um modo de se deixar adornar pelo acaso. Na sombra de uma árvore ou nas ondulações de um lago, jamais compreenderemos melhor o mito da criação. A verdadeira natureza do ser será sempre insondável. Como as luzes, que vão rabiscando a passagem do tempo. Nada sobrevive a um mesmo olhar repetidas vezes. Os nomes nos descrevem como objetos de uso diário. Há um caráter profano em toda alquimia ou devoção. Os rituais se mesclam e diversificam, mas buscam sempre a mesma verdade falha em seus elementos. Um grande pessimismo nada mais é do que um grande otimismo. Nenhum de nós deve nada a seus antepassados.

 

 

MITA NOOR

 

Era uma vez um templo com as carnes ornadas de joias preciosas, onde todas as concubinas eram marionetes de madeira pintada, em tamanho natural. Um sínodo autorizava a passagem de mãos de um corpo a outro. Os cordames davam à memória uma delicadeza nos gestos mais eróticos. Tudo estava ali para o prazer. Não havia discrepância entre o desejo e o poder. O Ocidente ainda não havia sido descoberto e as máscaras eram uma representação de seres sobrenaturais e um séquito de animais. Sésamo ainda não era uma senha e somente aos magos era permitido ter mais de uma marionete. As maiores eram como símbolos que demarcavam o destino da região. A maior delas tinha um nome impronunciável. Não percebeu que um dia seria encontrada morta e teria sua imagem reproduzida pela televisão em todo o mundo. Assim os deuses são criados. Mita era apenas uma atriz. Ao representar o papel de uma deusa desconhecia que ninguém pode permanecer anônimo. Quando caiu em si, era a última vez, e não se libertou jamais da fábula que criou.

 

 

NAIMA EL BEZAZ

 

Fui bem jovem beber no lago de minhas tintas imersas no prazer. Uma paisagem de reflexos difíceis de realizar. Todas as minhas deusas querem atear fogo às suas vestes. Por isto as deixo nuas percorrendo o cenário. Dizer que somos uma rotina feroz do espírito não descreve o bulício dos bosques, as pinturas de árvores em movimento, os estilos destinados ao mistério. Eu sou a travessia de meus episódios de esquecimento, as mãos que soluçam até que sejam tocadas por um novo detalhe. Os biombos que me distraem e me disfarçam de tantas outras que não quero reconhecer em mim. Senhoras e senhores, acabei de enganar a todos com uma história na qual sequer acredito. A multidão é um trecho vago da felicidade. As casas talvez existam para serem abandonadas. Assim como os poemas, para serem vividos e esquecidos. Os ciprestes são mais úteis do que quem os planta. Meu nome é a porta mais livre que abri até o momento. E por ela devo passar, antes que uma pincelada de admiração me destrua.

 

 

PATRÍCIA CUTTS

 

O sol queima a minha pele como uma esperança súbita. Minhas dores remontam a épocas onde o verbo me acalmava. Os deuses talvez sejam a pior obra dos mortais. Cada um de nós, em seu nome, ergue um palácio imperial dentro de si. E convoca guardiães de pedra para afastar os destinos incertos. Séculos sofrendo a ira de uma ilusão sorrateira. Ao invés de seu corpo Xi Shi lança um símbolo no rio, objeto circular com uma linha ondulante no centro. Dela começam a sair os peixes e seus presságios migratórios. Um deles saltou nos braços de Yang Yu Huan e lhe disse que sua beleza seria o motivo de sua morte. O relógio do sol muito depois seria uma pedra aturdida pelos ventos. Os sábios foram banidos da história por sua semelhança com tudo o que anunciavam. Meus sonhos eram como uma ignição de relâmpagos. Eu alcançaria a eternidade inúmeras vezes, não fosse a propagação das cores reviradas em meu ser. Cansada de usar a língua corretamente, deixei o dia ocupar o lugar da noite, o céu migrar para o abismo, o amor ser horrível como uma pele dissolvida pelo ácido. A partir de então, nada em mim teve fim ou começo. E no palco representei todas as ondas de choque que um dia couberam na beleza assassinada de Yang Yu Huan.

