sábado, 16 de dezembro de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Naufrágios do tempo [escrito a quatro mãos com Berta Lucía Estrada]

 


O homem é divino na experiência de seus limites.

GEORGES BATAILLE

 

I.

 

Seu mamilo despontava como uma pequena ilha surgindo no oceano. Os pecados são íngremes e a água escorre por entre a relva de seu corpo trêmulo. Suas pernas naufragaram em meu olhar. Nenhuma de nós pensou em indagar o nome da outra. O mar enchia seus pulmões de frágil resistência. Ela tossia enquanto o crepúsculo mudava de cor. Sua mão displicente me afagava o ventre. Seu olhar vinha das noites frias do mar. Quando subi em seu barco um círculo de cipós me aguardava. Eu deveria escrever ali a fortuna do efêmero. O céu se desdobrando em novas simetrias, regurgitando os símbolos de sua ambivalência. As suas lágrimas eram uma suspeita de castidade.

Estamos em lados opostos, mas se me deixares morrer eu posso renascer a teu lado. Podemos cobrir a noite com o domo de nossos espíritos irradiados. Eu beberia a tua abundância, tu me iluminarias com teus hieroglíficos insaciáveis.

Quando tentei lhe dizer algo a minha confissão se desfez em palavras que nem mesmo eu pude escutar. Ela se tornou inefável como a mãe de todas as coisas incomparáveis. Como um império de milagres relutantes. E comecei a receber seus guias, o frêmito de suas luzes preparando o cenário para que ela pudesse vir buscar em mim a semelhança, a harmonia fecunda de seus elementos sagrados. Um de seus caboclos me instruiu:

Deves chamá-la por Cibele, a amante dos abismos, aquela que acenderá em tua carne as raízes delirantes.

Ao me dizer isto, no círculo de cipós vi abrir-se uma sala que me convidava a conhecer a origem de seus pilares. Aquela passagem era uma espécie de canal que me conduzia aos calores de suas metáforas. Ali estava Cibele, que me queria enroscada em seu corpo como uma kundalini, como se eu fosse o seu novelo vital, a sua crença nos dias ascendentes de nossas carícias. Não deveria haver comedimento entre nós. A deidade primordial buscando a representação do humano como aquelas aves que fazem seu ninho no dorso rochoso sob as torrentes de água. Eu faria de sua pele a minha pia batismal, caldeirão revigorado ao mergulho de cada novo símbolo em suas vísceras. Areia antecipada de mil taças onde eu distribuiria meu néctar em uma orgia mística.

A imensa sala, no entanto, não correspondia ao ouro de tão sublime princípio e seu lampejo de feitiços. Escuro, sombrio, o chão talhado de excrementos, o nauseabundo odor de urina, sepulturas abertas, imundície exaltada, tudo ali descrevia uma materialização de malefícios, talvez pela simples dedução de que todas as perversões se agarram ao inconsciente como uma alma de outro mundo que fosse designada a nos salvar. O acaso seria um mensageiro e um ladrão. Quando rompemos a bolsa para o nascimento de quem um dia seremos, também a nossa antiga morada parece um ovo putrefato. Temos que nos livrar de todo o passado. Uma nova alma inquieta nos conduz por um corredor de auroras sedutoras. Mas nem todas somos Cibele.

 

II.

 

Cibele, Atis, Damia, são apenas alguns dos nomes que me foram dados desde o início dos tempos. Eu vivi dentro das cavernas – ali onde os abismos deixam de ser verticais para se tornarem labirintos que aguardam um novo Teseu. Alguns lamberão meus seios e, com isso, perderão a memória. Meu cheiro os levará para longe de Ariadna e minhas curvas sinuosas serão seu único caminho. As naus de Egeu cairão no redemoinho de minha respiração, cujo bravo exército desaparecerá nas profundezas de Poseidon – seu verdadeiro pai. Os gestos de guerra, aprendidos em longo e doloroso treinamento bélico, serão transmutados em refrãos que cantam a glória eterna do deus das profundezas – emulando aqueles que Corina de Tanagra ensinou a Píndaro.

Teseu, assim como inumeráveis Teseus que passaram por minha cama, dorme ao meu lado até o fim dos tempos. Não há como escapar. O retorno é uma utopia mesmo para quem não consegue esquecer completamente a vida pródiga nos palácios da infância. Quando me canso de deitar ao lado dele, brinco com suas embarcações ou bato palmas para ouvir as canções. Enquanto isso, meu cabelo comprido é penteado por uma comitiva de Perséfones – ou então, elas servem como cavalariças para cuidar dos corcéis de Poseidon. Nelas cavalgo pelas planícies do Tártaro, o rastro deixado por seus capacetes serve de teatro para a dança dos golfinhos.

 

III.

 

O nome de Teseu é Alfredo. Eu soube disto desde nosso primeiro encontro, quando o vi no metrô e descemos na mesma estação. Alguma força secreta me levou a seguir seus passos. As cidades cresceram confusas, com seus desterros mal planejados. As ruas eram sinuosas como um labirinto de serpentes amatórias. Alfredo certamente desconhecia seu destino, porém caminhava com enigmática displicência. As luzes pigarreavam como se a qualquer momento a escuridão desabasse sobre nós. Um estranho pensamento me abateu, fazendo com que eu me sentisse parte desse mundo. Talvez fosse apenas um sonho, tornado possível pela simples menção ao nome de Teseu. Em uma das esquinas pude ver uma grande mesa, os pratos sujos como sinal de uma refeição abandonada de modo inesperado. As tochas ainda acesas. Nem mesmo ratos e insetos ficaram para o banquete interrompido. Quantos deuses não gostariam de ser lembrados assim, em meio a essa ausência invulgar de seus adoradores? Quantas orações abortadas sem que se pudesse compreender a origem daquele insuspeito milagre? Alfredo aproximou-se do centro da mesa e recolheu um copo de latão ressecado. Não havia mais nada ali que lhe despertasse interesse. Eu também procurei entre as sobras algo comestível. Era inútil. Alfredo me olhou pela primeira vez. Nosso silêncio tecia um mantel de símbolos que nos abrigaria – ainda não o sabíamos – por longas noites. Ao sairmos dali fomos nos deitar sob uma árvore desfolhada no centro de uma praça. Logo seríamos tragados por uma densa névoa, porém nos mantemos conscientes pela sensação elétrica que nossos corpos despertavam um no outro. Dormimos por algum tempo. Sonhamos o mesmo sonho, que nos tirou dali para o interior de um antigo casarão.

 

IV.

 

O caminho que nos conduziu até lá era ladeado por árvores centenárias que, no verão, deveriam dar sombra às pessoas que se aventurassem por esses lugares inóspitos. Era uma noite de lua cheia, então a trilha estava iluminada – apenas o canto das corujas e o bater das ondas nos penhascos podiam ser ouvidos. Senti a presença de Alfredo como se fosse parte de mim – percebi que era sua sombra e que só agora poderia me juntar a seu corpo.

Não falamos, pelo menos não com sons – no entanto, travamos um diálogo que correspondeu ao de um casal que vive lado a lado há milênios. As recordações ficaram claras em minha memória e a sensação de orfandade, que me dava um ar sombrio, desapareceu por completo.

