A QUEDA
Em honra do Arcanjo Diego, por se haver recusado a soprar a Trombeta do
Fim.
Estou caindo e não paro de cair. Os céus estão empoeirados e
os deuses agonizam. As luzes naufragam em escadas que dão para antigos porões.
Eu caio e as nuvens perdem seus traços. Uma usina de vertigens em cada espiral
do tempo. As noites que não cessam de vomitar tantos nomes. Não é outra a
formação anônima das quedas em seus temperos alucinantes. A cada momento em que
caio um carvão repleto de desmaios rabisca insondáveis perdas em meu corpo.
Atravesso os andares e não sei mais contá-los.
Talvez o mar ainda esteja visível devorado por dejetos. Ou talvez as
lágrimas ainda confortem as minúcias desamparadas. Não importa. Tudo é queda. A
eletricidade resumida a ridículas faíscas. Os bagaços de um desorientado
tsunami. As falsificadas caixas de Pandora vendidas a governos que operam na
rede escura. Tudo é queda e meu corpo não para de cair. As ruas também desabam
com uma geografia de desassossegos e a intermitência de aflições e fábulas
desacreditadas. As trevas vão ficando
para trás com seus caprichos proscritos. Os pescoços rasgados das feras que um
dia guardaram essas trilhas. Até mesmo os martírios desprezam suas
vítimas.
Derretidos todos os
lacres, o inferno não mais me alcança. Apenas caio e a queda se multiplica em
desapegos. Quando alguém diz que nunca esteve no mundo da forma como todos
aqueles que conheceu talvez tenha esquecido os subterfúgios do perigo. E quando
o vejo passar a meu lado penso que a queda não se alimenta da
consciência. Um céu de confidências desoladas mescla sua passagem com os
impunes pântanos de tantas intrigas. Também a morte cai, e o degredo e as horas
em que planejamos escapar ilesos da dor. As cicatrizes eletrificadas da culpa
dão a impressão de que estão a cair os mesmos corpos. Quando se está caindo não há tempo para mergulhar
profundamente ou mesmo refletir sobre distintos modos de cair. Não dá para
sentir o sabor da queda ou imaginar outros sítios onde se poderia estar. Mal
sabemos quem somos. Vemos as árvores arrancadas da terra, os lagartos
desesperados por não saberem voar, a sensação horripilante de que as
coisas apenas mudam de lugar. E o que vemos cair quase sempre é o oposto do que
gostaríamos de levar conosco. Mas não há tempo. As
luzes vão e vêm e sopram por todos os pontos e fusos. Como traços apagados e
refeitos pelo vento. Já não nos identificamos com nada que nos
acompanhe. Eu me disfarço em tantas quedas que desconheço a qual delas
pertenço. Ou quem sou em cada uma delas. Desconhecemos se são nossos
olhos que se derramam sobre as coisas que vemos ou são elas que nos esmagam com
suas visões indecifráveis. Cair muitas vezes é algo que não se consegue
contar.
Uma pilha de pequenos
corpos apodrecidos. A angústia debruçada sobre si mesma. As dores que não
soubemos evitar. Quantos poços escavamos na alma até que a areia se mude
completamente de um terreno a outro e torne a nos desafiar a revolver os
fantasmas que não tiveram tempo de escapar? Quantos fachos de escuridão?
Quantos deuses rasgando suas lendas? Quantos dias-noites recolhidos ao acaso ou
desprendidos das paredes esponjosas de incertas passagens? De longe, uma
distância aparente, escutamos os passos que se transformam em queda. As sombras
desviradas são como poeiras que se dissipam a cada movimento. O inferno
ainda teima em resistir. Como a rotina atormentada do livro das revelações. Sei
que estou caindo e que não paro de cair. Impossível decifrar os símbolos que em
intensidades distintas naufragam comigo. Sinto a ausência dos elementos, há
momentos em que desaparecem por completo. O incêndio da memória, a asfixia do
desejo, a inundação de nossas cisternas anímicas, a firmeza do abismo sob
nossos pés. As formas que vamos retendo nos limites idealizados da viagem até a
fonte oculta dos impulsos carnais do impossível. Como se o ideal na queda fosse
a descoberta de novas formas do corpo se manter unido em sigilo à sua
fragmentação perene. O assombro com seus tentáculos rebenta os corpos e imprime
uma contorcida configuração em seus pedaços desorbitados. Uma boca se queixa de
não fazer parte do rosto. Os braços renunciam aos adeuses com que haviam
sonhado. Os lábios de um desejo transformado em saudade.
Espinhaços rasgados,
três canelas amarradas sem personalidade alguma, o ânus expulsando uma
centopeia bastante incomum querendo voltar para casa. A terracota se martiriza
por não poder arrumar a casa. Não há mais casa. A queda apenas cai. A pele
coberta pela fuligem dos mapas. O sumo das estrelas que antes caíam nos
quintais e agora despedaçadas parecem arremessadas para o alto. Porém a altura
é um equívoco e as prateleiras tagarelam gasguitas enquanto perdem suas louças
e metais. Houve uma casa há muito tempo. Antes da primeira queda e seus
versículos. As noites estão ficando incontroláveis, não importa quantos
dias passem por aqui. Não vamos parar de cair.
O CENTRO DO DIÁLOGO
Não voltaremos ao lar escorados na madeira podre da memória.
O espaço não se julga tão intenso quanto o idealizamos. As palavras entram e
saem no abandono dos ventos, com a letra mal tecida nos tapetes da existência.
Talvez haja um lugar propício para o osso que os cães não tiveram tempo de
enterrar. Como a renda fria de uma autópsia improvisada. E o ar que respiramos
como uma palavra gasta. Acabamos por acreditar que os encontros são impossíveis
e o estado putrescível da humanidade é a solidão. As lavas desassossegadas
aboliram o tempo. O universo jamais curou seu refluxo. Somos uma página
estampada na agonia oculta do olhar. O que vemos quase sempre é a sombra
precária de um desejo. A semelhança desmedida do acaso. Como fazer para que as
forças que marcam a nossa vida se recuperem de suas enxovalhadas transgressões?
O avesso inumerável de todas as noções espatifadas do espaço. Quantas noites
desacreditas? Quantas luzes propagadas no celeiro abandonado da escuridão? As
luzes que foram dopadas com a marca do destino. Aquela desterrada volúpia que
jamais encontrou um lar. A beleza que se dissipa no olho cristalino de seu
milagre. Quantas vezes a noite é apenas uma pedra renascida sobre o cansaço dos
voos. Quantas frutinhas fixas como um redemoinho atormentam nosso desejo de
sumir no céu.
A imagem a que corresponde o silêncio não sabe como tocar o
que somos. Talvez porque uma língua ressoe dentro de nós antes mesmo do
nascimento das palavras. Como quem beija o dorso desses rumores que confundem
deriva com exílio. Onde habitar o limite da visão? O cristal desnudo de sua
paisagem, onde o podemos devorar? Quando a imagem se configura como uma poça de
vertigens, como sobreviver à realidade que em seu íntimo não foi possível
encontrar? Não retornaremos nunca a exigência alguma do tempo. Como a imagem
dissipada de uma distância que foi perdendo o equilíbrio de suas árvores
desenhadas no cosmos. Era assim mesmo. Para haver perguntas que desconheciam a
natureza das respostas. Uma floresta de antônimos se desconhece sempre que
redigimos algum murmúrio. A ausência é um vestígio que não se pode identificar.
