quarta-feira, 26 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Convulsiva taça dos desejos [escrito a quatro mãos com Leila Ferraz]

 

A memória nos reconhece por onde passamos.

ABRAXAS

 

UMA ALEGORIA OCIOSA

 

Os véus soletram a ondulação dos corpos que guardam.

Os véus encobrem o desejo adivinhado e alinhavam, descosturando as dobras do prazer.

São pequenos sopros de animais entalhados na pele do bosque.

Teus dedos tocam as rendas de minhas rendas e a cortina se abre para os pequenos animais que se agitam em rotas circulares.

As rendas são tendas soltas que se empinam por toda a encosta de nossos sonhos.

Dançamos nos umbrais das cavernas secretas que nos levam do céu ao inferno em uma viagem em voltas e revoltas.

Os véus revelam a volúpia de nossos lábios atiçados pela ventania noturna do deserto.

E damos significado às encostas dos corpos afivelados e presos, ajustados às próprias pregas.

Com a delicadeza de pequenos poços que vamos abrindo à medida da sede.

Enquanto sou tua montante, és a minha leveza, a minha cinestesia, o centro do meu ser e sou a poética pele do teu vestiário.

Óleos cumulam as vertigens de animais fosforescentes que trazemos dentro de cada mínimo gesto envolvente.

Latentes e latejantes, como poços implícitos nos códigos de seus significados.

Poços que modelam um ninho de raios e a torre circular de tua mais secreta teologia.

Nossos corpos ⎼ essas vestimentas aflitas ⎼ se alternam em liturgias que têm a espessura do tempo!

Nossa estação recôndita de minérios e vegetações, carregada de vapores que esmiúçam toda uma arquitetura do fogo.

Nossos estranhos corpos que já não se reconhecem, porque fundidos na magia dos odores.

Seiva de atritos, bulício de poros, frondosa selvageria de espumas, teus casebres me recebem como uma caravana de árvores.

Uma simples imagem: a primeira e derradeira, transbordando-se em múltiplas e infinitas formas, uma cosmogonia sem freios, uma fuga sem pautas.

Tetos fugazes, rotina transparente de espasmos, empórios de truques os mais flamejantes.

Em alquimias de sabores, essências e estranhos modelos atemporais, imagens que se transformam como jamais julguei fossem capazes, imagens que me invertem, tornando-me de criadora a atriz.

Rajada de fragmentos flutuantes de uma liberdade jamais imaginada.

Uma nebulosa de cintilantes cansaços que sonham com o extravio e sua repetição inesgotável.

Esta é a benção da repetição que não cessa.

O sentido primeiro da mínima vestimenta tatuada de minha alma, que pelos poros transborda como suores e noturnos amores, com seus ventos plenos e sóis em lugares absolutos.

Os véus remontam à natureza escafandrista de tudo quanto escreves em minha carne.

 

A CHAVE DO DESEJO

 

A lágrima adormecida após haver aprendido

a distinguir os vultos se arrastando dentro da máscara.

O mito exposto à própria fagulha. Ácido queimando as tuas visões.

Um flerte desprendido do truque de tantas preces.

Deita-me à sombra de teu pecado.

Mora em mim, ao menos até que a lágrima desperte.

 

Meu nome, em árabe, significa certa noite muito escura e calma na solidão do deserto.

Bêbado como um bâteau ivre rastejo aos pés dessa noite.

Um escorpião e seu exoesqueleto se arrastando nas areias geladas.

Procuro algo. Não sei o que encontrarei pela frente.

Jamais um oásis mitigará minha dor.

Quero uma presa tanto quanto um vampiro deseja uma nuca.

Um beijo mortal em fatal entrega.

Um enlace de constelações sensuais marcadas em meu destino.

Solitário escorpião arredio e impiedoso, sempre ameaçado pela queda.

Sou a antítese da abelha e um verdugo implacável.