Depois de cerca de duas horas de caminhada (ou seriam dois séculos?), ou assim parecia, chegamos em frente a uma porta descolorida e pesada que tinha uma aldrava enferrujada. Ao toque, a porta se abriu como se a mansão aguardasse nossa chegada. Entramos em um corredor aparentemente vazio – suas paredes, cheias de rachaduras, revelavam pedaços de papel que já foram um sinal de seu esplendor. Ao fundo, vimos uma escada em espiral. Começamos a subir, a madeira rangeu como um barco em alto mar – o ar úmido e salgado agarrou-se à nossa pele – reconhecemos a morada que nos abrigou em alguma vida anterior. Depois de uma longa subida, chegamos ao sótão – no fundo estava Cronos amarrado a uma cadeira – o tempo parou. Seus olhos não refletiam incerteza – compreendemos que aquele era seu domínio e que fazíamos parte de seu feudo.

 

V.

 

As paredes do salão ainda lacrimejavam com a perda de sua pele estampada. Em um dos cantos distinguíamos uma pilha de velhos relógios de vários tamanhos e modelos, e o canto roufenho de um cuco indicava que a pobre ave de madeira havia sido soterrada em meio àquela avalanche do tempo caído em desuso. Alfredo afastou alguns relógios e recolheu em sua mão o pobre pássaro machucado. Quando chegamos na água-furtada ele já respirava melhor, porém assustou-se ao ver Cronos. O trêmulo coração do cuco parecia querer nos dizer que o deus havia se cansado de reger o tempo e que havia então destruído todos os relógios. Alfredo me deu a ave e se aproximou da cadeira. Cronos estava preso nela por seus oito cipós apertados e não podia se mover. No entanto, tive a impressão de uma docilidade ou mesmo cumplicidade com aquela aparente coação. Talvez o próprio deus tivesse ordenado a cadeira a deter seus impulsos. Diante de seu silêncio nada pudemos confirmar. Alfredo me pediu que soltasse o cuco, que saiu voando pela janela. Foi quando notamos que toda a paisagem descortinada do parapeito da água-furtada era uma inconfundível aquarela com nuvens retalhadas e um sol manchado. O cuco logo sumiu por um dos rasgos daquele painel gasto. Quando estávamos para ir embora ouvimos um indeciso resmungo de Cronos.

Eu contarei a vocês o que houve desde que em momento algum pensem em me soltar daqui. Não sei quanto tempo ainda me resta, mas estou convicto de que devo apodrecer prostrado nesta cadeira.

Alfredo assentiu com um gesto e nos sentamos ao chão.

O fato de não poder sonhar nunca me afligiu, até que uma noite eu fui sacudido por um pesadelo aterrador. Eu havia sido encarcerado por algum crime cometido que não era de meu conhecimento. Trancafiado em uma pequena cela, na grade a meu lado estava um outro preso. Logo que os guardas se foram ele então me disse:

Não vais querer saber?

O que me queres contar?

Eu não quero contar nada, mas certamente indagarás pelo motivo que me trouxe aqui.

Não estou bem certo, mas… Sim, podes contar.

Não digo nada até que insistas.

Não sei quanto tempo me manterão aqui e não há nada para se fazer, de modo que, sim, eu insisto que me contes o motivo de tua prisão.

Eu matei a minha sombra. Até onde eu me lembro nós tínhamos um acordo de que não faríamos nada sem o consentimento do outro. E deste modo levamos uma vida de satisfeita cumplicidade. Certa vez eu comecei a perceber que sempre que acordava ela parecia não estar tão descansada quanto eu. Cheguei a pensar que algo lhe devia estar atormentando o sono, mas como poderíamos ter sonhos distintos?

E a que conclusão chegaste?

Já? Queres assim tão de imediato o final da história?

Não é isto. Acontece que me deu imensa curiosidade o tema de uma sombra que sonha.

E por que ela haveria de não sonhar? Afinal, deveríamos ser iguais em tudo.

É verdade, mas…

Ah és daqueles que não acreditam na vida das sombras…

Talvez seja isto. O fato é que estás me contando uma história que jamais me havia passado pela cabeça.

Quem és, então?

Eu sou um deus, eu controlo o tempo.

Certamente estás brincando. Como alguém que acha que controla o tempo pode duvidar da presença viva das sombras…

Talvez tenhas razão.

Não deves controlar tempo algum, já que me pareces tão ansioso.

Por favor, conta-me o sonho.

Sonho? Mas eu não sonhei com nada. Estou contando a história de um crime e tudo foi bem real.

Tens razão. Conta-me o que houve.

Pois bem. Comecei a desconfiar da ausência de descanso noturno de minha sombra. O motivo certamente é que, ao invés de dormir, ela estava fazendo algo escondido de mim. Considerando a inclinação passional de todo malfeito, desconfiei que estava me traindo com outro corpo. Certa noite sem que ela percebesse coloquei meu relógio no pulso. Por reação automática o relógio logo lhe apareceu em seu braço. No entanto, tão logo ela dormiu, eu, que apenas fingia dormir, com os olhos fechados, retirei o relógio. Pela manhã ali estava ela usando o relógio que eu havia retirado. Quando lhe confrontei, ficou sem gestos. Diante daquilo não havia mais motivo para confiar na própria sombra. Enquanto nos banhávamos eu a afoguei na banheira. Ela ficou parcialmente diluída, irreconhecível. Chamei a polícia e confessei o crime. Mas os guardas não queriam acreditar e só me levaram preso quando confirmaram que de meu corpo não emanava mais sombra alguma.

Alfredo então indagou a Cronos se aquela história era real ou se não passava de um sonho seu. Cronos riu diante de nossa ingenuidade, como se houvesse a menor importância em distinguir o que era real ou não em nossa vida. Alfredo insistiu:

Mas se um deus que controla o tempo não pode evitar que a própria sombra o traia com outro, para que então servirá esse controle?

Esta talvez fosse a razão de minha prisão no sonho. O fato é que quando acordei disse a mim mesmo que o mundo estaria melhor se eu não controlasse mais o tempo.

 

VI.

 

– Porém, esta enorme casa está cheia de relógios, uns parados, outros com o seu tique-taque infernal – também é verdade que desde que começamos a nos aproximar deste lugar tivemos a impressão de que o tempo havia cessado – então eu não entendo.

– A resposta é muito simples, você tem relógios, em vez disso eu sou o tempo. Em outras palavras, o tempo pode parar e a mecânica do relógio pode continuar a funcionar – e tudo isso pela simples razão de que foi o homem quem criou este mecanismo – enquanto eu, Cronos, sou o deus do tempo. Sem mim, o caos nem existiria – eu já existia antes dele. De certa forma, sou seu pai.

– Pode ser, não sei… Porém, tenho dúvidas…

– Você duvida que eu seja Cronos, o deus do tempo?… Que descrente!

