A memória nos reconhece por onde
passamos.
ABRAXAS
UMA ALEGORIA OCIOSA
Os véus soletram a ondulação dos corpos que
guardam.
Os véus encobrem o desejo adivinhado e
alinhavam, descosturando as dobras do prazer.
São pequenos sopros de animais entalhados na
pele do bosque.
Teus dedos tocam as rendas de minhas rendas e
a cortina se abre para os pequenos animais que se agitam em rotas circulares.
As rendas são tendas soltas que se empinam por
toda a encosta de nossos sonhos.
Dançamos nos umbrais das cavernas secretas que
nos levam do céu ao inferno em uma viagem em voltas e revoltas.
Os véus revelam a volúpia de nossos lábios
atiçados pela ventania noturna do deserto.
E damos significado às encostas dos corpos
afivelados e presos, ajustados às próprias pregas.
Com a delicadeza de pequenos poços que vamos
abrindo à medida da sede.
Enquanto sou tua montante, és a minha leveza,
a minha cinestesia, o centro do meu ser e sou a poética pele do teu vestiário.
Óleos cumulam as vertigens de animais
fosforescentes que trazemos dentro de cada mínimo gesto envolvente.
Latentes e latejantes, como poços implícitos
nos códigos de seus significados.
Poços que modelam um ninho de raios e a torre
circular de tua mais secreta teologia.
Nossos corpos ⎼ essas vestimentas aflitas ⎼ se alternam em liturgias que têm a espessura
do tempo!
Nossa estação recôndita de minérios e
vegetações, carregada de vapores que esmiúçam toda uma arquitetura do fogo.
Nossos estranhos corpos que já não se
reconhecem, porque fundidos na magia dos odores.
Seiva de atritos, bulício de poros, frondosa
selvageria de espumas, teus casebres me recebem como uma caravana de árvores.
Uma simples imagem: a primeira e derradeira,
transbordando-se em múltiplas e infinitas formas, uma cosmogonia sem freios,
uma fuga sem pautas.
Tetos fugazes, rotina transparente de
espasmos, empórios de truques os mais flamejantes.
Em alquimias de sabores, essências e estranhos
modelos atemporais, imagens que se transformam como jamais julguei fossem
capazes, imagens que me invertem, tornando-me de criadora a atriz.
Rajada de fragmentos flutuantes de uma
liberdade jamais imaginada.
Uma nebulosa de cintilantes cansaços que
sonham com o extravio e sua repetição inesgotável.
Esta é a benção da repetição que não cessa.
O sentido primeiro da mínima vestimenta
tatuada de minha alma, que pelos poros transborda como suores e noturnos
amores, com seus ventos plenos e sóis em lugares absolutos.
Os véus remontam à natureza escafandrista de
tudo quanto escreves em minha carne.
A CHAVE DO DESEJO
A lágrima adormecida após haver aprendido
a distinguir os vultos se arrastando dentro da
máscara.
O mito exposto à própria fagulha. Ácido
queimando as tuas visões.
Um flerte desprendido do truque de tantas
preces.
Deita-me à sombra de teu pecado.
Mora em mim, ao menos até que a lágrima
desperte.
Meu nome, em árabe, significa certa
noite muito escura e calma na solidão do deserto.
Bêbado como um bâteau ivre rastejo aos pés dessa noite.
Um escorpião e seu exoesqueleto se
arrastando nas areias geladas.
Procuro algo. Não sei o que
encontrarei pela frente.
Jamais um oásis mitigará minha dor.
Quero uma presa tanto quanto um
vampiro deseja uma nuca.
Um beijo mortal em fatal entrega.
Um enlace de constelações sensuais
marcadas em meu destino.
Solitário escorpião arredio e
impiedoso, sempre ameaçado pela queda.
Sou a antítese da abelha e um verdugo
implacável.
Debato-me no espaço intermediário
entre o cosmo e o caos.
