À memória do velho
Floriano, meu pai
SALAS DE RECONHECIMENTO
1.
Sou eu: o nome, as letras
em que te arrastas, as perguntas que iniciam
a travessia de tua dor.
Noite inquieta sob escombros.
Delicado tambor das tormentas. Tua sombra vem
vindo
ao ninho de minhas sílabas errantes.
Tua sombra erguida. Intimidade de cinzas
onde a dor o lábio toca. Formas ressurgidas do
caos.
Prolongas teu ser em tudo o que me falta.
Noite submersa em tremores.
Esplendor de infernos devassados. Pousa tua
mão
na esfera crepitante de meus sentidos.
Uma prova: o livro que conduz
ao templo. Missal de cinzas. Teu corpo soprado
mil vezes,
a queimar mais e mais longe de ti.
2.
Sou eu: a morte,
as ruínas
de tua história, lugar onde ninguém mais te
escuta,
onde as pedras de fogo são polidas.
Tua sombra erguida, oculto fósforo
no desmaio dos sentidos. Os delicados jogos da
morte.
Assim escavas sob os pilares do tempo.
A treva em ti atingirá
a fonte de outra queda. Tumulto que eleva
tua vida acima de toda ruína.
Noite cerimonial do abismo.
Tuas ruínas respiram em meu canto. Mil nomes
segreda
o ar, ao cruzar as entradas invisíveis.
Aqui andei, entre as criaturas
dementes do mundo. Peregrino dentro de um
quadro.
Escrituras folheando o vento.
3.
Sou eu: o livro,
as vozes
de tua memória agitando os segredos do
silêncio,
tuas carnes devoradas pelo tempo.
Ressurges em mim. Ávida sentença de meus
dias nas trevas. Alma inacabada a sorrir das
formas
que engendro como portas ao absoluto.
Uma prova: as últimas chamas
evocadas. Braseiro confirmando a pele de teus
dias,
a suportar as figuras do vazio.
Noite nascendo em outra noite.
Por trás das colunas circulares, o fogo abriga
o livro
do invisível pranto de suas cinzas.
Aqui andei. Fomos um e todos.
Mascar o tempo é rito de alucinados. Os
episódios
virão dar todos nesta escura sala.
COLUNAS CIRCULARES
1.
Teu corpo se
confunde com o ar. A voz tem origem nas entranhas de um sonho. Sombras projetam
no corpo um denso mistério. A sala inteira se deixa tomar por esse mundo de
seivas e mananciais da inquietude. Uma música de névoas nos invade. Percorremos
as galerias de tua morte, meu pai. Como o próprio verbo, retornamos sempre de
um abismo.
2.
E aqui estou,
disforme e nu, abismado com a imensidão das sombras. As mil formas do vazio
querem gozar de minha intimidade. O silêncio que me atravessa é a prova
absoluta do amor. Mas quantos seremos? Quantas vezes nos tocamos uns aos outros?
O desconhecido mascara seus rostos e através deles busco teu espírito
imaginário. Abrigo onde a noite entra e sai. Na chama desse abismo silencioso
arderão as gazes de nossos secretos nomes. O centro da linguagem que se
inaugura além de toda espessura. Ali onde espalho as cinzas de nosso
entendimento.
3.
Caminho sobre os
ossos da terra. A quem julgam incriminar os tribunais da miséria? Que furiosas
trevas se ramificam na tez dos condenados? Caminho sobre navalhas cegas.
Revoada de espermas contamina todo ardor. Em que palácio de ódio se guarda a
lua negra para o amor? Caminho sobre a ferrugem dos velhos fornos do inferno.
Quantas fúrias sangrentas nos amaram sem medida? É uma loucura imaginar que
tudo isto se tenha passado conosco. Caminho sobre trapos de sentidos. Terra
ignota onde o horror multiplica seus rostos. Caminho sobre as dilatadas pupilas
do vazio. Serão livros ou dias o que deixo para trás?
4.
