O Ponto é o
Herói Desconhecido das grandes Tragédias e Tramalhöes.
EUXÍMIO
A noite não tem
presas fáceis.
TV MALDOROR
I. DOIS LOUCOS À BEIRA DO POTE
NARRADOR UM ⎼ O sol ainda se
espreguiça na cumeeira do teatro, indeciso sobre a condição de seu despertar,
quando já futricam nos caixotes espalhados por toda a cena Zé Larica e o Mago
Kefir:
ZÉ LARICA ⎼ Ciência e Poesia se irmanaram, e agora são três irmãs, a mais velha
sendo a Religião. Esta última envelheceu, hoje em dia fala meio sozinha, ou
então com beatas italianas em dia de procissão. Tia Religia não pode mais
torcer as orelhas de ninguém. Quem manda mesmo é a Ciência, tudo o que ela diz
todos acreditam. Ela diz pros burros, vocês são uns macacos racionais, os burros acreditam e começam a se coczar.
MAGO KEFIR ⎼ A Madona Religare já havia cometido tantas atrocidades que não
resmungou muito quando foi posta de lado pela Santa Lâmpada da Ciência. A
desgraça veio mesmo é quando a Mecânica do Espírito engasgou-se com a agulha da
Estatística Ego Summer e passou a regular seus passos pelos milhos do Ibope. A
Ciência tornar-se Religião é o de menos. A catástrofe maior é quando a Arte se
converte em Ciência.
ZÉ LARICA ⎼ Já se transformou em artigo de luxo da Alta Porquezia… Coelhos de ouro…
Macaquinho do Pivette Cantor em porcelana… etzzz etzzz
MAGO KEFIR ⎼ De tal forma que nessa balança comercial das artes o que se ganha é do
outro, mas o que se perde é para si mesmo…
ZÉ LARICA ⎼ A balancza comercial das artes é chumbada com pornomerda pra
peruas-chics deslumbradas.
MAGO KEFIR ⎼ O Carnaval é sempre antes, querido.
ZÉ LARICA ⎼ Assim é que a gente te pega de boca na botija… Sabes direitinho do
kalendário da paróquia… O-Ro-Roooo… Ztás louco pra soltar foguetes na festa de
São João… E tem também o pula-fogueira com buscapé… Padre Feijó também era
fingidão… Queria que o Vaticano permitisse casamento dos sacerdotes…
MAGO KEFIR ⎼ O grande talento do Vaticano sempre foi comercial. E em um de seus
capítulos capitais, o do comércio de almas, quanto mais triste, sofrida e
desamparada a pobre dita, maior a sua cotação na Banvespa Ecomênica…
ZÉ LARICA ⎼ O comércio metafísico se lubrifica com o tráfico de Almas Proletas…
Almas Capitalistas compram ações de Indulgência… E garantem um Purgatório
macio, com mordomia… Mas quem trabalha nas fornalhas do Inferno?…
MAGO KEFIR ⎼ Ora, ora, mas o que é isso?! Dizem que não há calor humano mais intenso
e contagiante do que o que se pode encontrar no Inferno. Ao Céu foram
encaminhadas as bestas que acreditam que um dia o fogo apenas iluminará. Não
há redenção sem chaga - diz a tabuleta à
entrada do Inferno. Mas apurando bem a vista se nota que o dizer foi adulterado
e ainda dá para distinguir a versão original: Não há redenção nem com chaga.
ZÉ LARICA ⎼ Como diz Frei Feijão: A chaga é de graça, mas não garante a
Salvação. Saiu anúncio no tabloide Nanico Torto, de propaganda do Cassino-Thermal Averno: Estamos oferecendo
desconto especial de fim de estação, de 50% pra sacerdotes, e, militares que
venham juntos, serão considerados como uma só família, e ganharão o especial
abatimento de 70%. Aproveite! Lamas thermais, telefone, duchas ferventes, luz
elétrica, água corrente, salão de festas…
MAGO KEFIR ⎼ Os primeiros 10 inscritos ganharão a História Suscinta da Revolta das Chibatas em 25 volumes, uma contribuição do Sebo Estalando-de-Novo, edição
original em papel brochura, faltando o volume 17 - há dúvidas se o mesmo chegou
a ser impresso - e os demais com a borda liquidada pelo tempo. Aproveite nosso
pacote de visita guiada à Granja do Torto nas noites de sábado.
ZÉ LARICA ⎼ Noitada a bordo da Jangada da Medusa!!!… Churrasquinhos na brasa dos
próprios comensais, sorteados na Tómbola de Minos… aproveite a total
Liquidação… Açoites, tridentes, pregos, fornalhas de salão…
MAGO KEFIR ⎼ A mulata era tão bela, quem quer fazer o cabelo dela? Cacimbinha,
Cacimbona, quem quer fazer um chamego nela? Sabiá lá na janela, quem quer tirar
a fitinha dela? Cacimbona, Cacimbinha, quem quer ficar um cadinho nela?
ZÉ LARICA ⎼ O Camões, como bom prutuca, tinha sua escurinha, que ainda não chegava
a ser mulata, mas já era pretinha… E no Delta do Mekong a chinesa afundou com o
Rolo do Brasil… Dos onze Cantos… só sobraram dez .
MAGO KEFIR ⎼ O que era para ser começo de uma nova série total perdeu uma perna,
ficaram somente nove. O que era então para ser a triplicidade do triplo perdeu
uma perna, ficaram somente oito. Daí o que era para ser o símbolo da
regeneração, perdeu uma perna e ficaram somente sete. Foi quando as sete
direções do espaço deram uma topada e uma delas se perdeu, ficaram somente
seis. Sozinha no balacubaco, sem saber o que fazer de si, a quintessência ficou
confusa, perdeu uma perna, ficaram apenas quatro. A organização racional logo
não se portou lá muito bem, perdeu uma perna e ficaram apenas três. Finalmente
a síntese espiritual, o mundo parecia estar salvo, quando deu uma ventania e
umas das pernas não se manteve no lugar, ficaram apenas duas. Entre a cruz e a
espada, não havia jeito das opções serem satisfatórias, então rapidamente se
arrancou uma perna e ficou apenas uma. Este símbolo do princípio ativo tende à
megalomania e é melhor não lhe dar perna alguma. Restaria então o ovo órfico,
com o qual já se sabe não foi possível fazer um omelete.
ZÉ LARICA ⎼ Perna por perna, o Pirata Perna-de-Pau não chega à beira-d’égua, porque
o crocodilo já comeu a primeira, e está de olho na segunda.
MAGO KEFIR ⎼ E o terceiro foi aquele a quem a Teresa deu a mão. Quantas laranjas
maduras, quanto limão pelo chão… Quantos mazelos esparramados dentro do meu
coração… Uns indo pra lua, outros pr’Espanha.
ZÉ LARICA ⎼ Pior que a Espanha, por enquanto só mesmo a Grécia. Mas Portugal também
está a bulanczaire… As Três Graças da Latinidade…
MAGO KEFIR ⎼ Grécia, Espanha e Portugal, a fina flor do abacateiro de ponta-cabeça.
Mais esperto de todos foi o Banco do Vaticano, que pregou a peça religiosa em
todos e converteu a mitologia greco-romana em um bem-sucedido comércio de
almas.
ZÉ LARICA ⎼ Como sempre diz o Maquiavel, o Vaticano tem grande experiência no
metiê. E o Papa Bórgia… sabe manobrar.
MAGO KEFIR ⎼ Charrete nova na garagem, serventia a toda prova. Os brasileiros tão
polidos aprenderam logo a comer coxa de frango com talher e torciam o nariz
para a porção de grilos tostados. Rejeitando os hábitos da coroa e do mundo
nativo, de tanto querer ser o que não tinha jeito, ainda hoje põem pra gelar o
vinho tinto e recusam falar em sexo na frente das crianças.
ZÉ LARICA ⎼ Ordem e Progresso, Seriedade e Barbas probas. Procissão e Positivismo.
Nosso céu tem mais estrelas, nossa mata mais coelhos.
MAGO KEFIR ⎼ Trat-ta-ra-t-a-tá, blém, belém, blém-blém-blém… Toró, toró, to-ró… Shi, shi, shi…
ZÉ LARICA ⎼ Li a entrevista com a poeta Amanda, ao final, com grande lucidez, fala
que vivemos uma civilização anestesiada ou excitada até o crime pelas
imagens visual e sonora, de onde se
destampam os Pangarés do Apocalipse: dos vídeos e joguinhos de aparelhos
eletrônicos manuais ou de salão, gerando genocídios e massacres em escolas e
lugares públicos, por asnosomens drogados e zumbificados… E as autoridades
médicas, teológicas e governamentais ficam se perguntando: Mas porque o
celerado fulano perpetrou esse assassínio coletivo de crianças e passantes
distraídos?… PORQUEEE?… Como se os
assassinos soubessem lá por que fizeram a sanguinolenta asneira… A resposta é
simples: eles NÃO SABEM por que fizeram. A Burrice Assassina Globalizada é a
última novidade do Século XXI. Os Quatro Pangarés do Apocalipse não virão mais…
Porque foram superados pelos Asnos do Porvir.
MAGO KEFIR ⎼ Mas são apocalipses distintos. O Uruguai não é uma sociedade deformada
pelo agrotóxico. Hoje seu maior dilema é o elogio da pobreza. Aqui caímos no
conto de que a esperança é imortal. Já na Promise Land, a devastação pela
overdose virtual e sonora castrou de uma paulada só lucidez e percepção, daí
que certo tipo de criminoso - sobretudo aqueles criados em meio ao turbilhão
fanático dos jogos de guerra - mereça mais um sanatório do que a cadeia. No Pa-tro-pi,
não, aqui ainda somos casos de xilindró. Porque o espalhafato da imagem e do
ruído gera uma mescla suicida de tolice e esperteza. Somos um povo barbarizado
pela malandragem e o besteirol.
ZÉ LARICA ⎼ Mescla suicida (e assassina) de tolice e esperteza (e metralhadora),
malandragem, besterol (e defuntos a granel).
MAGO KEFIR ⎼ Enquanto isto a flor do ócio devora spa-Gretchen inculta e bela, será
ela, será ela, até morrer. E deu na sétima hora do dia, na Rádio Espertinha do
Monte Santo, que o morto de honra, programado para o Baile da Virada,
desgostoso com a barba que lhe apararam e o cabelo cortado à quenga de coco, se
escafedeu ao mínimo deslize das beatas arrumadeiras, deixando vazio o crucifixo
e em silêncio as cantigas de roda.
ZÉ LARICA ⎼ Fazemos pirambeira acima uma procissão pra Santa Baldina… A seguir uma
kermesse com sabugos de milho, pé-de-porco, balões, baile de sanfona
pula-fogueira… E está tudo resolvido.
NARRADOR DOIS ⎼ Não se pode descer a
cortina, pois a dita ainda não voltou do lava-a-jato.
II.
CÁLICE EMBORCADO
NARRADOR DOIS ⎼ Ouve-se a voz em off
do rato Beltrão, em tom solene, desfiando um dizer:
BELTRÃO ⎼ Desemborcado
cálice
Instante do fogo
perene ao
nosso revisto afinal
Juízo ou
entrançados versos
nossos
com que criamos
aquele de que
heresia melhor fonte
não há
NARRADOR UM ⎼ O palhaço Zé Larica
e Mago Kefir se dirigem aos caixotes ao fundo do palco, vasculhando-os, como se
à procura de algo. Entram em cena Batuto Valdescópio e Plutone:
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ O modo de ver azucrina (cavalinho baio) quem pôs os olhos de lado
evitando bispar a janela crescendo dentro da moldura da paisagem (trote
modelado). A janela engole o sapo e a sapatilha da mundana realeza. Ficam de
fora os guetos fingindo sindicãncia e os tonéis de esperança liquefeita tão
azeda quanto as páginas da cartilha escolar.
PLUTONE ⎼ A janela come a paisagem, a paisagem invade a casa com o sapo que pulou
a janela. Diante da casa estaciona o caminhão com os tonéis vazios da
esperança.
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Quem Dali saltou, do Botequim ao Teatro, não viu com quantas horas
molengas se faz um atraso. O fato é que o cenário tem ficado desolado pela
falta de compreensão de seu staff desconhecendo o ouro das minudências.
PLUTONE ⎼ A arte de se atrasar pra não morrer atrás do trem, é contar as horas
pelos relógios molengas de Dalí, de que os ponteiros são bigodes.
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ E deixar o tempo espairecer um porco na sarjeta. Porcos não usam
bigodes, porém sapateiam na frigideira. Uma navajo desafiou o trem a meter-se
película adentro sem rasgá-la. Mal sabia que antecipava em anos o Armory Show.
PLUTONE ⎼ Foi a mesmíssima Carmen Navaja que se meteu na frente do quadro de
vidro do Duchamp. O Rei Nu, descendo a escada presto, tinha um alfaiate safadão,
que lhe fez um traje invisível. Ele NÃO estava nu, descendo a escada. MAS…
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Escada abaixo o detalhe estava em não arranhar o assoalho, descer quase
flutuando para que a realidade não desse por conta do quanto vinha sendo ludibriada.
O alfaiate mantinha um séquito de rãs espertinhas para socorrer o REINO cada
vez que houvesse conflito de interesses envolvendo membros do Clero.
PLUTONE ⎼ Ninguém mais enganada que a Ready-Made Reality. As graçolas do Armory
Show são as que mais sucesso fazem com a tifosada, e mais estrondoso prestígio
trouxeram pros Mágicos Europeus. Pena que pelos finais dos 50s os artistas
Yanques aprenderam o truque e… roubaram o show. E agora, Marcel?…
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Puseram todos a mesma viola em diversos sacos, e já não sabiam mais do
paradeiro do fraterno diapasão eletrônico. Marcela saiu do campo, deixou a
roça, instalou-se num muquifo na rua detrás. Viciada em éter, raiava o dia
achando que a noite jamais voltara para casa.
PLUTONE ⎼ Mas não precisamos nos preocupar: eles ficaram famosos, sucesso
garantido, qualquer coisa que fizessem ou deixassem de fazer era o suprassumo
da Arte. Uma roda de bicicleta, uma panela esquecida pela irmã na cozinha, o
esparadrapo usado na ferida no joelho, o monte de graxa pousada na cadeira,
tudo selecionado pelos Magos Conceptuais entra direto no acervo dos mais
importantes Museus do Mundo.
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Os Magos se espalharam pelo mundo, abriram oficinas por toda parte onde
davam cursos de como converter quinquilharias domésticas e lixo industrial em
obras de arte. Instrumentos quebrados ganharam nova vida. Estética, afinação e
outras prosas fartamente glosadas, incluindo a tabela periódica, tudo caiu em
franco desuso. E todos, agora mais do que nunca, podiam se sentir como irmãos
em um culto, salvos pela arte.
PLUTONE ⎼ A Glória, que é uma loira novidadeira, adora a tranqueira das
instalações. Mas Dona Posteridade, morena severa e carrancuda, protesta: Ai,
meus tamancos! Que vou fazeire coesse lixo?…
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Riem todos, até as pastorinhas gargalham, porém a adega está tomada de
vinho azedo e as FALSAS FARSAS destroncam também a frondosidade de outros
jardins quiméricos, povoados por letrinhas e uma antes imponente escala
musical. O mundo todo na caminha da sessão Trash Maravilha.
NARRADOR UM ⎼ Lá do fundo gritam o
palhaço e o mágico:
ZÉ LARICA ⎼ Lotação esgotada. Avanço da tifosada. Alvoroço.
MAGO KEFIR ⎼ Bilheteira desmaia. Porrada no guichet.
PLUTONE ⎼ Calem-se!
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Não há acalanto para estas tristes cismas do macambúzio Dr. Destino,
sempre traído em seus panos esvoaçantes. Da última vez disse que por ali não
iria mais, e saiu a buscar novas formas de deriva, quem sabe na ciência, essa
donzela fugaz que há muito perambula pelas ladeiras de além-mar, sempre outra,
nunca a mesma.
PLUTONE ⎼ Mais careca que o Faraó… é a bela Nefertite… Mais fornidos d’alcatrão…
os charutos da Esfinge…
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Os dias vão se empanturrando de fartos saberes iludidos e outros truques
longitudinais. Confundem-se pança e corcova do tempo. Nefertite, minha santa,
por um balcão sai um rato, por outro entra um morcego… Do alto da casa é que
vemos a noite querendo aconchego…
PLUTONE ⎼ Quando Michel, o sineiro da Notre-Dame, faz suas acrobacias na corda,
as beatas babam. É preciso eletrizar o cotidiano com a Magia da Arte. A Ciência
pros Cus-de-Ferro, o Tutu pros Banqueiros, a Poesia pros Vates.
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Vai direto, Sataninha. Prepara a goma pro banquete, que a pajelança não
se atreva a negar o melhor cauim. Desmontemos o tutu. Um banho de mica bem
fervida na bundinha dos oráculos. A Poesia que trate de valer o vintém que nós
num tem.
PLUTONE ⎼ Poesia é mais pobre que rato de igreja. O Romance sim, é rico, é gordo,
é forte. Até os milhoitocentos e tal, o Poeta ainda tinha sua capelinha, era
convidado pro sarau de belas Peruas-Chiques de balangandãs e peitão estufado…
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Agora os matreiros passam a tabuleta raspando as sobras da lei de
proteção ambiental às metáforas da corte. Baixelas e baixarias para os
pedigrees de proveta. Estufe a córnea quem quiser ler. Hoje as letrinhas
ficaram tão magras que já não põem uma frase em pé.
PLUTONE ⎼ Não pode haver proteção ambiental sem proteção à pasteurização mental
globalizada. A própria revolta foi absorvida e pasteurizada. O-Ro-Rooooooo…
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Créus e incréus batiam cabeça entre si, e a Madonna recém empossada, do
alto posto em seu carro alegórico, entoava um mantra umbilical! Salve a Rainha!
Esta festa não tem mais fim…
PLUTONE ⎼ Nota-se ultimamente no Louvre uma fila agitada do outro lado do muro
onde está exposto o retrato da Gioconda. (O arquiteto Xeval abriu no muro uma
janelinha donde vê o Bundão da Gioconda.)
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Enquanto isto permanece hermeticamente lacrado o Grande Vidro de
Duchampelion, sob suspeita de haver ali um ninho de ready-made dotado de alta
inclinação retiniana.
PLUTONE ⎼ Ocorreu nova racha no Vidro do Duchamp. Esta racha, graças ao
Vidraceiro, poderá ter efeito benéfico sobre os mais esclarecidos do público,
que poderão reconhecer que eles estavam sendo preconceituosos ao recusar a Arte
Conceitual e passarem a adotá-la. Há sempre o perigo de que a possam porém
banir de modo brutal e eficaz; ou a transformar numa ideia aceitável, e a
sublimarem. É preciso que o Vidraceiro vença a resistência que patrulha, de
sentinela avançada, a porta da esfera consciente. Uma vez engajado, o noviço torna-se
um fanático fiel.
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ É um velho dilema: o que fazer com a fábula quando as uvas estão em
falta ou quando a pequena tartaruga se recusa a competir com a lebre? O
Vidraceiro bem podia ter percebido que frente a certos vícios de linguagem não
há fanático que resista. Bem feito que a temperatura tenha chegado até aqui: um
imenso pátio de estoque das mais variadas caixas, pretas e brancas, e nenhum
comprador interessado.
PLUTONE ⎼ Os compradores só se interessam, e loucamente, pelos ovos das galinhas
chocolateiras do Coelho Pascal. E tudo mais é literatura. Mas as galinhas
chocolateiras entraram em greve!! Pascal desesperado prensou o galo: Você
agora que se vire e bote ovos de chocolate. / Mas eu não sou galinha, não boto
ovo. / Não faz mal, você bote lá o que possa e embrulhe em papel celofane. O
Comércio não pode parar.
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ E foi assim que desde então perdeu valor no mercado as coisas que são
apenas o que são. A verdadeira alegria comercial e o gozo dos feirantes se
especializaram em vender lebre por gato. Não importa o que o público queira, a
ele será dada sempre a ilusão de outro querer.
NARRADOR DOIS ⎼ O rato Beltrão entra
em cena e desfere com gestos largos e olhares para os quatro personagens:
BELTRÃO ⎼ O pior cego é o que tapa o olho furado.
O melhor feirante é o que vende urubu por peru.
O melhor freguês é o que quer ser enganado.
O melhor consumidor é o que quer virar
seu próprio artigo que some no uso.
Esta era a grande fascinação do cigarro.
NARRADOR DOIS ⎼ Pigarreia como quem
busca na garganta uma outra voz e então esbugalha os olhos e uma debochada
rouquidão para a plateia vazia:
NARRADOR UM ⎼ Cada tolo à sua maneira emborca
o cálice antes ou depois do uso.
Columbo – Calombo – Colombo
De qual dos três será o ovo enfrascado?
O ditirambo afinal será apenas um
dos ecumênicos pecados da gula!
Esta é a grande satisfação do pigarro.
PLUTONE ⎼ A Arte de Vender é saber empulhar o Povão. Pra valorizar artigos de
cama e mesa, o Vendedor bota montes de travesseiros num vasto tabuleiro no
palco… Recita trechos do Paraíso
Perdido, de Milton… E rola por
cima dos travesseiros como se fossem Nuuuuveeens… Sucesso garantido… Avanço do
povão em delírio… Estoque esgotado…
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Quem arrisca um melhor preço?