Debato-me no espaço intermediário entre o cosmo e o caos.

E domino a natureza rebelde de seu ser.

 

Um pequeno sol aturdido no casulo da lágrima

devota suas noites a transbordar as imagens

de tantas salas que reproduzem os pigmentos da solidão.

Antes mesmo que elas atendam ao nosso chamado

encontro a tua natureza volátil brincando comigo entre um jardim e outro.

Ergo os tapetes de tua pele e rogo para que não me esqueças.

 

CARTAS MARÍTIMAS DE UM SONHO

 

As cartas sofrem quando o mar lhes atravessa a garganta.

São moedas deixadas a propósito na soleira dos enigmas.

 

Chego perto de uma charada.

Sinto o pulsar na soleira e o som das moedas.

Não me chegam, porém, as cartas.

Apenas as letras soltas das marés.

O propósito revira as confissões pelo avesso

e o carteiro deposita as cartas universalmente espalhadas.

 

Quando dei pela altura modificada da linha do horizonte

muitas letras já haviam desaparecido

e de tão ilegíveis as cartas representavam agora um enigma maior.

O mistério soletrava a angústia de alguém

que começara a dar pela falta

de fragmentos inomináveis de si mesmo.

 

Consigo captar as imperfeições das memórias inomináveis.

Tento agarrá-las e aprisioná-las no olhar enigmático de meu gato.

O cenário do vício devasta a nudez de meus pensamentos,

cujos resultados não poderiam ser mais estranhos.

Aprisionada nesta vastidão de Thalassa, tão nítida em meu sono.

 

Torno-me a prisioneira que alça voo levada por um guarda-chuva alado.

É o fim da idade dourada, no fígado de Prometeu.

Face a face eu me encontro em meu espelho.

Cruzo o voo migratório para além do horizonte que tu levantas.

 

Por que eu te veria assim, tão distante,

tão encerrada no mapa de minhas chamas,

no coroado labirinto de minhas entranhas?

 

Já liberta em cinzas leves, desmanchada em fuligem vulcânica,

vinda das lonjuras de algum estranho mensageiro.

 

Os cadernos da volúpia reescritos a cada agitação de lágrimas,

as termas acesas como um império contemplado pelo mistério do guarda-chuva.

A tua voz ritmada acompanhando as estrofes do fogo e os terraços do abismo.

 

Chamas divinatórias.

Chamas satânicas.

Chamas de pureza e susto.

Ardem no contato de nossos pergaminhos

que nos contam uma história ao contrário.

Aonde o fim nasce do inexistente começo do nada.

Esta branda metafísica de teu perfil,

Insólita figura a pairar sobre as letras de meu oceano.

 

Árvores elétricas antevendo o dilúvio.

Cartas espalhadas pelo dorso da floresta recurvada e exposta

aos teus olhares que devoram as pétalas de todas as pétalas,

em um ritual de sacrilégios.

Atalhos sangrados como último recurso

até o beiral de teu perfil, onde me aguardas com uma xícara de chá.

Vem para dentro do amanhecer.

Vem descansar o olhar no balanço barroco dessa insólita despedida.

Antes que o tempo deixe de ser um hábil refúgio.

Antes que as marés soprem sua fábula irrespirável.

Antes que as estrelas contem os pecados em ordem inversa à de seus sucessos.

 

Os pecados lambidos pelo desejo e que afloram em suores calcinados.

Um jorro sem fim até que peças para desfalecer ou morrer nos braços de teus próprios olhares.

Dois incandescentes papiros quase arruinados se consomem em fogo sobre a água.

E assim o homem superior não erra.

 

Mais uma moeda na areia.

Talvez uma anacrônica metáfora ou anedota de Creta.

Quem sabe do meu destino me devora.

 

Mais um desenlace do céu com a terra.

Talvez uma memória contaminada ou uma elipse inquieta.

Quem as minhas trevas navega me renasce.