O olho no espaço se enche de lamparinas como uma espécie de animal oriundo de
outra galáxia. Há um cardume distorcido de signos voadores que não deixam uma
sombra sequer por onde passam. Pode parecer estranho que não saibamos de onde
viemos, mas a escuridão se cala sempre que pressente um risco de luz em seu
corpo. A tormenta do infinito por não passar de um momento raramente
inesquecível. Os vultos esgarçados com a cabeça saltada longe vigiando os
faróis de mundos paralelos. Deuses ínfimos que não sabem se distinguir entre si
ou que fugacidade assumir.
Um dia será possível que esses deuses se convertam em galhos
secos para ninhos onde se possa respirar o oxigênio embalado pelo renascimento.
Deuses de papiros cintilantes. Deuses de areias sacrificiais. Deuses de
escrituras impulsionadas pelos garranchos-vislumbres da premonição. Sem um de
nós o mundo segue em sua debilidade memorável. Não somos nada, e a realidade
brinca com o pensamento até que este se sinta real. Somos a mácula da resposta
que desconhece a ronda obscura do esmalte de suas redomas. Quem pergunta?
Haverá um desejo imaculado que supera nossa desistência de esvaziar a palavra?
Talvez um de nós, pelo menos, tenha chegado até aqui para não dizer nada. Não
sonhar como as tormentas são diferentes. Não deixar o bosque de incensos
alcançar a cidade e propagar ali uma nova penumbra. Um véu relutante colado à
parede. Um olhar antecipando o arvoredo que encobre a paisagem com a gula de
sua existência. Um de nós talvez tenha dito a tempo que o verbo é um silêncio
além do olhar. Mas que susto encontramos no presente que impeça ser traduzido
fora do tempo? Quem deveria ser o centro do diálogo? A revelação como um
torvelinho que não faz sentido fora do exato instante em que nasce. Haverá
mesmo um modo de conversar com a origem de cada átimo do mistério?
Nunca saberemos o quanto a alma é uma névoa fora de lugar. A
cor da palavra exata. O rio da sombra esvoaçante. O peso da planície que
sobrevoa nossa inquietude. Como sabemos a noite certa para que o dia não
desperte? O som de uma palavra faz a água morrer no lago? A lenda não cumprida
abre uma fenda na crença de novos mistérios? Um de nós deve se matar antes que
a água retorne a seu esquecimento. Uma água fora do lago, do mar, da lágrima
tão distante de inundar o horizonte. Cada um de nós deseja um deus posto na
varanda. A celebração de uma falha na primeira gota do orvalho. O borrão de
desastres, o nanquim de estados remotos, o alcance de nada. As noites vão
surrupiando o que há de imagens que foram saltando de pó em pó como uma
pincelada de vazios. Quem gosta de entregar-se a um templo abolido? Qualquer
mundo que imaginemos mora sempre fora de lugar. Como uma febre em organismo que
se mantém encalhado a meio palmo do abismo. A vida já me chega. Umas folhas
caídas pelo chão. Uma casa malfeita, segura em palhas, um horizonte que não
serve ao próximo poente. Uma vida o mais longe possível de seus extremos, o
mar, o sertão, a galáxia. Quem quer viver tão longe se não poderá contar a
verdade sobre sua memória indefesa?
Éramos um mal morando em qualquer esquina, como uma chave
desgovernada que não distinguia a cavidade entre o fora e o dentro. As noites
morando em panos atropelados. As manhãs abrindo suas carnes em desconformidade
com o dia. O espaço vitrificado como se a penumbra fosse uma amante desacreditada
do espírito. Noites de sal, noites de quartos abalados, noites de uma noite
desacreditada. Quantas distâncias teremos que colar ao corpo das noites para
que elas saibam como viver conosco? Nada além de um distúrbio ou de uma
plenitude escapada pela persiana. Os símbolos fora de lugar e as cores correndo
o risco de voos fora de órbita. Como naves e seus reflexos, dias chuvosos, uma
estação percorrida sem que o horizonte aceite seus riscos. Era para ser uma
noite. Um ou dois pontos no centro do universo. a distante sabedoria que olha
por nós como uma brisa que descreve a dor de cada palavra. Uma lua rajada na
tela programada para repetição em mil salas. Nada em nosso ser contém o
infinito do ar. Eu não direi o teu nome. Não seremos o brilho que nos foi roubado.
A noite cai. Não importa como o dia a recebe em seus braços.
RELEVOS DE UM JARDIM IMAGINÁRIO
E sem saber as mãos tomam os traços da vista
Para não esquecer um jardim em relevo
JORGE CÁCERES
Eu tenho a noite silenciosa ataviada em meus ossos. Celebro
a incógnita de biografias deixadas sobre a mesa. Um lápis que se arrisca à
suavidade de traços do oculto. Um nome recordado nas extremidades do espelho. A
sala fechando os olhos ao lamento dos caracóis. Um anjo chora e chora com seu
coração imitado pelas madeiras empoeiradas da casa e sua aparência negra. Uma
lamparina eloquente na repetição de sombras escreve com voz arrastada que
alguma virtude, por mais movediça em sua distração, será escutada bem longe
daqui, quando a árvore der leite a seus semelhantes. Talvez uma afeição negra
cruze as migalhas da solidão. A noite bem pode encher-se de recompensas por
crimes jamais descobertos e seus despojos sacrificiais. Estava escrito em
alguma tábua que um de nós deveria rir. As fontes públicas se retorcem com ditados
inúteis. Um sorteio deixado para trás. Uma recompensa a menos. Uma cabeça
pendida como prova de alguma ironia. O crime é uma rua atribulada de angústias
sem solução. Talvez as lágrimas de uma obra de arte esfaqueada. Ou a árvore
desaparecida sob o entusiasmo do petróleo. Um coração atravessa a tempestade
buscando o contrabando de musgos que possam conter a destruição. Não há um piso
que se reconheça como a terra dissolvente de nossas vidas abandonadas em
prateleiras, o alarme falso sob os pés das vítimas, seus monumentos risíveis.
Quantas vezes eu conversei com ele sem saber quem era. As vezes em que o
espelho sopra como uma dor maligna. Eu não quero ver as tuas aves sobrevoando o
voo perdido. Já sabemos que todas as coisas caem dentro de si, e ali mesmo o
sol se dispersa feito um encaixe desencontrado.
Uma mensagem retraída encontra os esforços imprecisos. Eu
queria dizer que a noite é um jardim sem relevo. De minha boca saiu outra
paisagem, impossível alcançá-la. Um verbo alimentado por despojos que eu
desconheço. O meu corpo encontrado na tarde de uma fria desordem na casa
celebrada por mil amantes, onde fui tantos. Os ossos de todos esses caprichos
do amor, a vertigem depositada nas mais devotas sombras, no mel da folhagem,
onde não havia mais jogo do que as últimas rochas compreendidas por gestos que
se repetem e se amam. Não me venham dizer nada agora. Muito silêncio fala ao pé
da cama, muitas vozes se calam em um abraço. As janelas enumeram casas que por
vezes são deixadas para trás das visões mais secretas que possam relatar. Nada.