E domino a natureza rebelde de seu
ser.
Um pequeno sol aturdido no casulo da lágrima
devota suas noites a transbordar as imagens
de tantas salas que reproduzem os pigmentos da
solidão.
Antes mesmo que elas atendam ao nosso chamado
encontro a tua natureza volátil brincando
comigo entre um jardim e outro.
Ergo os tapetes de tua pele e rogo para que
não me esqueças.
CARTAS MARÍTIMAS DE UM SONHO
As cartas sofrem quando o mar lhes atravessa a
garganta.
São moedas deixadas a propósito na soleira dos
enigmas.
Chego perto de uma charada.
Sinto o pulsar na soleira e o som das moedas.
Não me chegam, porém, as cartas.
Apenas as letras soltas das marés.
O propósito revira as confissões pelo avesso
e o carteiro deposita as cartas universalmente
espalhadas.
Quando dei pela altura modificada da linha do
horizonte
muitas letras já haviam desaparecido
e de tão ilegíveis as cartas representavam
agora um enigma maior.
O mistério soletrava a angústia de alguém
que começara a dar pela falta
de fragmentos inomináveis de si mesmo.
Consigo captar as imperfeições das memórias
inomináveis.
Tento agarrá-las e aprisioná-las no olhar
enigmático de meu gato.
O cenário do vício devasta a nudez de meus
pensamentos,
cujos resultados não poderiam ser mais
estranhos.
Aprisionada nesta vastidão de Thalassa, tão
nítida em meu sono.
Torno-me a prisioneira que alça voo levada por
um guarda-chuva alado.
É o fim da idade dourada, no fígado de
Prometeu.
Face a face eu me encontro em meu espelho.
Cruzo o voo migratório para além do horizonte
que tu levantas.
Por que eu te veria assim, tão distante,
tão encerrada no mapa de minhas chamas,
no coroado labirinto de minhas entranhas?
Já liberta em cinzas leves, desmanchada em
fuligem vulcânica,
vinda das lonjuras de algum estranho
mensageiro.
Os cadernos da volúpia reescritos a cada
agitação de lágrimas,
as termas acesas como um império contemplado
pelo mistério do guarda-chuva.
A tua voz ritmada acompanhando as estrofes do
fogo e os terraços do abismo.
Chamas divinatórias.
Chamas satânicas.
Chamas de pureza e susto.
Ardem no contato de nossos pergaminhos
que nos contam uma história ao contrário.
Aonde o fim nasce do inexistente começo do
nada.
Esta branda metafísica de teu perfil,
Insólita figura a pairar sobre as letras de
meu oceano.
Árvores elétricas antevendo o dilúvio.
Cartas espalhadas pelo dorso da floresta recurvada
e exposta
aos teus olhares que devoram as pétalas de
todas as pétalas,
em um ritual de sacrilégios.
Atalhos sangrados como último recurso
até o beiral de teu perfil, onde me aguardas
com uma xícara de chá.
Vem para dentro do amanhecer.
Vem descansar o olhar no balanço barroco dessa
insólita despedida.
Antes que o tempo deixe de ser um hábil
refúgio.
Antes que as marés soprem sua fábula
irrespirável.
Antes que as estrelas contem os pecados em
ordem inversa à de seus sucessos.
Os pecados lambidos pelo desejo e que afloram
em suores calcinados.
Um jorro sem fim até que peças para desfalecer
ou morrer nos braços de teus próprios olhares.
Dois incandescentes papiros quase arruinados
se consomem em fogo sobre a água.
E assim o homem superior não erra.
Mais uma moeda na areia.
Talvez uma anacrônica metáfora ou anedota de
Creta.
Quem sabe do meu destino me devora.
Mais um desenlace do céu com a terra.
Talvez uma memória contaminada ou uma elipse
inquieta.
Quem as minhas trevas navega me renasce.
Devo receber neste meu corpo um espírito
xamânico ou um índio cego.