– Sim, é verdade – eu sou incrédulo por natureza. Como você chegou aqui? Outra coisa, você não se olhou no espelho? As rugas que cruzam seu rosto parecem fossos. Sua pele está cheia de rêmoras. Você diz que existia antes do caos, poderia ser… – porém, tudo aqui é um caos… como se devorasse as horas murchas, exaustas, esgotadas… Você só respira a solidão da última luz… E aqueles cipós que o amarram nessa cadeira bamba? Um deus, especialmente o deus do tempo, pode fazê-los desaparecer num piscar de olhos… E seus cabelos oleosos rastejam pelas paredes deste antigo sótão. Acho que toda essa desordem é uma vingança por aquele caos que você tanto despreza.

 

VII.

 

Cronos e Alfredo permaneceram horas envolvidos nessa cascata insalubre de inquietudes. Um ardil impossível de ser acompanhado sem cair na malha pegajosa da ansiedade, a teia de uma aranha milenar que guardava a passagem dos caminhos cruzados. Uma hora alguém teria que dinamitar a entrada da direção escolhida. Eu não queria participar daquele jogo mesquinho. Adônis, um de meus negros mais fabulosos, me tirou dali graças à força de sua mente, e logo me vi com as três graças enroscadas em minha nudez, suas fibras reluzentes engendrando safras extravagantes em meu corpo acidentado. Adônis acendeu os santos óleos do desejo e nos recebeu em seu altar. Ele sempre foi o meu pequeno deus preferido, único com quem reparti minhas orações ao lado das três graças. Selamos um pacto que só poderia ser representado por uma risca de luz na escuridão do palco. A representação do ser submetido a seu casulo por um tempo maior do que poderia suportar. Essa sempre foi uma curiosidade de Adônis, à qual finalmente resolvi atender. Até quando podemos demorar a nascer? Uma vez que a vida nos foi prometida, qual a origem do suplício que devemos cumprir indefinidamente no interior do ovo? As três graças pressionavam meu estômago forçando a criatura ali encerrada a saltar fora de meu ventre. Adônis a tudo assistia com seu olhar enfeitiçado, até que uma pequena figura veio à luz e antes que secassem as plumas engorduradas começou a cacarejar:

– Por que razão demorei tanto a sair desse cativeiro?

Adônis se apressou a lhe dizer algo, incrédulo com o que estava acontecendo:

– Acaso não saíste antes do tempo previsto?

– Como podes ser tão tolo! As previsões nunca se cumprem. A vida não nos dá motivo para aceitar seus caprichos. Eles simplesmente são impostos.

– Deste modo também nada é extemporâneo…

– Eis um modo bastante ingênuo que render-se à divindade.

– Mas somos todos crentes…

– Ah pedanteria ignóbil! Devo sair daqui o mais rápido, tão logo sequem minhas plumas e eu possa voar para bem longe.

– Por favor, não vás embora antes de me alimentar a curiosidade.

– O que mais queres saber, além do sentido figurado da existência?

– Figurado? Eu quero entender essa álgebra que mascara o tempo…

– Ah ah ah! Quem diria! O devoto aturdido, que se deleita com a deusa que o escraviza e logo quer dominar seus instintos regulando os descompassos da reprodução humana! Que trapo de gente habita esse lugar!

 

VIII.

 

Cibele permaneceu calada e atenta à conversa entre Adônis e o pintainho atrevido. Seu corpo se afastava lentamente da cena na medida em que ela refletia:

– Todo nascimento implica destruição, o fim. Esta seria a definição mais precisa da existência humana. No mesmo momento em que nasce, começa o tempo regressivo – aquele que leva ao último suspiro. A reprodução é apenas uma estratégia grosseira para enganar a Foice. De certa forma, acreditamos que é a fonte da juventude eterna – outra estratégia que inventamos para continuar no submundo. E quando finalmente damos à luz, percebemos que a busca pela eternidade não é trazer ao mundo uma pequena prole procriada por nossos fracassos. Isso só perpetua a agonia e o inferno a que está condenada a espécie humana em geral e cada pessoa em particular. E eis que passamos nossas vidas inteiras – séculos, milênios, na verdade – ignorando que o abismo está do outro lado da esquina. Nós o contornamos e não o vemos, até o dia em que ele inevitavelmente nos engole inteiros. Eu penso sobre isso no escuro. Está frio, ouve-se o uivo do vento a quilômetros de distância, a água ameaça inundar o quarto, quero correr, mas uma força enorme me prende à cama fedorenta em que dormi nas últimas horas, ou nos últimos dias, já nem sei – de repente, sinto que o mundo, ou o que resta dele, está tremendo com uma intensidade que eu não conhecia. Eu os ouço gritar: – Temos que sair, é um terremoto. É quando acordo e percebo que o pesadelo mais uma vez me transformou em sua presa favorita.

 

IX.

 

A chuva forte não continha o fogo que continuava devorando as ruínas do povoado. A pequena igreja está desfigurada pelas chamas e em seu interior, na coluna central do presbitério, pendia um Cristo de ponta-cabeça amarrado pelos pés. Escuto meu nome do outro lado do fogo. Por aqui não há mais como nascer ou perdurar. Teseu, Teseu, tu és a nossa direção. As vozes insistem, e vão se amontoando em torno de um chamado que soa como um imperativo. Há muito ninguém me chama por este nome. Desde que desisti de ser um herói e me converti em um conselheiro de peregrinos. Escuto os gritos ecoando de um labirinto: Temos que sair, é um terremoto. Teseu, tens que nos guiar. A paisagem sombria espanta a chuva e logo todo aquele ermo prolifera uma plaga desértica onde as vozes uma vez mais me inquietam: Deus está por um fio, Teseu, somente tu o poderás salvar. Eu me recuso a crer em um Deus que precisa ser salvo. Minotauros não criam asas. Como alguém que acredita em céu e inferno pode rogar a outros que salvem o sem casta, o tangedor de bumbo, o rato evadido? O terremoto cresce dentro do homem, o nauseabundo comedor de hóstias. Eu me recuso a ser herói desse bastardo ordinário, o excluído de sua própria imagem, a podre maçã que um dia acreditou ser de ouro. Saiam de mim, vozes malditas! Aqui não encontrarão senão Alfredo, o único que pode lhes indicar um caminho onde a salvação seja proscrita. O fogo levou consigo todos os papiros. Eu mesmo não me recordo mais que ano era aquele. Um pequeno diabo sentado nos destroços de uma tribuna resmungava com os restos de uma bíblia nas mãos, rasgando palavras em páginas a esmo e as engolindo. Segundo ele, aquelas palavras poderiam conter um encantamento que permitisse a união de Deus e do Diabo. Tudo, no entanto, me parecia igual. Este era o meu conselho final, não o ato heroico de Teseu, mas uma dúvida engenhosa de Alfredo. Ao crer em uma divindade o homem desistiu de si.

 

X.

 

Apesar de tudo, Cronos ainda estava preso às trepadeiras, de vez em quando visitava Alfredo em seus sonhos – uma maneira de se encontrar novamente com seu amado e corajoso Teseu. Ele estava ciente de que os tempos haviam mudado e com eles as divindades. A Teogonia de Hesíodo foi substituída por um livro, A Bíblia, a parte mais antiga do qual pertence a uma religião que desapareceu antes que ele mesmo existisse, como a Mesopotâmia. Que labirinto! Quando pensamos que alcançamos o centro ou o deixamos, percebemos que apenas voltamos ao início! Cronos tem plena consciência de que o tempo está girando e de que não há como escapar.