Nada. Um verso, uma noite. A imagem de um rio colada sobre um pássaro. Jamais
saberemos quem voa. O meu corpo era mancha de renúncia à realidade. Água, fogo,
palavras – a ninguém dei a tarefa de revelar o pequeno repouso de minhas
semelhanças. As nuvens que me queriam, as aves roçando minha pele, a água
erguida como soluços de um imaginário, a proeza dos sóis, as folhas outonais, o
canibalismo das imagens que fui retocando sempre que uma carícia do absurdo me
soprava no ouvido a casca de um diamante, o caminho a ser refeito, o
inesperado, a rude assembleia no gargalo da escuridão, o tempo faltando, o
sorriso sem sombra. Quantas vezes a mesma fronha sobre nossos corpos, meus
bolsos perdidos, meus gestos de despedida, a noite e nenhum osso mais vendo
passar nosso extermínio.
VESTÍGIOS DELEITOSOS DO AZAR
Quando a cortina cai, o cenário se mostra um
deserto.
Como a memória. Abandonada por todos.
FM
As sombras
saem para caçar seus reflexos na noite escura. Duelam com alguns fios de luz
como quem traslada sua presença de um corpo a outro. Os pequenos monstros
cultivados pela realidade passeiam nas ruínas da memória. A noite permanece
escura sem que o medo possa tornar visíveis suas moedas de gozo. Duas
marionetes se libertam de seus cordões e atuam fora do roteiro. A praça central
se enche de gente para ver os primeiros passos de liberdade delas duas. Porém
não são propriamente passos de liberdade, mas antes passos temerosos. Como
alguém que não sabe o que acontecerá no instante em que caminha. O medo do
espaço não nos liberta do tempo. As marionetes começam a desconfiar que a
ausência isolada dos cordões não lhes garante liberdade alguma de ação ou
pensamento. Elas devem buscar na realidade as esquadrias sinceras que lhes
permitam descobrir de que é feito o horizonte. Não há livros que ensinem por
onde começa o mundo. Não há elevadores com quem compartilhar a ansiedade de
chegar ao cume ou ao subterrâneo da existência. Sequer os relógios repetem as
horas. Os nomes são outros sempre que pronunciados. A gente na praça aplaude o
olhar de espanto das duas marionetes. Ninguém imagina o que o medo fará com
elas quando todos dali se forem.
As duas
marionetes são tão iguais que parecem uma só. Talvez sejam gêmeas. Ou talvez
foram criadas dentro de um mesmo espelho. Uma mesma caixa de acrílico. De onde
podiam ver o mundo, porém ninguém podia vê-las. Um mundo horrível criou as
imagens mais arrepiantes dentro de seus olhos de madeira. As mais obscuras
crateras foram semeadas como um campo de alucinações. Muitas vezes as duas
gêmeas se confundiam entre elas mesmas. Como atrizes que embaralham as frases
do roteiro. A repetição daquilo que jamais seremos. A repetição de uma
fantasia. Os códigos secretos da repetição de quem sequer elas serão. Dentro e
fora da caixa de acrílico. Dentro e fora do teatro que acidentalmente
incendiamos em nossa alma. Desde então todas as noites são iguais. Não importa
quanta gente vá até a praça central ver as meninas.
As trevas se
engasgam como um mito arruinado. Como uma frase solta, que não sabemos a que
hora dizer. Uma das duas deve gritar, antes que as máscaras comecem a
identificar nossos rostos. Toda a gente que veio nos ver clama por um número
excessivo de máscaras. Meu rosto está preparado. Meu corpo assumirá a forma
correspondente de cada máscara. Tecido velho com olhos luminosos e cabelos de
gravetos de uma árvore incendiada. Há demasiada luz em meus olhos. Não posso
ver tua máscara. Porém escuto o quanto falas com todos e imagino os traços de giz
em sua testa. Uma cascata de giz moldando a ira de um olhar perdido. Há nomes
perdidos em sua voz. Labirinto de nomes que desconhecem o próprio destino.
Quero mudar de máscara, porém antes nós duas temos que descobrir a origem
desses nomes esquecidos. Quantas noites escuras cavam a madeira desnuda de
nossos corpos? Quantos personagens virão ao centro da praça desmentir nossos
temores renitentes? Faz de teu rosto um lago que apague a luz do meu. Necessito
ver a próxima máscara. Não posso perder o curso de minha representação.
Ajuda-me a reconhecer quem ainda não pude ser.
Olho para
todos na praça e vejo que não há máscaras. Cada um deles deveria ter
trazido a própria. De outro modo, como podem nos ver? Seus rostos nus são como
os nossos, de madeira lisa. Não há reflexo de alma ou sonho ou lembrança. O que
vemos nos demais é um hemisfério perdido de ilusões. Enquanto não aprendermos a
olhar não saberemos quem somos. Uma noite escura no centro do mundo. Duas
marionetes. Toda a gente que já não sabe o que está fazendo ali. Necessitamos
máscaras para revelar quem somos e descobrir o significado de cada coisa no
mundo e desatar os nós de nossa atuação. Larvas mecânicas, o olho aflito de um
vulcão, traços de um ritual indígena. Vamos distribuir máscaras para cada uma
das pessoas presentes. Relógio com todas as horas concentradas na metade de sua
cara, marfim negro de um desenho infantil, paisagem perdendo suas cores desde a
testa até o queixo. Vocês podem escolher qual máscara lhes representa melhor.
Não tenham medo. As máscaras trarão a todos para nosso mundo. E então
repetiremos a cada cena o volume das mais incessantes descobertas.
Agora, todos
nós podemos conhecer o medo. Sentir as máscaras farejando nossos corpos.
Recuperar a pele perdida. Agora podemos recordar os cantos, os rituais
orgíacos, os cheiros de atração e repulsão. Uma serpente em cada espinhaço. Uma
terra incógnita em cada passo. Os humores da carne sendo tecida pelas vertentes
do desejo. Cortar os membros. Embaralhar as dores. Cometer os crimes para os
quais tanto nos preparamos. Espalhar as cinzas da repetição pela casa inteira.
A praça ondulada como uma residência viva. Ossos e orgasmos confundidos. Uma
das duas deve retirar da caixa de acrílico os cordões e recortá-los. A outra
cuidará de dar vida a toda a gente que veio nos ver. Agora é a verdadeira hora
de aprender a ter medo.
O segredo
está bem guardado. O medo coleciona ruínas no centro da praça. Seu primeiro
nome sorteado é Escuridão. A segunda ameaça saiu correndo em busca de nossos
fatores. Na terceira noite a lâmpada do mito começou a gotejar uma curiosa
toxina. O cérebro das marionetes se escondeu no fundo falso da caixa de
acrílico. Pequena multidão de cérebros prensados com seus motores emocionais
dando início a um último ciclo de sua existência. As marionetes não dão pela
falta do cérebro e pendem de seus cordões, silenciosas, esvaziadas de qualquer
pensamento. Seus corpos de madeira começam a apodrecer, sepultados pelo vazio e
a incredulidade. Os cérebros perderam seus corpos. Não há dedos para pressionar
o botão correto que possa reiniciar o espetáculo. As máscaras abandonadas no
centro da praça se entrelaçam e não identificam o que possa ser irreal ou não.