CAI MESMO O PANO
III. RUÍNAS QUASE
INCÓGNITAS
NARRADOR DOIS ⎼ Por trás da
cortina escutamos a carpintaria montar o cenário, uma síncope de pregos,
serrotes, martelos e outras peripécias sonoras. Ratos empurram um imenso telão
à frente da cortina, entrando pela direita até o centro. Em seguida, eles vão
buscar dois cavaletes, com cartazes que são retratos de dois personagens. Este
ato se dará na forma de projeção sobre o tecido amarelecido da tela do diálogo
entre o biógrafo Ciclope e Saudonira, a mulher barbada:
SAUDONIRA ⎼ Atado ao pé do inevitável, o herói esquece
de medir o alcance de seus passos. Sobra um baú de aluviões desconhecido do
destino e a morte jamais inventaria familiaridade alguma em seu disperso
trajeto pelas estrebarias do desastre. O herói come sozinho a poeira de seus
pecaminosos descuidos.
CICLOPE ⎼ Vida de Herói é sempre dificultosa. Arrisca
a vida pros bonifrates do futuro se regalarem. Bem melhor ser o seu biógrafo e
exegeta.
SAUDONIRA ⎼ Deu trinado no vento. O fantasma de Irineu
engoliu a seco os bagaços da ferrovia aventureira. Seu Raposo apoquentado
alarmou-se ao dar de cara com o mar, pois queria entrar mais no ninho das aves
secas. Se o trem ainda passasse por ali teria avistado outro galho por onde
quem sabe chegar a tempo de evitar a baciada emborcada com a vacina do tio
Rodolfo. Já o biógrafo suspirou feliz renomado pelo desastre.
CICLOPE ⎼ Por excesso de tamanho, o casal de
tatussauros não conseguiu lugar no trenzinho caipira. Tiveram assim os dois
paquidermes de nadar no pavoroso temporal e morreram afogados. Foi a fatal
extinção da espécie, de que podemos admirar os ciclópicos esqueletos, adrede
remontados, e que hoje se encontram no Museu do Tatu, atraindo milhares de
turistas pra nossa cidade.
SAUDONIRA ⎼ Assim floriram os jardins do museu com
estatuetas de pedras humes que as bacaninhas podiam recolher para o melhor
fraseado de seus abraços úmidos. E outras pedras, em seu mistério vulcânico,
podiam ser evocadas para melhor aceitar o passado dos amores traídos. Para as
noites não há truque melhor do que um bom chá de mutreta. É tiro e queda. Os
incautos heróis proliferam.
CICLOPE ⎼ A última bengalada é sempre a que esbodega a
corcova do camelo. Na batalha das Pyrâmides, o cavalo de Napoleão perdeu uma
pata. Mas, mesmo trípode, o fiel bucéfalo seguiu servindo o famoso herói corso,
em suas dúbias empresas. Mais careca que o Faraó é a bela Nefertite. Mais
acesos d’alcatrão, os charutos da Esfinge.
SAUDONIRA ⎼ As pernas mais afoitas se perderam em
miragens bem dedilhadas. Os céus viraram lágrimas acoitando o segredo das
virgens mais diletas. A Esfinge tagarelava com o espelho das águas a noite
inteira sem que ninguém lhes escutasse. Um herói a serviço do clero é como um
piano proseado pelo acaso. Deus nos
livre, Deus nos livre, dizem os lábios infelizes.
CICLOPE ⎼ O Poeta precisa ter suas escapatórias
prontas, porque Cardeal Sacamuelas está sempre alerta. A arte de ser cego é
saber onde pôr a mão. A arte de ser vivo é a mesma coisa. Quando Deus dá uma
cochilada, o Diabo logo aparece, e vai s’enturmando
NARRADOR UM ⎼ O rato
Beltrão entra em cena imitando o Diabo:
BELTRÃO ⎼ Olá, moçada boa… aproveitemos um pouco…
enquanto o Velho tira uma sesta…
NARRADOR DOIS ⎼ A partir de
então Beltrão começa a fazer mímicas como se arremedasse Ciclope e Saudonira.
SAUDONIRA ⎼ E assim troava o baile no porão, regado a
ponche de vísceras. Dez mil virgens sucumbiram entre uma pestana e outra do
Cardeal. A história sempre aprumou suas linhas para o registro das coisas mais
torpes. Com o vento amarrado ao leme chegamos primeiro sem importar que o lugar
seja impróprio. Não viram o sapo cotó, que tanto sonhou ser príncipe? Já quase
petrifica no lamaçal, porém não para de sonhar.
CICLOPE ⎼ Quem sonha com coroa acorda careca. Cada um
é o filho-da-puta de suas obras. A maioria dos asnos chega tão depressa, porque
fazemos nós próprios metade de suas burradas. Contentamento vale mais que
riqueza. Os pobres fazem os ricos felizes; mas não há reciprocidade: eis porque
os pobres são malvados e os ricos bonzinhos. Nunca estamos contentes com o que
não temos.
SAUDONIRA ⎼ Uma herança bem servida atazana qualquer
destino. Dizem que a salafra entra por uma porta e sai por outra, mas isto
sempre me pareceu um adágio encomendado. Quando meninos, os heróis brincavam
todos de cabra-cega, de modo que jamais deram pela entrada e saída das virtudes
e das zombarias.
CICLOPE ⎼ Pinta a bengalinha de branco… Bot’óclo
zescuros… E finge que não vê… Assovia La Cumparsita. [Beltrão
assobia a música.] Duma herança de pragas
e pregos… ninguém escapa… Já vem embrulhada nas fraldas. Melhor seres prudente
e econômico. Deves acender uma só ponta do charuto. Senão… por onde a fumaça
vai sair…? Se a Parca cismar de querer te vir visitar, não a recebas posto a
nu…
BELTRÃO ⎼ Cuidado com a tesoura…
CICLOPE ⎼ O Vesúvio, hoje… banca o bonzinho.
BELTRÃO ⎼ Mas, ora, a Pompéia… gostou…
SAUDONIRA ⎼ Intrigado com a avalanche das reticências o
Dr. Pastel mandou fechar sua fabriqueta de dualismos. Segundo ele, em tempos
assim é melhor apresentar uma versão única e bem sentada de cada fraude. Macaco
velho não aprende a se coçar e acaba por morrer à míngua. Vem tangendo pela
estrada um cartel de lobos o javali exilado da fábula. No impuro ouro do
horizonte não se avista senão o resfolego da matilha.
BELTRÃO ⎼ Ora pro nomes!
CICLOPE ⎼ E por que razão misteriosa era a Espanha no
século XVI a grande Potência da Europa? Pela brancura das coxas da Duquesa
Dalva!
BELTRÃO ⎼ Não esqueçamos que o Gato de Botas era
português…
CICLOPE ⎼ Sim, Dona Duquesa perdeu o velho gato
adorado da família. A memória de seus pulos, com as botas maravilhosas, será
abençoada por todos os que o conheceram. Meus pêsames são mesmo pesados, e
lágrimas convulsas quebraram meu picinez…
SAUDONIRA ⎼ Uma vez a escada alcançou a cumeeira da
casa. Lá do alto divisou os reinos maltratados de Tordesilhas. Encomendou uma
estampa para cada algibeira, um herói oculto em sua dobra mais íntima, fiando
as barbas do Destino sem que ninguém desconfiasse. A escada assim vaticinava
crimes e pecados da realeza. Para o banquete engordava porcos e faisões. Para o
desjejum pequenos golpes bastavam. Importante era não perder o trunfo, e
despistar as vozes com seus trajes de plumas e esporões.
CICLOPE ⎼ Sobre o piano, em pote de jade, a florzinha
murcha tossindo… tossindo… [Beltrão imita a flor tossindo.] Pela janela via-se o Zeplin partindo do
jardim botânico apinhado de anães e anões, de anãs e … anonas, comendo mamões e
mamonas. Olhando pro Zeplin, Thales caiu no poço, onde mora a Verdade. Thales,
por ser o mais velho, é dos sete sábios, o de barbas mais longas. Anistia!, bradou a multidão subversiva, numa
concordância verbal ideológica. O mundo são cardos…
SAUDONIRA ⎼ Calos e mais calos, e ossos cruzados no
fundo do caldo. O Zeplin soçobrava na curva da Hípica. Por mais perto que
chegasse do Palácio da Coisa Pública, ninguém se atrevia a tocá-lo. Um jogral
para os Metralhas, uma túnica de ouro e prata para os Duques de Além-Mar e a
touca embevecida de espumante para os súditos de Ali Babão. Thales há muito não
vê graça na prosa dos outros seis anões. Quem antes dera um roçado pras gueixas
e um samburá de lentilhas para o dia da independência, agora mal se arrisca a
sair do poço, contrariado com a afinação do piano real.
CICLOPE ⎼ Diabólicas tentações sofre Thales no poço,
enquanto nos luxuosos salões do Palácio da Coisa Pública segue a farra
desbragada ao som da charanga mexicana, em confete e serpentina num eterno
carnaval. De pensar Nabucodonosor caiu de quatro, comeu as samambaias do
balcão, se foi pros jardins, saiu pastando e nunca mais se levantou. Busolina
abre o leque de plumas de avestruz, e o Sol cyclame dá nozes ao tamanduá.
SAUDONIRA ⎼ A esfinge de dorso o mais lustroso foi mesmo
a escolhida como a Rainha do Canavial. Na cerimônia os heróis anônimos se
aglomeravam como raspas prensadas. As
batatas, as batatas, todos
clamavam em uníssono pela doação do prêmio. E quando se foram dali as bocas
satisfeitas, as migalhas da festa voltaram a conspirar idealizando novos
motivos para a queda da realeza.
CICLOPE ⎼ Pra queda da realeza, ninguém melhor que o
photógrapho Robespierre, especialista em retratos pra carteirinha de
identidade, 3x4, fundo branco, sem cabeça. Muitos problemas pra quem quiser
mudar o mundo. Não adianta decepar, as cabeças são teimosas, elas voltam a
cavalo, ou de fiacre. E você, leitor amigo, antes que chegue o Robespierre,
esconda sua cabeça por baixo do sofá.
SAUDONIRA ⎼ A história é o canto do cisne das
identidades perdidas. Quem veio até aqui à procura de um herói, vai herdar um
solavanco que lhe devolva ao fundo do poço antes dele ser cavado. A história é
o caminho certo para quem quer ficar bem na foto. Robespierre garante o melhor
ângulo e nenhuma cicatriz.
NARRADOR DOIS ⎼ Napoleão
entra no palco, galopando seu pangaré de três patas:
NAPOLEÃO ⎼ Robespierre cortou a cabeça do Rei e os
Sem-Cuecas sobreviventes cortaram a cabeça de Robespierre… Acabou-se a
Revolução, e eu… [Empunha a borla da corda] tomo o Poder. Merci. [Puxa a borla, cai a cortina.]
FLAAAAAAAAPPPPTTTTT!!!
NARRADOR UM ⎼ Os ratos
retiram de cena o telão, enquanto alardeia quase consternado Beltrão:
BELTRÃO ⎼
Na praça onde se confundem o Teatro e o
Palácio da Coisa Pública todas as estátuas acordam decepadas. A vida se esforça
por recuperar a normalidade.
NARRADOR DOIS ⎼ Um ratinho
corre empunhando um letreiro onde se lê:
ACABOU!
IV. COMBINATÓRIAS
ARREDIAS NA VIDA DE MHELENA DE LOS MALES
NARRADOR UM ⎼ A cortina
ainda fechada, o fantasma do Mafuá recolhia cenas espatifadas do ato anterior
com a firme intenção de compor um manifesto. Por trás do cenário de MDF
saltitava a voz em cascata de nossa heroína em tons indecifráveis entrecortados
pelo refrão: Mais pra cá, meu nibelungo
sagaz… O público aos poucos ia entrando em cena.
PLUTONE ⎼ O nibelungo Bias, é um anão de circo safado.
Diga-se, não é o Circo safado, mas sim o Anão Bias. A heroína Mhelena se
engana, nem tão sagaz é o Anão, mas tão só madraço. É baleiro de circo, mas diz
que trabalhou pro Fellini na Xinexitá, no filme… Qual foi mesmo o filme em que
apareces, Bias, será em La Strada?
BIAS [polindo as unhas:] ⎼
Foi no… E la Nave… Va.
NARRADOR DOIS ⎼ O rato
Beltrão grita lá de dentro:
BELTRÃO ⎼ Depois do naufrágio, aparece um pé de anão,
em close.
MAGO KEFIR ⎼ Há remotas evidências de que a verdadeira
história não tenha sido de todo falseada. Fala-se em duas cópias apócrifas (o
manuscrito do roteiro e fragmentos de uma fita magnética) que reproduzem o
encontro de Mhelena de los Males com o nibelungo Bias. Uma delas em uma sacola
na casa de máquinas de um barco do Mariscal Rondônico que sobe e desce o rio
Urupá sem que ninguém possa ao certo localizar-lhe as coordenadas. Da outra o
mais perto que se chegou foi através de rascunhos no diário de um João
Capelinha que mencionava embrulho achado em fundo falso do locobreque
desativado da velha estação de Paranapiacaba. Averiguemos as pistas.
BELTRÃO ⎼ Sim, averiguemos as tais pistas.
PLUTONE ⎼ Urge examinar a caixa preta do locobreque.
As autoridades se preocupam com o tatu do brejo, mas não veem o elefante do
Circo Progresso. Em todo o caso, o Anão tentou se perfilar junto a Mhelena,
dizendo-lhe que a mineral Cambuquira é melhor que a Caxambu.
BIAS ⎼ A Cambuca tem bolhas maiores, e é mais
barata.
MHELENA DE LOS MALES ⎼
E você, Bias?…
BIAS ⎼ Eu também, Mhelena… se assim posso dizer,
modéstia à parte.
MAGO KEFIR ⎼ E enquanto se esbaldavam nas bolhas da
Cambuca não deram pelo rapto da caixa-solar das pulgas amestradas. Pela manhã
cedinho uma voz trovejava nos alto-falantes da Praça da Revolução um impensável
pedido de resgate: Em troca das pulgas alazãs queremos o gavetão de
espartilhos da Mhelenauta. Todo o circo
entrou em polvorosa, e o Anão bradava que era inútil ceder a qualquer exigência
sem que se soubesse a razão da mesma.
PLUTONE ⎼ E não cederemos a qualquer exigência, com ou
sem razão, nem que venha Napoleão a cavalo no seu pangaré de três patas, jamais
entregaremos os espartilhos da Mhelenauta!…
NARRADOR UM ⎼ Em meio a
esta querela toda chegava o diretor, Batuto Valdescópio, disposto a ter avanço
nos ensaios daquela noite.
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼
Guardemos nossos improvisos para o
próximo ato. Agora quero rever a cena em que Mhelenas e Bias escrevem um
manifesto ilegível com seus corpos chafurdados no piano. Quero nuvens e salmões
perambulando pelo cenário, e sugestões para o diálogo.
NARRADOR DOIS ⎼ Diz então o
Mago Kefir para o palhaço Zé Larica, que acabara de entrar em cena:
MAGO KEFIR ⎼ Eis de novo o Batuto a tiranizar nossa
trupe. Ele quer competir com o Circo Astral, do Califa Ali Babu, um dos maiores
do mundo… Como poderemos, com nosso camelo capenga e o elefante cego, fazer
frente a tal potência?…
ZÉ LARICA [Erguendo o
punho, bradando espumante.] ⎼
A Força operária!!! A Revoluchão
vem aí!!!
MAGO KEFIR
[Desconfiado] ⎼
Revoluchão ?… ou… Rebulição?
NARRADOR UM ⎼ Enquanto o
Anão escalava os seios montanhosos de sua amada, a orquestra disfarçava os
últimos acordes desafinados. Todos sabiam que o Mago Kefir tinha lá seus bons
arrazoados, mas é fato que nessa comarca endiabrada nada se faz sem antes
contrair uma boa dívida.
BELTRÃO ⎼ Impagável, como reza a cartilha.
PLUTONE ⎼ Os gregos são os grandes mestres de empurrar
os empréstimos com a barriga, e ameaçando s’afundar, levando junto toda a União
Europeia, conseguem seus empréstimos colossais que jamais terão condições de
pagar. Todos sabem que será impossível, mas fingem que não veem. Herói da
multimilenar cultura da astúcia grega, Ulysses é o padroeiro de todos os
caloteiros. Nosso Circo deveria haurir conhecimentos da Grécia Clássica, pra
evitar a iminente falência, face a seus apertos, decorrente da concorrência
desleal do colossal circo Astral, do Califa Ali Babu.
MAGO KEFIR ⎼ A caminho da Broadway, Dante só pensava em
fugir dali. Sonhava em ser um Ermitão circulando sob os toldos do Grande Circo
Infinito. Estranhamente indiferente às sentenças e epitáfios do inferno,
improvisava retratos de mil faces cegas que doaria ao flagelo de uma humanidade
que jamais soube decifrar a própria agonia. As nuvens mugiam ante a presença de
bússolas parindo agulhas desnorteadas. Ulysses convulsionava a insolência das
previsões. Arrastava consigo mil sombras que jamais o permitiriam retornar a
nenhuma Ítaca. Ali Babu bem sabia que quanto mais dilatasse o ventre de Mhelena
com seu ninho secreto de pólvora manteria astros e ministros sob uma dieta de
rosas vulcãnicas e o lastro de tantas apólices firmadas em nome do punhal e do
crucifixo.
ZÉ LARICA ⎼ Gargalhem os sinos. Aqui é impossível saldar
duplicatas.
PLUTONE ⎼ Dante contou todos aqueles horrores do
Inferno, porque só viu os fundos, os esgotos sujos, onde trabalham e sofrem os
escravos proletários em sucessivos circos superpostos… Mas a parte superior,
oculta atrás duma selva selvagem, ele não viu, e eu não mostrei: o Jardim das
Delícias dos Pecadores Refinados, os bem aventureiros, eleitos por mim.
MAGO KEFIR ⎼
As velas acesas em cima e em baixo,
moedas impressas com duas faces iguais, a série mutilada de orgasmos que
mascarava cada sorriso riscado no rosto de tantas mulheres… Os mortos não fazem
trocadilhos, os santos não sabem pensar, as putas barganham uma noite melhor
para seus clientes… Eu estive ocupado enlaçando as vísceras de muitos aqui,
como se procurasse um plano de fuga deste precipício. A vida sobra por muitos
lados, e nenhuma corresponde a outra.
BIAS ⎼
Não deixe de me apertar, até a última
gota. Minha senhora banhada de esperma, eu te confundo com um espelho embaçado.
Não me mostres nunca quem poderias ser.
MHELENA DE LOS MALES ⎼
Ai, meu chamego espinhento…
PLUTONE ⎼
Não perca tempo, aproveite enquanto
possa, fume as duas pontas do charuto, a Carpa já espera no umbral da porta.
Finja que não viu, assovie um bolero… Acuérdate
de Acapulco… Na Tevê Maldoror, o vídeo mostra o esôfago do Marquês de
Sade, pras famílias gozarem. Morre, seu safado!… Mas o Marquês é teimoso… se
levanta e nos diz: Vou dar uns autógrafos em robe-de-chambre, e fumar
xoxoxanel… cheguem mais pertinho…
MAGO KEFIR ⎼
Desde a chegada de Plutone que o ensaio
se tornou um teatro impossível. Soube-se que foi dele a ideia de vender o
locobreque para uma tal funilaria Absurdo sem Pressa. No acerto com o funileiro
Xavantinho exigiu um holograma para que ninguém desse pela ausência do
trenzinho. Há quem diga que o gajo também intermediou cada noite que o amiudado
nibelungo passou com nossa heroína dos trapos falantes.
NARRADOR DOIS ⎼
Enquanto isto, Batuto toma um café frio coado na cueca do Zé Larica e lhe
confessa serem aqueles seus últimos dias de circo.
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼
Largo mão dessa Passárgada, pois aqui o
rei é a carta mais oculta do baralho.
PLUTONE ⎼
O
circo é o retrato do mundo, e o mundo é um espelho do circo. Dos Reis hoje,
quase só sobram o de Espadas, o de Copas, o de Paus e o de Ouros. Mas mesmo
estes sofrem pressões e perigos nos maços moscovitas, onde os valetes são
agentes secretos do Kremlim. O Coringa caiu da mesa e sumiu. Face às novas
ameaças, os 22 Grandes Arcanos do Tarot se fecharam em copas, numa reunião a
maço fechado.
MAGO KEFIR ⎼
Do
mormaço eu quero um toldo. Da quitanda eu quero um gume. Dos três reis
desengonçados quero o mais impiedoso que fez sopa do valete. O mundo é uma
carta fora do baralho. Um dia as cobras fumavam um taludo brown por trás de
seus devotados monóculos, tão majestosas em pijamas algumas delas. Numa caçamba
bem planejada elas planavam sobre o oco labirinto dos 22 Grandes Pirados. Uma
que outra até já esquecera onde deixaram Plutone e Mhelena de los Males. Terá
sido uma tapera ou quem sabe um riachão. Desse mundo tão pequeno só restou
ingratidão. Quanto circo derramado dentro do meu guardanapo.