Desapareceste da
terra dias antes de nascer minha filha. Desde então pude invocar teu nome como o
de insinuante mistério que me queima as vestes do tempo. Servo de uma
indecifrável história, ouso invadir tua imagem, desvelar tua alma oculta no
cenáculo dos sacrifícios. Deixo a vida impregnar-me de sobressaltos, o trovão
das horas rabiscar linhas tensas em meus hábitos. Ao mesmo tempo minha filha
cresce. Areias me assaltam e tua memória delicadamente ameaça transfigurar
minhas quimeras. Julgo sermos o mesmo. Cenário obscuro de silhuetas de
estátuas: atrevemos a nos encontrar, em meio às tristes imóveis formas que
tomaram tantos queridos em nossa morada comum.
5.
Um pescador
arriscou teu nome, um tanto incrédulo do mito que acabara de pescar. Em que terras mais insólitas o acaso desova
suas crias? – imagino tenha se indagado. Soberano do inóspito, recolhi sua
pérola marcada pela eternidade, teu nome guardado em seu íntimo. Teia de
vestígios de nossa passagem pela terra, teu nome vindo do mar. Um Preto, um
Proteu, um Adão. Ou mesmo um Mínias, um Megareu, um Íaco. As letras ondulam e
minha inocência dá a elas vestes indevidas. Sombras assumem a forma do inferno.
Os resíduos de tua existência são cinzas, invisíveis suas entradas. Assim as
letras se transfiguraram e o pescador renegou sua ventura. O domínio, o clamor,
a derrota – tudo isto os nomes trazem em sua lei. Medito então sobre as leis de
teu asilo. Nossos nomes são um só: o que posso romper em mim que não seja
essência de uma dilaceração de teus anseios?
6.
Tempo lento, água
escura. Os corpos se tocam em seu murmúrio. Um jogo de letras invoca nossa
perplexidade. Tu, que te ocultas nas distâncias. Eu, que percorro o fulgor das
contradições. Água lenta, tempo escuro. Teus vultos são de cera. Uma túnica
sinistra me quer pronto para tais fantasmas. Os lamentos tocam um obscuro
instrumento. Em disforme sonoridade me interpretam, teu espírito avançando em
desigual tumulto. Tempo e água, lenta escuridão. A solidão cumpre seus rituais
de espera. Meu pai, meu pai. Ouço estalar teus murmúrios. Confessam-me a casa
ferida, espirais de turvo aniquilamento. Um jogo de letras apenas insinua
remissão: verbo e elemento nos arrastam por entre salas de reconhecimento.
7.
Fui um mago e a
magia surpreendia em mim suas flores de cinzas. Cerimoniosos anéis de fumaça,
círculos concêntricos da pólvora, o gesto vulgar das ilusões. Parte de mim,
invisível sopra em tuas entranhas, dando vida a tantos mortos. Os ninhos
estilhaçados de tuas visões contrastam com a imobilidade de nossos corpos. Os
labirintos são um tributo à ressurreição. Um sábio sussurra: a realidade é uma
erudição. Fui um mago impotente diante do fogo. Meu corpo passando através do
anel. O tecido do abismo provocando risos. Diante de ti, rompe o dique meu
torvelinho secreto. Fui um mago, um falcão, um andarilho. O movimento agora é
nossa ruína. Permaneçamos mortos.
8.
Uma astúcia
semelhante a Deus toca teu nome. As verdades são um tumulto sagaz. Um louco
grita fogo e as chamas tomam a forma dos desassossegos. Um livro de deleites na
simulada idade dos oráculos. O ouro lavrado da alma contagiada de divindades.
Vibra em iras o vento: demônios fazem teu corpo durar mais que o inferno. As
leis da vida são uma escala de evidências. Deixo-me envolver por meu próprio
sopro. Meu horror confunde-se com a verdade das sombras. Que mistérios pregamos
para que a vida se renda ante a custódia do barro? Que infâmia entenderá mais
de nós que a própria carne do abismo que amamos todos os dias? Um palimpsesto
outorga nossa idade sobre a terra. Estamos na lendarquivestante de nossa sagrada miséria: somos o espectro do
homem.
9.
Faz bem estarmos
aqui, o tempo ladeira acima. Os dias serão sempre propícios às cinzas. Um poeta
tem que vencer esse tremor de ilhas, ser um habitante de suas vertigens. Ir com
as joias do absurdo, discípulo do acaso. A pedra arde e nos diz terra. A água luz
e nos revela chamas. A poesia instaura um coração no vazio. Os ossos do dia são
tocados pelo absurdo. Uma árvore bem alta prenuncia nosso declínio: regressamos
à idade da luz que ilumina. Faz bem semear silêncio enquanto se fala.