O silêncio dorme e sonha com a cena seguinte: qual será o entreato? O segredo
está bem guardado.
Não temos
medo da loucura. Não temos medo do silêncio. Não temos nenhuma oportunidade
contra o tempo. Não temos o que comer esta noite. Não temos como fazer amor com
tantas máscaras. Não temos medo de cair ou subir. Não temos medo de frases
pronunciadas ao contrário. Não temos para onde ir caso o inferno caia de cena.
Não temos uma gota de sol em nossas sombras estiradas. Não temos como morrer em
momento algum. Não temos medo da praça central. Não temos medo do medo. Nada
restou de nós duas.
A PROPRIEDADE
IMAGINÁRIA E A COLA DESFEITA
A data era imprecisa ou
simplesmente ilegível. Circundei com a ponta da faca o corpo que estava no
centro da foto. Era quase um desenho em suas linhas certeiras. Daria uma boa
composição colado sobre uma pedra esverdeada. Imaginei que poderia expandir-se
como uma nuvem fumando seu cachimbo, beliscando a nervura da tarde. Quem
pensaria em fumar uma pedra verde-musgo com um cadáver inadvertido dessa nova
imagem que ia se formando a cada baforada? A tarde deveras chamava para si os
prismas da fumaça e a irritação de meus olhos. Seria mesmo impossível
identificar a data, mas a esta altura já não importava tanto saber o que o
tempo fez de si para que uma cena fosse se ocupando de outra. Talvez fosse este
o mistério da colagem. O inesperado agradecimento que deixamos escapar à
metáfora invisível que nos reconforta com a realidade. Sim, o cachimbo evocava
uma realidade e um coro de eunucos soprava a cortiça para o interior da garrafa
de vinho. Talvez fosse a hora de recordar um pouco Max Ernst: Oh deusa querida, acaricia-me como bem sabes
fazer, na inesquecível noite em que… nós estávamos certos de que a novena
de eunucos pintaria o céu sem tropeçar nas nuvens. Max tinha um carrossel para
cada assimilação de ventanias nos cabelos de sua amada. Uma delas chegou a lhe prometer:
Vou trazer uma dúzia de toneladas de
açúcar. Mas não toque no meu cabelo. Os tecidos reconfigurados com que os
lugares poderiam passar a ser melhores. Max os tinha. Talvez guardados em baús
com plaquetas de títulos enganosos. Max soube reescrever todo o enigma e a
criação da luz em Gustave Doré, até que
as suas belas dançarinas estivessem completamente exaustas. Oh deusa tão
querida, as formas pareciam as mesmas, mas foram coladas de modo tão divergente
em Blake, Doré, Ernst, que os carvões já sabiam o endereço certo de cada linha.
As gerações acabam por perceber que as expansões são erráticas, e os escalpes
amontoados em um quarto escuro não projetam o ressurgimento de uma velha tribo
dizimada.
Eu
devia ter algo em torno de uns sete anos e uma bem diversificada coleção de
gibis que meu pai semanalmente me comprava. Lendo as desoladas páginas de uma
índia cavalgando em um altiplano, enquanto falava com seus mortos, pensei em
tirá-la dali e então cuidadosamente recortei sua figura. Creio que funcionou ao
contrário do que imaginei, o espaço começou a ser preenchido por um corredor
extenso, com uns cinco passos de largura, muitos quadros nas paredes, como se
fossem efeitos de uma memória implantada, guiada por um gatilho que me fazia
saltar de um móvel a outro, a mobília para mim irreconhecível, até o ponto em
que uma senhora se aproximou e me disse chamar-se Toshiko Okanoue. Um homem
alto a acompanhava, em terno completo, a cabeça de um abutre com os olhos
furados. Um cão negro bebia o óleo de uma bacia cujo fundo era um relógio. Toda
a cena parecia propagar uma melancolia incomum. O corredor era o da casa de
minha avó materna. Os quadros nas paredes sempre estiveram ali, porém eram
naturezas mortas tradicionais, e não um cortejo de metamorfoses que mais
pareciam adentrar do que sair das molduras. Quando toquei melhor algumas obras
de Toshiko aprendi que a superfície mais hipnótica de uma colagem é aquela em
que o enigma está recortando seus detalhes, formando uma nova concepção de
abismos e situações. Não se trata de um apanhado de conjunções dissimiles ou
opostas, não é um jogo de oposições, mas antes a sensação de que a realidade
pode ser munida por afinidades insuspeitas. Os sonhos de Toshiko Okanoue eram
um prato de mutações, mapa de acidentes que condensavam a realidade à volta de
outros sonhos. Talvez por esta razão a figura da índia cavalgando que eu
recortei fosse buscar outros corpos iguais aos seus, dispersos pelas paredes,
convidados por Toshiko a pressentir uma nova quimera nas asas miraculosas do
silêncio.
Era preciso tirar
aquele pássaro negro da foto, talvez com um tiro ou uma tesoura. A imagem
abolida dará lugar a uma mudança de estação ou buscará compensação em outra
ideia. Uma sombra pode penetrar bem fundo em seu vazio e dali extrair um outro
símbolo. Mas o que deveria sair da imagem não era tão simples como o
efeito de um objeto perdido. Talvez se pudesse pensar no recurso de preparação
de cena. Quando fosse noite eu poderia recortar as partes mais escuras e depois
fazer com elas uma caixa preta repleta de segredos à espera de um acidente. Os
papéis recortados poderiam assim inventariar a fortuna e o desvario de uma
distinta precipitação da realidade. Jorge de Lima e Enrique Molina, o modo como
ambientavam seus recortes, fricções ágeis entre a cola e as sombras dos papéis.
O mistério à espera de uma participação oportuna em cena. As chances seriam
dadas pela observação de outros mundos. Um mundo de esferas tumultuadas e feras
repetidas à exaustão. Os cabelos de Max Ernst, o expediente generoso de sua imaginação,
o melhor para estrangulá-los, meus filhos,
parecia dizer a tantos tributários, que pareciam haver copiado a frase: Meu lugar será sempre aos pés de um criador
misericordioso, enquanto o que se lia, uma vez mais seguros de se tratar de
uma fala de seus cabelos, era: Sonhar,
vestir, balbuciar nos dias de doença. A poesia de Jorge e Enrique possuía a
vertente porosa de uma expressão que fundava em si mesma, rio renascido no
próprio leito, a vitalidade de ousada permanência além da realidade. Essa força
teatral de florescimento de mil formas de ser é o que Max conseguiu através da
colagem. Se fazemos passear juntos suas colagens e os poemas dos dois outros,
veremos que sabem decantar a intimidade do olhar, abrigando as passagens mais
secretas que nos conduzem de um mundo a outro. Porém são, ao mesmo tempo, tão
distintas entre si, que é impossível guardar segredo desses elegantes realces.
De
outra longínqua esfera, o horizonte submerso em si mesmo, a fundura náutica do
deserto, o oceano enturvado da imaginação, lá desse confim de um mistério
maravilhado, vinha aquela que talvez seja a ponta mais fina da revolução
surrealista no âmbito da colagem, esse mundo aparentemente extraviado que
encontramos na tesoura de Ludwig Zeller e que é capaz de transformar o sonho,
ou como ele próprio sempre cuida de nos recordar, a cada imagem: a vida é tão-somente a pele de uma miragem.