Nessas visitas noturnas, Alfredo sentia que o deus do tempo estava instalado no meio do colchão, entre ele e sua sombra. Sentiu novamente a umidade da velha casa e o cheiro de confinamento. As rêmoras do velho o fizeram arder e a transpiração do molusco o sufocou.

Às vezes, para fugir daquela sensação de enclausuramento, resolveu levantar-se do colchão de palha e caminhar sozinho até as falésias onde as ondas do mar arrebentavam com uma brutalidade que o deixava atordoado. Então ele sentiu uma força enorme que o jogou repetidamente no vazio. Como se ele fosse um Sísifo moderno, cuja pedra é o peso da própria vida. E quando ele não estava caindo do penhasco, foi uma enorme fissura que se abriu diante dele – uma besta que abriu suas mandíbulas para engoli-lo inteiro. Em seguida, uivou como um animal ferido. Sentiu que estava sendo encurralado por dezenas de gladiadores no centro de um antigo circo romano – enquanto centenas de espectadores aplaudiram sua humilhação. Ao acordar, Cronos já havia partido – e ele e sua sombra destilaram água salgada. A fadiga o deixou prostrado, desamparado – sentiu que mais uma vez havia sido derrotado e que nunca seria o herói de outrora.

 

XI.

 

Devemos estar atentos às forças que operam do outro lado do espelho. Cibele morou por algum tempo em uma velha pensão em Santillana del Mar. O quarto foi preparado por ela e sua ajudante, e tinha apenas uma cama, um armário e uma banheira ao centro e sobre um pentagrama riscado a giz. Lavínia era uma mulher tão lendária quanto a princesa de quem emprestara seu nome. A pele de seu rosto representava as escrituras de um antigo papiro. Nuas, as duas cumpriam um ritual irrepetível a cada vez que entravam na banheira. As velas eram dispostas nas pontas do pentagrama. Quantas enigmáticas virtudes ali foram acolhidas enquanto Lavínia se ausentava para dar lugar a cada uma delas! Cibele lia em seu rosto:

– As falhas desmentem o destino dado como certo.

Era o suficiente para que Lavínia abrisse os olhos e uma outra presença fizesse surgir em sua mente uma passagem enevoada recordando as ruas sinuosas lá fora. Cibele percorria aquele labirinto de pedras, um emaranhado de saídas que ela temia não fossem dar em parte alguma. Lavínia lhe dava de beber um elixir vegetal que a fazia esquecer tudo aquilo. Cibele prendia o fôlego e voltava a tatear o rosto de sua amante:

– Não há como embrulhar a espiral e deixar os espelhos de fora.

Novamente mudança repentina do semblante de Lavínia. As águas se repetiam em seus corpos como a expressão da imortalidade. Porém Cibele era devota da cena isolada e não de sua repercussão em seu espírito. Os orgasmos se multiplicavam a cada dia e por vezes Lavínia embalava seus truques para ir embora dali. Cibele percorria os cinco elementos de seu corpo e voltava a tocar a caligrafia de seu rosto:

– As duas moradas estão prontas para entrar e sair.

Aquela frase abaixo de uma das sobrancelhas de Lavínia estava quase ilegível e Cibele a recitou com alguma indecisão. Não houve alteração no rosto da assistente. Tudo à sua volta desapareceu. Aos poucos um outro cenário ia surgindo como um quebra-cabeças. A brevidade da vida, os gestos dissociados, os opostos duplicados à exaustão. Cibele e Lavínia pela primeira vez se sentiram abraçadas pelo símbolo de sua união. A arquitetura que as envolvia era uma alongada torre de vidro e metal, com tantos andares quanto a imaginação possa contar. De onde elas estavam era possível observar toda aquela cidade tentacular com sua opulência ambivalente. Cada símbolo parecia existir em função de seu adjetivo. Em um dos cantos daquele vestíbulo espaçoso havia uma cadeira e um homem atado a ela por oito liames enérgicos. Quando Lavínia lhe apontou Cibele rapidamente deixou escapar o nome de Cronos.

– Como ele terá chegado aqui?

Do outro lado do vão um vulto recurvado varria o piso repetidamente, indo e vindo com a vassoura como se por mais que se dedicasse à varredura não conseguisse limpar o lugar.

– Não posso crer que seja Alfredo. Meu amor, como viemos parar aqui? Como tudo isto é possível?

 

XII.

 

Os espelhos levam a mundos paralelos – especialmente se estiverem rodeados por água. Gestos, pensamentos, palavras, perfuram o lago de suas luas. Lavínia sabia muito bem – não é à toa que ela tem o nome da lendária princesa de que Virgílio lembra em seu poema – embora nunca dê voz a isso. Como a Casildea de Vandalia de Cervantes. Mulheres sem voz. A Lavínia nesta história fala pelas duas e por mil mulheres se necessário. Ela não é esposa de Enéias, mas amante de Cibele. E com isso todas as portas permanecem abertas, não há limites proibidos – cada vez que passam por eles, penetram no tempo e em seus jogos infinitos.

Com a palavra, perfuram a rocha e os buracos do tempo.

Com a palavra, saltam de um quadrado para o outro.

Não são peças de xadrez.

São a rainha e o cavalo.

Em uma das casas do tabuleiro de xadrez há um trono soberbo que Cronos usa para lembrar a Lavínia e Cibele que ele continua a dominar os silêncios, as auroras e os crepúsculos. Escreva neles com uma das penas do corvo que vive em seu ombro esquerdo. Ele bate com a foice – e Alfredo, cada vez mais encurvado, obedece-lhe com o vaivém incessante da sua vassoura. Não olha para cima – seu rosto está murcho e sua língua indefesa. Cibele tenta detê-lo – ele apenas se limita a virar as costas para ela e continua com seu eterno vai e vem. Cibele grita:

– Alfredo, sou eu, a tua Cibele.

Ele não olha para ela. Continua indo e voltando. Lavínia, horrorizada, tenta abraçar Cibele. Ela a afasta. Cronos, impassível, observa seu movimento de peças de xadrez como ele deseja. Ele é o pai do tempo, o deus do tempo dos lobos.

 

XIII.

 

As horas mordidas em meio à confusão gerada pelas marionetes que se atracam como inimigos. O barulho voraz daquele massacre e logo os bonecos se despedaçam mortos pelo chão. Nada interfere nos planos de Cronos. Nada permite a Alfredo varrer as sobras daquelas sombras calcinadas espalhadas no chão. Lavínia reúne secretamente seu séquito, tendo sugerido à distância – de tempo e espaço – as coordenadas para que dela se aproximassem todas as mulheres sem voz. Ainda era cedo para contar sua estratégia a Cibele. Ela levita por todo o piso da torre, circunda toda a extensão que parece infinita. Os fantasmas de mil mulheres vão chegando e juntos rodopiam formando um turbilhão que em grande velocidade cria um cenário eletrificado que ninguém pode decifrar.