PLUTONE ⎼
Eis
o segredo desvendado: o guardanapo do Batuto é a lona do circo. O crocodilo
Carranca é o maior chorão de sua espécie. Colossal público lota o Circo todas
as noites, pra ver o Carranca chorar. Carranca, duma só dentada, arrancou a
perna do Bedel Bartolo e comeu. E depois de comer… em vez de chorar… sorriu
satisfeito. O público, sentindo-se fraudado, vaiou enfurecido. Batuto suspirou
ressentido:
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼
Nunca
mais serei diretor de circo!… Caia o Sol no paiol, caia a Lua na gaveta… pouco
se me dá!… Nunca mais serei diretor de circo!!!… Nunca mais…
NARRADOR UM ⎼ O público esvazia
a cena e permanece o mesmo eco encardido: Pouco
se me dá! Pouco se me dá!… O anão Bias vai ao canto do palco, puxa o badalo
da corda, cai a cortina:
FLAAAPTT!!!
V. CAVEIRA
MYSTERIOSA
NARRADOR DOIS ⎼ O palco está inteiro tomado
por destroços, como se houvesse desabado toda a estrutura do cenário.
EUXÍMIO ⎼ Sou o Ponto Euxímio, que acompanharei o tenebroso Tramalhão, sem
participar da ação, porque sou Ponto, mas darei para vocês, minhas charmosas
leitoras e meus zonoráveis leitores… Zonoráveis?… Ou horoscópicos… Enfim…
Digamos… Nossos megatéricos leitores… Megatéricos?… Preciso consultar o
dicionário… Digamos então: Peripatéticos tifosos… Sim, tifosos porque vocês são
nossos fanáticos torcedores… E peripatéticos porque… Nosso teatro desabou e
vocês mundo afora, me ouvindo, talvez, pelo rádio… Enfim, achei nos escombros
uma caveira muito engajada, presta sempre atenção… Será que ela fala?…
Vamos fazer de
conta que nossa Caveira possa ultrapassar os limites do Oculto. Que finja
frequentar os círculos mais fechados, em sua forma primogênita, mas que afinal
não busque o centro e sim a orla. Que guarde em sua sombra uma rajada de
cetros. Que tempere o invisível com seus rabiscos de chuva. E que a cada noite
nos torne favoráveis ao magistério de seus signos de plástico. Vamos todos
fazer de conta, pois não é outra a prova inconfessável do mistério.
A Caveira parece realmente
familiarizada com os phenomenos ocultos!… Vou falar com ela.
Diga-me, pelas barbas de
Xókrates, como te chamas.
XANTÍBIAS ⎼ Chamo-me… Xantíbias.
EUXÍMIO ⎼ Mas então… És a própria mulher
de Xókrates!
XANTÍBIAS ⎼ A mulher não, paspalho, eu sou… a Caveira de
Xókrates!
EUXÍMIO ⎼ Muito suspeito… Tens o mesmo
nome da mulher do de cujo.
XANTÍBIAS ⎼ De cujo, o quê?
EUXÍMIO ⎼ Do de cujo a caveira tu és.
XANTÍBIAS ⎼ Pois foi exatamente o que eu te disse.
Não me olhes
como se eu fosse um monumento à vertigem. Por aqui passaram o chefe dos
centuriões, os destroços de uma caravana de adivinhos e os ossos roídos de
Mirto. Há ainda quem recorde o balde sobrando ao pé do oásis abandonado, pasto
de moscas, como um féretro empoçado de vergonhas. Xócrates nunca soube ajustar
os ponteiros do relógio de areia. Fiei o horizonte o quanto pude, à espera de
seus papiros amestrados. Agora estamos em uma fábula circular, rodopiando em
torno do mesmo farol arruinado. Não me sopre o pó da inútil agonia. Todos temos
o mesmo nome. As palavras sabem muito bem a quem enganar.
NARRADOR UM ⎼ O palhaço Zé Larica entra em
cena usando imensos sapatos de pano, uma imitação barata dos relógios molengões
de Dalí.
ZÉ LARICA ⎼ Caveira Xantíbias s’orientou muito cedo para a sociologia, e, ao longo
de seus estudos, viu-se incitada a perseguir uma cultura escolástica, conforme
a estimulava seu tio. Todavia, Ponto Euxímio aqui levanta suas dúvidas sobre o
procedimento de tais assertivas. Como poderia uma caveira ter tio? A solerte
dúvida suscitou ásperas polêmicas na Sorbonave, com réplicas e tréplicas dos
maiores luminares e teólogos da atualidade, inclusive o Jampol Sastre e Madame
Furie.
Todas essas
figuras campestres, acalantadas por sessões de chá, são sagazes articulistas de
uma cultura século XIX, quando a atualidade ainda era requisitada como tal e
não a chapa fria de nossa inatualidade hodierna. Ponto Euxímio, caríssimo, não
crie caso com lona remendada, deixe estar o cajado a postos para os mais
baldios tropeços, ao correr da pena as frestas se encaixam em uma visão mais
ampla dos tumores e outras súplicas. Façamos a ronda. Vejamos se está tudo de
acordo com as páginas em branco de nossa tramarticulesca. Vejamos como
fazer o público entender que é fundamental que na hora certa ninguém saiba o
que dizer.
MENDIGÃO | Todavia,
Euxímio é um ponto de atroz fidelidade, inarredável do código de honra dos
pontos de todos os teatros e mafuás da paróquia. Gesto airado, de estátua
equestre sem cavalo, ou seja, empinando e alçando o braço, pra representar simultaneamente
o General e seu corcel, Euxímio, em petiz galope, solta um brado digno de Bóris
Godunoff. Mas em vez de aplaudir, a plateia vaia estrepitosamente o seu gesto.
O público, que pagou pra ouvir belas frases e ver cenas comoventes, se sente
esbulhado, lança nabos e rabanetes e… A mamona, aliás, est jacta est. Euxímio,
verdadeiro Prometeu nas Termópylas, puxa o badalo da cordinha, e a… cortina…
PLAAAAAAAAAAAAAAAAAFFFFTTTTTTTTTTTTTTTT!!!
ZÉ LARICA ⎼ Desta vez a cortina despenca com aramado e tudo, com caibros e cordas,
pregos e arandelas. De repente o drama está nu, as silhuetas do decoro desancam
esfumaçadas, não há mais o que representar. A plateia talvez finalmente
compreenda que a verdadeira tragédia é a que se improvisa a cada mínimo
resfolego. A igreja repassa seus salmos a todas as vítimas. As revanches se
derramam sobre os mercados. Os mortos desfilam com suas moedas de cobre na
língua. Os resignados continuam roubando sonhos e doces de goiaba. De onde está
a Caveira espreita um mundo dissimulado, com suas estátuas ajoelhadas e o êxodo
das mais férvidas evidências. Um mundo em que a representação se desbarata e o
mistério se entope de alucinógenos.
XANTÍBIAS ⎼ Euxímio,
Euxímio, o que fizemos nós?
MENDIGÃO ⎼ As trombetas berram uma última penúria de lamentos.
EUXÍMIO ⎼ Ai!, que os berros das trombetas não sejam
do Finélio, o Anjo do Apocalixo!…
NARRADOR DOIS ⎼ Aproxima-se
Frei Feijão querendo vender uns cromos de santinhos.
FREI FEIJÃO ⎼ Aproveite, freguês, que estamos em liquidação… Saldos a granel!… Quaé o
seu santo de estimação, meu freguês?
EUXÍMIO ⎼ Ai, Frei Feijão olhai pra cima, olhai pro
chão, pro chão, pro chão…
FREI FEIJÃO ⎼ Pois, filhote, mas olho pra baixo, ou olho pra riba?
EUXÍMIO ⎼ Olhai pra riba, Frei Feijão, vêde lá, de pé
naquela nuvem o terrível Arcanjo Finélio, empunhando a
trombeta… É o Apocalixoooo!!!
FREI FEIJÃO ⎼ Calma, Euxímio, ele só está treinando… Mas antes da Trombetada Final
ainda vem o Armagedão.
EUXÍMIO ⎼ Será
que inda custa pra começar, o Armagedão?…
FREI FEIJÃO ⎼ O-Ro-Ro-Ro… Compre o santinho logo, não encere, rapaz, o arranca-rabo
já vai de fio do pavio aceso… E os Pangarés do Apocalixo Pacacá-Pacacá-Pacacá…
Oiça!… Vêm desembestados poraí…
ZÉ LARICA ⎼ Todos sabem que foi a precisão do erro que afastou Euxímio dos grandes
palcos. Quem dera a Rosa caber na palhoça, quem dera o Santo engolir seu apito,
quem dera o atrito empoçar a legenda… As trombetas cochicham entre uma soprada
e outra: não deixe pramanhã se já pode ser enganado hoje. As luzes apagadas
roem o cenário por dentro. As ruas estão seladas por asas de gafanhotos e
manuais de fuga empoeirados. Há mil saídas, porém ninguém sabe por qual tropeço
começar.
NARRADOR UM ⎼ A Caveira então entrega a
Euxímio um novo velho script. Um coro de ratos estimula:
CORO ⎼ Viva
a sabedoria do espartilho!
EUXÍMIO ⎼ Acaso
não deveria entrar em cena uma mulher?
FREI FEIJÃO [Sussurrando] ⎼
Euxímio, não deixe entrar mulher
em cena…
EUXÍMIO ⎼ Mas, Frei Feijão, sem mulher, qual é a graça
da vida?
FREI FEIJÃO ⎼ Mulher, se não for santa, é perdição, Euxímio…
EUXÍMIO ⎼ Mas Frei Feijão, sem um pouco de perdição,
afinal, de que vale viver?… Mais a mais, nosso público sempre quer um pouco de
Folias Brejeiras.
FREI FEIJÃO ⎼ Nada disso! A arte é sagrada! O teatro deve ser um mosteiro…
EUXÍMIO ⎼ Arte Sacra!…
FREI FEIJÃO ⎼ Muito bem, estou gostando de ver o seu
fulminante progresso!…
EUXÍMIO ⎼ Mas,
Frei Feijão, pra eu ser salvo, preciso pecar um pouquinho… Senão, pra que
servem as orações, as igrejas, os sacerdotes…?
FREI FEIJÃO ⎼ Pensando bem… você tem razão… Euxímio, mas… não conte pra ninguém…
EUXÍMIO ⎼ Deixai
comigo, Frei Feijão, ninguém saberá deste perigoso segredo subversivo. Vou
passear com minha preta…
FREI FEIJÃO ⎼ Dominus Vobiscum…
ZÉ LARICA ⎼ Foram considerados todos os palpites. Um penhoar desabotoado passeava
pelo jardim, uma displicente minúscula transparência foi encontrada sob o banco
no coreto, um decote crepitante… Tudo levava a crer que o assunto havia sido
resolvido, embora o tabu mexericasse de porta em porta sondando algum deslize
no cerzimento dos novos hábitos. A arte começava a dar ares de realidade. A
Caveira satisfeita rascunhava ajustes no roteiro, a língua sorrateira traquina
suplicando pelas frases mais picantes. E o Ponto Euxímio teria que soprar todo
aquele enxame de prevaricações clandestinas do mais burlesco tramalhão com que
se pudesse sonhar. Aos porcos reais as pérolas enlameadas da Sarjeta.
XANTÍBIAS [Praguejando] ⎼ Euxímio, basbaque santarrão, ficas te
arrolhando pra ganhar o quê? Caiu na conversa de Frei Feijão? Privas-te dos
prazeres eróticos e mundanos pra ganhar a salvação, depois da morte. Ora, da
morte, o que terás?… Tão só o calote metafísico… A-Ra-Ra-Raaaa…
EUXÍMIO ⎼ Donde vem essa novidade de Caveira com
língua?
NARRADOR DOIS ⎼ Caveira,
agita a língua comprida, e finíssima, e pontifica:
XANTÍBIAS ⎼ Quem pode, pode, eu sou Mysteriosa, e
tenho esta língua pra te achacar… U-Ru-Ruuu Bilu-Bilu-Ra-Ra-Raaa…
NARRADOR UM ⎼ Euxímio se enfurece:
EUXÍMIO ⎼ Pois
vou-te arrancar a língua, sua herege safada!!!
NARRADOR DOIS ⎼ Euxímio arranca com brutal
violência a língua da Caveira, e exclama:
EUXÍMIO ⎼ Mas…
é uma ratazana!!!
NARRADOR UM ⎼ Solta horrorizado a ratazana
que some num buraco. Euxímio invectiva a Caveira.
EUXÍMIO ⎼ Estavas
trapaceando, mal fedida Caveira!…
NARRADOR DOIS ⎼ A Caveira permanece em
sepulcral silêncio. Frei Feijão saracoteia em uma risada infernal, entremeada
de pigarro e conjuro:
FREI FEIJÃO ⎼ Em meio a todas as divindades profanadas, no fraudulento carteado da
semelhança, todas as coisas passam com suas vértebras trincadas, apenas uma
ressurge inimaginável como se fosse alheia a todas as tragédias.
NARRADOR UM ⎼ Euxímio agita a Caveira de um
lado para outro, bruscamente evocando um último naco de verdade:
EUXÍMIO ⎼ Eu
te privo de canto e tutano, te esmago as vísceras ressecadas e sorteio os
restos de teu vulto arrastado pelo fosso, até que me digas o que fizeste com
todas as tramas que havíamos ensaiado.
FREI FEIJÃO ⎼ A verdade, a verdade, que triste modo de encerrar um panegírico,
clamando desesperado pela verdade!
EUXÍMIO ⎼ Cala-te,
infame frade onanista…
FREI FEIJÃO ⎼ Ui, e agora se volta contra a própria imagem refletida na gelosia de
suas imprecações, que morte mais patética, que ultraje ante enredo tão
mixuruca…
NARRADOR DOIS ⎼ Euxímio, o Ponto
transtornado, pesaroso e possesso, destroçado pela maldita eternidade,
desconhece como arrancar da Caveira um testemunho que seja de seu mistério
oculto por uma túnica de aplausos. Frei Feijão tosse e ora:
FREI FEIJÃO ⎼ Um milagre, um milagre… Que escape um acorde dessa orquestra sombria e
nos traga um epílogo, mesmo que pálido ou impossível, que nos faça crer que
outro ato virá… Já estamos cansado de tão surda alegoria!
EUXÍMIO [Não sem antes deixar escapar
um longo suspiro] ⎼ Prum
epílogo, Frei Feijão, precisaríamos explicar aos leitores (pras leitoras não
precisa, elas já sabem) se é a ratazana que fala de dentro da caveira de rabo
de fora… ou… se é a própria caveira quem fala, usando de língua o rabo da
ratazana. E agora, de altivo perfil, unindo o gesto à palavra, retomo do
badalo, puxo a cordinha…
NARRADOR UM ⎼ E
a cortina … já toda rasgada …
PLAAAAAFFFFFFFFFFFFFTTTT!!!
VI. O CIRCO NÃO CONSEGUE PARAR
NARRADOR DOIS ⎼ Uma pequena
comunidade de ratos repara o casco avariado de nossa aventura. Alguns soluçam
queixumes enquanto aprumam os destroços. Ratazanas flanam com suas sombrinhas
regendo a fábula da reencenação. Guinchos banham o silêncio interpelado por um
balaio de onomatopeias. Com o palco em obras, vemos em um telão Euxímio
matracar sozinho em sua toca:
EUXÍMIO ⎼ Todos sumiram… Mas eu permaneci escondido no meu buraco do ponto. O
Ponto é o rodapé do Circo. Quando a História começa a ser esquecida… lá vem o
Rodapé, com seu asterístico explicar o fato do passado pro leitor
do presente. Só há rodapé do passado. Não há rodapé do futuro. Como poderia
haver rodapé pruma História que ainda não aconteceu? Teremos chegado ao fim da
História? Talvez. Mas do Circo, jamais. Porque se o Ponto está vivo, o Circo,
mesmo sem lona e sem artista e sem público… sobrevive enquanto existir o Ponto
e… Os ratos!… Vou usar uma flauta, pra conduzi-los, e vou transformá-los em
artistas!…
NARRADOR UM ⎼ Euxímio, polindo seu
monólogo, surge então no palco:
EUXÍMIO ⎼ Observando
essas minúsculas criaturas mascando os destroços, soletrando uma nova escritura
onde a razão já esgotou suas fórmulas, começo a duvidar que o rodapé seja a
única prova de nossa existência. Afinal o Circo afirma que há abrigo para tudo
que é improvável e até mesmo inimaginável. E que o futuro não passa de uma nota
que ainda não lemos. Cheguem mais perto, criaturinhas rumorejantes. Escutem o
ranger das costelas do irresgatável de todas as catástrofes. Esqueçamos as
confissões da História. Regurgitem todas as formas perdidas. Rebobinemos o
Circo fóssil de nossas vidas passadas.
NARRADOR DOIS ⎼ Eis porém que
ora a Euxímio se apresenta pavoroso Esqueleto, que moteja, com voz de
ultratumba:
ESQUELETO ⎼ Vim buscar minha Caveira.
EUXÍMIO ⎼ Sua Caveira?
ESQUELETO ⎼ Sim, minha mysteriosa Caveira, onde está?
EUXÍMIO ⎼ Um mo-momentinho, Dom Esqueleto, vou ali, já volto já.
NARRADOR UM ⎼ E Euxímio, presto, mergulha
no seu buraco do ponto, abre tampa do fundo, e penetra na caverna totêmica,
repleta de desenhos de arte rupestre. E logo se põe a bradar:
EUXÍMIO ⎼ Caveira,
Caveira Mysteriosa, onde estás?
NARRADOR DOIS ⎼ Do alto do
palco-picadeiro surge balouçante em suas cordas nosso trapezista com tiques de
narrador:
MENDIGÃO ⎼ Um indecifrável silêncio se aflige por todas as gretas do ressonante
buraco. Euxímio pode perceber a presença da desalmada dama Mysteriosa, porém
quanto mais lhe evoca um vulto visível mais se dilata a veemência do silêncio.
Os ratos confabulam entre si, um deles sugere moldar uma caveira com suas fezes
e as migalhas do teatro derruído. Improvisa-se então um palimpsesto
tridimensional pelas tenazes unhas de uma comunidade solidária. Euxímio gagueja
ao soletrar o impacto daquela assombração à qual lhe falta uma voz. Umas mais
espevitadas ratazanas se puseram a cavoucar o atoleiro em busca de uma voz que
desse justeza ao logro.
NARRADOR UM ⎼ Após moldadas
e discussões, lembraram-se de convocar o ratão Beltrão, o mesmíssimo que já
servia de língua à desaparecida Caveira Mysteriosa. Beltrão, porém, é um biltre
arrogante:
BELTRÃO ⎼ Eu era a língua de uma magnífica Caveira Mysteriosa, que
pertencera à Rainha Nefertite!… Uma Missão Sagrada!… Era só o que faltava dar
eu agora voz a um Palimpsesto de Bosta!!!"
NARRADOR DOIS ⎼ E se retirou da reunião, em
passos majestáticos.
MENDIGÃO ⎼ A voz permanecia o dilema a ser resolvido e talvez tivesse mesmo que
ser forjada, buscando uma afinação de atritos em materiais obscuros, estercos
submissos, carvões suspirosos, metais inexatos. A situação requeria certo
sentido alquímico. Reabilitar o pasmo mutilado de inusitados elementos. Dosar
rouquidões, engasgos, lamúrias e outras reações sonolentas. Soprar nessa
traqueia imaginária até que se escute a voz de um relâmpago derramado na colcha do
céu.
CAVEIRA ⎼ Que faço em meio a essas criptas emudecidas e um enxame de cacarecos
tão surtidos? Serei também parte desse butim de acasos? Estarei porventura
predestinada a ser a arma falida de nossos sonhos proibidos? Alguém que possa
me explicar onde diabos estou?
MENDIGÃO ⎼ A voz da Caveira ressoava como se fosse a de um sonâmbulo. Mais parecia que
mastigava as palavras. Euxímio observava o ímpeto daquele vulto que procurava
se ajustar a um rito ainda em montagem.
NARRADOR UM ⎼ Rato Beltrão
observa dum buraco a situação, e sussurra:
BELTRÃO ⎼ Desse jeito, o circo já parou e não vai ter jeito de reviver. Sinto
saudades dos bons tempos, sempre me sobravam cascas de amendoim, nacos de pão.
Nos navios que estão podres, os ratos percebem o perigo, e
desembarcam no último porto antes do naufrágio. Mas de um circo acabado num
deserto de lixo… Não há mais pra onde sair. Se o Circo acabou, pode o nada
continuar?… Circo sem nada é possível. Mas nada sem circo? Será possível nada
sem circo? Acho impossível um nada sem nada.
MENDIGÃO ⎼ O que o relutante Beltrão não dera por conta é que a fábula do
inesperado se confunde com a própria vida, quer a encarne ou rejeite. E
enquanto rascunha sua filosofia de porão, os monturos de vulto e voz costuram
com esgares acrobáticos um plano indiferente a toda descrença, e com músculos
que transbordam as crostas do impensável uma nova lógica se impõe:
CAVEIRA ⎼ Aqui estamos uma vez mais para transpor as terras de uma simples cura
de uma precundia da imaginação. Não importa que o Nada vislumbre em nosso abate
momentâneo um ninho onde instalar suas ligas fatais. Menos ainda que sua
antípoda desconexa agonize como um Sapo Asdrúbal mergulhado em água fervente.