 

Devo receber neste meu corpo um espírito xamânico ou um índio cego.

Talvez uma náiade perdida e prostituída.

Que vórtice louco me arrebata e de mim se apossa sem mais pudores!

Já não sou eu quem aqui demora.

Porém um fio da meada de um carretel de memórias.

 

Tudo volta a caminhar ao revés.

Como uma catapulta engolindo pedras.

Como um sigilo decorando as letras de seu silêncio impossível.

Como um lagarto regurgitando a evolução da espécie.

 

Nós dois ficamos aqui para ver as marés soluçando,

entregues ao reflexo de cada enigma que inscrevem na cambraia da areia.

Todas as janelas sorriem em nosso olhar.

 

LIMITES DO IMPONDERÁVEL

 

As letras proscritas são o aramaico da minha verve,

cujos ideogramas passaram pelo crivo dos tempos.

Estou sem em mim estar. Embora centrada e de seios nus

à espera de girinos que beberão meu leite afrodisíaco.

As sombras em plumas atapetam meus pés. Sozinhos.

Eles percorrem as sedas em busca do eixo perdido.

No poema os poetas são hermafroditas.

Algumas letras se reescrevem no tapete do horizonte.

Outras maculam o próprio nome para que ninguém as possa esquecer.

Símbolos lisérgicos degustam meus seios e a silhueta faminta de sua arquitetura.

No poema todos os corpos se fundem.

Mascamos as carnes da noite antes que se dispersem no tombadilho.

 

TRATADO DAS TRANSPARÊNCIAS

 

Eu sou o teu beijo esquecido

nas pedras mais negras do abismo.

A fantasia de teu reencontro

com os deuses assustados com sua última estada entre humanos.

As tuas anotações de temperatura

em que os metais cobram a memória de suas mais antigas formas.

 

Eu sou o canto das cigarras em calma imensa.

As lágrimas da Aurora ainda molhadas.

Os cabelos brancos da Via Láctea.

Um canto sem deter-me por nada.

Eu sou um círculo que deu à luz nas asas da borboleta.

Um costume perfumado de humores alternados.

Minhas letras movem a lua de um lado para o outro procurando a natureza.

Destemperada, derrubo as sombras de prata.

Eu recolho todos os sons dos vagalumes quando a memória de suas antigas formas

são apenas as gotas de chuva nas folhagens.

Meus ecos humanos voaram em beija-mãos.

 

Por vezes eu fico por aqui a espiar o mundo retrocedendo.

Algumas cores se apuram dentro de si, outras subitamente se esfumam.

Eu devo achar uma conta perdida em cada colar,

uma pérola multiforme em um cativeiro de conchas.

Quantos saem de mim e me deixam ruminando os segredos mais recentes da morte.

Um soslaio, uma piscadela, asas requebradas dentro do voo.

Eu te escuto falando para dentro, mastigando o vento, zumbindo em meus instintos.

Quantas noites as formas celebram as sombras que libertaram?

 

Noites de inocência e de renascimento.

Dias de outono e retorno queimando como o incenso.

As rochas enlouqueceram e mergulham de fadiga sem pensarem no mar que grita.

E já não estás mais aqui para saborear as pérolas das ostras.

Não me escutes! Apenas abras as dores do silêncio porque é longo o dia através das janelas.

A boca aberta!

 

Dias repletos de sombras que soletram as palavras invertidas.

Noites de um silêncio que se desconhece enquanto perambula pelos sobrados.

Eu regurgito as tuas dádivas para tornar a saboreá-las.

A seiva com que me banhas o labirinto tem números dobrados ilegíveis.

Tu me antecipas com as raízes de teu nome.

Eu leio aos tropeços o que ainda não foi escrito.

O rio aberto!

 

Uma reversão do tempo em realidades inseparáveis.

E ainda assim não nos foge a vida.