Quantas vezes viajamos pela perene oportunidade de outros sonhos quando nos
deixamos tocar por suas colagens. E quando lemos seus poemas o encantamento se
multiplica porque descobrimos que é a mesma fonte, a mesma intensidade ou consciência do olho, o que desejamos
decifrar em sua lupa. Como um peregrino que recorta as sombras do sol
desmembradas sobre nossos passos na terra, o caminho solitário do mágico
cruzando o deserto, os personagens dessa imensidão que a todo instante nos diz:
Concentrando a mente aparece a paisagem.
Se fosse o caso eu confessaria que esse banquete de maravilhas que Ludwig
Zeller realiza, mais do que no poema ou na colagem, na alta temperatura com que
funde os metais de sua imaginação, sim, eu confessaria que foi ele o
propiciador de meu calendário de excessos, do barco ébrio de minha criação.
Quando o homem tem
bem dentro de si uma mulher é que ele pressente o quanto a realidade é
incompleta. Dois corpos se arrastam pelo interior um do outro buscando uma
causa para suas consequências. Talvez a vida fale mais alto ao sublinhar as
ausências, talvez seja este o modo dela dizer que todas as formas tendem à
imitação. Quando tenho uma imagem recortada bem colada dentro de outra, também
aí vislumbro que novas formas cobrem seu lugar em uma simples mudança de
ângulo. A colagem acaba por gerar uma outra e igualmente incompleta realidade,
onde sou tudo o que colo em mim, até mesmo as mais inadvertidas causas.
Incompleta ou não, diante da metamorfose resultante de uma colagem jamais nos
indagamos que sentimento ela tem acerca de sua nova vida. A realização do olhar
desconsidera a razão de ser do objeto exibido. Digamos que seja uma mulher com
seis pares de braços e uma cabeça de serpente, a fascinação exercida por essa
imagem não vem dela e sim de quem a contempla. A realidade advém dessa estranha
forma de divinização que aplicamos a ela.
O quarto estava
inteiramente despido de si. Nem porta ou janelas, cortina ou tapete. Sem luz ou
móvel algum. Como um cubo em completo despudor. Rosália sabia o que fazer,
passear a sua nudez na escuridão e em silêncio, movendo-se e retorcendo o corpo
de todos os modos que a dor e a imaginação permitissem. O clique da câmara
abria a bocarra do flash que engolia a carne do acaso dos movimentos dessa
mulher. Seu corpo ia sendo criado através de inúmeros fragmentos e quanto mais
incompletos mais reverenciavam uma paisagem multiplicada em si mesma. Quando
fomos passar as fotos para o computador pude verificar a ousadia crescente com
que ela foi tingindo seus movimentos de um voraz erotismo, tocando-se,
abrindo-se, contorcendo-se como um molusco que aprendera a lidar com sua
sexualidade. Aquelas fotos seriam o princípio de formação de uma nova matéria.
A partir delas surgiriam os ovos cujas cascas uma vez rompidas dariam passo a
essa realidade inimaginável. A colagem é um salto na imensidão agônica de uma ausência de
significado do mundo já existente. É possível dever a ela a felicidade do
encontro de novo significado. Mas essa celebração se verifica em qualquer forma
de criação artística. Assim como na colagem, sob certo aspecto, tudo o que
deslocamos de um ambiente para outro em nossa visão de mundo, de modo que esse
deslocamento se realize na música, no teatro, na dança etc.
Ao final do dia a
garrafa vazia vivia seu pior dilema. Todas as fotos haviam sido recortadas e o
que elas agora tinham a dizer era bem diverso da imagem fixa de sua memória.
Era possível até mesmo sobrepor objetos, revirando a casa, dando novo endereço
ao acaso. Como
quem recortasse os dias em um calendário para com eles dar início a uma
biografia repleta de incertezas. Os dias escolhidos ao acaso talvez até
coincidam com os interesses da memória, mas podem sintonizar uma nova
perspectiva de extravio. O personagem que permita sortear desse modo o próprio
destino decerto saberá entender que as partes faltosas são como veias
dissecadas ou visões esquecidas em um simples piscar de olhos. Um dia
conversando com outro artista, eu lhe disse: O problema (não é para mim um problema, já saberás) é que a forma como
fui talhando a essência de meu pensamento, essa profundeza de uma síntese, não
me permite a utilização de espaço demasiado para dizer o que tenho a tanto.
Talvez eu devesse voltar à narrativa encontrada por Max Ernst para contar uma
história através da colagem, e não para ilustrar o texto com a imagem. Em um
livro como Rêve d’une petite fille qui
voulut entrer au Carmel (1930), a impressão que temos é que se algo atua
como elemento ilustrador é o texto, um texto, é bom que se diga, que poderia
estar ausente de suas páginas sem comprometer a fiação do caso. Talvez eu
devesse retornar à tesoura, à cola, à lupa, ao modo como comecei a lidar com a
colagem, com a obsessão discreta de um miniaturista, que procurava as fontes de
expansão da imagem em sua entrada cada vez mais aprofundada em si mesma. Quando
comecei a recortar livros abertos e a inserir no interior de suas páginas as
visões minúsculas de uma realidade alheia à sua incompletude, que ia tocando
cada objeto e o convertendo em outra forma, ou simplesmente em outro modo de
olhar a si mesmo.
As minhas gavetas, caixas encontradas em tamanhos variados,
eu as fui viciando em miúdas fontes descompassadas, como pedaços de corpos de
diminutas bonecas, de pano ou plástico, desejosas de entrar em uma espécie de
castelo das naturezas mortas. Oi
pequeninos, o que vocês acham que poderão ser amanhã? Eu bem poderia cedo
pela manhã indagar isto àquela inconsciente relíquia. A natureza, a outra, a
incompleta e que se imagina viva, à qual julgamos pertencer, me havia viciado a
ver o mundo desfigurado, despedaçado, como se eu houvesse instalado um par de
tesouras em meu olhar. Será sempre assim quando criamos? De algum modo, com o
tempo, os meus pequeninos foram se cansando de mim. As silhuetas bem-humoradas
de Hans Arp, as caixas de Joseph Cornell que projetavam o mundo em seu
interior, o recenseamento do absurdo na multiplicação infinita de seres em Peter
Blake, esse mundo que ia produzindo suas sombras entre a pintura, a fotografia,
o objeto, que ia me visitando e apaixonando anos a fio… Mesmo assim, os meus
pequeninos acabaram conhecendo a solidão no interior de suas câmaras de madeira
ou papelão. Durante algum tempo a colagem deixou de me interessar até a
descoberta de um motivo: os meus fantasmas queriam para si um corpo que eles
pudessem identificar como sendo seu integralmente, uma ilusão de que poderiam
habitar o mundo sem a menor sombra de semelhança com outros. O primeiro plano
dessa descoberta me levou a compor um acervo fotográfico próprio que eu poderia
recortar e moldar a novos ambientes inevitavelmente incompletos. Somente ao
encontrar um segundo plano é que acabei por entender que os meus novos
pequeninos poderiam ser espíritos, espectros, prenúncios de uma imagem que
somente nasceria de um gesto amoroso, o da sobreposição de desejos.