Em um instante remendamos madeirames, suamos e ceamos com bandos variados de
insetos e pequenos roedores, e se ergue um outro povo do circo, arcabouços,
sombras, vultos que assumem formas imprevistas, o elefante anão, a pulga que
ruge, a vespa com sua cesta de ovos dos quais saltam espadas e pombos, a mágica
indescritível de pernilongos e gafanhotos que mascam a expectativa da plateia
enquanto em gestos hábeis fazem com que o camelo passe pelo buraco de uma
agulha e que uma fiação de vagalumes ilumine a cidade perdida de nossos desejos
mais secretos.
NANÁ ⎼ Aquela voz… Aquela voz…!
NARRADOR DOIS ⎼ Euxímio se
espanta e o ratão Beltrão pula e s’esconde no bolso de Euxímio. Balbucia o
veterano Ponto:
EUXÍMIO ⎼ Ai, Beltrão, este Circo me assusta!… Ai!, Que saudades eu tenho do
circo de minha infância querida…
BELTRÃO ⎼ Que os anos não trazem mais…
EUXÍMIO ⎼ Mas!… Adivinhaste meu pensamento!
BELTRÃO ⎼ Pois, Euxímio, antes de vir pro circo, eu era um ratão da Biblioteca
Nacional…
MENDIGÃO ⎼ O acaso raramente retoca a maquiagem. Por mais que retalhemos a memória
e colemos em ordem aleatória suas formas, jamais voltamos ao mesmo pranto, à
mesma alegria, à mesma comoção. Muitos escondem de si o passado com medo de
descobrir o quanto são imóveis. Aquela voz sustenta as escalas de criação de um
tempo outro, onde os restos de cada orgia, as sobras de cada divindade, os
resíduos de cada futuro, tudo não passa de uma bacia onde recolhemos os farelos
da existência, sempre pronta a converter-se em vestígios de outra ilusão, outra
querela, outro degredo. O que Beltrão parece esquecer é que ele foi excomungado
da biblioteca pelo sindicato das traças. Valdão Perneta era uma gorda traça,
com o estômago exaltado de tanto farelo de livros. O pobre Beltrão sofria
misérias por entre aqueles corredores e prateleiras. Conta para nós, ratão, o
que fizeram contigo aqueles insetos intelectuais…
BELTRÃO ⎼ As traças são umas soberbas ignorantaças que se orgulham do tamanho de
sua sábia ignorância: absolutamente colossal, do tamanho dos trinta mil
tratados que devoraram sem nada entender. Existe a sabedoria dos ratos e a
sabedoria às avessas, que é a ignorância erudita das traças. Acontece que a
ignorância erudita das traças é muito maior que a sabedoria sensata dos ratos.
Uma maioria esmagadora que dita as regras, e seleciona pra mídia, povão, quem
são os sábios. Prêmios e honrarias pras traças, e desprezo e boicote pros
ratos. E assim, cá estou eu, relegado ao bolso de meu amigo Ponto Euxímio.
NARRADOR DOIS ⎼ Imediatas as
reações:
EUXÍMIO ⎼ Pois eu tinha para mim que estavas aqui por gosto, tão bem que sempre
te tratei, seu ramalhete de ingratidão!
VALDÃO PERNETA ⎼ O infeliz choramingava pelos cantos desgostoso de sua dieta de tintas e
papéis. Por vezes se satisfazia com a fiação ressecada das pequenas aranhas.
CAVEIRA ⎼ Toda boa história acaba por se engalfinhar nas próprias pernas, afeita
mais ao gosto de quem as conta do que ao perfume da verdade.
NARRADOR UM ⎼ O esqueleto
entra em cena, saltitante, em desconexo bimbalhar:
ESQUELETO ⎼ Onde está a minha cabeça? Escuto sua voz inconfundível. Eu a quero de
volta. Venha. Venha.
CAVEIRA ⎼ Vem, um nabo!… Era uma vez, Squeletto, qu’eu te servia de cabeça.
Ganhei minha independência. Sozinha, ganhei dignidade e sou apreciada à mesa de
grandes sábios e escritores. E tu, és tão só um papagaio de poleiro vertical,
rodopiando pendurado por um fio. Aconselho-te a usar de cabeça um casco de
abóbora. Poderás trabalhar em filmes de horror, como personagem de Sabá.
Ganharás aplausos e prestígio, em parques de diversões e mafuás. Terás um
futuro garantido. Ah- Ha-Ha-Ha-Haaaaaaa!…
MENDIGÃO ⎼ Ficaram todos com cara de retratistas do Inferno. A saliva seca dava à
cena um ar interminável. Ninguém arredava um suspiro do espanto provocado pelos
refletores da fala da Caveira. E ela não deixava por menos:
CAVEIRA ⎼ O meu Circo eu o monto e desmonto onde bem quero, e o faço despontar
sob nuvens remotas ou no mais sombrio dos picadeiros. Todos os números serão
convulsivos ou não serão. As adagas banhadas de mel que a vultosa assistente
engole. O Senhor das Túnicas que sabe como ninguém tornar as sombras tangíveis.
Os pratos voadores em que Shaoming serve sua melhor receita de equilíbrio. As
águas frenéticas que bailam enquanto engolem mil luzes. A ficção invulnerável
de nossos desejos. Este será sempre o meu Circo, e todos os trazem dentro de
si. Não me peçam provas de fábulas ou metáforas. O mundo é bem melhor do que o
tablado cobiçado que a razão aprova e o bispado benze. Conservem-se fieis à
clarividência de seus impulsos.
EUXÍMIO ⎼ A Caveira Mysteriosa, tão calada, de repente se revela um gênio!!! Vai
aprontar o melhor circo do Mundo!!! Tomara que ela me contrate para as funções
de Ponto! Outro melhor ela jamais achará!… Mas que discurso
genial!… Que língua estranha ela tem… Fininha e compridíssima, meio peluda… É o
belo horrível!… A pavorosa atração do Abysmo…
AAAAAIIIIIII!!!…"
NARRADOR DOIS ⎼ Por falta de cortina…
Acaba-se o Ato com o eco de um estrondo longínquo…
PAAAFFFFFFFFFFF!!!
VII. EPÍSTOLAS DA VERDADE
NARRADOR DOIS ⎼ Os
instrumentos da orquestra se espreguiçam. A música aos poucos se identifica com
o rescaldo de uma orgia. Como se o sol borrasse todo o céu improvisando um
crepúsculo. Uma voz suja de pigarro e nicotina exclama seu discurso roto:
BATUTO VALDESCÓPIO ⎼ Respeitável público, contemplem o espelho
que abriga os filósofos mortos! Aqui a verdade ama seus bodes expiatórios!
Sintam-se em casa, como gárgulas taciturnas que se preparam para bicar a colcha
ensanguentada de vícios da Noite!
NARRADOR UM ⎼ As corujas
gorgolejam, os corvos gargalham, os morcegos esvoaçam… O Vampyro Raskaboff
suspira fundo, pálido, de casaca roxa… olheiras fundas… As pontas esverdeadas
dos terríveis dentes caninos não podem ser disfarçadas… Ele se senta ao órgão, estira os braços e, com a mão destra,
de fina garra, tira da orelha uma aranha, que s’escapa às pressas. Raskaboff
empunha a sineta e a
sacode com fúria. Entra a anã preta, Naná:
NANÁ ⎼ Sô
Conde, que desejais?
RASKABOFF ⎼ Traz-me
um aperitivo.
NANÁ ⎼ Chéri?
RASKABOFF ⎼ Nada
d’intimidades, Naná… Compostura e… discrição!… Traz-me um… xerez.
NANÁ ⎼ Xerz,
xerry…?
NARRADOR DOIS ⎼ O Conde se ergue, pálido.
Naná zumbiu e sumiu.
Ninguém daria um ovo pela cena,
um crepe pelo silêncio que se fez dentro da palidez de Raskaboff. Os abismos
contíguos soletram uma outra maneira de refazer o mundo. Antigos roteiros
parecem remotos, a memória padece de viscosidades obscenas. Ao fundo o
fagotista costura as representações extraviadas. Relâmpagos exangues foram encontrados debaixo do palco. Naná utiliza
seu corpo quase imperceptível para imiscuir-se nos desejos escorregadios do
Conde. De que serviria ao público interrogá-la em tal momento lúbrico?
RASKABOFF ⎼ Conte
os passos em volta de seus argumentos.
NANÁ ⎼ As
suas veias ressaltam como uma transparência trivial.
RASKABOFF ⎼ Esqueça-as.
Sonde a astúcia carregada de eletricidade.
NANÁ ⎼ Eu
o quero em minhas mãos, com suas espigas rendendo meus sonhos.
RASKABOFF ⎼ Evite
o orgasmo. Deixe-o ao ponto em que um incêndio esteja ao alcance de suas vestes
sombrias. Como se não falasse há meses e há muito esquecera o próprio desterro.
NANÁ ⎼ Eu
o quero, eu o quero…
RASKABOFF ⎼ Mova
o olhar, rápido, não te percas na nebulosa das palavras. Afasta a ingenuidade
de tuas coxas e o apetite de tanta maquiagem. Fora. Sai daí. Agora, sua anã
descabelada!
NANÁ ⎼ Ai,
Sô Conde, faz assim não…
RASKABOFF ⎼ Meu
xerez, Naná, por que não o trazes?
NARRADOR UM ⎼ Eis, entra de
volta Naná, de bandeja com cálice e garrafa. O Conde dá meia-volta sentado na
banqueta giratória. Sopra seu anelão de brasão e sussurra:
RASKABOFF ⎼ Trouxeste,
enfim, meu xerez, Naná?
NANÁ ⎼ Hesitei
em qual dos dois desejaríeis… Xerez?… Xérry…
RASKABOFF ⎼ O
que me agrada em ti, Naná, é que ficas de minha altura, quando estou sentado.
NANÁ ⎼ Melhor
ainda quando estás de ponta-cabeça, Senhor dos meus aluviões…
NARRADOR DOIS ⎼ Naná s’achega, de bandeja:
NANÁ ⎼ Xerry?…
Xerez…
RASKABOFF ⎼ Chega
bem pertinho, mas gira, Naná, ou a bandeja me entra no peito…
NARRADOR UM ⎼ Naná gira, e sussura:
NANÁ ⎼ Eu
bem sabia, Sô Conde, o que bem desejáveis… Xerry…
RASKABOFF ⎼ Mas
não deixes cair a bandeja, Naná…
NANÁ ⎼ Não
deixo, Sô Conde, mas o cálice fica tilintando na garrafa…
RASKABOFF ⎼ Desde
que não caia da bandeja, Xerry, digo, Xerez, tudo bem…
NANÁ ⎼ Mas
com o tim-tim… Dona Condessa poderá se despertar…
RASKABOFF ⎼ Não
há perigo… Ah, o tilintar do cálice na garrafa!… Divino!…
NARRADOR DOIS ⎼ Há um obscurecer gradativo da
cena, e ouve-se, sempre, o mavioso tilintar… Bing… Bling… Bling…
RASKABOFF ⎼ O-Ro-Ro-Rooooooooo…
NARRADOR UM ⎼ Um aluvião de
vultos sugere a arrumação confusa e apressada do cenário às escuras. Enquanto
isto a Tevê Maldoror entra sorrateiramente decidida a um monólogo desgarrado:
TV MALDOROR ⎼ O
formato de todas as súplicas desliza pelos ombros do templo. Há dias vemos como
os peixes cegos chupam as balas de um revólver mascado pela ferrugem no fundo
da gaveta naufragada. Nem mesmo os pássaros estão para peixe e um rio extenso
se enrola todo como se fosse um tapete recusando-se a voar. As baleias
corcundas penteiam seus cachos imitando um bosque devorado por formigas. Não
escutem a verdade com seu tropel de aparências. A realidade é uma palavra que
não alcançamos. Não há razões para indagar à vida sobre seus fantasmas
desprendidos, planos de joelhos e personagens deformados fraudando a memória
dos desejos correntes. Não despertem a gravidade como se fosse uma fábula
esporádica. A imaginação corre daqui, espavorida, como o criador da criatura.
Nem tudo o que morde é fome. Os artifícios são escritos sob a pele. As minhas
metáforas jamais farão de minha assistência um arquipélago indecifrável. Ouçam
uma vez mais. Não se ofendam com o que transmite meu abismo vítreo. A verdade é
a única rotina improvável que nos descarna com sua culpa infantil. A roda roda
seu qui…
NARRADOR DOIS ⎼ Plutone
interrompe o monólogo da Tevê Maldoror com uma grande marreta. Pelo chão se
espalham os bagaços do aparelho e suas falas. Em meio a rangidos agônicos, os
ratos da limpeza recolhem as sobras confusas de tudo quanto fora dito e visto.
NARRADOR UM ⎼ A marretada
devastadora de Plutone assustou Anã Naná que pulou pra debaixo da cadeira, com
a bandeja do xerez, levando junto o Conde Raskaboff, que não teve tempo de se
desgrudar. Entra em cena a Condessa Galatéia, pálida, de robe-de-chambre.
GALATÉIA ⎼ Que
barulhada infernal… Raska!… Assim não posso dormir. Mas ouvi o monólogo
belíssimo do Conde Maldoror… Onde ele está?…
NARRADOR DOIS ⎼ O deslumbramento da Condessa,
pelo dúbio prestidigitador uruguaio, irrita Raskaboff, que baritoniza:
RASKABOFF ⎼ O
monólogo do Maldoror foi por televisão, Galatéia… Tive hóspede bem mais
importante: o próprio Príncipe das Trevas, teve a gentileza de sair do Inferno
pra vir me visitar.
NARRADOR DOIS ⎼ Sob o tapete ainda se ouve um
fragmento do monólogo: Não te atrevas jamais a dizer à Verdade o que
ela não suportaria ouvir! E logo
se esquiva com a astúcia de um paradoxo e dá com o pé na carreira em busca de
outros voyeurs.
RASKABOFF ⎼ Galatéia,
minha ninfa transfigurada, tanto fiz para tornar-te vidente de nosso passado
inequívoco, de sílabas alargadas e sombras em cativeiro… E agora te deixas
enganar por um episódio impulsivo levado ao ar pelo Canal dos Panos Quentes.
Minha centuriã de proveta, morde a cauda enquanto fecho as janelas. Vamos fazer
deste mundo uma árvore de papelão, a gritar por toda a parte seus impropérios
mitigados pelo acaso.
NARRADOR UM ⎼ Os três bailam por todo o palco… Hum, três?
Quem mais? Ah o robe-de-chambre se desprende do corpo de Galatéia e se põe a
dançar sozinho… Músicos começam a brotar por todos os poros da cena. Porém
música ainda não há. Ela vai despertando aos poucos, do interior de cada
instrumento… O palco inteiro se enche de seus antigos moradores.
CORO ⎼ É o circo,
é o circo que volta…
GALATÉIA
[Deslumbrada] ⎼
Que maravilha!… Que mágica, divina
metamorfose!… Quem tal aprontou?… Certamente o Conde Maldoror!…
RASKABOFF
[Exasperado] ⎼
Não sejas paspalha, Galatéia!… O
Conde Maldoror está em Montevidéu.
NARRADOR DOIS ⎼ Euxímio desponta a cabeça:
EUXÍMIO ⎼ Fui
eu, Euxímio, o Demiurgo…
RASKABOFF ⎼ Contenha-te,
pernóstico ponto de mafuá. Vá de retro, Sacana! Que o Ponto do Buraco volte ao
Buraco do Ponto!!!
EUXÍMIO ⎼ Não
há mais ponto a soprar. As ilusões foram profanadas, as sombras improvisam suas
gargalhadas e espasmódicos discursos. Estamos vivendo o horror das causas
jamais sonhadas. O labirinto é de vidro transparente, porém ainda assim nos
perdemos em seus ângulos debochados.
NARRADOR UM ⎼ Raskaboff
esbraveja em evidente descontrole:
RASKABOFF ⎼ Pare de cafungar cinzas, oráculo dos
inúteis, vate de purgatório!
EUXÍMIO ⎼ Fera promíscua, o teu jejum te fez prosperar
entre estátuas e séculos de raízes carbonizadas! Graças a ti as épocas futuras
não mais se ramificam! Ressecaram as lagoas sexuais e os anjos primitivos se
foram a chafurdar em sonhos imaturos. Os atores, de inumeráveis, passaram a
vítimas de teu escárnio. Alguns confessam crimes que jamais cometeram.
Acrobatas de musgos e estercos, trapezistas de cordões umbilicais ressecados,
domadores de lâmpadas queimadas… Eis a que reduziste o arame e o espelho.
NARRADOR DOIS ⎼ Conde
Raskaboff, empalidecendo de fúria mal contida, urra pra Condessa:
RASKABOFF ⎼ A audácia, desse ponto rastaquera!… A
subversão de valores!… Perfíííííídiaaaa!!!
NARRADOR UM ⎼ A Condessa, assustada,
cobre a face com o leque:
GALATÉIA ⎼ Mas Raska, não é a mim que deves imprecar,
mas sim ao desaforado Euxímio!
RASKABOFF ⎼ Assim o faria, Galatéia, mas o cínico
moleque pulou dentro do buraco do ponto.
NARRADOR DOIS ⎼ BRIIINGGG!!!
Soa o telefone!
RASKABOFF ⎼ Euxííímio! Telefone!!!
GALATÉIA ⎼ Ele não sairá do buraco, Raska… Ele não é
assim tão parvo… Atendo eu mesma.
NARRADOR UM ⎼ Galatéia dá
charmosa corridinha e atende, de voz maviosa:
GALATÉIA ⎼ Alô, sim… Mas!!! Vou avisá-lo…
NARRADOR DOIS ⎼ Tapa o bocal
do aparelho e sussurra:
GALATÉIA ⎼ Raska… Ele quer falar contigo…
NARRADOR UM ⎼ Raska arca o
sobrolho:
RASKABOFF ⎼ Ele quem, Galatéia?…
NARRADOR DOIS ⎼ Galatéia
solta veludoso suspirão:
GALATÉIA ⎼ Ora, o próprio Conde Maldoror…
NARRADOR UM ⎼ Raskaboff,
pálido, rola em espasmos pelo chão.
NARRADOR DOIS ⎼ Os ratos
puxam cordinhas e nos dois extremos do palco vemos surgir a magnificência de
desmedidos telões em que se reproduziam hábeis picotes com cada uma das
palavras que brotavam do telefone:
MALDOROR ⎼ Escutem o verbo ganhando a simpatia de todas
as súplicas. Estamos todos aqui por uma causa fora do tempo. A linguagem perdeu
o propósito e a multidão tosse em um tropel religioso repleto de receios
estropiados. A multidão vitupera o próprio vômito e urina a esmo com um afã
gravitacional a despertar as melhores gargalhadas em todos os seus ídolos. A
multidão finalmente compreende que jamais soube aonde ir.
RASKABOFF ⎼ Não te atrevas a…
MALDOROR ⎼ Cala-te, pergaminho sombrio das deidades
fraudulentas!
GALATÉIA ⎼ Quanta pujança! Que garboso cigano a memória
me torna provável! Ai como me coça por dentro a felicidade mais cega!
MALDOROR ⎼ Não te iludas, minha pobre alma pervertida,
a memória é um mercado voraz, tomado por lavouras murchas e reflexões fora de
uso. Olhem à volta, a harmonia putrefata de tantos cúmplices do mesmo
infortúnio. O que ainda pretendem com este circo de alucinações inclementes?
NARRADOR DOIS ⎼ Euxímio
arrisca um pouco a mostrar a cabeça fora do buraco do ponto:
EUXÍMIO ⎼ Não responda, Conde Raskaboff, à provocação
solerte do Conde de Maldoror… É um padre que pendurou a batina e faz sucesso em
Paris. Os franceses adoram pornochanchadas. Telefono agora pro Frei Feijão
[trec-trac-trec… Briiiinggg] Alô, Frei Feijão,
aqui fala Euxímio. E como vai Vossa Santidade?
FREI FEIJÃO ⎼
Não soltes blasfêmias, Euxímio!… Sua Santidade é o Papa.
EUXÍMIO ⎼ E
Vossência, o que é?
FREI FEIJÃO ⎼
Sou um modesto frade a serviço do Senhor.
EUXÍMIO ⎼ Pois
tenho um biscate pra Vossência. Está falando, no outro telefone, o Conde de
Maldoror, soltando bocagens e ameaças…
FREI FEIJÃO ⎼
Domininus Nosbiscum!!! [Plofft!!]
NARRADOR UM ⎼ Euxímio esfrega o ouvido:
EUXÍMIO ⎼ Ai,
que porretada auricular… Frei Feijão desligou rápido, Conde Raska… Na certa vem
à toda, pra cá.
RASKABOFF ⎼ Vá
esperando, bom rapaz…
NARRADOR DOIS ⎼ Raskaboff mal fechou a
matraca de suas descrenças e um sopro de luz abre um portal entre dois mundos
por onde adentra, com uma parelha de gárgulas, o refulgente vigilante das
quedas, Frei Feijão em pessoa (segundo a crença de cada um).
EUXÍMIO ⎼ É
ele…!
RASKABOFF ⎼ É
ele…?
EUXÍMIO ⎼ Alguém
duvidaria?