Talvez uma náiade perdida e prostituída.
Que vórtice louco me arrebata e de mim se
apossa sem mais pudores!
Já não sou eu quem aqui demora.
Porém um fio da meada de um carretel de
memórias.
Tudo volta a caminhar ao revés.
Como uma catapulta engolindo pedras.
Como um sigilo decorando as letras de seu
silêncio impossível.
Como um lagarto regurgitando a evolução da
espécie.
Nós dois ficamos aqui para ver as marés
soluçando,
entregues ao reflexo de cada enigma que
inscrevem na cambraia da areia.
Todas as janelas sorriem em nosso olhar.
LIMITES DO IMPONDERÁVEL
As letras proscritas são o aramaico da
minha verve,
cujos ideogramas passaram pelo crivo
dos tempos.
Estou sem em mim estar. Embora
centrada e de seios nus
à espera de girinos que beberão meu
leite afrodisíaco.
As sombras em plumas atapetam meus
pés. Sozinhos.
Eles percorrem as sedas em busca do
eixo perdido.
No poema os poetas são hermafroditas.
Algumas letras se reescrevem no tapete
do horizonte.
Outras maculam o próprio nome para que
ninguém as possa esquecer.
Símbolos lisérgicos degustam meus
seios e a silhueta faminta de sua arquitetura.
No poema todos os corpos se fundem.
Mascamos as carnes da noite antes que
se dispersem no tombadilho.
TRATADO DAS TRANSPARÊNCIAS
Eu sou o teu beijo esquecido
nas pedras mais negras do abismo.
A fantasia de teu reencontro
com os deuses assustados com sua última estada
entre humanos.
As tuas anotações de temperatura
em que os metais cobram a memória de suas mais
antigas formas.
Eu sou o canto das cigarras em calma imensa.
As lágrimas da Aurora ainda molhadas.
Os cabelos brancos da Via Láctea.
Um canto sem deter-me por nada.
Eu sou um círculo que deu à luz nas asas da
borboleta.
Um costume perfumado de humores alternados.
Minhas letras movem a lua de um lado para o
outro procurando a natureza.
Destemperada, derrubo as sombras de prata.
Eu recolho todos os sons dos vagalumes quando
a memória de suas antigas formas
são apenas as gotas de chuva nas folhagens.
Meus ecos humanos voaram em beija-mãos.
Por vezes eu fico por aqui a espiar o mundo
retrocedendo.
Algumas cores se apuram dentro de si, outras
subitamente se esfumam.
Eu devo achar uma conta perdida em cada colar,
uma pérola multiforme em um cativeiro de
conchas.
Quantos saem de mim e me deixam ruminando os
segredos mais recentes da morte.
Um soslaio, uma piscadela, asas requebradas
dentro do voo.
Eu te escuto falando para dentro, mastigando o
vento, zumbindo em meus instintos.
Quantas noites as formas celebram as sombras
que libertaram?
Noites de inocência e de renascimento.
Dias de outono e retorno queimando como o
incenso.
As rochas enlouqueceram e mergulham de fadiga
sem pensarem no mar que grita.
E já não estás mais aqui para saborear as
pérolas das ostras.
Não me escutes! Apenas abras as dores do
silêncio porque é longo o dia através das janelas.
A boca aberta!
Dias repletos de sombras que soletram as
palavras invertidas.
Noites de um silêncio que se desconhece
enquanto perambula pelos sobrados.
Eu regurgito as tuas dádivas para tornar a
saboreá-las.
A seiva com que me banhas o labirinto tem
números dobrados ilegíveis.
Tu me antecipas com as raízes de teu nome.
Eu leio aos tropeços o que ainda não foi
escrito.
O rio aberto!
Uma reversão do tempo em realidades inseparáveis.
E ainda assim não nos foge a vida.
Apenas caminha como nós caminhamos depois de ter visto as sombras de um
dia.
O que nos torna transparentes?