Cibele, desesperada, tenta se livrar das pinças de armas e redemoinhos – e grita novamente:

– Alfredo, onde está tua sombra? O que fizeste com ela? Acaso a perdeste novamente em um lugar miserável? Ou a mataste mais uma vez? Alfredo, responde! Preciso ouvir tua voz para ter certeza de que não estás morto!

Lavínia e sua comitiva de mulheres a rodeiam, tentando lhe abafar a voz.

Enquanto isso, Cronos continua a golpear com seu cetro, e Alfredo varre incessantemente para frente e para trás. Suas costas se dobram ainda mais, seus passos se tornam cada vez mais lentos e seus pés arrastam o sofrimento de séculos. Nem mesmo a corda infernal dos pulsos que a vassoura tenta afastar consegue um movimento dos olhos ou uma careta que dê sinais de vida.

Cibele grita de novo:

– Cronos, o que fizeste com Teseu-Alfredo? Por que o estás tirando de mim novamente?

E dirigindo-se a Lavínia:

– Me deixe em paz! Diga às tuas mulheres para não bloquearem meu caminho. Se for necessário descer de volta ao Hades, eu o farei. Teseu, olhe para mim! Sigas meus passos, Teseu!

 

XIV.

 

O inesperado destempero de Cibele, sua talvez involuntária perda de humor, fez com que toda aquela arquitetura de vidro e metal se congelasse no tempo, em pleno requinte de vertigens, em meio àquele rigoroso tumulto que buscava o apogeu da revelação. Talvez ainda fosse cedo para ela compreender o que estava se passando.

Qual o efeito que provoca em nós a limpeza? Quando varremos a poeira diária da casa ou lavamos a impureza do espírito em um terreiro de umbanda ou, ainda, quando apagamos da memória os episódios indesejados. Não temos muito a dizer quando a limpeza é bem-sucedida. Do contrário, insistimos, antes que a frustração nos destrua.

Safir havia sido abduzida aos 16 anos. Envolta por uma névoa foi suspensa no ar até encontrar-se no interior de um cubículo escuro com suas pequenas luzes azuis cravadas no teto. Sentia a seu lado uma presença não identificada que telepaticamente lhe revelava a crescente desertificação de certas áreas do planeta contrastando com a inundação de outras. Quando foi devolvida ao sofá de sua sala, em Manizales, Safir se sentiu no dever de revelar o que lhe fora dito. Sua decisão, contudo, só lhe trouxe desassossego. Desacreditada e silenciada, sua vida se tornou um inferno. 

Zaya era uma flor de luz em Mênfis. Uma velha senhora lhe havia revelado que Zaya viera ao mundo para acabar com as matanças do mundo inferior. Ela cresceu se preparando para isto, percorrendo as pistas deixadas por escribas anônimos. Com o tempo todos se acostumaram a levar até ela seus corações, para que ela avaliasse o teor de maldade que eles continham. Zaya escrevia então seu nome ao contrário em cada coração e todos voltavam a ser bons. Os deuses se sentiram traídos por aquela mulher e em certa noite ela foi amarrada ao falo de Seth com os olhos vendados para que jamais voltasse a ver o dia.

Renata foi a primeira bailarina do Royal Ballet em 2043. Era um pássaro de mil asas cujo corpo se desdobrava no palco como uma revoada de leques multicores. Em uma de suas excursões pela África, conheceu Murayama, a cidade sem mar, cujos habitantes eram ágrafos. A palavra falada era a única fonte de vida, selo sagrado de um povo que jamais pensou em deixar registro de sua história. Diante daquele estranho modo de ser, Renata tomou a decisão de abandonar o balé e se dedicar a alfabetizar os nativos de Murayama. A fome, a guerra, a corrupção eram fatores vividos em espantosa naturalidade, sem que as suas causas fossem compreendidas. Ao aprender a ler e escrever a gente se horrorizou com toda aquela violência e curiosamente decidiu responsabilizar Renata por haver trazido sua consciência apavorante. A bailarina foi acorrentada no alto de Taragiteca, a árvore de metal despida de folhas que nascera no centro de Murayama. Seu corpo perdura ali até que se desfaça, como símbolo de uma época negra de conhecimento.

Este é o desafio de Lavínia. Buscar a compreensão de todas as mulheres que faziam parte de Cibele para que elas lhe ajudem a recuperar a voz dessas três e tantas outras caladas, assassinadas, traídas…

 

XV.

 

Cibele tinha consciência do peso incomensurável do silêncio imposto a milhares de mulheres antes e depois dela. Ela conhecia a ausência de imagens – seu próprio passado se perdeu mil vezes nos pesados bancos do espesso nevoeiro. Ou então derreteu na escuridão. Ela esqueceu a própria história – caiu no intervalo de tempo – tornou-se um pária, vagou por túneis de espelhos, por becos secretos, subindo e descendo escadas em espiral. Cronos, e sua ampulheta, a controlaram e a impediram de ouvir a música de sua cachoeira. É por isso que ela não conseguia ouvir a lira de Orfeu – ela ficou no submundo enquanto ele e Teseo-Alfredo foram para a primavera. Ela se esqueceu de Lavínia. Não conseguia mais decifrar o crocitar do corvo de seu guardião. Estava perdida no túnel de sombras onde Cronos é o senhor e mestre. O labirinto de xadrez a prendeu para sempre. Uma pergunta ainda permanecia: poderia ela escapar?

 

XVI.

 

A cena congelada em pleno torvelinho se parte em infinitos pedaços, com suas crepitações lancinantes e suas imagens despedaçadas. Aos poucos a escuridão registra a sua presença, a escritura de seus dons. A plena escuridão que a tudo engole e regurgita um assombroso silêncio.

Não há como decifrar a ausência de tudo senão através dos movimentos de seu corpo. Para tanto é preciso esvaziar-se também por dentro. Aceitar a nulidade afetuosa do ser. Um mundo sem símbolos, métodos, aparições. Nós somos um rio de almas que soluçam estupefatas diante da descoberta de um caminho transfigurado. É preciso deixar essas almas hibernarem até que reconheçamos a visão de um outro mundo.

Durante aproximadamente um tempo que se desconhece a escuridão pernoitara no vazio. Um pequeno rasgo ao centro e por ali vemos finalmente surgir uma frágil língua de luz. Impossível identificar se a magia adormecia ou despertava. O filete de luz ia se arrastando pelo cenário como o fantasma de uma serpente. De seu corpo minúsculo a luz ia ganhando potência.

Lavínia, com a incomparável substância de sua nudez, em movimentos latentes, ia revelando uma grande árvore ao centro daquele abismo negro. Uma árvore talvez ilusória, representação de uma vontade imperfeita, transe automático do desejo, a grande árvore-mãe como receptáculo de uma alegoria mística.

Quando todo aquele ambiente de intensidade quase inverossímil está formado, Lavínia faz com que vislumbremos a presença de Cibele e Alfredo. Telepaticamente diz a eles que não importa se recorram a um êxtase religioso ou quaisquer outros truques de ilusionismo, a parelha não deve esquecer que está ali para que invente a maçã.