FREI FEIJÃO ⎼
Ao fogo do Inferno com essa mania de dar
ouvidos ao vendilhão de queixas e ao bronze voraz das superstições. As lendas
são moídas no arcabouço da razão. Os mitos queimam como dragões desossados. Eu
vim para atracar novos ritos na bacia dos sonhos. Este Maldoror não passa de um
bastardo salpicado pela pólvora seca da vingança. Sua persistência é a de um
pesadelo que se esbalda em caldeirões sexuais.
GALATÉIA ⎼ Quanta inveja reluz por toda a boca desse infame… Quem falaria assim de
meu Maldorinho…? T’escunjuro, frade tosco das varandas puídas!
NANÁ ⎼ Xerry, como fala este homem! Que vozerio mais primitivo me acende os
bosques como um lagarto dourado! E seus cães negros, ai que me guardem os dias
e as noites, e me regalem os santos óleos do orgasmo mais divino!
RASKABOFF ⎼ Patifes em rede! Quanto injúria salpicada de
terror!
FREI FEIJÃO ⎼
Tragam-me a vareta de súplicas e outros
truques banais desse prestidigitador de feira. Vamos acabar de vez com essa
histeria suicida. Logo mais teremos a missa campal de reabertura do Circo. Ou
Maldoror reassume suas funções de mágico ou simplesmente o converto em uma de
minhas gárgulas. Chega!
NARRADOR UM ⎼ Ratos entram
com um imenso fonógrafo e o colocam ao fundo do palco. O fonógrafo traz-nos a
voz sacudida de Tino Strippa, aos solavancos das rachaduras do secular vinil:
FONÓGRAFO ⎼ La Dodô nemó nemó nemóbileeee… mumu dadacen
tete de pensiere… Fifi… Fifi… garôlá fí gagaroquá… Messô tornato
uné… unééééé… brioooo… Riiiide… Riiiide Palhazzzo… aymé … dolore del mio
dolore… una furti… tivaláááááá… grima… E puoi morirrrrrr d’amore…
o-ro-ro-rooooooo…
NARRADOR DOIS ⎼ Euxímio, sentimental
contumaz, leva o lenço aos olhos marejados e funga o nariz:
EUXÍMIO ⎼ Fooonnnnng!!!… Ai, que lindo… Ai!… Como
era diferente o amor no Theatro São Carlos, em Portugal…
FONÓGRAFO ⎼ Riiiide
Palhazzzo… lhazzzo… azzzo… azzzo… zzo…
NARRADOR UM ⎼ O 78 rotações gagueja,
engasga, entope… Não há quem faça ele dizer o verso seguinte. O jeito é apagar
as luzes, de um solavanco só, assim: fiat breu…
BELTRÃO ⎼ Desliga essa joça. Acabou, acabou!
NARRADOR DOIS ⎼ Sussurra
Euxímio, do fundo do buraco do ponto:
EUXÍMIO ⎼ O fonógrafo produz um silêncio sepulcral, o
Nada é mais terrível que a vontade inextinguível do Conde Maldoror de soltar
mefíticas blasfêmias atentatórias à ordem pública e aos bons costumes.
Fechou-se a boca do Inferno do fonógrafo, mas o telefone, onde vocifera o
satânico Conde uruguaio, segue a satanizar a Humanidade!… Nunca mais sairei do
meu buraco do ponto!…
NARRADOR UM ⎼ Eis que
intervém solene o impoluto Frei Feijão, e duma afiada tesoura vulpinamente corta o fio do telefone, e cala
assim a voz da revolta e da liberdade. Brada triunfal, o cruel sacerdote:
FREI FEIJÃO ⎼
Rejubila-te, Euxímio, e volta à luz plena dos holofotes!
Organizarei monumental Missa Campal para agradecer à Providência o fim da Insânia
e Luxúria que o Solerte Conde Maldoror havia lançado sobre nossa honesta
comunidade!..
NARRADOR DOIS ⎼ Barão Raskaboff aproveita a
deixa pra luzir um pietismo exacerbado:
RASKABOFF ⎼ Magnífico,
Dom Feijão!… Uma bela Missa Campal, com órgão tocando uma fuga de Baco, e a
seguir, uma monumental procissão de devoção à Pastorinha do Brejo, Manuela, que
salvou Portugal dos Britânicos e foi queimada pelos
sacerdotes apóstatas de Londres, em processo manipulado pelo sinistro Rei Eduardo
Barbazul.
NARRADOR UM ⎼ Ouvem-se clarins triunfais.
Baixa o Sol na fossa da orquestra, e se apaga.
VIII. GRANDE MISSA CAMPAL
NARRADOR DOIS ⎼ O palco é
todo grama e céu, limpidez austera que aos poucos vai se deixando abrandar pela
entrada dos personagens. Por todas as partes eles vão surgindo, em duplas ou
pequenos grupos. O palhaço Dorval, que sempre quis decifrar as litanias do
mistério púbico, coça seus bigodes de rato velho e fala a seus seguidores como
se fosse compreendido:
DORVAL ⎼ A imagem perfeita é aquela que não encontra
semelhança.
NARRADOR UM ⎼ O biógrafo
Ciclope entra com meia dúzia de ratos que o ajudam a arrastar um sacolão
repleto de pequenos ossos humanos.
CICLOPE ⎼ A morte é a aventura definitiva da memória.
Uma vez desossado o homem começa a contar sua verdadeira história.
NARRADOR DOIS ⎼ O rato
Beltrão então improvisa uma confusão:
BELTRÃO ⎼ Haverá mesmo uma verdade possível?
CICLOPE ⎼ Não te exibas fora de teus domínios,
ratazana de cartão! A verdade atua de acordo com a fé, como certamente nos dirá
logo mais o representante de nosso redentor.
NARRADOR UM ⎼ O palco vai
se empanturrando de figurantes, até que do centro vemos brotar um gordo
cogumelo ao mesmo tempo em que desce dos céus, arrumado por fios invisíveis, o
majestoso Frei Feijão.
NARRADOR DOIS ⎼ No balcão nobre, prefeito
Aristófanes Janjão e exegeta Dascartas contemplam a descida dos céus de Frei
Feijão, com certa admiração. Sussurra o prefeito:
PREFEITO JANJÃO ⎼
Nada mal, prum Circo d’arrabalde, patrocinar a realização
dum milagre carismático em pleno picadeiro. Um estímulo pra nossa religião.
NARRADOR UM ⎼ Contrapõe o exegeta:
DASCARTAS ⎼ Frei
Feijão pensa, logo existe. Mas o Povão não pensa, logo acredita.
NARRADOR DOIS ⎼ Janjão s’espanta:
PREFEITO JANJÃO ⎼
Cética assertiva, Dascartas…!
NARRADOR DOIS ⎼ Clarins
abusados emudecem o imenso oh que se formava, de pura estupefação. O prado
circense é banhado pela figura mística e gorda de Frei Feijão que, a postos,
passa um lencinho na testa e quase soletrando dita com sua voz abençoada:
FREI FEIJÃO ⎼
Aqui estamos irmanados, sem considerar
tempo ou espaço, para dar nova vida à realidade sublime de nosso desejo. Os
anjos do Senhor abençoarão o ventre primordial de onde ressurge o máximo
paradigma da aventura humana: o Circo.
NARRADOR UM ⎼ Feijão infla
os pulmões aquecidos e dedica-se a um latim prodigioso que ninguém pode
entender. Silábico e incontido, o homem santo parece levitar em meio a seu
discurso.
DASCARTAS ⎼ Que fervor de benevolência, que geométrica
desmesura, que dilatado telurismo!
PREFEITO JANJÃO ⎼
O homem voltou assim, após uma semana no
Vaticano.
DASCARTAS ⎼ E quem datilografa os papéis de Frei Feijão?
PREFEITO JANJÃO ⎼
Quais papéis, meu caro Rosnaldo Dascartas?…
DASCARTAS ⎼ Qual
se não fossem os que lê Frei Feijão em seus manifestos?… Quereis insinuar,
Prefeito, que outros há, secretos?
PREFEITO JANJÃO ⎼
Longe de mim, Rosnaldo, duvidar de nosso paladino da fé!…
Frei Feijão é um santo, que em boa hora nos enviou a Santa Providência.
DASCARTAS ⎼ No-lo
enviaram a Santa Providência e Vossa Sacra Administração…
PREFEITO JANJÃO ⎼
Ora, meu caro Rosnaldo, quem sou eu… Só faço cumprir meu
dever a bem da cidadania de nosso exemplar Distrito!…
DASCARTAS ⎼ Sim,
exemplar, graças à vossa morigeração nos gastos públicos, e à energia de vosso
Delegado Cienfuegos.
NARRADOR DOIS ⎼ As crenças eram atropeladas
nos bastidores. Porém o inesperado ainda contém uma aurora que não se encaixa
na paleta de horizontes da realidade. Antes que o público percebesse o ocorrido
com o latim em pó de nosso recomendado pelo Vaticano, foi imperativo fritar a
ressonância do anúncio na rádio local:
RÁDIO BOA CARTADA ⎼
Alô Alô!!! Notícia de última hora!!! Delegado Cienfuegos
acaba de prender Frei Feijão!!! De primeira mão ⎼ a única aceitável ⎼ transmitimos agora as
palavras que bem poderia ter dito nosso impoluto sacristão das leis, caso
estivesse em condições de alguma declaração:
CIENFUEGOS ⎼
A imortalidade não é para quem a deseja
ou chafurda em suas águas repletas de signos indecifráveis. Como imaginar entre
nós um representante de Deus que fala uma língua que ninguém compreende. Deus
deve ser claro e nos garantir o privilégio da crença. Lamento pela festa criada
em torno de nosso espelho mais fiel da realidade, nosso Circo inimaginável e
torrencial em seu milagre da alegria inesgotável (hic), porém (hic), porém, eu
já dizia, não há como abrir um ovo dentro de outro. O que pode refletir um
espelho cego? Vamos mofar esse frade descorado, tribuno do incompreensível, e
cuidar de não perder a chave de nossa alegria. Vamos à voragem desnuda de nossa
alma pátria. Vamos ao Circo!
DASCARTAS ⎼ O delegado Cienfuegos é ainda mais inspirado
que Frei Feijão. Receio que uma rivalidade entre os dois mestres retóricos, um
da Teosofia e o outro da Delegacia, acabe indo às vias de fato.
PREFEITO JANJÃO ⎼
A Delegacia, amparada na nossa Borracha secular, tem mais
autoridade que os baforismas da Teologia Escolástica. A Força Secular da
Porrada é mais forte que os Burburinhos da Fé.
DASCARTAS ⎼ Muito
me admira, Prefeito, que aprovais que o Regime da Força tripudie o Direito da
Fé. A meu ver, deveríeis prender o atrabiliário Cienfuegos e liberar o inócuo
mártir sacerdotal.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Mas quem prenderá o Delegado? Ele manda na Força Policial.
Ele é a Espada da Justiça. E eu… a Balança. No caso dum conflito de
competências, não quero ser preso pelo Cienfuegos.
RÁDIO BOA CARTADA ⎼
É o Direito da Força sobre a Força do Direito. Mas… a
Polícia irrompe em nosso estúdio. Calma, calma. Uma blasfêmia jurídica! Que nos
socorra o Prefeito Janjão!… Queremos Janjão!!!
NARRADOR UM ⎼ Ao perceber
que o diálogo vinha sendo todo alterado o público rasgou a faixa onde era
impressa a legenda. Descobriu-se assim que o caos não tem fronteiras. Melhor
seria convocar os músicos e Batuto Valdescópio para que tenha início o Circo,
antes que a noite se conclua na delegacia. O palhaço Dorval faz piruetas
desordenadas por todo o palco, enquanto brada:
DORVAL ⎼ Ao xilindró com tanta aberração!
NARRADOR DOIS ⎼ Como um corisco então em cena
Napoleão em seu cavalo de três patas, com ar zombeteiro, estufa o peito e
arremeda o palhaço:
NAPOLEÃO ⎼ Ao xilindró com tanta aberração!
NARRADOR UM ⎼ Ao fundo suspiram as freiras
sonâmbulas, cada vez que Plutone ergue seu martelo e proclama o
desabamento da Fé e os chiliques da Força. A anã Naná corre pelo palco nuazinha
como se fugisse da própria tumba.
PLUTONE ⎼ Nossa
memória está perdida. Tudo o que um dia fomos não reconhece o caminho de casa.
Sonhos enlouquecidos roubaram as pálpebras do horizonte. O vento correu para o
fundo da quermesse. Os lábios só falam em cinzas e cátedras suicidas. A vaidade
é um deus jaculatório. Desmontem o tablado e castrem os fantoches. O mundo não
comporta mais tanta religião, nem mesmo tanta ciência.
DORVAL ⎼ O mundo não comporta tanta polícia!
NAPOLEÃO ⎼ O mundo não comporta tantos desmandos
disfarçados de Juízo Final!
NARRADOR DOIS ⎼ Naná invade
novamente a cena, porém desta vez já em seu traje circense, embora ainda
fugindo de um incógnito estribilho:
CORO ⎼ Destranca a rolha
do fundo da pia.
Não deixe a calha
ocultar uma gia,
nem mesmo a anã
ficar pra titia!
NARRADOR UM ⎼ Ao que tudo indica a noite
está mudando de assombro. As lâmpadas cospem suas luzes
agitadas. Uma charanga faz coalhar o silêncio. Aos tropeços, aos tropeços, a
vida volta a não ter fim.
DASCARTAS ⎼ Confesso, Prefeito, que a essas
modernidades, prefiro os circos de antão, com graças finas pra melhor
sociedade, bailarinas dignas do Ballet da Ópera Garnier, e carruagem de luxo,
tirada por dois fogosos corcéis, adentrar no palco trazendo uma bela donzela,
salta fora, e dançando divinamente, rodopia, rodopia, e se aproxima do lago ao
crepúsculo invernal, onde o Cysne, aprisionadas as asas nas águas congeladas,
solta o seu canto de morte…
PREFEITO JANJÃO ⎼
Ah o canto de morte! Como matávamos tão
bem o tempo e os inimigos naqueles idos da boa causa. Hoje a morte é uma
pasmaceira, um contrato, uma seringa, um frango de granja. Meu caro Dascartas,
quem sabe não poderíamos nós mesmos recriar o Circo ao modo de nossos deleites!
NARRADOR DOIS ⎼ Rato Beltrão
comanda, em sua bojuda sanfoninha, acompanhado de um quinteto de ratinhas, o
mais faceiro interlúdio:
BELTRÃO ⎼ Se
a anã ficar pra titia,
a culpa talvez
seja
do Conde
Raskaboff.
No que tanto o
Conde se continha
acabou sendo ele a
imprópria titia.
Mas se ele
pegou a anã
disfarçado de
titia,
foi uma falaz
covardia.
Três palhaços levam
a mão
À proa de seus
risos!
O Conde levado leva
a anã
À popa de seus
truques!
O pérfido
Conde,
levando a
preciosa presa,
sai do palco e
fecha…
sai do palco e
fecha…
e fecha as
cortinas.
IX. CIRCO
CYCLAME
DASCARTAS ⎼ Agora
sim, Prefeito, temos um Circo de fino gosto, nostálgica evocação do fim do
classicismo elegante, simbolizado na comovente imagem do Cysne prisioneiro nas
águas do lago congelado, soltando o seu canto de morte, provavelmente um
soneto, com sofisticados emjambements…
PREFEITO JANJÃO ⎼
Enjambements?… Enjambamentos?… Que vem a ser, exatamente?…
DASCARTAS [em pigarrinhos] ⎼
São… empernamentos… Mas empernamentos eruditos, finos… de
salão chique. Nada a ver com baixarias pornográficas da Buate Gato Preto.
Queremos coisa de elite…
NARRADOR UM ⎼ Um bombardino se espreguiça
ao fundo da cena, como uma gata menstruada arrastando a longa cauda. A memória
dos dois trota com a inquietude de trepadeiras felizes percorrendo o espinhaço
do palco. O prefeito espreita cavidades e relevos nas tiradas de Dascartas, e
este salpica a conversa de confissões estapafúrdias. Aos poucos vão criando uma
narrativa espasmódica com saltitantes fantasmas e uma horta onde brotam
inusitados instrumentos que recriam a partitura com imagens que dançam e
entrelaçam os sonhos de infinitas mesas. As sombras se desamarrotam nessa
acústica escala de visões. Um bailado de medusas e esfinges comove o tablado de
onde surge uma fonte de águas luminosas que cantam como se desatassem todos os
verbos da chuva. Inesperados espelhos se postam ao redor do cenário
multiplicando a escritura ambicionada pelo público que bate os calcanhares no
chão acompanhando tambores e trombones.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Seis cavalos penteados trazem em seu
dorso uma sereia vaidosa que renasce a cada olhar com sua ignota deidade
interior.
DASCARTAS ⎼ Logo atrás crescem em seus vasos seis
palmeiras destinadas a cativar mil disfarces, com seus rostos irreconhecíveis e
belos como um relâmpago emplumado.
PREFEITO JANJÃO ⎼
E lá no canto, veja, Dascartas!, um
paradigmático jardim, com flores dignas dum Fido della Pirandola!…
DASCARTAS [em pigarrinhos] ⎼
Mas… acho que o Fido não era propriamente pintor figurativo…
escreveu uns palíndromos socialistas a bem dos proletários e campônias de
Palermo.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Eu me referia, especificamente, a seu encanto pelas flores…
Pirandola mandava o Postilhão sofrear os sôfregos corcéis da berlinda, e apeava
com suma elegância, pra colher flores na
beira do caminho.
DASCARTAS ⎼ Até
que um dia… havia uma loba no meio do caminho, no meio do caminho havia uma
loba, a feroz Carcanella, que antes já perseguira um Vate famoso…
CARCANELLA ⎼
Se a vida não me cai na luva eu lhe exijo
retratação imediata. Não se chega a lugar algum caçando o espinhaço de deuses
mortos.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Quem é ela?
DASCARTAS ⎼ Quem ela poderia ser?
CARCANELLA ⎼
Não se façam de parvos, que nem mesmo as
fuças de asnos chegam a ter, meus intrigantes inventores de torres.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Foste tu que a arrancaste de seu limbo?
DASCARTAS ⎼ Um velho truque que pensei nem mais
funcionasse… E agora?
PREFEITO JANJÃO ⎼
Fazemos o mito regurgitar os mapas do
naufrágio. Quem sabe um novo dilúvio!
DASCARTAS ⎼ Nem por sonhos, prefeito! Ensandeceu, meu
cura de kermesse? Não vamos fazer deste lírio uma arma proibida. Ela bem
poderia seguir estrada conosco, em nossa carruagem viva, em busca da casa mais
flamejante do zodíaco.
CARCANELLA ⎼
Não deem as cartas com o baralho trocado
ou afaguem relâmpagos aos prantos. Não contem comigo para pilhar moedas em
olhos de defuntos. Se querem abrir janelas na paisagem, contem comigo, sim, mas
não se atrevam a cortar a cauda das víboras que acaso surjam nos umbrais dos
mais ambiciosos astrolábios. Selem os cavalos, rápido, não se deve dar descanso
ao vento ou ao pensamento.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Mas quem diabos é ela?
DASCARTAS ⎼ Nem te atrevas a perguntar. Vamos corrigindo
o caminho a cada passo.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Eis que Pirandola nos acena, gentil, a
que venhamos em sua berlinda.
DASCARTAS ⎼ Ai,
que o caminho é interminável… Teremos de aceitar… O convite é gentil e vem a
calhar. Mas teremos de ouvir, ao longo do caminho, os intermináveis palíndromos
de Pirandola.
PREFEITO JANJÃO [Estalando os
dedos] ⎼
Clap-Clap!!!… E eu que bem sabia, mas agora num lapso me
esqueci… Clap-Clap!! O que são… O que são… Ora!!!… Esqueci!… Clap-Clap!!!…
DASCARTAS ⎼ Palíndromos…
Estamos chegando à carruagem. Logo saberás… [dirige-se a Fido:] Olá,
Pirandola!!!
FIDO DELLA PIRANDOLA ⎼ Olá Alô!!! Roma Amor Stars Rats!!! E
esta Raposa é vossa?…
DASCARTAS ⎼ A
mim, Pirandola, mais se parece uma Loba, só o poderia dizer o Abade Baldo, um
especialista em lobos, raposas, chacais e gambás…
FIDO DELLA PIRANDOLA ⎼ Dabale arroz a la Zorra el Abad…Pero nada de olvidarse
que hay que cerrar las manos para que sepa el caracol dorado que debe aprender
a nacer de una miserable realidad. Hay que peinar el vientre de las vírgenes
para que sus sombras puedan orinar en el rostro de la luna soñada. La tierra es
como una fuga soplada por trompetas espantadas, mis amigos. Dale máquina a las
piernas del tiempo. No hay otro modo de hacer con que pase el Circo por el
hueco flameante de las agujas más sagradas.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Vamos mesmo com essa gente?
DASCARTAS ⎼ Nem pense em destratá-los, prefeito. Os dias
de esterco florido estão ficando para trás. Vamos!
PREFEITO JANJÃO ⎼
E os tais palíndromos?
DASCARTAS ⎼ Não lembre, não lembre. Se ele roer esse
osso, não ficará em uma simples palavra. Logo atacará com a cara rajada da
jararaca ou a sacada da casa. Vamos!
NARRADOR DOIS ⎼ Assim o
quarteto afia o gume da estrada, fuçando em seus vértices, mordendo a
respiração acelerada dos labirintos, espatifando alguns descuidados búzios
transeuntes…
PREFEITO JANJÃO ⎼
Ah o caminho, o caminho é tudo!