De volta à pequenina de Max Ernst, Marceline-Marie, quando
lhe diz: Aqui na minha mão, pai, está a
faca da suprema vicissitude, prudência, zelo e caridade. Meus companheiros
receberam ordens para não gritar. Ao contrário, como eu não estava buscando
um mosteiro, mas sim a entrada dos fundos de uma passagem para o inferno, com
os motivos da imprudência e seus ardis devassáveis, as minhas imagens agora
ansiavam por uma orgia que se prolongasse até a descoberta de um novo ser. Um
corpo nu roçando uma pedra dura, o olhar revelado no íntimo de um tecido
áspero, as flores carnudas do sexo brotando de troncos de árvores e margens de
rios. Havia uma devassidão sem par que espreitava todos os encontros entre
superfícies desejados pela beleza e a crueldade, o amor e a repulsa. Era
preciso saber de tudo, que a consciência é má e pode nos enganar a todos, que
os tolos só se aliviam porque lhes foram negadas a lucidez, que estamos
condenados a desaparecer no vazio do hábito. A luz não era mais eleita em face
da escuridão. As virtudes haviam perdido lugar no proscênio. Era preciso apenas
escapar do enfado da existência. A lei, a moral e os relógios haviam sido
demitidos. A partir daí criei extensas séries fotográficas, intituladas
“Sombras raptadas”, “Selva de peles”, “Cadernos de taras”, onde o desmedido era
a tática eficaz para recuperar o sentido perdido da criação. Um novo choque de
ilusão, se me permitem.
Talvez existisse
uma estranha linha sutil em que o sentido procurasse apoiar-se. Um simulacro de
formas não resistiria por muito tempo se não desse a cada aparência um motivo
que fosse interpretado como a chave para livrar o mundo dos repetidos truques
da escuridão. O artista e sua obsessão pelo missionário. A serpente e sua
memória viciada em paraísos. Quem quebraria essa corrente? Era preciso descrer
no mito. Fragmentar o caos até que ordem alguma mais fosse possível. Jamais
esperar que o hábito das pedras refaça o caminho. O baile dos vestidos no
bosque fantasma. As caixas vazias de sapatos caminhando pela casa. Talvez os
temas fossem possuídos por suas formas. Ou talvez os contornos se excitassem
até que o papel assumisse uma vazante de identidades que extrapolasse qualquer
sentido. As sobreposições permitiam uma colagem abstrata onde jovens corpos
pareciam sair do fundo de um lago. Não seria possível conservar ordem alguma,
porque o olhar não fazia perguntas, se mostrava sempre como uma porta cujo
abrir e fechar era motivo suficiente para a multiplicação do inesperado. O
olhar queria ser encontrado e mesmo apropriado por essas imagens. Eu queria uma
colagem distinta daquela que tanto admirava nas páginas de Robert Rauschenberg ou Deborah Roberts ou
John Baldessari. Não me interessava o pano de fundo dos dogmas, as vertigens
implantadas dos blefes sociais, os disfarces de sonhos insuflados. Eu tinha,
tenho ainda, aquela única certeza de Ionesco, de que ao final de tudo apenas o
assombro permanece. E com ele eu repeti tantas vezes: De repente, a luz fraca de uma esperança insensata: o dom da vida nos
foi dado, "ninguém" pode recomeçar. Não sei bem o que isso significa.
Não o sei, em absoluto.
Por essa época duas
novas abordagens começaram a me interessar: a supressão da realidade e uma
mutabilidade narrativa. No primeiro caso o desafio estava em copiar da
realidade as suas gradações perdidas, coladas umas sobre as outras, como um
palimpsesto, até que essa mecânica assumisse a forma de uma realidade
imaginária. Uma cidade feita dos elementos em abandono, das coerências
esquecidas, das relações profundamente enterradas. Somente a radicalização
desse mundo desconhecido permitiria o alcance das placas mais subterrâneas do
imaginário. Tal iluminação não encontraria pretexto para mostrar-se visível se
não fosse levada a conhecer os efeitos de uma reconstituição teatral do
inesperado, a fonte do risível, os fundos falsos de uma certeza de si mesma. A
partir daí comecei a trabalhar em uma série de máscaras, capas de discos e
cartazes de cinema, um vetor de novas perspectivas ao encarar o que somos e
fazemos, o ser e a criação. Seria aquele caso de alguém que dispara a arma
contra o peito de seu reflexo no espelho, sem temer, em momento algum, a
fatalidade de seu ato. Ou daquele outro que explode uma bomba na sapateira em
seu quarto certo de que jamais perderia os pés. Alguém poderia lembrar a
temperatura elevada em que as coisas se revelam. Sim, é isto. Deixar de lado o
jogo das predisposições. Não prometer ir à rua atirando a esmo nas pessoas.
Atirar em si mesmo, infinitamente, até descobrir-se outro. Foi nisto que pensei
ao compor a minha tríade imaginária: os rostos, a música, as marcações cênicas.
Não é outra a totalidade do assombro: o que vemos, ouvimos e o modo como nos
expressamos no mundo.
A outra abordagem
veio de uma exigência natural da imagem tridimensional. A curiosidade de sondar
o encontro entre a assemblagem e a página-roteiro de um gibi. Volta à infância,
pois era algo disto que eu fazia ao recortar os personagens das histórias em
quadrinhos e com eles montar um teatro imaginário tridimensional. Certamente
Jean Dubuffet se divertiria muito com aquele entreato infantil que viria
décadas depois encontrar-se com a dúvida impressa em uma das páginas recentes: Deuses não descansam enquanto não os
esquecemos. Não havia Dubuffet, Ionesco ou Hans Bellmer na minha infância;
e, no entanto, como já estavam presentes! Como uma floresta (cuja miniatura
poderia ser o quintal da casa dos pais, um bosque impenetrável de bananeiras e
mamoeiros, cujas noites me aturdiam o espírito como um mistério querendo me
excitar, dizendo que estava ali, que eu também poderia estar ali), uma floresta
ao alcance de uma nova concepção. Se vai
contar uma história, nunca se
deixe enganar pela lógica perversa do tempo. A memória adora compartilhar seus
pecados. Na página-assemblagem em que escrevi isto estava o foco daquela
temperatura elevada que me assaltava a infância. Ao que parece, da vida só
sobrevive, em seu acúmulo ilusório, aquilo ao qual nos estreitamos com toda a
determinação. O que Ionesco chamava de vitalidade
prodigiosa. O grau mais alto do devaneio. Lendo a página seguinte a
intuição se torna a forma alucinatória por excelência: Não importa o degredo, a barganha, o vexame da fórmula, o dialeto das
cinzas. A verdadeira essência humana é um ideograma grafado no vazio.
Quando me li, impressionou-me que não tenha escrito isto aos sete anos. Essa
identidade informal da analogia, o mundo improvável onde cultivamos uma horda
de problemas somente em busca de algo que justifique nosso fracasso por não os
solucionar. O sonho nunca foi um impasse e sim o implante de vigílias que
instalamos em nós como um enxame de promessas que sabemos jamais serão cumpridas.
Deuses botam a comida no prato da noite,
preparam as estações para a fúria das aventuras e as cicatrizes das mais finas
ilusões. Eis o que fizemos de nossa vida: somos os senhores de nossas
próprias ruínas.