 

XVII.

 

A vida é feita de perdas, Lavínia sabia disso muito bem. No momento em que Alfredo estava ganhando o jogo, ele conseguiu sair do labirinto em que Cronos o jogou, e Cibele estava a seu lado. Lavínia tinha muita paciência e tempo – sabia que as peças de xadrez têm movimentos infinitos e que em uma delas sua amada voltaria para a banheira com ela. Então trocou os espelhos por outros maiores – o pentagrama desapareceu do conjunto – e em seu lugar colocou uma foto que ela e Cibele haviam tirado do oráculo de Delfos em uma visita não muito distante. Lá elas ouviram, em linguagem silenciosa, que sua aliança sobreviveria ao caos – que poderia haver aguaceiros que as separariam, mas que mais tarde os rios se tornariam um só e que se encontrariam novamente no mesmo barco. Nem mesmo Caronte poderia separá-las definitivamente. O tempo é feito de armadilhas, iscas, é esquivo e às vezes se deixa apanhar – ele se disfarça, hoje é um lobo e amanhã um gato. E os gatos adoram liberdade, conforto – e Alfredo não ofereceu nenhuma das duas coisas a Cibele.

Lá fora, um pica-pau preparava seu ninho dentro de uma árvore – uma espécie de concerto que Lavínia apreciou.

Agora só faltava esperar que as águas calmas voltassem ao seu curso.

 

XVIII.

 

Caronte, no entanto, ainda insistia, com seu olhar penetrante, em descobrir o ponto de soltura em que se pudesse esvaziar o ser de Cibele ou Lavínia. Apenas uma delas poderia trazer de volta ao mundo a ruptura dos contrários. O erotismo espírita que as unia estava se espalhando por toda a terra e logo só compreenderíamos os compostos como uma unidade insubornável. Os deuses seriam derrotados por uma magia sexual. O palimpsesto que quanto mais fosse rasgado mais nos conduziria por um santuário sanguíneo.

Quantas formas assumiria a maçã?

Cronos havia desistido de lutar. Os cipós que o envolviam não tinham mais função, embora não pensassem em soltá-lo.

Alfredo incansavelmente varria tudo à sua volta, decidido a apagar os rastros de sua sombra. Seus fluidos vitais foram contaminados. Suas noites na terra perderam a essência líquida dos mistérios. Talvez Cronos não tenha desejado tão ardentemente o domínio do tempo. Talvez Teseu tenha deixado escapar os sentidos que fixavam o duplo em cada ser. Por isto as ampulhetas foram esbagaçadas. Por isto as sombras foram dilaceradas. Novos deuses certamente teriam que ser inventados.

Quantos sumos distintos teria a maçã?

Quais novas luzes sangrariam a escuridão reticente?

Os céus estavam desmoronando e Lavínia tinha diante de si a irredutibilidade de um desafio, a transfusão da alma de um oráculo para outro. Cibele teria que beber as vísceras fosforescentes de antigos espelhos mágicos. A ela caberia oficiar como necromante e ouvir uma a uma as vozes silenciadas de todas as mulheres e as elas transmitir a faísca vital que seria escrita como a mais avançada de todas as ciências. Superior em tudo a todas as demais. Onde os deuses não mais existiriam e Alfredo e Cronos teriam que semear uma nova razão de ser.

Quantas vidas guardaria em segredo a maçã?

A cama está pronta.

Cibele e Lavínia não devem mais estar em lados opostos.

Os mares se erguem e as suas noites frias choram uma oração nupcial.

 

XIX.

 

– Sim, a cama está pronta – Lavínia disse para si mesma e sussurrou nos ouvidos de sua comitiva de mil mulheres que a acompanharam nesta longa e tediosa espera – aparentemente um duelo no qual não há cadáver para enterrar – uma espécie de jornada através de um rio diferente do Estige. Lavínia não sabia que Alfredo continuava com sua vassoura em seu incessante vaivém ao qual foi condenado por Cronos. Ele não conseguiu escapar. Cibele se esqueceu de dizer a ela para não olhar para trás, para segui-lo em seus próprios passos – para que ela tivesse certeza de não perdê-lo novamente. O silêncio sideral confundiu seus ouvidos – ela pensava que seu amado milenar a mantinha evitando fazer barulho e sem olhar para trás. Alfredo não a viu nem ouviu seus lamentos, pois ele não tinha lembranças. Ele continuou em sua tentativa inútil de unir os pedaços de sua sombra – não sabia que nunca mais montaria o quebra-cabeças que ele mesmo havia explodido em milhões e milhões de partículas infinitesimais.

Enquanto isso, outro big bang explodiu no céu. As pintadas-negras gostaram do show, mesmo que não conseguissem rir. Cronos ordenou que olhassem para o infinito e o mantivessem informado de cada surto. Pensei, com imensa satisfação, como já fizera muitas vezes, como os homens são ingênuos. Eles acreditam que Zeus, ao presidir o Olimpo, é o pai de todos os deuses. Ignoram, portanto, que o deus criador, aquele que existia antes mesmo do caos, era Ele, Cronos, o deus dos tempos.

 

XX.

 

Cibele e Lavínia coincidem em que a cama está pronta dentro delas. As cartas de um coito sagrado são distribuídas por todo o corpo. Este é o momento em que se escreve pela primeira vez a Grande Obra da Carne e as trepadeiras imaginárias percorrem as sílabas das duas peles como se fossem números primos. As mãos de Lavínia viajam pela coluna vertebral de Cibele. Suas carícias se ampliam pelos interiores de suas coxas e braços.

– Quando me tocares os seios eu certamente já não estarei aqui, pois me sinto tragada por uma hipérbole inominável.

– Então jamais tocarei teus seios, pois te quero sempre comigo.

As duas balbuciavam mantras afrodisíacos em movimentos espiralados a caminho do centro vulcânico de cada vagina. Não poderia haver mal nesse mundo. Uma corrente elétrica despistava qualquer culpa ou qualquer forma de flagelação. Longe do vampirismo ou das seitas de uma evolução futura. Elas estavam ali unicamente absorvidas pelo instante. À sua volta as mil mulheres que abraçavam aquela reconciliação imperativa do eu consigo mesmo.

Quando Cibele viu o filme O credo dos hereges pôde finalmente compreender que a ciência nada poderia contra o mal. Assim como a arte e a religião, a ciência repetia os mesmos vícios, as mesmas experiências falhas.

Há um olho dentro da casa que me observa quando bem quer. Se passeio pelos corredores me dá a impressão de ser mais de um. Uma noite ao descer a escada eu o vi no último degrau. Era um olho com estranho brilho furta-cor que fazia toda a casa se virar para mim. 

 

XXI.

 

Cibele, antiga deusa, sacerdotisa, maga, feiticeira e conhecedora de cartomancia, costumava esquecer que o livre arbítrio é uma ilusão e que somos apenas fantoches pendurados em longos fios movidos por pintadas-negras.