DASCARTAS ⎼ Quem sabe não encontramos por aí o Abade
Baldo, que bom seria tê-lo conosco a rasgar as janelas de um novo Circo.
FIDO DELLA PIRANDOLA ⎼ Circo Cyclame, es como debe serlo. La plenitud de la
sorpresa! Rellena de fosas luminosas
preparando las más súbitas epifanías.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Circo Cyclame!
CARCANELLA ⎼
Não esqueçam uma única janela fechada. Os
corpos abertos redescobrirão o refinamento de uma entrega total. A sede nos
guiará e veremos todas as coisas acontecerem sempre pela primeira vez.
DASCARTAS ⎼ Circo Cyclame!
CARCANELLA ⎼
Tire a mão daí, safado!
DASCARTAS [Tira a mão bem rápido]
⎼
Mas eu não fiz nada!… Queria examinar,
Dona Autômata, o mecanismo sutil de sua cauda…
CARCANELLA ⎼ Autômato
é o rosquel da tua velha!… Pensas que não percebo?… Esta tua desculpa
esfarrapada de considerar os animais meros autômatos, para dar vazão à
lubricidade sado-masoquista de teus brutais baixos instintos!…
FIDO DELLA PIRANDOLA ⎼
Pruma loba, Carcanella é excepcionalmente
articulada!… Que magnífica é a sua oratória…
DASCARTAS ⎼ Justamente,
ela é um autômato muito sofisticado, com mecanismo fonográfico que reproduz um
discurso sonoro de Edson…
CARCANELLA ⎼
No fundo, Dascartas, como todo
racionalista, és um vão materialista, que se faz de catolicão pra não pegar
pau-de-fogueira. Não à toa fugiste pra Holanda!…
FIDO DELLA PIRANDOLA ⎼
As campônias holandesas são loiras de cima a baixo e
robustas… Gorduchas faceiras numa adorável paisagem de moinhos de vento…
PREFEITO JANJÃO ⎼
Olhem a paisagem! Olhem!
DASCARTAS ⎼ Estamos à entrada do Labyrintho.
As janelas começam a palpitar suas imagens absurdas.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Ali! Ali! Vejam!
DASCARTAS ⎼ Quimeras entretidas com o mistério que não
conseguem conter. Seus rostos ausentes amparam uma insólita forma de renascimento.
O mundo caminha como se passasse a existir a cada passo.
CARCANELLA ⎼
A cada cadarço um novo e humilde enigma.
DASCARTAS ⎼ Humilde nada. Não veem toda essa unanimidade
antropofágica do inusitado? Escutem o chamado dos estados mais verdadeiros da
matéria! Deixamos a zona dos almanaques e das cartilhas religiosas. Espelhos e
máscaras aqui já não mais atuam como monstros taciturnos.
PREFEITO JANJÃO ⎼
Vejam!
FIDO DELLA PIRANDOLA ⎼
Eis que lá está o Conde Maldoror, parado
no meio da estrada com seu longo capote negro, bengala, chapelão e enorme fular
vermelho…
MALDOROR ⎼ Postilhão,
sofreia a berlinda, vou entrar…
POSTILHÃO ⎼ Vais
entrar não, ias… Se hoje fosse Carnaval. Não tem mais lugar. Lotação esgotada.
MALDOROR ⎼ Pois
então, vou contigo na boleia. Poderei apreciar a abóboda celeste estrelada de
globos impassíveis e irritantes, um espetáculo que começo a achar não seja lá
tão grandioso quanto eu imaginava.
POSTILHÃO ⎼ Que
me importam abóboras, celestes ou de quintal!… És um vão estroina, um filho
impróvido, um herege blasfemador.
FIDO DELLA PIRANDOLA ⎼
Nosso Postilhão revela-se um orador sacro de grande pujança
na sua apostrofação do Conde Maldoror.
DASCARTAS ⎼ Ora,
Pirandola, me admira você fazer agora o panegírico desse postilhão papa-hóstias
ignorantão.
NARRADOR UM ⎼ O Conde de Maldoror é uma trágica Estrela Negra, que fulge
nas trevas na noite…Seu vulto muda de forma como uma haste sagrada que rege
todas as artes. Nunca se sabe o necessário para mantê-lo em lugar algum. Seus
truques são inapeláveis, como a própria criação de sua lenda. Dois segundos na
boleia e já era o mais invisível de todos os personagens.
POSTILHÃO ⎼ Onde se meteu o parasita das
ilusões?
FIDO DELLA PIRANDOLA ⎼
Não o trate assim, que agora mesmo pode estar alterando o
parágrafo final da própria existência, oh meu imponente e embaraçoso cocheiro
de galopantes racionalidades.
POSTILHÃO ⎼ Ah
ah ah! A natureza humana é a mais real de todas as alegorias! O homem põe o
conhecimento acima de tudo, porém o teme quando lhe revela o mal superior ao
bem.
CARCANELLA ⎼
Guardem as cartas, seus putos de estrada!
Vejam no alto daquela janela, tão altivo bode concebido para o espanto, como
faz do telhado um solar místico! Quem seria?
POSTILHÃO ⎼ É
ele! É ele! Não importa o disfarce, a pintura, o selo real. É ele!
PREFEITO JANJÃO ⎼
Quem, diabos de montador de tresloio? Não
vês que se trata de um imponente bode!
POSTILHÃO ⎼ O
que vemos não é o que vemos, já nos alertaram todas as novelas mitológicas. O
homem se comunica através do desconhecido. O que verdadeiramente importa é
aquilo que nos confunde, o mundo intermediário, a condição inata do invisível.
CARCANELLA ⎼
Parem com essa confrontação imbecil! Com
esses torpedos de injúrias! Com esse leilão de falsos pareceres! Já se foi a
janela, como uma moldura fujona, e levou consigo o que vimos e o que pensamos
ver. O mistério detesta os pequenos formatos, os amiudados enquadramentos.
DASCARTAS ⎼ Abram os olhos para… Para mesmo o quê? Ah
sim, para o método com que o desejo despista as provas de nossas limitações…
Está bem assim? Hum, exagerei na dose? Prefeito, me ajuda, põe uma janela
rápido naquele parede ali…
PREFEITO JANJÃO ⎼
Meu prezado Dascartas, dizer-te devo,
tenho um caráter espartano e augusto, de severo busto romano. Por isso uso esta
toga vermelha… e coroa de loiros nos cachos…
DASCARTAS [Estala os dedos] ⎼
Mas… Plac-Plac!… Prefeito, agora percebo!… Sois o Busto de
Agripa!… A lâmpada da Berlinda produz um
belíssimo jogo de claro-escuro, em vossa face de variados relevos…
PREFEITO JANJÃO ⎼
De variados relevos… de
variados relevos… de variados relevos… de…
FIDO DELLA PIRANDOLA [Estala os
dedos] ⎼
Eureka!!! Plac-Plac!!! O Prefeito é um busto romano!!! Está
ecoando nossas palavras!!!…
PREFEITO JANJÃO ⎼
Eureka!!! Plac-Plac!!! Eureka!! Plac-…
NARRADOR DOIS ⎼ Ninguém até então dera pela entrada de um novo cenário. Um
novo Circo estava chegando, desenhado pela soma de suas imaginações. E eles tão
entretidos em hábitos d’antanho ainda não se apercebiam. Talvez Carcanella,
pelo que estranhava e se maravilhava com súbitas aparições numa que outra
janela que aportavam em algumas paredes vivas do Labyrintho que adentravam.
Carcanella intrigada com a mútua criação que saltava de uma janela para outra.
Carcanella interrogada pela fascinação daquelas imagens impressas na paisagem
pela pena astuta de um relâmpago.
CARCANELLA ⎼
São como fantasmas felizes confundindo-se
com o cenário de mil sonhos, um vasto trigal de cintilâncias. E são todos tão
próximos, como se os conhecesse toda uma vida.
NARRADOR UM ⎼ Sim, ela começava a perceber que
o mundo visível manejava outros materiais, que uma arquitetura misteriosa
parecia dominar os velhos vícios da realidade. Deslumbrantes ou cruéis, agora
surgiam novos símbolos do inesperado. Os personagens que compunham o teatro orgânico de suas visões eram frutos
mestiços de muitas águas passadas. Alguns ainda manuseados pelos umbilicais
cordames da metáfora. Carcanella sussurrando seus antigos nomes, o rosto
reluzindo pelos vestígios de uma reverberação de lâmpadas da memória.
CARCANELLA ⎼
Trapézios, monociclos, pratos voadores…
Aros de fogo, pinos saltadores, camas elásticas… Alucinante metamorfose,
baralhos iluminados, argolas dançantes… As vértebras de uma nova magia salta de
todas essas paredes como se desentranhassem um mundo há muito guardado dentro
de nós. O que me entra pelos olhos é a dissimulação do mito. É a convocação
obstinada de uma outra existência. É a minha até aqui indecifrável ambição da
totalidade. A alma liberta das transmissões truncadas do desejo tutelado pela
diáspora.
POSTILHÃO ⎼ Vejam
como se agiganta à nossa frente o circo que nasce do olhar de Carcanella!
FIDO DELLA PIRANDOLA ⎼
Vejam o Circo! O Circo Cyclame!
NARRADOR DOIS ⎼ A berlinda chega diante do Circo
Cyclame que lubricamente, qual triunfal odalisca, se pavoneia todo
embandeirado… É o delírio das massas!… Multidões se precipitam ao guichê… Uma
maravilhada basbaquice geral, contemplando embevecidos um tal luxo que nem
sequer o circo Barnunga, mesmo nos seus mais gloriosos tempos, jamais!… Jamais
conheceu…
PONTO EUXÍMIO ⎼
Eis o momento estratégico para finalizarmos tão grandioso
Ato. Melhor agorissimamente!!!… Porque o que vem depois… Ninguém sabe… Ei sus!…
Avante Anão!!! Preeeeessssttttoooo, baixa, rapaz, preeeesssttíísssimooooooo!!!,
BAIXA a CORTINA !!!
CORTINA ⎼ PAAAAAAAAAAAAAFFFFFFFFFFFFFF!!!!…
X. A ORELHA
ATRÁS DA PULGA
NARRADOR UM ⎼ Acordei nos seios da Noite com
ganas de fazer cócegas nos pezinhos de Naná. Não a encontrei em parte alguma.
Ergui o olhar para indagar ao Mendigão e o que vi foi tão-somente o trapézio
vazio. Decidido a desvendar seu paradeiro fui dali então à tenda do Mago Kefir,
que igual não se localizava. Algo devo ter perdido na passagem de um ato para
outro. Quem sabe saltei uma casa de taipas do Zodíaco, ou ceguei o lápis de giz
que a tudo dá uma forma distinta daquela que parecia tão sua. Ponho o vento
para secar no varal e a lua enxovalhada na tina. Me deito novamente enrolado com
a sombra crescente de tudo quanto me falta. O que houve com o círculo de fogo
que há séculos ilumina nossa existência? Onde estão as pálpebras mágicas da
alegria? O baile de espelhos em que as árvores dançam mais do que seus
indecifráveis ecos? Onde?
NARRADOR DOIS ⎼ Talvez o Mago Kefir tenha perdido
sua mágica bola de cristal, onde todas essas maravilhas se refletiam e
magicamente nos envolviam… Ou então… Pior ainda… Ele lavou a bola!… Não se
poderia negar que a bola bem merecesse uma lavagem… Mas, assim perolada, a bola
perdeu sua magia!… E agora só saberá refletir a imagem da óbvia realidade que a
rodeia.
NARRADOR UM ⎼ Meus olhos procuram no panegírico
da memória os nomes dos primeiros mágicos. Nos confins de idiomas que já se
foram encontramos os papeis ressecados com anotações quase ilegíveis de truques
que ainda hoje não compreendemos muito bem. O deserto é mais hospitaleiro que o
mar, desde que por ali não nos deparemos com um enigma extraviado. A magia
implica em convencer a profecia de seu uso somente sob certos ângulos. A magia é o que se esconde
atrás das cortinas e nossos olhos perdem quando sorri para nós ostentando a
única prova de sua existência. A magia torna o mito tangível e rejeita todas as
dúvidas da realidade.
NARRADOR DOIS ⎼ As dúvidas são as pulgas da
Realidade. Ela se coça daqui, se coça dali, e chama o Doutor. Eis chega Doutor
Lening, de capa e boné. E a Realidade lhe diz: Lening, tem pulgas no
Kremling… E Lening sussurra: Sossega, Realidade. A Verdade vai te
esfregar com Sabão Baco, o frissom do sovaco… Mas Rerré se encrespa: Eu
sou a Realidade! A Verdade é a percepção da Realidade. E Lening, sorrindo,
lhe revela: Enganas-te, mais uma vez, Rerré… A Verdade Científica cria a
Realidade. Trata de ler meu jornal, Rerré… A Realidade então balbucia,
obnubilada: A Verdade é quem me cria?, e ouve: Sim Rerré, mas só a
Verdade… Bolchevique!
NARRADOR UM ⎼ A Realidade hospedou-se no
Palácio da Coisa Pública com um séquito de morcegos. Para lá se foi com a
Curiosidade, que tanto abanava o rabinho antes de perdê-lo. Um morceguinho
queria saber como não ser descoberto ao fatiar a fruta-pão. O outro disse que
era melhor subir a montanha pela escada dos fundos. O relógio do salão imperial
desatou a confessar um montão de tempo perdido. Um outro morcego grita lá do
canto por silêncio que está reescrevendo a constituição e empacou no parágrafo
dedicado aos fugitivos convictos. Quem… Quem deixou… esses cadáveres detrás
do sofá? Dona Realidade quer saber quem se preocupa tanto assim com seus
erros. Talvez alguém sugira um trocadilho novo para a mirrada Esperança. Menos
esperar que a Verdade traga alguma razão para a nossa festinha paroquial. Se
bem que a suburbana gravidade garante que quem sobe tende a cair.
NARRADOR DOIS ⎼ Diz Seu Manuel: Lá isso é
brudad, quem simuter a subire ganhará uma tundência futale a caíre… Mas quem
caíre num vai ser besta di quirere vultar a subire… Eu cá num sai muitas
ciências d’almunaque, num sou u Dutoire Saluzaire, mas uma coisa eu sai, pur
pura indução eletro-intelecutiva… Quem iscundeu us cudáveres pur traz du sufá,
foi siguramenteu Budel… A Pruguiça é um baim univursale!…
NARRADOR UM ⎼ Frei Vicente de Jatobá e Minerva
chegou ao Brasil nos idos do levante dos coqueirais. Veio arrastando uns
caixotes entupidos de novidades. Com o tempo as ciências estavam assistidas por
contorcionismos fabulosos, assim como as artes carregadas de truques nas cartas
e a fé convicta de que a imaginação era tão suspeita que merecia um plano
controlado de ímãs e estrias. Ninguém arredava pé da grandiosa visão nacional
que o frade exalava por todos os poros e missais. Foram anos de fartura das
mais hábeis prestidigitações. Todas as vítimas facilmente se convertiam em
cúmplices da mesma atração, que se ramificava como um jardim frenético. Frei
Vicente orgulhoso vaticinava: Aquele que progride não carece explicar a
fortuna amontoada, pois que se trata de um objetivo maior alcançado. A verdade
facilmente envelhece e a realidade não passa de uma evidência estimulada a
crescer e passar. Então me diga, compadre Zuca, com quantas vozes se
convence um acidente a mudar suas ambições? Quem é mais monstruosa, a
fatalidade ou a ilusão?
NARRADOR DOIS ⎼ A maior fatalidade é a ilusão
racional do Nada que chega no fim de todas as coisas. Tudo sai dum buraco e
some voltando pro mesmo buraco donde saiu. É o Nada do antes e do depois. Mas
este Nada é apenas pro que está fora do Buraco. O Nada só existe pra quem agora
existe. Então a Ciência é só do que está fora do Buraco… Ou seja, dentro do
Tempo. O estar Fora desaparece mais cedo ou mais tarde. O Nada está no aqui
agora. Do Antes e do Depois nada posso dizer. Então, só posso inventar o que
será, ou não será. E inventar por inventar, então vou inventar o que é melhor
pra mim, e fingir que acredito neste melhor.
NARRADOR UM ⎼ Aproveite melhor a ocasião com lâmpadas Sol, e sinta-se iluminado como o
sábio guerreiro que nunca chegou ao front. A fatalidade é estrategista.
Os melhores cadafalsos são arrumados para que a agonia seja vista em comoventes
destaques. Somente a curiosidade compreende os motivos inconsequentes da
ressurreição. Ou seria a presunção? A vigília obsessiva morde a isca da
vertigem. O Labyrintho avança geografia adentro projetando em suas paredes
vivas as imagens de nosso desejo e a cavalgada de centauros que arrastam as
nossas frustrações como um monumento destituído. Um dia o circo desterrará a
realidade, tanto que esta se limitou a precipitar-se nos limites de sua
circunscrita palpitação.
NARRADOR DOIS ⎼ Lâmpadas Ozkar, o sol em seu abajur. O melhor guerreiro é o que
repousa com Adália Serrote serrando o pé da cama. O melhor cadafalso é o seu
aparelho de televisão Zelefunkas, sangue a pamparra, mas as cabeças não rolam
no chão da casa, e o sangue não molha o tapete. A curiosidade pela ressurreição
do Fakir Kefir é a maior atração de novela das nove da Tevê, o Sheik da
Babilônia. O Labyrintho avança, mas o Minotauro, já velho, sempre se atrasa.
Enquanto isso, sua leviana irmã Aridane deu o fio pro Teseu. Elementar, Dona
Aridane, diz-lhe Doutor Fróide, Teseu é insaciável e mais eficaz que o
Minotauro. Minotauro se suscetibiliza: A mim me parece, Doutor Fróide,
que o seu charuto é um vão simulacro do seu Teseu, o qual o senhor
irresponsavelmente transporta pras suas clientes… Acaso pensa que eu não sei?…
NARRADOR UM ⎼ O vinho é a bebida que melhor
sabe lidar com a sensibilidade de quem o bebe. Aridane bem o sabia ao embeber
no barril do melhor tinto do Bar Olimpo o novelo que acabaria dando a Teseu.
Esta é a hora em que costumo dizer que o melhor a fazer é desmontar a banca e
ir-se. Sim, já tivemos outras ocasiões assim, em que o motim é inevitável.
Quando o mito empossado suborna todos os ritos, o vinho descora, o rio se enche
de lama, o leme perde a função. A catraca não faz mais a conta certa do público
pagante e o coletor de impostos contratou uma equipe de ratos. Roedores
famintos que há meses não recebiam sua cota de queijos pelos serviços prestados
em uma seguradora. Mas Aridane se julga esperta e rasgou todos os retratos do
Minotauro que mantinha na gaveta de seu criado-sem-fala.
NARRADOR DOIS ⎼ Minotauro, impaciente, sopra pelas ventas: Pois era
o que faltava… Minha irmã rasgou todos os meus retratos… Mas… rasgou na parte
de cima, pra que eu aparecesse sem chifres… Um gesto de piedade familiar. Porém Teseu nada entende de alegorias, é um
vil ignaro, é um… Euxímio, presto, antes que Minoto solte um palavrão,
baixa e sobe a cortina, mudando a cena. Vemos Teseu, em pose elegante, que diz
pra Aridane: De nada adianta, Dadá, cortar os chifres do teu mano nos
retratos, se ele os segue arvorando ao vivo. Aridane solta um arfante suspiro: É verdade, Teseu, e que mais se
poderia fazer? Teseu não aproveita bem a deixa, e vocifera: Entrarei
no Labyrintho levando teu carretel. Aridane intui o perigo: Mas dei-te o
carretel só por amor, meu bem… Teseu
apront’um cúmplice sorriso: Justamente, Dadá… com a tecnologia da Ciência
Racional, entro no Labyrintho e… Quebro os cornos do Minotauro!!! É preciso
acabar com a Mitologia!
NARRADOR UM ⎼ Atento às tramas do Labyrintho,
com seus vultos sonâmbulos por trás
de cortinas de fumaça, Teseu estreitava os laços com todos os abismos
confiscados. A Mitologia o tinha por um passageiro diletante, e deixava os
ossos expostos à luz do hábito. Desconhecia o passado feiticeiro desse
entalhador de vogais nas coxas da desbocada Eternidade. Enquanto ela foi sua
amante, rasgava o verbo em busca de um orgasmo impossível. O que ainda fazes
aí, minha tragédia palpitante? Já não me tens como evidência suficiente de que
a Mitologia a tudo resiste? Em contritos soluços Teseu se torna impotente e
enfatiza a perda de sua fé na humanidade.