Eu te recomeço, a cada lágrima que percorre
teus seios.
A todo instante emudeces quanto toco teu
enxame de súplicas.
Eu te recomeço na origem de todos os sentidos.
Com uma lanterna na mão adentramos a
intimidade das águas.
O rio verdeja como a tua voz exilada da
tempestade.
Eu rumorejo em tuas jazidas, até que me peças
para te recomeçar uma vez mais.
O mar aberto!
A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO
A minha alma avulta seus planos quando nela te vejo refletida,
como um relâmpago ao ser despistado reflete teu beijo ali foragido.
Esculturas de
carnes molhadas refletem suas almas em rendas,
como um lago
rasgado pelo relâmpago revela um desejo sagrado.
A caminho do abismo
os reflexos entoam um mantra esquecido,
como um ofertório
entoa uma descarga de sussurros em cada ninho decifrado.
Um beijo em bocas desmaiadas a galope restaura o ossuário do espanto,
como se houvéssemos abandonado o tempo a carpir solitário seu destino.
De um extremo a outro de teu corpo semeei caravanas de um mesmo absurdo,
como quem altera a rota do desejo e reescreve os papiros de uma saga
desconhecida.
Pérolas e cerejas cravejadas na areia.
Bocas de ostras aos poucos tragadas.
Tudo é sal cintilante, deixando vestígios e pegadas.
Já não há o que ocultar, as grutas foram defloradas.
Um sabor de matizes misturados a aromas desconhecidos revela uma
cartilha de gozos jamais escrita.
O que era um signo adivinhado agora é um olhar desvairado.
Corpos que não mais se contêm.
Membros convulsionados.
Prazer que ultrapassa os limites dos espaços conformados.
Estamos condenados ao desterro dos desejos.
Submissos aos selvagens instintos dos desterrados.
Não há lugares possíveis para quantos de nós cruzem suas taras mais
devotas.
Condenados a cada nova safra de errâncias.
Alimentados pelo êxodo de tantas quimeras que rastreiam sua permanência
no abismo oceânico,
nos sítios mais imprevisíveis em que comungamos insolentes desvarios.
Suspensa me vejo.
Erguida pelos teus dedos ousados que me penetram e elevam como se o
corpo do amor uma pluma fosse.
E me pintas as auréolas de púrpura e os lábios de vulva escarlate.
Tens dedos de batom e hálito de almíscar.
Já não sabemos em que plano copulamos e nem qual reino habitamos.
Somos seres proscritos para sempre banidos.
Somos luzes capinando uma variação de escalas muito além do tempo.
Somos deuses, larvas, umidades promíscuas, anzóis viciados de um tear de
crimes aquáticos.
Esferas contraídas alimentando os olhos que se multiplicam em teus
penetrantes dedos.
Somos um ninho de espirais ovuladas antes que as trevas retornem a seu
pasto.
Sorvo os últimos orvalhos de lucidez antes de banir meus tênues
vestígios de razão.
Não há mais caminhos. Nem atalhos. Nem indícios.
Joguei-me cega de entrega em entrega até perder os sentidos.
Já não serei quem fui e aqui não estou.
O espaço ampliou-se imenso e irreversível.
Mergulho no infinito. Perdi-me em seu sem fim.
Eu te recrio em meu ser, abrindo a tua carne para te ler por dentro.
E o que leio é uma fábula recortada nos grandes lábios do horizonte.
Um escaravelho vaga pela eternidade perdida, assombrado ainda com a
altura de teus mamilos redecorando as miragens.
Aceite meu sono e desmaio.
Meus olhos te dizem adeus.
Por hoje adormecem meninos.
Estes olhos de tantos quereres.
A noite suspira recontando seus mistérios.
Meus beijos anotam o que farão contigo.
Dorme, que eu não conto a ninguém onde estamos.
ALGAS DO DESTERRO
A superfície salgada de minhas taras arrasta para as profundezas de teu
corpo sintonias errantes.