E embora ela mal tenha descoberto a presença do Olho, ele reinou na casa por muito tempo. Foi uma gota de suor que caiu do rosto de Cronos em um dos mil surtos que orquestrou inúmeras vezes e com os quais controla os multiversos que lhe servem de morada. Incluindo, é claro, o Olympus e os Persas Paerdís – o mesmo que mais tarde se tornaria paraísos. Por isso mesmo Cibele tinha certeza de que se não fosse neste mundo onde ela voltaria para os braços de sua amada Lavínia pelo menos estaria no paraíso – isto é, por toda a eternidade. Isso era o que as cartas que costumava consultar lhe diziam repetidamente. Mesmo em algumas de suas vidas anteriores, quando ela era uma sacerdotisa Viking, as runas haviam lhe mostrado que este era seu destino inelutável. Não em vão em um de seus poemas, na verdade um oráculo, ela escreveu:

 

– Quem esteve

no Oeste,

desembarcou e lutou

nas cidades.

Sabia todos

os pontos fortes da viagem.

 

E se Cibele, uma navegante de milhares de existências, sempre carregava consigo um escudo e uma espada, símbolo de sua bravura e coragem, quando dormia suas defesas desapareciam. Lavínia sabia, por isso esperava por ela na cama e a perseguia em seus sonhos. Assim, o despertar da Cibele foi um pouco menos ousado e, portanto, mais frágil.

 

XXII.

 

Sempre ao acordar ao lado de um vazio que havia sido preenchido em sonhos por sua amada, Cibele questionava a razão de ser da vigília. Lembrava quando esteve diante do mistério de Cronos sentado em uma cadeira entregue aos abraços de cipós insubornáveis. Ela também poderia, assim como Cronos abdicou do tempo, resignar-se a viver entregue a uma instância onírica. O que nele poderia identificar como uma espécie de Cronos ex Machina, em seu caso seria a sua completa ausência do mundo.

Certa manhã, no entanto, algo estranho se passou. Embora o lugar de Lavínia na cama estivesse vazio, Cibele podia ouvir a sua voz ali tão próxima de si como se estivessem abraçadas. Aquela voz sussurrada com que Lavínia lhe dizia tantas coisas. Uma voz que aos poucos ia se desdobrando em duas e uma outra e outra mais, e que pareciam falar entre elas:

– As noites em que te espero são as que mais aguçam a minha pele e me trazem um arrepio cortante.

– Algumas chegam a ser dilacerantes, porque anunciam algo que não se cumpre.

– Mas estás aqui…

– Na verdade, este é um mistério que não se explica.

– Verbos sorrateiros caminham pelo meu corpo.

– Toca-me.

– Quando te aproximas é quase como se já estivesses indo embora.

– Não vês que te espero…

As vozes denunciavam o curioso mecanismo de uma espiral. Cibele sabia que era Lavínia, mas quantas? O futuro não podia ser corrigido, e se repetia como uma incongruência, uma escala de conflitos, uma abstração precipitada sobre o mundo físico.

– Eu já estive aqui tantas vezes, e em nenhuma delas te alcanço além da memória.

– Não entendo como podemos nos lembrar do que jamais ocorreu.

– As evidências oníricas dissipam nosso tato.

– Ali estás, vejo agora, ou será apenas uma de tantas… Parece que vens ao meu alcance, mas já não estás, agora és outra.

– Risco as paredes em desespero, porém as paredes riscadas não voltam com a tua imagem seguinte.

– O cenário é quase sempre o mesmo, mas nunca te repetes.

– Toca-me.

Cibele já não busca as causas daquela linguagem contraditória. Sequer a considera mais um despropósito. Levanta-se da cama decidida a esquecer Lavínia. Veste-se e sai para caminhar. O mundo lá fora decide mudar de tática.

 

XXIII.

 

– Não entendo como podemos lembrar o que nunca aconteceu.

Cibele repetia essa frase indefinidamente, tornou-se uma espécie de mantra, um refrão pegajoso – e conforme ela o repetia, sua memória ficava cada vez mais turva, enquanto o rosto de Lavínia ficava inexoravelmente perdido nas sombras escuras do esquecimento. Ao mesmo tempo, a voz de Teseu cavou um túnel para alcançar seus ouvidos e assim abrir um caminho para penetrar em sua memória.

– A memória é frágil, ela nos aprisiona, brinca conosco, nos faz cair, às vezes nos joga no vazio – é por isso que geralmente esquecemos – assim vivemos mais serenos.

Essa foi a primeira frase que ouviu de uma voz distante, como do além-túmulo, e então, aos poucos, foi ficando mais clara, mais próxima – e com isso o rosto de Teseu estava tomando forma em seus olhos – o cheiro do corpo invadiu seus sentidos, a ausência de suas carícias era uma espécie de tortura insuportável. O caminho que fizera naquela manhã para esquecer alguém que não tinha mais nome fora revelado como uma ponte para recuperar a memória – e talvez encontrar a pessoa amada com quem em um passado muito remoto se regozijou no fundo do mar.

 

XXIV.

 

Teseo-Alfredo, em um de seus muitos jogos de cartas em casas noturnas, mais uma vez foi capaz de recuperar a sombra perdida diante de um de seus inúmeros adversários.

– Os deuses são pagãos – costumava dizer, com olhar irônico, como se quisesse desconcentrar os jogadores. – A simples ideia de renascimento entre as cartas é um blefe que contamina toda a mesa.

Teseu sabia que era um erro falar de assuntos pouco mundanos enquanto jogava, porém estava decidido a oferecer a todos a mais abstrata das inquietudes:

– O que fazemos com a memória quando a esvaziamos? É possível que ela chegue a um ponto em que não recorde sequer a si mesma? E que influência tão decisiva terá sobre ela o desejo?

A sala de jogos se convertia em um afresco mal pintado, uma plena dissociação de imagens, com um pano de fundo que esmaecia a ponto de tornar-se irreconhecível.

A efígie daquelas almas entregues aos caprichos do azar fertilizava toda forma de decadência social que mergulhava o mundo em um conjuro, uma catástrofe inevitável, um museu de cera com suas figuras infiéis, os flácidos perfis daqueles eternos perdedores.

Teseu descartava seus rancores, há muito buscara superar os agouros e invejas que tão obstinadamente enevoaram sua natureza. Ou talvez fosse essa natureza uma mácula defensiva que não lhe permitia ver que dentro de si havia mais um duende do que um deus. Era mais um errante dado às travessuras do que o guardião heroico das ambiguidades humanas.

Em seu íntimo Alfredo ganhava forças e na mesa de jogatina, com a mão esquerda reordenava as cartas, desfazendo-se de toda arrogância, recuperando as dobras do humor.

– As lâmpadas giram em torno da escuridão, com a inconfundível decisão de plantar um punhado de sombras. Serão nossas essas sombras ou apenas a ilusão de que em nós algo se duplica?