10.
As chaves me foram
entregues. Cada recôndita sombra vagando pelo mundo deveria passar por aqui.
Façam silêncio. A linguagem busca um coro de insinuações. Os ardis do arbítrio
cumulam o homem de desertos: o sacrário das tormentas, o soalho das visões, o
verbo de tuas costelas, pai, a chaminé dos anseios, a casa e suas portas
entranhadas em cada gesto. Moramos no abismo, rodeado de répteis e sombras
aladas. Todos os deuses deveriam passar por aqui.
11.
Contudo, ainda
tenho que morrer. O relâmpago caviloso do ser nos honrará com a súmula de suas
ilusões. Páginas onde as sombras deslizam como répteis tomados por fervor
estelar. As almas insidiosas percorrem a vastidão carnal dos telhados. A prece
de ossos do abismo. Será o vento nosso único e grande escriba? Algumas últimas
chamas nos conduzem sempre a uma cidade alheia. Assim os livros são escritos.
12.
Uma vez teus
passos me cercam, outra o teu silêncio se aninha em minhas palavras. As
entradas se mantêm invisíveis. Algumas cicatrizes esquecidas riem maliciosas. O
tempo exala algum horror, ao desfocar as visões em que fomos entretecidos.
Sinistras, as máscaras declinam os detalhes de suas formas. Diante de ti, meu
pai, percebo o quanto somos de sombra e memória. Também nossos espíritos se
desfiguram: uma linguagem de cinzas acalanta os homens.
13.
O que fazemos? Os
invisíveis seres da poesia querem salvar a humanidade. No entanto, meu pai me
indaga se há no mundo algo a ser salvo. As feridas são a melhor página das
provocações. As desgraças inundam a alma de firmezas. Nossas metáforas estão
impregnadas de vertigens, mesmo que vagas noções do absurdo. Areias, por sobre
as quais seguimos em busca de torpes mitos, um dia acabam por nos engolir.
Contudo, meu pai, desfolhamos o obscuro a cada gesto: o eco de nossa sede de risos
e espantos não nos abandona. Posso ser tua sombra, Deus, víbora, leitor. O
mundo constantemente é salvo por essas terríveis contradições.
14.
Não tenho prática em morrer, suspirou a sombra recostada em uma das
colunas circulares. Abafei o grito, reconhecendo nela a minha própria voz.
Temos sonhado com isto durante toda nossa vida. Por que me afugenta agora este
pequeno fogo aceso em meu espanto? Crescem-me asas disformes. Durante livros a
vida espera em mim seu melhor momento: a sombra vindo recolher seus fragmentos,
as páginas marcadas de encanto e discórdia. E ouço agora tão-somente o ranger
dos dentes do infortúnio. Que louca faina nos reveste de lamentos? Jamais
estamos livres de nossas verdades.
15.
Nos desfazemos do
mundo a cada instante. As perdas em nós se iniciam muito antes de sua presença.
Os corpos despojados de sua queda não são mais do que um aquário da existência
humana. O degredo essencial das formas torna a poesia o mais errante dos
sintomas do ser. Estamos sós, meu pai. A dor queima e move nosso amor. Quanto
mais criamos, mais nos dissolvemos. Nenhum de nós está completo.
16.
Tua imagem
desfeita, busco agora outra sombra, a mesma, desdobrada em mil mortes. Reino de
vertigens da memória, o corpo procura por seu pai entre ossos e nomes. Selva de
signos desgarrados do sentido, procura por uma iluminada falha entre dois
mundos. Ainda pressinto a mesma catástrofe em teu sorriso, a mesma cela de
aflições e sombras em ruínas, o mesmo estancado curso de um rio imaginário.
Aberta a folhagem da noite, posso tocar tua imagem desfeita. Um mendigo, um
ladrão, um poeta. Meu pai, arrasta tua alma pela terra sangrenta, até que as
dores se exilem de tua memória.
17.