Ao final de qualquer ciclo sempre poderemos ler a invisível
tabuleta que garante que somos uma colagem ofertada ao fracasso de tudo o que
não compreendemos em nossa vida. Talvez o trabalho da intuição ainda tenha algo
a nos revelar, porém criamos um vendaval daquilo que Bellmer chamava de percepção-enganosa. Somos a
representação de nada. A prova de que a imaginação é uma deusa bastarda. Mal
respiramos, pois tudo à nossa volta é irreparável. Houve época em que
acreditávamos que o artista possuía um valor espiritual maior do que a pessoa
comum. Não creio mais que tal crença possibilite a impressão de uma nova
intensidade no mundo.
A DAMA SURREALISTA EM SEU BORDEL ELÉTRICO
Eu gosto de
chuva.
É como se os
anjos ejaculassem sobre nós.
Andar caminho
errado
pela simples
alegria de ser.
As
noites com seus requebros nem sempre dizem a que horas abrirão as portas para o
acaso. Velhos clientes ignoram a rapidez quase estática com que o tempo muda de
roupa e são capazes de perder a própria vida na crença de que seus lugares
estão marcados no salão dos pequenos vícios. Há aqueles que defendem a presença
indisfarçável da inspiração para a criação, por exemplo, de um poema. Um desses
raros, outro dia confessou: Eu não creio
em inspiração, mas sim na loucura irrefreável dos seis sentidos. Era capaz
de escrever um romance inteiro ou uma saga em versos, deslocando os tempos dos
verbos e se recusando a aceitar as leis da física. Tínhamos que abrir com
cuidado o seu caderno de manuscritos, sob o risco de palavras saltarem fora das
páginas. Ao final, ele costumava mudar de lugar dois ou três substantivos
previamente pensados, que cuidava de repetir aleatoriamente ao longo da
escrita. Era preciso dar alguma atenção a esses personagens que surgiam à
revelia da realidade. A vida de cada um de nós tem uma carta marcada que
acredita em destino. Observando bem o que tem se passado com a história, essas
vacilações incontidas são a causa de todo o destempero humano. Sem a presença
do destino as religiões não durariam dois segundos. Por sorte as noites não são
à prova de imprevistos. Este último reduto da alegria de viver. O diapasão de
orgasmos geniais vividos por seres que estão além de si mesmos. As palavras que
desventramos de um livro qualquer escolhido ao acaso podem conter – em alguns
casos esta é uma verdade dilacerante – uma espécie de último suspiro que nos
faz recobrar o compassivo devaneio que por vezes deixamos fora de si, como uma
pele que restou no preparo de uma tela que nos desafiasse a pintar em seu
íntimo as horas desfeitas de nossos silêncios inconclusos.
Ouvi
dizer que as lágrimas caem no momento certo, guiadas por um pressentimento que
não falha nunca. Elas distinguem as dores, reservam a cada uma delas uma dose
suficiente para contornar a circunstância. Imagine se as vanguardas tivessem se
ocupado de dar vida aos objetos, se as máquinas do Futurismo fossem personagens
humaníssimos, ou se o inconsciente do Surrealismo fosse uma dama sagaz que em
seu bordel cuidasse das relações sexuais entre todas as coisas… Alguém poderia
indagar: como é possível encontrar a própria sina em meio ao turbilhão de
dispositivos fora de controle, mercadorias extraviadas, matérias dissipadas?
Atiçamos o olhar no alcance de seu enlace com o infinito e o que vemos é uma
feira imensa de desígnios danificados. No mais amplo predomínio da agonia,
despótica ausência de significado. Creio que todos já nos acostumamos com a
vida em seu estupor inconsciente. O bordel ainda é um lugar sagrado para
aqueles que não reconhecem o que perderam em sua travessia diária de pequenos
favores. Talvez Nuria Schimmel tenha razão: a arte não traduz mais uma reação
ao tempo e sim o próprio curso de miseráveis atavismos que foram sendo tatuados
em nossa alma. Fechar tudo – gritam
as portas desencontradas, em meio à avalanche de repetições que produz um
bordão flácido. Fechar a palavra, não deixar o destino açoitar o abismo. Quem
sabe se trocarmos o valor de algumas palavras entre si, a intempérie de seus
símbolos, e assim fôssemos surpreendidos por um ritmo que, mesmo discrepante,
gelasse por dentro e fizesse rachar o núcleo de suas perversões. Deuses com
suas varinhas rascunham fábulas indescritíveis na beira da praia, depois apagam
tudo com sua urina de sal. Os deuses são os monstros da infância. São sádicos e
fazem as crianças acreditarem em um mundo onde o bem possa vencer o mal.
Eu
ouço a música das cabras e quero dançar com elas. O pai não pode ver, pois o
pai é o reduto secreto de toda imolação, a gruta que se abre na rocha marítima
para o vislumbre de um sol agônico. As sombras tatuadas em meu corpo que me
faziam sentir protegida da cópula dos deuses. Mas eu queria ser devorada por
eles, tudo em minhas entranhas acentuava a sílaba da palavra com que eles me
penetravam. Toda criança quer ser deus. Eu ia dizer que sim, mesmo com a mãe
ali por perto com a palmada na ponta da língua. Parte do enredo era inevitável,
porém não me metia mais medo do que o receio de perder aquela oportunidade. Por
mais que despenque no caos e se dissolva em uma alegoria sem fim, a
oportunidade é algo que não deve ser evitada. Sem ela, crescer pode ser inútil.
As escadas bajulam as alturas melhor que o abismo. Elas querem impor um mundo
sem saltos, onde tudo é ascensão irrecusável, a frauda deliquescente de um céu
que se esconde ao ser tocado. O abismo considera o impacto uma das fontes da
pertinácia. Os ventos brincam com seus fantasmas em casulos úmidos pendentes de
tetos arranjados na última hora do ocaso. Os espasmos inconsoláveis das noites
costumam atravessar o sertão das próprias penitências. É preciso deixar um
prato de carniças do lado de fora das grutas, ao pé das escadas, somente assim
o sol retornará ao jogo de sílabas de suas mil palavras comestíveis. A solidão
do soldado soletra a solvência de seus insólitos solapares… Ah isto não tem
fim… Então abandonemos as noites. Vamos vadiar com os anjos. Nuria Schimmel
também dizia que a arte havia perdido seu apito ilusório, a chave dos fundos
falsos que plantou em seus truques. E se houvesse em um idioma perdido no tempo
uma palavra que ao mesmo tempo significasse destino e noite? As escadas são
grandes monumentos engavetados pela ilusão. Os cômodos lascivos das hospedarias
fincadas em lugares alternados. Por vezes o meu corpo se perde procurando sua
morada mais cálida. Ninguém sabe ao certo qual noite se esconde atrás do
armário. Qual cão adormece na taça dos lustres do velho casarão. Qual fantasma
virá brincar esta noite com o abismo insone. Ao menos um de nós se divertiria a
noite inteira a mudar as palavras de lugar em um romance. Muitas delas poderiam
ter um duplo sentido. Outras, no entanto, não suportariam ser confundidas, como
lei e justiça, ou dia e noite.