Apenas caminha como nós caminhamos depois de ter visto as sombras de um dia.

O que nos torna transparentes?

 

Eu te recomeço, a cada lágrima que percorre teus seios.

A todo instante emudeces quanto toco teu enxame de súplicas.

Eu te recomeço na origem de todos os sentidos.

 

Com uma lanterna na mão adentramos a intimidade das águas.

 

O rio verdeja como a tua voz exilada da tempestade.

Eu rumorejo em tuas jazidas, até que me peças para te recomeçar uma vez mais.

O mar aberto!

 

A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO

 

A minha alma avulta seus planos quando nela te vejo refletida,

como um relâmpago ao ser despistado reflete teu beijo ali foragido.

Esculturas de carnes molhadas refletem suas almas em rendas,

como um lago rasgado pelo relâmpago revela um desejo sagrado.

A caminho do abismo os reflexos entoam um mantra esquecido,

como um ofertório entoa uma descarga de sussurros em cada ninho decifrado.

Um beijo em bocas desmaiadas a galope restaura o ossuário do espanto,

como se houvéssemos abandonado o tempo a carpir solitário seu destino.

De um extremo a outro de teu corpo semeei caravanas de um mesmo absurdo,

como quem altera a rota do desejo e reescreve os papiros de uma saga desconhecida.

Pérolas e cerejas cravejadas na areia.

Bocas de ostras aos poucos tragadas.

Tudo é sal cintilante, deixando vestígios e pegadas.

Já não há o que ocultar, as grutas foram defloradas.

Um sabor de matizes misturados a aromas desconhecidos revela uma cartilha de gozos jamais escrita.

O que era um signo adivinhado agora é um olhar desvairado.

Corpos que não mais se contêm.

Membros convulsionados.

Prazer que ultrapassa os limites dos espaços conformados.

Estamos condenados ao desterro dos desejos.

Submissos aos selvagens instintos dos desterrados.

Não há lugares possíveis para quantos de nós cruzem suas taras mais devotas.

Condenados a cada nova safra de errâncias.

Alimentados pelo êxodo de tantas quimeras que rastreiam sua permanência no abismo oceânico,

nos sítios mais imprevisíveis em que comungamos insolentes desvarios.

Suspensa me vejo.

Erguida pelos teus dedos ousados que me penetram e elevam como se o corpo do amor uma pluma fosse.

E me pintas as auréolas de púrpura e os lábios de vulva escarlate.

Tens dedos de batom e hálito de almíscar.

Já não sabemos em que plano copulamos e nem qual reino habitamos.

Somos seres proscritos para sempre banidos.

Somos luzes capinando uma variação de escalas muito além do tempo.

Somos deuses, larvas, umidades promíscuas, anzóis viciados de um tear de crimes aquáticos.

Esferas contraídas alimentando os olhos que se multiplicam em teus penetrantes dedos.

Somos um ninho de espirais ovuladas antes que as trevas retornem a seu pasto.

Sorvo os últimos orvalhos de lucidez antes de banir meus tênues vestígios de razão.

Não há mais caminhos. Nem atalhos. Nem indícios.

Joguei-me cega de entrega em entrega até perder os sentidos.

Já não serei quem fui e aqui não estou.

O espaço ampliou-se imenso e irreversível.

Mergulho no infinito. Perdi-me em seu sem fim.

Eu te recrio em meu ser, abrindo a tua carne para te ler por dentro.

E o que leio é uma fábula recortada nos grandes lábios do horizonte.

Um escaravelho vaga pela eternidade perdida, assombrado ainda com a altura de teus mamilos redecorando as miragens.

Aceite meu sono e desmaio.

Meus olhos te dizem adeus.

Por hoje adormecem meninos.

Estes olhos de tantos quereres.

A noite suspira recontando seus mistérios.

Meus beijos anotam o que farão contigo.

Dorme, que eu não conto a ninguém onde estamos.