A mesma voz
sempre indaga se tudo está escrito. Um ruído estendido à tua porta. Outro foco
de fagulhas insiste em saber quantas são as colunas circulares. Rumores surgem
da terra, erguem abismos por toda a noite. Uma furiosa atração por estrondos
nos atormenta. Oh velho murmúrio, velha lei de escombros! Que me dirá o pai
desconhecido anunciando a taça de seus enigmas? As raízes se perdem em portas
carcomidas por ressurreições. A alma se multiplica em vermes que celebram seu
degredo. Por vezes o homem se sente feliz em não ser nada. Ignoro lugar e
instante em que me encontro contigo, o que se segue ao som de nosso impossível
diálogo. Ouçamos o que diz a morte. Abre o talismã de teus lamentos. Mostra em
teu peito onde está escrito que tudo se repetirá. Ouço a pancada seca do tempo
em nossas vértebras. A última palavra nos fará a todos mendigos.
18.
Há ossos por toda
a terra. Inunda-me este abrigo de ossos. A flauta de rumores de tua estirpe.
Atrevo-me a percorrer os limos de tua dor. Espíritos se divertem em criar
ilusões. Um asno se multiplica em sábios. Uma esfinge confessa seus artifícios.
O rosto selvagem de tua pobre estirpe. A raiz ensanguentada de teus delírios.
Meu pai, tua árvore se estende sobre o vazio. Cessa o poderio de tua queda
flamejante. O mundo se desdobra em tragédias e enigmas. As brancas ruínas de
tua estirpe. Somos os imortais ilhados em tua memória. Que dure a eternidade
cravada no seio de tuas formas. A pedra pálida de teu reino refeita em
mistérios sagazes. Um povo guardado em martírios. O domínio de cinzas de tua
miserável estirpe. Meu pai, como possuirmos o fogo, a sagração dos elementos? A
língua arrasta-se por tempestades, testemunha dos diálogos entre vida e morte.
Os imortais te odeiam, dementes que mascam a flor dos temporais. Os ossos
entulhados de tantos homens não aplacam a ira das cinzas. Falas do filho e selas
o abismo de tua voz. Aqui estou e os seres indagam por mim antes de morrer.
Entramos em ti pelo portal dos degredos. As negras formas da terra sofrem de
teu nome. Somos tua estirpe corroída. Meu pai, os fugitivos de Deus também te
odeiam. Temo igualmente desaparecer debaixo da terra.
19.
Os mortos caem do
nada. Seus corpos são restos de sombras. Uma pele de cinzas se desdobra em
aparições. Os mortos doem em palavras. Uma dama espantosa nos inicia em
máscaras e feridas. Tudo em nós se transtorna. Temos as entranhas açoitadas
pelo sangue de nossas palavras. Aos borbotões os sonhos se revelam emissários
de nossos destinos. As vozes nadam em ânsias. Que obscuro lodo nos rememora?
Que intangível surto de lamentos orienta nossos despojos? O fundamento do ser é
sua máscara. Caímos de tantas evidências. Um cadáver é uma escultura da
ausência. Tenho a dor em meu corpo. Tenho meu próprio canto. Nada dói mais que
a memória dissidente. Os mortos estão por chegar.
20.
Pai, os
vagabundos descrevem as dores do firmamento com sua própria carne. Apodrecem
invisíveis. Os deuses se encantam com o inferno. Nossa memória da terra
entrega-se a sacrifícios. Queremos o livro que nos descreva antes do tempo.
Estamos morrendo. Represento teu fim. Representas minha glória. O fim ressoa em
tremores. A glória mendiga entre tumbas. Rastejamos entre escombros. Como
explicar isto em versos consagrados à eternidade?
21.
Este é um velho
livro que o pranto escreve. Todo homem quer saber onde se distingue do pai.
Pressente as pisadas do passado, as inundações da alma, os declínios sutis da
memória, o lento desfigurar das imagens. Um livro se diverte em cruzar os
canais do esquecimento. Prolonga os tremores da plenitude. Somos os sombrios
escribas. Os que buscam reencontrar no vazio um instante de afago com a carne
de seus limites. Necessitamos de um céu, de ossos, de estados mortais. Tudo
isto estará disposto em livro, em sangrenta descendência de presságios. A
palavra é a única maneira de tocar o espírito, quando a chaga se instala em
nossas entranhas. Este é um velho livro, escrito muitas vezes. A dor dissimula
seu pranto, não seu conjuro.