Tenho que fechar a janela para que não vás junto com o grito.
Não é um grito, é uma espécie de canto.
Um encanto em um pranto santo.
Como o vento arrepiando uma cauda de escamas.
Como uma sereia enchendo o mar de espanto.
Como uma grega debulhando conchas na pele do vento.
As tuas fábulas descamam a paisagem em pelo.
As tuas tréguas soluçando por novas batalhas.
Espumas abrindo os lábios dos mares em vertigens.
Gotejas um sal alucinado pelas imagens que descarnas em meu corpo.
Levemente escorres por entre meus dedos, fingindo novas paisagens por
onde passas.
Velas ao vento em busca de manobras ainda mais perigosas.
Que desespero tocar teu corpo e não senti-lo!
O CÉU DESFEITO EM FÁBULA
Garoa. Vai e vem.
A velhice aliou-se ao pecado da preguiça
e travou os cadeados de meu corpo.
Sufocado nas prisões das peles,
algo em mim perdeu as forças de minhas conjurações mágicas.
Artaud cravou seu corpo fraco em meu esqueleto.
Já pouco sei da espessura da terra
e dos planos moles do mar apenas as areias suaves enobrecem o céu de
intuições e intenções.
Um teatro de crueldades, se eu penso melhor.
Os mares por vezes são bagaços de uma viagem que nunca fizemos.
Os pesadelos ocultam em fundo falso uma riqueza que desconhecemos.
As fábulas são um pequeno capricho da imaginação.
Lírica de fogo, os telhados retocando a paisagem com suas asas.
Os véus de teus cílios dispostos a me conduzirem a um rito onde o
inferno não tem lugar.
Poucas cavernas ainda resistem ao desejo de abrigar a minha alma.
Nem as palavras ciliares vertendo de meus olhos escorrem por minhas
mãos,
onde a morte se mostra a cada segundo
em iguais caprichos da imaginação.
Saio martirizada desta estante elétrica onde os livros me esperam.
A dor firme da juventude ainda me chama.
E nem de escondê-la entre minhas pernas sou capaz.
Sequer para acalmar a minha morte.
Despedaço-me em páginas entre feridas e iradas.
Um capuz do céu abriga essa liturgia corrosiva que me traga o tempo.
A velhice é uma saliência gasta na madeira.
Um arado abandonado. Um caligrama ilegível.
Movo o que me resta de virtude, até que a imaginação se cale.
PRATELEIRAS DA INSÔNIA
Comecei a escrever um poema em sequência.
Há fantasmas rondando meus cabelos.
Lembranças costuradas no tapete de nuvens que cobre o céu.
Minhas dores sobem e descem as escadas com um lustre nas mãos.
Esvazio pela boca todos os pensamentos
e o que resta é um cérebro rendado e ausente,
um desenho flutuando pelas folhas do meu chá.
És a esfinge que olha de um penhasco distante as minúcias dos tempos
trançados.
Seríamos outros se não fôssemos nós.
Seríamos um sentido em setas sem certezas.
Um alísio nas fronteiras dos ventos.
Os pontos cardeais entre planetas e estrelas.
O som da concha envolvendo os batéis.
Se não fôssemos quem somos os espelhos teriam que aprender a viver sem
nós.
E sem eles seríamos uma presa fácil de nossas imagens.
De algum modo as esfinges não sabem romper o casulo dos espelhos em que
se ocultam.
Tampouco fazemos a menor ideia do que eles pensam a nosso respeito.
Eles nos fitam ao contrário do que somos.
Invertem a razão pela emoção e sem contar o mínimo segredo revelam os
signos em transmutação.
E são irônicos justamente porque sabem que desconhecemos o reflexo de
cada mínimo gesto nosso.
E se estilhaçam a um simples olhar cravado no coração.
Guardam em si a severa ironia do ícone que fingimos ser,
lacram o revés de tudo o que projetamos como nossa existência comum.