 

ALGAS DO DESTERRO

 

A superfície salgada de minhas taras arrasta para as profundezas de teu corpo sintonias errantes.

Tenho que fechar a janela para que não vás junto com o grito.

Não é um grito, é uma espécie de canto.

Um encanto em um pranto santo.

Como o vento arrepiando uma cauda de escamas.

Como uma sereia enchendo o mar de espanto.

Como uma grega debulhando conchas na pele do vento.

As tuas fábulas descamam a paisagem em pelo.

As tuas tréguas soluçando por novas batalhas.

Espumas abrindo os lábios dos mares em vertigens.

Gotejas um sal alucinado pelas imagens que descarnas em meu corpo.

Levemente escorres por entre meus dedos, fingindo novas paisagens por onde passas.

Velas ao vento em busca de manobras ainda mais perigosas.

Que desespero tocar teu corpo e não senti-lo!

 

O CÉU DESFEITO EM FÁBULA

 

Garoa. Vai e vem.

A velhice aliou-se ao pecado da preguiça

e travou os cadeados de meu corpo.

Sufocado nas prisões das peles,

algo em mim perdeu as forças de minhas conjurações mágicas.

Artaud cravou seu corpo fraco em meu esqueleto.

Já pouco sei da espessura da terra

e dos planos moles do mar apenas as areias suaves enobrecem o céu de intuições e intenções.

Um teatro de crueldades, se eu penso melhor.

Os mares por vezes são bagaços de uma viagem que nunca fizemos.

Os pesadelos ocultam em fundo falso uma riqueza que desconhecemos.

As fábulas são um pequeno capricho da imaginação.

Lírica de fogo, os telhados retocando a paisagem com suas asas.

Os véus de teus cílios dispostos a me conduzirem a um rito onde o inferno não tem lugar.

Poucas cavernas ainda resistem ao desejo de abrigar a minha alma.

Nem as palavras ciliares vertendo de meus olhos escorrem por minhas mãos,

onde a morte se mostra a cada segundo

em iguais caprichos da imaginação.

Saio martirizada desta estante elétrica onde os livros me esperam.

A dor firme da juventude ainda me chama.

E nem de escondê-la entre minhas pernas sou capaz.

Sequer para acalmar a minha morte.

Despedaço-me em páginas entre feridas e iradas.

Um capuz do céu abriga essa liturgia corrosiva que me traga o tempo.

A velhice é uma saliência gasta na madeira.

Um arado abandonado. Um caligrama ilegível.

Movo o que me resta de virtude, até que a imaginação se cale.

 

PRATELEIRAS DA INSÔNIA

 

Comecei a escrever um poema em sequência.

Há fantasmas rondando meus cabelos.

Lembranças costuradas no tapete de nuvens que cobre o céu.

Minhas dores sobem e descem as escadas com um lustre nas mãos.

Esvazio pela boca todos os pensamentos

e o que resta é um cérebro rendado e ausente,

um desenho flutuando pelas folhas do meu chá.

És a esfinge que olha de um penhasco distante as minúcias dos tempos trançados.

Seríamos outros se não fôssemos nós.

Seríamos um sentido em setas sem certezas.

Um alísio nas fronteiras dos ventos.

Os pontos cardeais entre planetas e estrelas.

O som da concha envolvendo os batéis.

Se não fôssemos quem somos os espelhos teriam que aprender a viver sem nós.

E sem eles seríamos uma presa fácil de nossas imagens.

De algum modo as esfinges não sabem romper o casulo dos espelhos em que se ocultam.

Tampouco fazemos a menor ideia do que eles pensam a nosso respeito.

Eles nos fitam ao contrário do que somos.

Invertem a razão pela emoção e sem contar o mínimo segredo revelam os signos em transmutação.

E são irônicos justamente porque sabem que desconhecemos o reflexo de cada mínimo gesto nosso.