NARRADOR DOIS ⎼ Bota Euxímio a cara pra fora do
buraco do ponto, e começa a arengar: Eccolequá… Quando a Verdade erra, nós
nos safamos. Mas se ela acertar…, salve-se lá quem possa!… Teseu se
encrespa: Estás insinuando que eu deva fugir? Seu paspalho! Sou herói de
epopeia! Já te quebro os cornos! Euxímio tenta levar o bruto na conversa: Calma,
Seu Teseu… Não tenho chifres, não sou o Minotauro. Sou tão só o funcionário do
ponto. O Minotauro está na fossa da orquestra. Teseu, resoluto, pula dentro
da fossa da orquestra!… Então… CAPONGAAAA!!!…
NARRADOR UM ⎼ A orquestra havia pressentido a
quizumba sonora, a incandescência de acordes dissonantes, o balacobaco
fermentado, em meio à fluência relampejante do encontro de Teseu com o
Minotauro. A Mitologia garante que há muito dispensou esses mensageiros do
templo da bagunça. Dona Eternidade é capaz de jurar que o sindicado dos ídolos
de barro já os considera bala fora do canhão. As duas se embriagam noites a fio
no Bar Olimpo e quando promoveram a turnê atual do Circo Cyclame não contavam
com essa invasão da dupla de versejadores do Palácio da Coisa Pública. Certamente
alguém na equipe de produção foi subornado, dizia a Eternidade, empapando
um lenço de lágrimas. Eu acho que é mais em cima, é sempre mais em cima,
concluía convicta a Mitologia. Trombetas, violinos, carrilhões e tambores
faziam sangrar os tímpanos da partitura… Então…
NARRADOR DOIS ⎼ O Arcanjo Archibaldo deita-se de
bruços na nuvem, pra espiar da borda, sem ser visto, as duas peruas-loucas lá
em baixo, em seus devaneios. Baldo pega seu fone-digital e disca pro Céu: Alô,
Major… já é a Hora?… Toco a Trombeta, ou espero as duas peruas-loucas saírem de
baixo? Major ajeita os galões: Quais duas, Archibaldo?… Na certa a
Quaresma e a Folia?… Há milênios é sempre a mesma estória… Às vésperas do
reveillon as duas rolam garrafas. Baldo disfarça a impaciência: Tudo
bem, Major, mas e o Armagedom? Toco a Trombeta?? Major arca o sobrolho: Ora, ora, Baldo, não te preocupes, rapaz, com
corneta ou sem corneta, os piradões da Babilônia já estão preparando uma
explosão colossal pro Ano Novo… Bota algodãozinho nos buracos. Baldo balbucia,
desconfiado: Perdoe, se mal pergunto… Mas quais buracos, Major?
Major mantém o padrão sublime: De
preferência, os da orelha, Archibaldo!… O-Ro-Roooo!…
NARRADOR UM ⎼ A interferência na linha era
inevitável. Os dois ainda trocaram duas frases em silêncio antes que dessem
pela conta daquela intrigante onomatopeia: tuc-tuc, clang…! Enquanto isto outra
confusão se armava à esquerda da fossa da orquestra. Finélio tinha em mãos o
jovem instrumento assassinado, um oboé de poucas partituras vividas. Logo chamaram
Ciclope para desvendar a trama. Não há como recolher o lixo sem sujar as
mãos. Eu poderia agora mesmo encerrar o espetáculo, porém quantas seriam as
pautas natimortas de nosso concerto? As perguntas sem respostas, quem iria
administrá-las na hora certa? Quem a próxima vítima? O que estaríamos mesmo
aqui fazendo tão tarde? Quantas noites se passaram sem que tudo caísse no
esquecimento? Quem veio trocar as lâmpadas queimadas? Não, não se iludam, eu não
vou interromper a festança. Já se acalmaram a Eternidade e a Mitologia,
refeitas de seus chiliques recorrentes. Estou certo de que a senhora Escaleta,
decana da orquestra, fará muito bem as vezes do falecido Oboé. Sigamos. O show
não dever parar!
NARRADOR DOIS ⎼ Dona Escaleta, porém,
desmancha-se em lágrimas: Ai!, meu Oboé morreu!… O que será de mim?
Sniff-Sniff-Sniff… Euxímio resolve socorrer a infeliz: Não chore, Dona
Escoleta… A dama se encrespa: Escoleta não, desastrado, eu me chamo
EscAleta! Euxímio não se dá por achado: Pois, Dona Escaleta, eu estava
passando do dó pro fááá… Mas providenciaremos um outro instrumento pra nossa
orquestra. A morte de Oboé foi certamente por descuido de Finélio… Mas
Finélio ouve a pérfida calúnia e protesta: Ora, seu Ponto de merda!!!
Intrigante irresponsável… Já te torço o nariz… Exímio, porém, sempre
alerta, já pulou e sumiu no seu buraco. Ciclope resolve pacificar os ânimos: Dona Escaleta, percebo
tratar-se de uma paixão transexual platônica da Senhora… Pois dê-lhe um beijo,
boca a boca, e Oboé resuscitará, pela Força do Amor!
NARRADOR UM ⎼ Poucas vezes na vida o impossível
se fez tão garboso e serelepe. Por mais que todos se deliciassem com a sonata
improvisada, ninguém cria de todo no que ouvia. As perguntas saltitavam de um
lado a outro e por vezes se amontoavam em um canto: Quem fizera? Quantos mais?
O que haveria? Como entender? Era um quarteto letrado em socavar a realidade
até encontrar seus elípticos motivos. A história detesta testemunhas oculares. Nosso
enredo é feito de omissões. Não há final feliz no plano metafísico. Melhor
recomeçar tudo outra vez e caprichar no arcabouço do cadafalso. A liberdade é
um dom terrível e a fuligem do destino engasga qualquer otimismo. Ponham-se
todos daqui pra lá. Vamos refazer o bordado dessa trama. Zuca, vejamos como o
Mago Zefir pode nos fazer sair desta peça!
NARRADOR DOIS ⎼ Mago Zefir s’ouriça: Vocês
dois fazem esse tramalhão sem entrada nem saída, pior que o Labyrintho, que ao
menos tem entrada. E sou eu que tenho de descobrir uma saída? O Labyrintho é o
próprio Inferno, tem entrada mas… Não tem saída. Você tem liberdade de entrar.
Mas pra sair, só o Dante descobriu um buraco, e saiu todo borrado… Um pardal na
bosta não faz verão… E… Também não piiiiiaaaa… E eu tampouco… Receio que em vez
do Circo Cyclame, estamos mesmo no Theatro São Carlos de Lisboa, e Doutor
Zalazar não gosta de galhofas. Ou seja, se sairmos… será no camburão, direto
pra Fortaleza de São Jorge.
NARRADOR UM ⎼ Pois então fiquemos dando voltas
em torno desses atos até que se desmatem. Quantas vezes não cairão as cortinas?
Quantas outras não refaremos o enredo? E a trupe, intercalando personagens que
são sempre os mesmos paspalhos com suas piadas vencidas? E de súbito um de nós
fixa bem o olhar no público e identifica as mesmas faces noite após noite?
Quantos sonhos derramados no picadeiro dessa ilusão? Até quando? Até quando?
Esperemos que um dia até mesmo a história se canse de repetir. As cortinas?
Caiam? Vamos ao mesmo truque? É agora que fazemos de conta que tudo chegou ao
fim?
NARRADOR DOIS ⎼ Se fizermos de conta que tudo
chegou ao fim, deixemos então o intervalo se prolongar indefinidamente. Tanto
melhor, porque Euxímio anda muito rebelde, e não quer mais puxar a borla da
corda e içar a cortina. Ponto subversivo, ele semeia a insídia junto aos outros
artistas, e os protestos aumentam nos bastidores… A Mulher Barbada passou a
navalha nos cachos, e o coelho se recusa a sair da cartola do Mago. Assim,
aonde vamos parar?… É o Fim dos Tempos, e o Arcanjo Archibaldo já perambula nas
cumeeiras, impaciente, querendo soprar a Trombeta.
NARRADOR UM ⎼ Além do que não se pode acreditar
em fim que não se renova. Beltrão reúne a ratarada em um bordão que se repete a
plenos pulmões do deboche: Que tipo de ratos vocês pensam que somos? O
delegado Cienfuegos perde as estribeiras e ameaça prender toda a gente.
Xantíbias revira os olhinhos ocos e imita a estática de pura bazófia da TV
Maldoror.
NARRADOR DOIS ⎼ Não esperem pelo fim, não
esperem…
NARRADOR UM ⎼ Eu passo.
INTERLÚDIO | CIRCO DOS CIRCOS
ATO ÚNICO: ROENDO A CORDA
ZUCA ⎼ Eu te avisei
que o Kazimir é raaaaápido!… Eu, pobre velho, fico agora a correr atrás de dois
furacões…
FLORIANO ⎼ Chegou?
ZUCA ⎼ Eu pra fazer
uma carambola de textos, tenho a maior dificuldade… Às vezes, por engano, pazzo
um telegrama meu… pra mim mesmo. (E levo o maior susto com o que escrevi…)
FLORIANO ⎼ O ruim de
passar telegrama para si mesmo é que por vezes quem lê não é mais quem
escreveu.
ZUCA ⎼ A surpresa
surrealista, typo cadáver esquivo… Vamos acabar, pressionados pela tifosada a
ter de montar mesmo o Circo… Mas já vou avisando, de trapezista eu não entro.
Hoje, só posso fazer no máximo um mágico, que tira da cartola um gambá.
FLORIANO ⎼ Ora, sempre
podemos ser os bilheteiros…
ZUCA ⎼ Você é o
nosso atilado empresário. Até lá, vou treinando o gambá a entrar e sair da
cartola.
FLORIANO ⎼ Há gambás em
Burgo do Ham? Quem afinal foi este Ham? Ele próprio teria sido um gambá?
ZUCA ⎼ Ele era
perneta. Tinha a gambá esquerda de pinho. Cantava modinhas obcenas. Foi o
criador da famosa Repaban, o bairro de lanterna vermelha, de cabarés e
randevus. Os Beatles, no início da carreira, tocaram no Star Club, da Repa.
FLORIANO ⎼ Era pra
saber com quantas prosas se disfarça o que foi dito, com quantos feitos se
renova o que fora antes sonhado. Era pra saber o lugar certo onde cometer o
erro, a hora melhor apropriada para esquecer o tempo.
ZUCA ⎼ E agora,
chegou?
FLORIANO ⎼ Essa cuia não
tem sossego, como carta sem resposta ou pavio sem luz.
SIRENE ⎼ Triiiiiiiinnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn!
ALGUÉM NA PLATEIA ⎼ Parece que agora vai começar.
OUTRO ALGUÉM ⎼ Já não era sem tempo.
MAIS OUTRO ALGUÉM ⎼ Acho que estão nos levando na troça, na pagodeira.
ZUCA ⎼ Esse
papo furado que vamos levando, hoje em dia não dá mais pra embromar os sábios
leitores e as espertíssimas leitorinhas, eles logo perceberão que estamos
fazendo cera pra passar o tempo, malevolamente querendo enrolar os campônios,
numa espera interminável pela reforma agrária, antes que o Circo possa enfim,
resolva, ou possa… abrir as cortinas… A fila está crescendo, já passou por
dentro da igreja, Padre Jardel aproveitou e soltou o sermão de Jonas e a
Baleia. A Baleia comeu o Jonas, e ele encontrou em seu bojo Pinnochio e seu pai
Gepetto que o convidaram prum jantar com prato de sardinhas… Mas a pressão
aumenta, chovem apupos, Marlene está com medo dos tifosos, não se atreve a ir
pro guichet. A única solução pra chegarmos à 25a. hora, seria o Kazimir
completar sua entrevista, que apresentaríamos como prévia de seu posfácio que
virá no fim do Circo. Mas a entrevista do Kazimir arrisca sair maior que o
próprio texto do Circo… e… pra enrolar, antes de acabar, Kazimir, com sua
insinuante dialética aprontaria um belo discurso prévio de apresentação,
fazendo alarde de sua maestria no manejo de hypérboles, sinédoques, metáforas
com bordejadas apimentadas na História da Arte, evocando Toulouse Lautrec e as
belíssimas dançarinas de can-can do Moulin Rouge, do Manet, a bela cena de
piquenique com mocitas nuas, ou do Delacroix, que aprontou magnífica cena
histórica, da tomada da Bastilha, com o tamborzinho (como se chamava mesmo o
rapaz?…) e… a Mariana de boné frígio e tetinha de fora…
PADRE JARDEL ⎼ Mariana, tenha compostura, o espetáculo já vai começar…
CORTINA ⎼ ( ……… ) [Nem se mexe.]
FLORIANO ⎼ O teletro,
chegou?
ZUCA
⎼ O
Circo Pery tem uma lógica própria, e funciona independente dos planos da
Direção. É o Surrealismo Selvagem, com que sonhavam Breton e seu grupo… Nossos
Ancestrais seríssimos, engajados, e os quais, de gravata, jamais conseguiriam
fazer… o que o Circo Pery agora, por conta própria, e à nossa revelia, está
aprontando pra distrair a plateia… Com o Circo-do-Circo!… Vou preparar… O Circo-do-Circo! Vai ficar maior que o
próprio Circo. Como o preposfácio do Kazimir é o primo motor do Circo-do-Circo… talvez fosse formidável incluí-lo no
Circo-do-Circo.
PALHAÇO LARICA ⎼ Mas que preposfácio? Tudo isto é enganação, um realejo
desentoado, a realidade coada em uma velha estopa, um desarranjo de enredos que
esfumaça a mais nítida visão.
RATO BELTRÃO (à capela) ⎼ No meio do caminho / tem uma Loba / tem uma Loba / no meio
do / caminho / que não morde / nem sai de cima.
FLORIANO ⎼ O vento na
cortina e a cortina nem fiúú!
PADRE JARDEL ⎼ Mariana, minha filha, tenha fé. Bota a tetinha pra dentro.
CAPITÃO ARAK ⎼
Dom Jardel, o Senhor saberia me dizer se a Baleia do Jonas era branca?…
ZUCA ⎼ A fila diante do guichet já
vai baixando em direção a Buenos Aires… Tudo isso porque a entrevista de Kazimir entrou num
parafuso-sem-fim…
Cada vez mais densa e comprometedora… Acabaremos todos presos… E a entrevista seguirá por trás das grades, um rato cego
ensinado passará as folhas duma cela pra outra… Abaixo o Marechal Ferrolho!!!
FLORIANO ⎼ Três vezes eu vi a noite atravessando o maior espetáculo da
Terra. Não era cinema, nem era teatro, era um tablado improvisado na colcha
esquerda das trevas. Reluzia como um desfalque de hinos em um mundo imaginário.
Os mitos se tocavam em uma orgia prodigiosa. O escândalo era
a condição de se fazer presente. Quem intuísse melhor se dava, pois o enredo
algo possuía de uma certa ressonância sobrenatural.
CAPITÃO ARAK ⎼
A pretinha tanto me queria, fiz uma sopa com ela!
ADENDO ⎼ Tal ideia subversiva de colocar "Circos", no
plural, segundo fontes confidenciais, teria sido sugestão do pintor De
Chilique.
ZUCA ⎼ Procede, meu caro Adendo. Enquanto isso, a entrevista de
Kazimir vai se adensando em dezoito volumes encadernados em marroquim, com
folhas de pergaminho. Faltariam ainda as notas de rodapé, que, com a
participação de vários literatos, latinistas e linguista de renome, se tornará
bem mais volumosa que o texto do Circo-dos-Circos propriamente dito.
FLORIANO ⎼ O fato é que na medida em que a fila se prolonga a caminho
de Temuco - já se sabe que uma sucursal pirata vendeu aos mineiros da região
todos os ingressos que imprimiu em mimeógrafos do mercado negro da cordilheira
-, mais notícias prosperam de que o Cyclame não tem concorrente nos sete mares.
Nem mesmo os sóis defumados que os chineses copiaram da França ou a pressão do
sindicato russo pela aposentadoria dos elefantes, nada. Nossas feras não são
empalhadas ou mesmo roubadas de zoológicos de fronteira. Nossas feras são o
melhor truque do ir e vir sem que ninguém perceba. Muito bem anteviu Kazimir
que o picadeiro é o melhor reclame dos males que definham a humanidade.
CAPITÃO ARAK ⎼
Já chega, já chega. Não faz livro. A pretinha me deu mais fome. Ninguém sabe
onde ela foi?
A ENTREVISTA: EXTRA! EXTRA!
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL
KAZIMIR PIERRE
AO PÉ DA ORELHA: UMA CONVERSINHA MOLE COM ZUCA SARDAN & FLORIANO
MARTINS
Antevendo o estrepitoso sucesso de público e o lacônico
fracasso de crítica, o repórter Kazimir Pierre, da Rádio Boa Cartada, consegue
a proeza de entrevistar os dois tramaturgos autores da trama satírica CIRCO
CYCLAME, cuja estreia será no teatro do Cassino da Urca, dentro de algumas
semanas. Floriano Martins veio de Fracaleza Drinks, cidade ancorada no píer 1957
do marco Kaatinga Dreams. Zuca Sardan, por sua vez, aporta em nossas terras
saltando de um trem-fantasma que liga o Burgo de Ham ao continente brasileiro.
Aqui os dois se encontram pela primeira vez, tendo sido a peça escrita a quatro
mãos virtuais, em uma troca de e-mails de dois ou três meses ao final de 2015.
Emocionados, ambos dão um abraço de muito prazer e sentam-se ao lado do
repórter para uma boa falação.
KP | Caros Zuca e Floriano,
rejubilo-me ao vê-los aqui reunidos, sob este sol inclemente da Urca, para
enfrentar, galhardamente, como diria Flaubert, o escrutínio da crítica. A
régua, o compasso e o esquadro estalam de admiração diante da saudável
descoordenação dessa dupla, com seus diagnósticos de vibrante veracidade e
vaticínios de precisão culminante. Para iniciar nossa entrevista, poderiam
dizer umas palavrinhas sobre a possível influência dos respectivos pontos de
partida geográficos e climáticos sobre a trama deste imbróglio circense?
FM | Não sei se o Zuca conhece
Fracaleza Drinks. Eu não faço ideia de como seja o Burgo de Ham. Aqui o calor,
que é infernal, é o menor de nossos males. A cidade lateja caipirismos e
certamente é possível cruzar pelas ruas - caso houvesse calçadas por onde
caminhar - com alguns de nossos personagens. No entanto, é um bom lugar para
quem quer ser esquecido do mundo. De qualquer modo, confesso que não penso na
cidade em momento algum quando crio. Sou um desses nativos orgulhosos da terra
da imaginação.
ZS | Cheguei a Hamburg
hypnotizado por uma visão quimérica da infância, o Kremery, um parque
wagneriano na boca de Pethropolis, com um bananal florestal colossal, e
garçonetes catarinenses imponentes, e gigantescas loiras da colônia teutã…
todas de decotes rendados… Meu primo, um pouco mais velho, Fernandinho, alto e
magricela, de pernas finíssimas, compridas, tinha um belo pônei branco; e eu,
baixote e gorducho, um burrico anão. Cavalgávamos floresta afora, e íamos vendo
anões, fadas, dragões e um moinho gigantesco. Nosso Imperador havia feito
Petrópolis com famílias de campônios suíços, e a cidade, segundo os planos de
Dom Pedro II, deveria imitar uma cidade alemã. Minha Tia Olga, chiquíssima,
tinha um balcão nobre no Tetro Municipal, e nos levava pra assistir óperas de
Wagner e ballets do Lago dos Cysnes e adjacências… As bailarinas, de collant
branco dando pinotes, me maravilhavam… De repente estalou uma briga das
bailarinas gansas brancas boazinhas com as bailarinas gansas negras malvadonas
mas não menos puladoras e belíssimas… Eu torcendo pelas gansas brancas,
pressionadas pelo Cisne Negro… O Cisne Branco tenta protegê-las, e o Cisne
Negro dá-lhe um golpe mortal!… O Cysne Branco, caído agonizante, cercado pelas
chorosas gansas brancas, e eu, no camarote, choro e me debulho em lágrimas…
Quando estou no auge do desespero, Fernandinho, um perverso, me sussurra: Gordito, elas estão nuuuuassss … e
gargalha em surdina, pra Tia Olga não perceber… Quando amanhece, o Zeppelin
passa por cima do Pão de Açúcar e paira sobre o Cassino da Urca… Mais tarde, eu
já jovem pintor, vi o filme do Gabinete do Doutor Caligari… O Doutor com
aqueles problemas pra conseguir uma tenda na feira de amostras… onde anseia
exibir seu Sonâmbulo que dorme num caixão… Resolvi então, morar em Hamburg.
KP | Este trajeto unindo de um
lado Pethropolis e de outro a Terra do Nunca ao Cassino da Urca faz brotar do
piso pétreo de um bairro marcial, diante dos nossos olhos incrédulos um geyser,
ou gaizer borbulhante… um insólito fulcro de energia bélica e explosão
criativa… E como estamos a poucas jardas do Templo Positivista - do incensado
cenotáfio de Benjamin Constant -, torna-se absolutamente imprescindível indagar
se as formas degradadas de religião, arte e ciência ainda podem de alguma forma
remeter a fases ou ciclos bem demarcados de nosso ser social…
FM | Se o fizerem será sob as
luzes vesgas de dois pavios circunstanciais: como peças raras em um Museu do
Futuro ou mais um sambado truque do Ministério da Propaganda. Tenho para mim
que as três balizas de nossa Sacra Inocência perderam o fulcro. E não há quem
suporte uma baliza sem pé de apoio… O trio foi substituído no mercadão das
sucatas por réplicas que desconhecem as raízes do que porventura chamas de
"nosso ser social".