E impossíveis de se verem decidem já o começo e o fim desse trajeto que
existe apenas no lacre das palavras,
nos sonhos inaudíveis e nos momentos em que os passos se perdem de seus
pés.
E se desfazem em rastros que se confundem e erram por entre pernas que
se desconhecem
e simplesmente borram as linhas que sugerem uma saída ou uma nova rota.
Os espelhos desfocam seus contornos em aquarelas.
Lábios delicados de aromas e mãos que desatam em nós.
E somem no interior de um abismo que afiançamos como nossa única fonte
de vida.
A escura e fria escultura da noite modelada aos toques,
dedilhada aos cegos e velada às bocas de quem fala deslizando um poema
pelos dedos fugindo pelas teclas de um piano noturno.
A vigília vela a nossa própria sombra já sem dor.
Os espelhos não cansam de nos lembrar que seríamos outros se não
fôssemos nós.
VITRAIS REFLETIDOS NO VINHO SE
CONFUNDEM COM OS OLHOS DE UM DEUS BUSCANDO O INVISÍVEL
Jamais poderás me tocar.
Jamais poderás penetrar teu olhar e cravá-lo
na superfície de meu corpo.
Fala das profundezas de Dante.
Das jornadas infinitas de Ulisses e do Cabo
das Tormentas.
O beijo distante.
O beijo solto que procura os lábios sem
paradeiros.
O sorriso da taça de vinho esmagada em uma
cerimônia sagrada.
É intensa a saudade daqueles a quem foram
negados os direitos de se tocarem.
Entre eles, uma nuvem tatuada em um grande
transparente trincado
e o rosto rezado em prece silenciosa. Jamais.
Jamais poderás me ver.
Jamais poderás me encontrar.
Jamais poderás alcançar a vertigem que
mendigam os corpos por onde passo.
Repleta de cidades sangrentas e desmaios
que nomeiam os assassinos de cada momento
desprendido de si sem o gozo da correspondente intensidade.
As dores fixas na memória como punhais que
narram a palidez de tantas lâminas.
As luvas escondidas em criados-mudos
extraviados na catástrofe de quartos de motel.
Uma fome flutuando por entre todas as máscaras
e a hora aparentemente sagrada em que sonhas
comigo. Jamais.
Jamais poderás me escutar.
Jamais visitarei a espiral do castelo.
Porque travei os passos dos demônios na torre
de Babel.
Que canções cantam as Sereias ou a que nome
responde a viúva de Hierofante?
Ofereci-me em sacrifício sem súplicas ou
temores.
Sou uma Musa da velha Idade da Pedra.
E sei declamar e cantar os versos na linguagem
da verdadeira poesia.
Mesmo agora sendo eu quem sou ⎼ a filha predileta da Grande Mãe Terra ⎼, vislumbro quanto enevoada é esta vida quando
lhe falta um doce leito de amor.
Apenas a neve recobre meu corpo sem idades e
já destituído de vinho e ambrosias.
O vento frio me assopra rumores estranhos.
As sombras desmaiam, mais fracas ao se verem
espelhadas.
E passam a ser breves escudos de lucidez.
Acolhidas nos braços alçados da Grande Mãe
Árvore.
Tresloucada de desejos balançando seus braços.
Ecoando por seu tronco até aos pés de seu amor
deitar um fruto agonizante de amor.
Fui raptada pelo desespero até o impossível.
Procurei os segredos do Abismo por todas as
chagas,
reli os velhos mapas dos tormentos mais
antigos.
Vasculhei o relato dos sismógrafos e a
conclusão a que chegaram as cicatrizes estabelecidas em teu corpo.
Indistinguíveis vozes se embaralham em tua
boca como uma orgia de sombras.
As minhas noites se abriram ecoadas pela
semelhança do que jamais pude encontrar em teus braços.
A terra transfigurada. Os presságios nublados.