E se estilhaçam a um simples olhar cravado no coração.

Guardam em si a severa ironia do ícone que fingimos ser,

lacram o revés de tudo o que projetamos como nossa existência comum.

E impossíveis de se verem decidem já o começo e o fim desse trajeto que existe apenas no lacre das palavras,

nos sonhos inaudíveis e nos momentos em que os passos se perdem de seus pés.

E se desfazem em rastros que se confundem e erram por entre pernas que se desconhecem

e simplesmente borram as linhas que sugerem uma saída ou uma nova rota.

Os espelhos desfocam seus contornos em aquarelas.

Lábios delicados de aromas e mãos que desatam em nós.

E somem no interior de um abismo que afiançamos como nossa única fonte de vida.

A escura e fria escultura da noite modelada aos toques,

dedilhada aos cegos e velada às bocas de quem fala deslizando um poema pelos dedos fugindo pelas teclas de um piano noturno.

A vigília vela a nossa própria sombra já sem dor.

Os espelhos não cansam de nos lembrar que seríamos outros se não fôssemos nós.

 

VITRAIS REFLETIDOS NO VINHO SE CONFUNDEM COM OS OLHOS DE UM DEUS BUSCANDO O INVISÍVEL

 

Jamais poderás me tocar.

Jamais poderás penetrar teu olhar e cravá-lo na superfície de meu corpo.

Fala das profundezas de Dante.

Das jornadas infinitas de Ulisses e do Cabo das Tormentas.

O beijo distante.

O beijo solto que procura os lábios sem paradeiros.

O sorriso da taça de vinho esmagada em uma cerimônia sagrada.

É intensa a saudade daqueles a quem foram negados os direitos de se tocarem.

Entre eles, uma nuvem tatuada em um grande transparente trincado

e o rosto rezado em prece silenciosa. Jamais. Jamais poderás me ver.

 

Jamais poderás me encontrar.

Jamais poderás alcançar a vertigem que mendigam os corpos por onde passo.

Repleta de cidades sangrentas e desmaios

que nomeiam os assassinos de cada momento desprendido de si sem o gozo da correspondente intensidade.

As dores fixas na memória como punhais que narram a palidez de tantas lâminas.

As luvas escondidas em criados-mudos extraviados na catástrofe de quartos de motel.

Uma fome flutuando por entre todas as máscaras

e a hora aparentemente sagrada em que sonhas comigo. Jamais.

Jamais poderás me escutar.

 

Jamais visitarei a espiral do castelo.

Porque travei os passos dos demônios na torre de Babel.

Que canções cantam as Sereias ou a que nome responde a viúva de Hierofante?

Ofereci-me em sacrifício sem súplicas ou temores.

Sou uma Musa da velha Idade da Pedra.

E sei declamar e cantar os versos na linguagem da verdadeira poesia.

Mesmo agora sendo eu quem sou ⎼ a filha predileta da Grande Mãe Terra ⎼, vislumbro quanto enevoada é esta vida quando lhe falta um doce leito de amor.

Apenas a neve recobre meu corpo sem idades e já destituído de vinho e ambrosias.

O vento frio me assopra rumores estranhos.

As sombras desmaiam, mais fracas ao se verem espelhadas.

E passam a ser breves escudos de lucidez.

Acolhidas nos braços alçados da Grande Mãe Árvore.

Tresloucada de desejos balançando seus braços.

Ecoando por seu tronco até aos pés de seu amor deitar um fruto agonizante de amor.

Fui raptada pelo desespero até o impossível.

 

Procurei os segredos do Abismo por todas as chagas,

reli os velhos mapas dos tormentos mais antigos.

Vasculhei o relato dos sismógrafos e a conclusão a que chegaram as cicatrizes estabelecidas em teu corpo.

Indistinguíveis vozes se embaralham em tua boca como uma orgia de sombras.

As minhas noites se abriram ecoadas pela semelhança do que jamais pude encontrar em teus braços.