ZS | Eis uma pergunta
atualíssima… Os kamikazes islâmicos provocam explosões pra cumprir a Profecia
em sua experiência pessoal… Mas até que ponto, se não receberem após o
trespasse, as Virgens prometidas pelo generoso Muezim, teria o Devoto se
sacrificado em vão?… Seria um Calote Metafísico?… Um massacre desnecessário?…
Mais razoável teria sido então haver ele sacrificado tão só uma ovelhinha
gorda, que possibilitaria a preparação de um belo prato de cuscus… Mas o
kamikazismo, independente de suas razões ostensivas, tal o sacrifício pela
Pátria dos kamikazes nipões, ou em protesto a perseguições religiosas por
monges budistas, é talvez movido pela volúpia da fúria exterminadora que paira
sobre a Humanidade contemporânea, uma irresistível tentação sado-masoquista
sempre sedenta à espera de mais uma oportunidade de se manifestar, num
megaorgasmo devastador.
KP | Podemos concluir então que
os antigos veios da razão e vontade de representação ocidentais são
incomunicantes e sem saída no nível imanente, mas que, no nível transcendente,
a hipótese de uma explosão orgiástica tangida pela lira dos 10.000 hymens
aventa-se pelo oriente. Ora, se tanto a iconoclastia islâmica quanto a
autossuficiência científica são figadais inimigas das velhas fábulas e suas
deslumbrantes ilustrações, pergunto se a melhor estratégia de salvação possível
passaria pela inflação dos pneus da vida cotidiana com os sete ventos da
sabedoria, ficção, poesia, mitologia, romance (ah, sim, o bom Quasímodo),
arquitetura…
FM | Mas quem acredita nesse Olimpo que eleges? O dilema
maior do mundo não está na fé credenciada, mas antes na relutância em defender
o padroeiro existencial de cada um, ou de cada temporada. Entregar-se a um deus
qualquer é o mesmo que associar-se a um clube. Garante a espécie que se julga
devota de uma razão acima de qualquer suspeita, porém não encontra argumentos
para quem a dissocia de seus padroeiros de vivenda. Não, não podemos concluir
nada, jamais entendi a pressa em concluir algo. O mundo não cabe no dogma
finito da matéria. Acaso teríamos tornado possível o exame de DNA apenas para
identificar personagens da ficção semanal? Bem sei que tua indagação infringe
as normas físicas, mas entendo onde queres chegar. Os excessos religiosos são
uma espécie de dádiva para os excessos políticos, na mesma proporção em que os
excessos científicos alimentam a bravata dos excessos artísticos. O homem
ferrou a razão, limitando-a a uma fonte de justificativa de seus erros.
ZS | Creio que sim. Nos sete Ventos, temos embrulhadas sete
Musas. Faltam duas: sugiro incluirmos a Música e a Dança. Mas faltaria uma terceira,
se considerarmos o romance uma faceta da ficção. Pra terceira, proponho a Cola,
que nas dobras de sua clâmide, incluiria, além da Colagem Surrealista, também a
Cola Criativa de Lyceo; sendo a primeira faceta mais gráfica, e a segunda mais
escrita. Mas há uma terceira dobra na clâmide da Cola: é a Arte do Falso. Há
falsários vulgares, meros diluidores dos originais. E há os Falsários de Gênio,
que reinventam o Artista falseado. Ou seja: ao lado do falso da arte, simples
falcatrua, há… a Arte do Falso.
KP | Vejo que a submissão simultânea de uma única questão a ZS e
FM gera uma sutil desconexão temporal - aqui batizada de “efeito mallatesta” -
que pode ser percebida em contrapposto
ao campo ilusório da “autoria bicéfala”. “Ilusório”, como podem adivinhar,
previne aqui possíveis críticas a “autoria bicéfala”, que suspeito não irá
agradar, mesmo entre aspas. Isso me levaria a indagar sobre as posições de
ambos em relação ao problema da autoria nas presentes condições de produção
duchampianas, mas antes devo fazer uma autocrítica: como pondera FM é preciso a
todo custo evitar ser conclusivo, deixando a tarefa ao leitor, que, se for
esperto irá também passar este direito adiante. O problema é que a KP falta
justamente (e cruelmente) o espírito inquisitivo que caracteriza o repórter
entrevistador, sendo ele por outro lado excessivamente provido das ideias
preconcebidas que os cientistas neoplatônicos identificaram em uma infeliz
parcela da população. Bem, voltando à questão da autoria, o Circo Cyclame
hasteou em sua entrada a bandeira divertida e assustadora de Dalí, simulacro de
ego gigante, como forma de barrar em sua entrada a hegemonia esnobe e impessoal
impingida pelos seguidores de Duchamp. A pergunta que segue é, pois, se o (russian) puppet show de Dalí (ou de um Fellini) não seria a contraparte
cômica (e terrorífica) da oposição trágica entre razão e emoção (e a
possibilidade de privação de ambas), liberdade e destino, que ainda deixa
traços nos cenários de Duchamp (ou de um Antonioni). Ou seja (deixando por um
momento de lado o problema da eleição dos antepassados): o aparente pluralismo
do panorama hodierno se reduziria finalmente a um dualismo ou um monismo? E no
“monismo” não estaria implicado um possível princípio de macaqueação?
FM | Não vejo em que a autoria bicéfala possa desagradar.
Nem mesmo se acaso se tratasse da velha cobra de duas cabeças, essa de fundo de
quintal que sequer devora a si mesma. Tampouco as aspas livram ninguém da
forca. Não premeditamos uma afinação ao escrever a quatro mãos. Não creio que
funcione assim, como se eu saísse em busca de um entendimento com o pensamento
do Zuca. Alguns personagens certamente surgiram em face de naturais
discordâncias. E quando nos situamos os dois como personagens, em muitas
passagens invertemos a indicação de autoria dos textos, justamente para dar,
ainda que ilusória, certa autonomia a cada personagem. Por mais que se esforce,
a autoria não consegue ser todos os personagens, um deles sempre lhe foge do
controle, assim como muitos surgem como costuras de tempo ou efeito retórico.
Agora que comentas acerca de antepassados é que me lembro
que este tema jamais me passou pela cabeça. Os nomes por ti referidos são
alheios ao meu universo de afinidades estéticas. Posso pensar que um Alfred
Jarry esteja presente na poética de Zuca, assim como trouxe à baila um Frank
Zappa que há muito me estimulava a ter uma experiência como esta. Olhando a
obra de ambos, fica claro que o desafio maior do Zuca foi o de abrir espaço
para o outro, enquanto que para mim a peleja mais intensa foi com o
comportamento da escrita, porque eu venho da tragédia e não da sátira. Nos
bastidores vejo o quanto Zuca se sentiu mais à vontade, enquanto que eu
temperava a tensão do território novo com o puro prazer ante o desconhecido.
Também não penso que tenhamos reduzido o universo da criação
a um único domínio. Não vejo onde caiba em nosso roteiro o conceito de monismo.
E jogar o ambiente criado nas malhas de um dualismo é uma leitura talvez
demasiado preguiçosa. Note que no texto são ridicularizados até mesmos os
vícios e imperfeições da própria escrita. Mais do que uma leitura satírica da
realidade em si, o que estamos ali desatando é uma cascata de ironias contra o
indivíduo, as instituições, o picadeiro em que ambas identidades se relacionam,
porém ao mesmo tempo não nos situamos como demiurgos clássicos, não damos
receitas ou proclamamos uma verdade inquestionável. No vendaval do script
também pusemos nossos dilemas e falhas. Como reagirá o leitor diante desse
quadro é algo que sinceramente jamais me preocupou.
ZS | O Monismo, como o próprio vocábulo indica, é mesmo
coisa de macaco, nosso primo Mono é um emérito imitador, e inventou o Monismo,
que é uma imitação extremada. E o Homem inventou então a Kola, que, por não
conseguir - ou não querer - exatamente imitar, inventa uma segunda realidade,
que é a Arte. Arte é Kola, e volta à Kola. Nelson Rodrigues e Federico Fellini
foram os Grandes Profetas que viveram no século passado, e predisseram o que
ora nos ocorre no Novo Milênio: Nelson Rodrigues, com o Vestido de Noiva, profetizou o casamento homossexual, e Fellini com
E la Nave Va… previu a Invasão dos
Náufragos que se enfiam no Navio Europa, e o terrorismo oriental, com o
rapazito moreno do escaler lançando a granada na chaminé do encouraçado que
explode, o que dá início à Terceira Guerra Mundial. Aliás, talvez já tenha
começado, mas aqui, passamos do macaco ao avestruz, enfiamos a cabeça no buraco
do tatu e… fingimos que não vemos.
KP | A arena do circo continua sendo, como nos tempos antigos, um
sucedâneo do altar sacrificial? O que sucedeu às plateias vorazes que
encandeciam os Salões dos Recusados e a Batalha de Hernani?
ZS | Ave Caesar,
morituri te salutant… Hoje César é o espectador de Tevê, sentado no sofá
com uma cerveja, assistindo comprazido aos sangrentos arranca-rabos
internacionais no vídeo, as sensacionais peripécias do Armagedom de São João
Evangelista, com a mesma Putinha Santa da Babilônia que comanda os espetáculos
de sangue e sugestivos bacanais… É a nova Gruta de Platão a domicílio. o
tele-espectador é o César Tevesinus que goza num sadomasoquismo audiovisual,
com apoio da Verdade pasteurizada em sutil sublimação da moral liberal racional
universal. Pouco satisfeitos com tal proposta, jovens rebeldes acorrem em êxtase,
aos grandes shows de Astros e Estrelas do Rock e Pop, que perfazem os rituais
místico-orgiásticos da sociedade.
A Batalha de Hernani não terá lugar, e tampouco o Salão dos
Recusados, face ao sucesso das galerias de Nova York, Londres, Katar, que prescrevem
a moda. Os antigos recusados, dos dois séculos anteriores, são os atuais gênios
dos Museus internacionais, que acolhem multidões cada vez maiores, MAS… só
mostram figurões do passado, ou algum salvo-do-incêndio da atualidade.
FM | A domesticação das plateias é um fenômeno matreiro de
nosso tempo, tão duramente empenhado nos princípios da customização. Evidente
que mesmo a clássica arena romana já era marcada por um toma lá, dá cá que
mantinha em curso reinado e submissão. Não nos iludamos em relação à plateia.
Não à toa os estádios de futebol retomaram a denominação de arenas. Em igual
escala também funciona as raves que são, a rigor, uma arena permitida (não
permissiva) de liberação controlada de uma cólera coletiva. Tudo muito em um
espírito de controle religioso, a igual modo que os cultos evangélicos. Uma vez
sindicalizada a expressão social torna-se impraticável a rebeldia. Também o
picadeiro circense foi higienizado, o que acabou enterrando uma tradição nômade
e relegando aos confins da espécie humana a velha caravana de magia e
encantamento.
KP | O circo evoca ainda a nostalgia de um sonho comum que
transporta coletivamente a plateia, num pacto de adesão voluntária, o que
ocorre também com um de seus sucedâneos, o cinema, como é mostrado naquela
imagem sublime em que o público se deita, lado a lado, as cabecinhas afundadas
num colossal travesseiro, sob um imenso edredon, com os olhos fixados no écran
prateado (não estou certo se a cena está em Roma
ou Amarcord de Fellini)… Mas a
convenção mais fundamental do espetáculo circense talvez seja a sucessão de
números ou quadros. Ora, tanto Zuca quanto Floriano são mestres insignes nas
artes da digressão, da deriva e da fuga (no sentido houdinesco e bachiano), que
os leva a burlar a linearidade esquemática do xôu de variedades com inserções
líricas dignas de Maldoror, uma mise-en-scène invadida por trucagens barrocas e
abissais, pontuações de um desencanto pós-adorniano e elucubrações estéticas na
tradição de um Horácio ou pseudo-Longino, como aquela em que Euxímio fala no belo horrível!… A pavorosa atração do
Abysmo…. O Palhaço Larica, por outro lado, representa os apetites
contumazes da humanidade que repetitivamente impedem que ela abandone a “estaca
zero”. O Circo Cyclame estaria inopinadamente revelando uma oscilação pendular
entre a decadência e a barbárie, que assola a consciência ocidental?
FM | É impossível não fazê-lo. E tua referência ao Fellini
me fez aqui lembrar uma frase dele, ao dizer que o visionário é o mais realista
de todos os homens, porque somente ele "dará um testemunho ainda maior da
realidade na medida em que seja mais fiel ao seu ponto de vista". E este é
o ponto em que nos reunimos em uma mesma mesa, com Fellini, Houdini, Bach, lugares
cativos para Arrabal, Jarry, Zappa e entre um vinho e outro nos lembra Ionesco
"que a arte deve ser exemplar, como uma coisa que será a significação de
outra". Agora, tal significação deve ser inopinada, como sugeres, porque o
criador também carece de um sentido próprio, de uma verdade que a encontra
apenas latente (em si, no outro), e ele quer participar do mundo não em sua
definição, mas antes, no risco de sua compreensão. Ele necessita ser a
significação de uma coisa em outra. Talvez por não entender isto, por exceder-se
em uma obsessão de determinar e impor uma verdade, é que a consciência humana
(eu já não destacaria a ocidental, como o fazes), quanto mais escava a memória
de seus atos só encontra barbárie e decadência. O palhaço Larica bem sabe que
não importa quantas vezes ele ateie fogo no picadeiro, dali ressurgirá sempre a
mesma ave apegada a um significado que há muito - já nem se lembra quando -
perdeu a sua razão de ser.
ZS | Cher Kazimir… a Natureza detesta o Vácuo… Quando a
decadência aumenta… aparece a barbárie… Tal qual aconteceu com o antigo Império
Romano… A História hoje se repete… O mundo do século 21 está rachando… Frau
Nerkel procura nos convencer que os Bárbaros são bonzinhos… nos querem bem… só
há uma meia-dúzia de alienados que soltam bombas… bancam os kamikazes… Se vocês
continuarem assim, não vão ganhar garotas mil no Além!… Eles são jovens
revoltados, é preciso aceitá-los, e… civilizá-los… Vamos fazer um Grande
Banquete… Podem trazer seus camelos!… Masss… não comam com as mãos… Não belisquem
o bumbum das gorduchas… Padre Jardel e Muezim Roruf vão se abrazzzarrr…
Ecumenismo!!… Direitos Humanos!!! Democracia!!! Mercado Globallllll!!!… Russos
e Norte-americanos são os dois Colossos vencedores da Segunda Guerra, e o
Capital se virtualizou, e passa invisível por cima da cabeça dos proletas…
Então, pra haver acesso universal às Matérias Primas, os Dois Colossos acabaram
com o Colonialismo. Mas os antigos nativos colonizados não se conformam de
estarem assim abandonados, eles gostam dos seus Colonizadores, que lhes
mostraram as maravilhas da Civilização, que iria paulatinamente chegar às
Colônias… Então os nativos agora resolveram emigrar pros países dos antigos
Colonizadores. Seria o Colonialismo a Domicílio!!!… Proposta do Doutor
Cascavel, rejeitada com indignação pelas Nações democráticas… que sentem
vergonha de seu Passado de Impérios Coloniais… e aderiram ao Mercado Global…
com acesso assim às matérias-primas, e não precisam se preocupar mais com a
sorte dos nativos… Tem sempre um Presidente eleito, um Rei Boka, que pode
oficialmente fechar os negócios… No Brasil, com a Independência… o Brasil se
transformou num… Império!… Ou seja, era um Império, de que a colônia… era ele
mesmo!… Casa-Grande e Senzala era o Colonialismo a Domicílio, que ora propõe
Doutor Cascavel.
KP | Pensei em encerrarmos, se
concordarem, com uma cabalística sétima pergunta… Trata-se de uma questão
palpitante, no meu entender, sobre a qual haveria muito a dizer… As artes
visuais parecem precisar de recorrer à literatura para obter um mínimo de
status intelectual, prestígio social e legitimação cultural. A literatura, por
outro lado, parece precisar da arte (da mesma forma como esta precisa da
música!) como modelo de da capacidade de produzir impressões fortes e
imediatas, fonte de assombro e deleite… Como escritores e criadores de imagens,
de que maneira vocês reagiriam a esses condicionantes (se é que existem de
fato) no processo individual de criação?
FM | Sempre achei esta uma
daquelas famosas falsas questões. Como as páginas finais de A grande arte de enganar que, por serem
branquinhas, embora hoje amarelecidas, há quem jure que em tinta invisível ali
foram grafados os segredos da transmigração das almas. A segmentação, na
criação artística, é fruto de uma estratégia de marketing. O mercadão precisa
diversificar suas prateleiras de oferta, e a academia adora catalogar insetos
raros. A Igreja também sempre foi do ramo, e nem só da venda de santinhos o
Vaticano tornou-se a potência que é. Por mais cabotina que possa parecer a frase,
a verdade é que criar não tem fronteiras. Acho que somente maus artistas se
sentem intimidados por outras linguagens. A música, o teatro, a plástica,
sempre fizeram parte de minha vida, portanto de minha criação poética. Aqui
mesmo, no Circo Cyclame, Zuca e eu somos roteiristas, cenógrafos, compositores,
maquiadores, trapezistas e ilusionistas. Creio que o fato de um pintor
ocasionalmente não compor música vem simplesmente dele haver escolhido a
pintura para manifestar seu espírito. Isto não o afasta da música. É infinita a
lista de dublês de literatura e plástica - de George Sand a Boris Vian, de
Lamartine a Ionesco, de Henry Michaux a Lucebert. Há pouco falei do Fellini que
desenhava cenários e personagens de seus filmes. Chaplin era cineasta e compositor.
Muitos compositores de ópera, cantata, oratório, escreveram seus próprios
libretos. O guitarrista Ron Wood é um notável pintor, e a cantora Janis Joplin
nos deixou belos desenhos. A Renascença foi um celeiro infindável de criadores
que desconheciam os condicionantes mencionados por ti. Fez parte de minha
formação desconsiderar essas limitações. Sempre tive Da Vinci, por exemplo,
como uma referência maior. Agora, o cenário que pintas é uma gigantralha de mercado. Todos os
criadores dignos do nome sabem que em suas partituras, telas, libretos se
encontram todas as possibilidades mágicas da arte. E nenhuma delas supera as
demais.
ZS | O pensamento é feito de
imagens virtuais e palavras também virtuais (não pronunciadas), que por vezes
se revezam e por vezes se combinam; e também por sons. Doutor Roskoff,
materialista convicto, para demonstrar a falácia da crença em fantasmas que
falassem, retoricamente pergunta: Como
podem os fantasmas falar sem ter cordas vocais?… Ao que responde o Príncipe
Cigano: Nos sonhos, todos os personagens
falam, o sonhador os ouve nitidamente, e esses personagens não possuem cordas
vocais. Do mesmo modo, ouvimos sons de uma sonata conhecida que imaginamos,
sem que haja em torno vibrações sonoras. Ou seja, o som INDEPENDE das ondas
sonoras, NÃO é formado pelas ondas sonoras, tal pensa Doutor Roskoff. Pode ser
formado por ondas sonoras, MAS não necessariamente. E, se pensamos numa pessoa,
podemos ver sua imagem, sobretudo o rosto, sem fechar os olhos, a imagem mental
se faz sobre-e-independente da visão física, ou seja visão mental e visão
física são diferentes e podem ser simultaneamente ativadas. A interação das
várias sensações virtuais sonoras, verbais e visuais, e, também, das sensações
e atividades virtuais com as físicas, são tão somente teoricamente separáveis,
princípio racionalista que é transportado pras artes. O cinema, que se firmou
como arte no início do século 20, revolucionou as artes justamente porque
juntou, a partir da eclosão do cinema sonoro, todas as sensações, que tinham,
nas artes tradicionais, cada uma seu campo específico e intransponível. Daí o
aparecimento, no transcorrer do século 20, das assemblages, performances
e outros tipos de manifestação artística, que são, curiosamente, sempre
consideradas plásticas. Hoje vai-se a uma exposição de Artes Plásticas
Contemporâneas e raramente se encontra um quadro… mas sim coisas que pulam pra
fora da tela, que desaparece, mas o resultado segue sendo considerado pintura…
E por que não escultura?… Porque os quadros podem se movimentar, produzir sons
e as esculturas resistem? Porque Nicky de Saint Phalle, enquanto dava tiros nas
suas telas é pintora e Tanguy é escultor? Nicky, mesmo depois que começou a
fazer suas Mamies… ela PINTAVA as Mamies… Porque ela é pintora… Com a irrupção
das comunicações eletrônicas, e da web, houve, no emergente século 21, uma
radical mudança política, pela instantaneidade de comunicação entre indivíduos
fora do controle da Autoridade… Estatal, e das autoridades morais, artísticas,
religiosas… Tudo isso mudou o Mundo tão drasticamente, que o século 20 foi
atirado há séculos atrás, e eu quando tento agora recordar minha longínqua
mocidade, vejo-me de peruca branca de cachos de Mozart, casaco florido, chapéu
de três bicos, bengala, sentado num fiacre, com um rolo de papel, escrevendo
com pena de gralha estas linhas proféticas…
∞
ZUCA SARDAN (Brasil, 1933). Poeta, dramaturgo, desenhista, o mais eletrizante criador possuído pelo espírito da Patafísica no Brasil. Entre seus livros, estão: Aqueles papéis (poesia, 1975), Os mystérios (fábulas, 1979), Visões do bardo (graffitti, 1980), Ás de colete (poemas & desenhos, 1994). É autor, juntamente com Floriano Martins, de 8 peças de teatro automático, onde se destaca a trilogia O iluminismo é uma baleia (2016).
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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