O excesso criado pelos vizinhos como uma anedota fugaz.
A tua acústica sempre esteve ali à espera de
meu silêncio.
O que houve de mais precioso em nosso acaso se
esvai irrecuperável.
E não te escrevo as mais prediletas tintas
porque as mesas não pousam no bosque que um dia semeamos para a colheita de
nossos aromas.
Eu também fui raptado pelas marés afogadas do
intangível.
Envio-te um camafeu: meu perfil sem enigmas.
Um aproximar de lembranças que eram nossas
antes de nos conhecerem.
E se encontraram após muitas vertigens e
despedidas.
Memórias ancestrais de nossas cartas em outras
eras.
Apenas pequenas memórias em busca do
esplendor!
Envio-te o desvario de minhas pernas flanando
em um labirinto de assombros.
As línguas entrelaçadas de uma aposta no
teatro fetal de nosso amor.
O pólen repercutido sob a pele de muitos sóis
e a fabulação insuspeita do universo que
cavamos em nosso abraço.
Uma memória muito além de tudo o que já
vivemos.
Amo as madrugadas silenciosas e precipitantes.
Amo o silêncio das noites sem luas ou
estrelas.
Amo o frio que envolve meu corpo nu.
Cavalgando dedos entrelaçados por desejos.
Amo sentir mãos imaginárias tatuando suas
imagens em meu ventre.
E lábios molhados devolvendo o leite de meus
seios.
Amo as pernas distantes que se aproximam
eternamente sem as minhas encontrarem.
Amo a intenção do desejo na iminência de seu
gozar.
Amo as imagens que provocam estalos de línguas
e gritos sufocados em gemidos.
Sou toda fantasia em Veneza. Um carnaval de
rimas carnais.
Amo as tuas pernas devorando as minhas como
raízes evocadas para a cerimônia de acasalamento da floresta.
Amo a realidade de meus dedos curiosos
revirando a caixa de música de teu ventre.
Amo os teus casebres escorados na agulha dos
precipícios.
Amo as pedras com que o fogo escreve teu nome
em meu dorso,
e o Teide que sabes explorar no fulgor de meus
sonhos.
As hordas de orgasmos prometidos à fonte de
tantas vertigens.
O que não se pode exilar de tanto exílio.
O que não cabe em si de tanto desígnio.
As vértebras pressentidas do quanto te desejo
tocar.
A incontornável diversidade de tudo quanto
ambiciono em tua totalidade.
Sou as tuas horas surpreendidas, o alerta de
tua inquietude.
Amo as horas que se ocultam atrás de
lápis-lazúli.
Amo as agulhas que penetram minha carne.
E os esconderijos de máscaras em Veneza.
Amo o instante mesmo por um simples torpor.
Articulo o teu encantamento em um prato de
prata quebrado sobre a mesa.
Leito pintado de uma sombra precipitada.
E a nossa fuga através dos jardins perfumados.
Sou uma escrava fiel amarrada aos teus pés de
fogo-fátuo e sangue.
Temos a missão de advertir os amantes sobre as
escapadas noturnas sempre protegidas pelo entorpecimento da longa madrugada.
Nas esquinas das línguas residem as poções
mágicas das pequenas mortes.
Nas quais nos precipitamos cegos e destemidos.
Sem os sobressaltos das culpas.
Acordados e surpreendidos como dois animais.
Nossos olhos se entregam e se devoram após
nossa batalha ao pé do mar.
∞
LEILA FERRAZ (Brasil, 1944). Poeta, fotógrafa, artista plástica,
ensaísta e tradutora. Foi uma das organizadoras da 13ª Expo Surrealista Internacional
em São Paulo (1967). Nessa época fez duas viagens a Paris e teve um encontro cativante
com alguns membros do grupo surrealista francês. Publicou os livros Cometas e Poemas Plásticos. Participou da exposição surrealista “As Chaves do
Desejo” (Costa Rica, Cartago, 2016).
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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