ENTRADAS INVISÍVEIS
1.
Uma noite para
ti, meu pai. O abismo
descreve seus
mitos. Pedras e plumas causam
igual dano ao
amor. Um encanto deve
te guardar a alma
da queda. Apenas
uma noite, meu
pai. O submerso reino
de teus dias se
reflete em minha fronte.
A língua desfia
suas palavras secretas.
Um homem lendo um
livro e acendendo
os jardins do
sol, estalando as vozes febris,
o terno som dos
olhares e o enigmático
encontro com a
morte. O abismo unido
ao teu corpo.
Pássaros de fogo soletrando
o equilíbrio de
tua ausência. Uma noite,
pai, e tua sombra
é guardada por um raio.
2.
Um largo estrondo
e o corpo se desfaz.
Os rigores do som
devoram mito e ruínas.
A própria
essência do esquecimento
se esvai em ecos.
O homem não resiste
à treva da
memória. Dura em si apenas
o que não pode
destruir: a queda,
o fogo semelhante
à inacessível noite,
vozes
reconhecidas somente à distância.
Fezes de luzes, o
lamento de teu sangue.
O relâmpago abre
sua porta, invade o cego
destino que
irradia o homem submerso
em sua dor.
Desfaz-se o tempo. A terra
é removida de
cada corpo. Tudo é propício
a uma fome de
ossos. O homem apenas cai.
3.
Sinto o peso de
teu coração. Deuses respiram
em todas as
portas de meu ser. Guardo-me
no corpo de cada
um, onde ressoam as
palavras do fogo:
Aclamado pelo silêncio
tornei-me um deus. Agora, meu filho,
vago
por entre as tábuas de um mistério sem
fim.
Fulgor de trevas!
Por trás dessas colunas
circulares cada
um de nós arrasta sua pesada
urna lacrada em
agonia. O homem se
alimenta dos
laços fatais de seus delírios,
oh viajante das
chamas eternas! Por entre
as vértebras
agitadas da noite, um homem
segue os passos
de sua própria sombra.
Um homem e a sua
taça de intempéries.
4.
A sombra é um
secreto orgulho do sol.
Todo homem acusa
a sua própria de conspiração.
Um rosto voraz
revela um anjo furioso.
Meu pai, erras
glorificado e cego. Ouve o rumor
das vertigens:
estamos cercados por sombras
afeitas ao puro
azeite de nossas relíquias.
Os brancos
despojos do vazio circundam
as raízes do
morto. A terra profere
seus presságios:
O pai está guardado em ti.
Outra a treva de
teus dons. Recolho o ramo
de sua voz, o
espírito tomado por uma febre
de vidros. Que
deuses amar senão os perdidos?
O tempo se gasta
em oferendas. Os mitos
não superam
jamais suas alucinações.
5.
Meu pai
envelhecido diante do fogo,
árvore não mais
guardada em tremores.
Oh doce treva,
tua idade se extingue
para sempre? Que
obscuro cântico
afasta o homem do
júbilo de sua morte?
Terra e homem
diante do fogo, névoa
a voz das cinzas.
A língua não pode
conter sua imagem
derramada em cal.
Meu pai, com seu
pesado corpo alheio
ao tempo, parece
haver desnudado
o inferno,
aprendido as palavras com que
se faz o abismo
descarnar. Rodeado
por ávida
quietude, o fogo, eterno súdito
de impiedades,
rege o olhar do morto.
CODA
Cruzamos a tórrida zona da memória,
áspera e impura em sua degeneração, arrastados por uma antiga noção do tempo.
Tribo errante de solitários fantasmas. Volta ao teu mundo imperfeito, pai.
Devemos odiar a moral de tua queda. O futuro que inventas, mas que te negas a
habitar. Recuso-me a ser tua intolerável referência. Diante da morte, devo
abraçar em mim o golpe de meu próprio infortúnio. Tu és tão somente os
destroços de uma velha catedral. Reina o silêncio quando ecoa o mistério de teu
nome. Conserva-se ainda o mistério de tais sílabas? Ruínas do movimento, de
tuas ideias sangrando em meu corpo. Somos uma tribo agônica no flamejante curso
da história. Tudo está apenas começando.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
∞
Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
∞
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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