As
sobras encharcam as páginas dos dicionários, desconhecidas até mesmo de boa
parte dos escritores. Talvez Nuria tenha percebido que, ao serem entrevistados,
dificilmente escritores falam de seu amor pelos dicionários. E os tanques de
reprodução onde criamos os peixes delicados da linguagem? Serão apenas
ornamentais? Sem a presença das noites as quimeras nada teriam a revelar. Até
que ponto a língua que falamos contrasta com a nossa visão de mundo? Lembrei
agora aquela descoberta de que os esquimós têm 50 palavras para dizer neve.
Talvez tenham mais, se começarem a improvisar, na neve, com o mágico
desdobramento das sensações. Quantas vezes desconhecemos que nosso universo
linguístico expressa muito mais do que compreendemos? O que falamos, o que
convertemos em palavras, é uma fração bem pequena daquilo que sentimos. Talvez
em português possamos escrever de infinitas maneiras a palavra sertão. Jamais o
saberemos, no entanto, pois temos uma visão reduzida da imensidão dessa região
que de tanto ser desossada mudou a árvore de sua presença na terra: pele,
intestinos, modo de andar, o jeito de deitar-se ao relento do horizonte aguardando
a água que lhe foi desviada. Também a palavra sertão teve o seu destino
desviado. Escutaríamos a noite inteira um livro de canções do abismo. As
palavras formando novos guetos e afluentes, contando e apagando os percursos
por estranhas estradas. Como os véus chorando em desacordo com a nudez dos
mares, as saliências da terra apagando seus rastros como o amante que fugisse
pela janela após amar a si mesmo no corpo da mulher a quem prometera um
carrilhão de mistérios. Agora nos sentimos assim, como se a vida nos tivesse
abandonado. São essas migalhas que vamos encontrando pelo chão que nos levam
ainda a crer no amor. A esperança, no entanto, é uma velha gorda que se
alimenta de nossas crenças. Onde estão mesmo os caminhos certos? Não há como
sabê-lo. O erro é ainda a melhor chuva de anjos. Os pardais se alimentam de uma
dialética renegada, dessa farsa de miragens que vamos fiando como se
buscássemos o entendimento de deuses. As cédulas bailam sobre os cadáveres
expostos dos tolos. Eles lambem a própria miséria e sequer estranham que a
morte tenha lhes convencido a compor uma cena tão devastadora.
As
palavras se perdem, indispostas, em uma vertigem transfigurada. Talvez por ali encontremos algum caminho
certo, uma delas arrisca o comentário fugaz. O horizonte a contemplava do
alto de uma página impressa ao contrário. O cabide dos tormentos vaga pela casa
vazia à procura de uma outra palavra para a agonia que lhe aflige. Há uma
cumeeira de sonhos que poucos se atrevem a acordar. Em certas noites os pesadelos
se disfarçam e diante de um gesto inadvertido a vigília se sente eletrificada e
dificilmente retornará a seu ninho. As vestes se dissipam. Não há mais corpos.
Apenas vultos em desalinho habitam os casebres em chamas dessas noites. Era
preciso contar os carneiros dessas horas angustiadas. Quando vimos a primeira
mostra de um loop infinito em um museu de sombras constatamos que a partir
daquele momento os horizontes perderam a sua função mágica. Não há dúvida, os
egos vão sendo estraçalhados pelos spots. A natureza humana se perde em meio ao
furor de sua constante perda de identidade. A vivência não conta. Somos todos
despidos da guarda sagrada de um leviatã inominável. O serviço social bate à
porta desde cedo exibindo seu campo de influência, as cartas com letra
invisível que atestam o comando intransferível de uma insuspeita verdade
absoluta. Não damos jamais pela conta do quanto a nossa alma foi esmagada por
essa verdade. Não sentimos nada. A vida nos atola em sua matriz de
falsificações, de modo que até mesmo a ausência, a morte, o rompimento de um
amor, nada… com que tamanha eficiência o mundo se torna inacreditável. As dores
inexplicáveis, o parto, a morte acidental, o rapto, o núncio que prega os
verbos atônitos, as luzes, as luzes, as palavras se escondem nas luzes, podem
ser aflitas ou reveladoras, contidas ou alarmantes, mas sempre nas luzes. Eu
tive um sol que requebrava a cada instante, o meu olhar ia acompanhando o que
parecia um caudal de vertigens. Não a vertigem solar, mas a minha, a minha inquietude
de compreender o significado daquele movimento incansável.
Não
podemos imaginar um mundo descortinado pela alquimia de quaisquer metais
inventariados. Nada parece funcionar desse modo. Uma noite a casa acorda
esvaziada de sensações. Um silêncio desmedido. Os móveis, os restos de um mundo
em desuso, os insetos atraídos pelo exílio. O que é uma casa assim, que dá
voltas em si mesma até não haver mais um sinal de sua existência? Quando essa
ação de despejo do acaso se intromete em nossas vidas, as noites revelam aquele
salto ou assalto de formas ou espectros que imaginávamos parte de certa
liturgia. Uma fábula que garantisse, ao modo em que as fábulas costumam
garantir, que as pedras usadas na construção de algo um dia podem se converter
em cúmplices de sua autodestruição. Tenho então que indagar a Nuria Schimmel de
que nos vale ir anotando a fluência de percepções acerca desses vultos que
saltam das naturezas mortas que são a própria essência humana. Ela ri. O que
pode haver no mundo que já de muito não tenhamos percebido? Qual a surpresa?
Estamos acabando com a essência humana, ao ponto de não caber mais em uma
caixinha onde a poderíamos guardar para que um dia, milênios depois, nunca se
sabe, viesse a ser descoberta por outra espécie. Não se trata apenas de
escritores. Nuria erra em sua perspectiva. As sombras foram surgindo aos
poucos, os abismos enganam, não são retráteis, um dia convidei um grande
artista a vir comigo repartir a bênção do acaso. Uma tela miúda sobre a mesa
ampara o universo. Era como se fôssemos ao mar pintar aquela intrepidez límbica
que nos faz crer que somos deuses. Somos a sombra hesitante de uma velha
cafetina que cuidou dos mínimos detalhes de construção de seu bordel dedicado a
um sistema elétrico que seria o reflexo absoluto do Surrealismo. Uma casa onde
o mobiliário ganha vida e tanto dialoga com seus moradores quanto inventa
interlocutores que possam iluminar a memória.
Um
dia alguém psicografará uma trama que será a realidade aceitável de seu tempo.
Em nosso presente instante os anjos ejaculam sobre nós pela simples alegria de
ser. Não sei até quando resistiremos a esse abuso de improcedência. Não sei o
meu nome. Quando nos falamos através desse canal intangível a nossa voz se
converte em uma multidão de formas. Não sei se é tão fácil chegar a tão
inimaginável epigrama. O fato é que quando estamos aqui, não importa quantos
somos, nada no mundo parece estar em lugar melhor do que em nosso casarão
imaginário. A chuva lá fora, os deuses, o baralho das impropriedades, as ocasiões
imprevistas em que acabamos por desaparecer sob a tempestade. Não há nenhum
mundo aqui. Tudo expira no exato instante em que o imaginamos. O desafio que
aprendeu nosso nome é o mesmo que serve para qualquer um de vocês. Onde diabos
vocês se meteram quando o que mais precisavam era provar que haviam descoberto
um modo de ser? Parece fácil. Talvez seja. Talvez seja o mais valioso desafio
da existência. Agora é com vocês.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
∞
Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
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