 

 

QU YUAN

 

O medo não sabe nadar. Um dia as luzes começaram a acender à margem dos abismos que cavavam ao nosso redor. O exílio nem sempre escreve os melhores poemas, mas é certo que olhar a distância que passamos a compartilhar com o mundo é uma lente tanto repleta de postagens do acaso quanto de nosso entendimento de que o tempo está em atraso. Todos nós nos parecemos com alguém nas profundezas do olhar. Um instante nos rouba a paz que levamos orações em busca de seu equilíbrio. Como uma deusa devotada de ascendência falha. O mundo – essa fragmentação de nossa alma – se dilui em seus carrosséis de luxúria e ganância. Eu não sei mais o que o orvalho pode nos ensinar. Desconheço o paradeiro das lágrimas que somente alguns verbos conseguem enxugar. Ninguém mais atende ao chamado de seu caminho anterior. Aquela dose de mistério que talvez explique uma aflição. Os meus versos queriam olhar longe, e mal arrancaram o semblante renunciado de algumas imagens. Eu não sou piedoso. As vozes ancestrais não me revelam caminho algum. Eu me embriago e me emporcalho de visões. Jamais desejei um bosque sagrado ou uma deusa milenar. As nuvens buscando uma virtude. Um rumo desesperado em suas noites insones. Eu não quero ir a parte alguma, nem reclamo cuidados com as minhas virtudes emancipadas. Um dia e toda a maldição indecisa, todas as divindades errantes, os crimes imprevisíveis, e poderei então dizer: Olhando para trás, nada no mundo vai nos querer deixar.

 

 

THÍCH QUNG ĐỨC

 

Sobre o suicídio ninguém indaga como seria a vida se ele tivesse sido evitado. Evitá-lo simplesmente era o desejo de todos. Quanto mal alguém seguiria causando a si mesmo ou aos outros, a moral não considera tais danos. Um corpo caído ao chão por falta de asas. A noite eterna dos barbitúricos. As cordas, as balas, os fornos. Os suicidas acreditam ser as prateleiras sagradas da biblioteca de Pandora. Os cadáveres são inocentados por uma comissão de cínicos. Quando não acreditamos em nada a vida se torna desprovida de eficácia. Nem a biologia ou a matemática provam nosso erro. Todos os santos são falsos. Todas as forças misteriosas alimentam o martírio. Um dia alguém quer apenas cair. Aceitamos a ambição quando ela nos eleva. Nada no mundo é idêntico ou contém em si uma suficiência de estímulos. Nada me diz que eu possa morrer ateando fogo a meu corpo ou me entupindo de barbitúricos. As mortes não abrem inquérito sobre suas dores. As combinações mais misteriosas da vida relutam em aceitar que a mística possa nos levar ao desequilíbrio. A tragédia humana é a santificação da arte. Alguma noite sempre anuncia o declínio da existência. Acendemos as velas, o espírito folheia o tempo, nada no mundo prospera. O meu coração não iluminou palavras suficientes para que todos compreendessem que o silêncio é parte do perigo de nossa extinção. A vida não venera a morte. A morte não venera a vida. Nós somos o único milagre sob o sol.

 

 

A DESCONHECIDA DO RIO SENA

 

Era para ser apenas isto. Uma divindade representando nossa vida. Um sintoma de como o homem necessita crer em algo que não corresponda à realidade. O ópio talvez tenha sido insuficiente. A escultura, a tinta, o verbo, nada se opôs à sua imaginação ao ponto de criar um mundo alheio a essas formas de outro modo inalcançáveis. Uma de nós esteve ali. Algumas outras jamais puderam imaginar que o rio por vezes fosse a perene restauração de um dilema. Quando um corpo é usufruto da abstração de uma dor, não importa o quanto esteja desmembrado. Uma escultura refeita, uma mitologia revista, uma inovação do mistério. Quantas vezes a máscara é uma arquitetura naufragada da existência humana? Seus lábios eram uma floresta de cogumelos e traços repletos de curvas. Já não recordo quantas vezes fiz de conta que era outras. A morte não tem o menor pudor quando a convertemos em arte.


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

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