A terra transfigurada. Os presságios nublados. O excesso criado pelos vizinhos como uma anedota fugaz.

A tua acústica sempre esteve ali à espera de meu silêncio.

O que houve de mais precioso em nosso acaso se esvai irrecuperável.

E não te escrevo as mais prediletas tintas porque as mesas não pousam no bosque que um dia semeamos para a colheita de nossos aromas.

Eu também fui raptado pelas marés afogadas do intangível.

 

Envio-te um camafeu: meu perfil sem enigmas.

Um aproximar de lembranças que eram nossas antes de nos conhecerem.

E se encontraram após muitas vertigens e despedidas.

Memórias ancestrais de nossas cartas em outras eras.

Apenas pequenas memórias em busca do esplendor!

 

Envio-te o desvario de minhas pernas flanando em um labirinto de assombros.

As línguas entrelaçadas de uma aposta no teatro fetal de nosso amor.

O pólen repercutido sob a pele de muitos sóis

e a fabulação insuspeita do universo que cavamos em nosso abraço.

Uma memória muito além de tudo o que já vivemos.

 

Amo as madrugadas silenciosas e precipitantes.

Amo o silêncio das noites sem luas ou estrelas.

Amo o frio que envolve meu corpo nu.

Cavalgando dedos entrelaçados por desejos.

Amo sentir mãos imaginárias tatuando suas imagens em meu ventre.

E lábios molhados devolvendo o leite de meus seios.

Amo as pernas distantes que se aproximam eternamente sem as minhas encontrarem.

Amo a intenção do desejo na iminência de seu gozar.

Amo as imagens que provocam estalos de línguas e gritos sufocados em gemidos.

Sou toda fantasia em Veneza. Um carnaval de rimas carnais.

 

Amo as tuas pernas devorando as minhas como raízes evocadas para a cerimônia de acasalamento da floresta.

Amo a realidade de meus dedos curiosos revirando a caixa de música de teu ventre.

Amo os teus casebres escorados na agulha dos precipícios.

Amo as pedras com que o fogo escreve teu nome em meu dorso,

e o Teide que sabes explorar no fulgor de meus sonhos.

As hordas de orgasmos prometidos à fonte de tantas vertigens.

O que não se pode exilar de tanto exílio.

O que não cabe em si de tanto desígnio.

As vértebras pressentidas do quanto te desejo tocar.

A incontornável diversidade de tudo quanto ambiciono em tua totalidade.

Sou as tuas horas surpreendidas, o alerta de tua inquietude.

 

Amo as horas que se ocultam atrás de lápis-lazúli.

Amo as agulhas que penetram minha carne.

E os esconderijos de máscaras em Veneza.

Amo o instante mesmo por um simples torpor.

Articulo o teu encantamento em um prato de prata quebrado sobre a mesa.

Leito pintado de uma sombra precipitada.

E a nossa fuga através dos jardins perfumados.

Sou uma escrava fiel amarrada aos teus pés de fogo-fátuo e sangue.

Temos a missão de advertir os amantes sobre as escapadas noturnas sempre protegidas pelo entorpecimento da longa madrugada.

Nas esquinas das línguas residem as poções mágicas das pequenas mortes.

Nas quais nos precipitamos cegos e destemidos.

Sem os sobressaltos das culpas.

Acordados e surpreendidos como dois animais.

Nossos olhos se entregam e se devoram após nossa batalha ao pé do mar.

 




 

 


LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica, ensaísta e tradutora. Foi uma das organizadoras da 13ª Expo Surrealista Internacional em São Paulo (1967). Nessa época fez duas viagens a Paris e teve um encontro cativante com alguns membros do grupo surrealista francês. Publicou os livros Cometas e Poemas Plásticos. Participou da exposição surrealista “As Chaves do Desejo” (Costa Rica, Cartago, 2016).

 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

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