Alfredo não poderia ter escolhido outro momento para despir as precárias certezas da existência. Talvez assim pudesse retornar à infância, quando ainda acreditava na magia do paradoxo. As civilizações regurgitavam suas primeiras ruínas – fábricas, igrejas, penitenciárias, quartéis e manicômios – o mundo parecia entregue aos desígnios de um mesmo arquiteto. Por mais que se espalhassem pela terra os mascates das novidades, onde quer que acordássemos éramos tomados pela mesma conveniência assustadora: o credo. O patrão, o pároco, o delegado, o general, o psiquiatra – triunfantes nos impunham a despedida de nós mesmos.

Alfredo crescera em meio a esse tumulto de detritos humanos. O desespero era sua filarmônica espiritual. Temendo ser devorado pelo niilismo, deixou que Teseu lhe habitasse a alma e o conduzisse a outro inferno, a saga heroica da resistência, a sabedoria racional das controvérsias, a enlouquecedora revelação do orgulho.

Enquanto Teseu saiu pelo mundo a derrotar inimigos onde houvessem ou não, Alfredo, encurvado no interior daquele corpo do herói invencível, repetia os esgares de sua demência voluntária, a voz cuspida de uma indiferença profética: – Sabem os sábios o sabor da sabedoria? Tão solene quanto alucinado, patético como um espantalho invisível.

 

XXV.

 

Teseu e Alfredo ocupavam o mesmo corpo e tinham a mesma sombra, fosse porque Alfredo a perdeu em covis miseráveis, ou a trocou por uma garrafa de cachaça, ou a assassinou pois ela o incomodava demais – no entanto, eles usavam duas máscaras completamente diferentes. Teseu, navegador milenar, soldado disposto a enfrentar a guerra, era conhecido como herói, uma espécie de divindade a quem inúmeras pessoas ainda veneravam cegamente. Alfredo, por outro lado, tropeçava a cada passo que dava, caía de cara no chão, ora se levantava e ora ficava indefeso, afundando na lama e nas próprias fezes. Ele era um condenado entre os condenados, um renegado entre os renegados, um pária entre os rejeitados – e isto lhe atraía. Costumava dizer que se uma parte sua, Teseu, era um semideus, ele, Alfredo, era o deus dos ímpios, o deus do inferno, o deus das cavernas. Não foi em vão que repetiu sem parar que aquela barriga úmida, escura e quente dera à luz a espécie humana. Por isso olhava com ar de condescendência para Teseu, que o considerava seu irmão mais novo, que deve ser protegido e que é punido de vez em quando apenas para mostrar quem manda. Na realidade, entre Teseu e Alfredo a luta era pelo poder – um poder fútil, absurdo e geralmente mortal.

Porém, havia algo que os unia muito mais do que o corpo e a sombra: Cibele. Ambos sabiam disso. Eles contestaram como leões feridos em um circo romano. Então o bode que luta pela fêmea surgiria neles. Eles sabiam muito bem que o perdedor tinha que se afastar, fugir, trilhar o caminho do exílio com o rabo entre as pernas. Embora na realidade a escolhida tenha sido ela, Cibele. Em suas mãos e em seus olhos estava o verdadeiro poder. Era seu sistema olfativo que decidia quem deveria sair e quem deveria ficar – se o bravo Teseu ou o espantalho alucinado e patético de Alfredo.

Por uma razão se chama Cibele, Atis, Damia, nomes que a acompanham desde os primórdios dos tempos – quando ela ainda vivia dentro das cavernas – ali onde os abismos deixam de ser verticais para se tornarem labirintos que aguardam um novo Teseu que sairá vitorioso graças ao fio que alguma Ariadne põe no seu caminho ou novos Alfredos que rastejam como a Hidra de Lérnia, a cobra com várias cabeças. Ambos lamberiam seus seios e, ao fazê-lo, perderiam a vontade e a memória.

 

XXVI.

 

Os deuses serão tantos que um dia o homem não poderá mais nada fazer contra eles. As pestes serão tantas que um dia nenhum homem conseguirá evitá-las. Os perigos e os pecados foram de tal modo se perdendo em meio a uma desbotada vegetação moral que as religiões se tornaram nossa maior inimiga. Somos quase dez bilhões de egos entulhando o planeta de cultos e humilhações. As fezes triunfantes da onipresença humana. As máquinas de supressão das diferenças desaguaram nos rios a variedade tóxica de sua química absurda. O capítulo das presunções famélicas desalojou do planeta toda a sua fortuna vegetal. A incompreensível relatividade do acaso. Todo o esforço humano tomou um curso único: a síntese de uma anomalia que agora ninguém consegue conter.

Primeiramente pensei em matar Narciso. Porém as suas torpezas já haviam contaminado a existência. Recortei em mil fragmentos as falsas virtudes que foram se convertendo no idioma natural das catástrofes. O sonho decadente da manipulação anímica. As degradações cismáticas que definiram toda uma cartografia de guetos. O semitismo patológico atestado como um novo tratado de implosão demográfica. Todo este repertório me levou a desistir da ideia de matar Narciso. O que fazer então? Apenas aguardar que os assassinos migrassem de uma colônia para outra e que uma nova safra de androides melancólicos substituísse no palco os atores de todo o teatro do mundo? O tempo, o tempo era a grande impossibilidade de justiça, o templo sinistro de todas as surpresas, a insuperável enfermaria dos desejos. Era preciso acabar com o tempo e as sombras icônicas de suas tempestades. Tornar o mundo absolutamente variável.

Não digo com isto que eu tenha me iludido ao ponto de achar que a ausência de tempo seria o melhor adubo para o renascimento da espécie humana. Já não havia mais como alimentar dez bilhões de habitantes. Os espíritos definhavam repetindo as mesmas teorias salvacionistas. O conceito de propriedade, seja ela orgânica, ideológica, imaginária, tornou o homem prisioneiro de um sacrifício que não podia compreender. Um ardil virulento em que a eventual compreensão conduzia a outras salas sacrificiais. Em meio a esse horror eu me vi levado por uns guardas, acusado de um crime que desconheço. Trancafiado em uma cela, ali me encontrei com um tipo esquizofrênico que havia matado a própria sombra. Fiat lux! Era preciso acabar com os privilégios do tempo.

 

XXVII.

 

Se um pobre mortal foi capaz de assassinar a própria sombra, eu, Cronos, o Deus do Tempo, aquele que estava antes do Caos e muito antes de Zeus – e, portanto, antes do deus crucificado, aquele que era o protagonista do único deicídio da história dos deuses –, como não poderia matar o tempo?

Por isso, assim que saí da prisão, onde dividia cela com o sombricida, refugiei-me na casa da falésia – eu sabia que havia sido abandonada há décadas, talvez séculos – e que a selva, de certa forma, a preservou de seu desaparecimento. E embora sua deterioração fosse mais do que evidente, acomodei-me na mansarda e me sentei na cadeira bamba para nunca mais me levantar – eu estava ciente de que, ao fazer isso, a hera rapidamente me tornaria sua presa favorita. De certa forma, era o que eles sempre esperaram. Eles são divindades da floresta. Os antigos tupis-guaranis os adoravam e eles os respeitavam.

Enquanto os cipós invadiam o local do meu auto-cativeiro, meus cabelos, numa espécie de mimetismo, começaram a subir pelas paredes aderindo a eles. De certa forma, eles também se tornaram meus cérberos. As unhas, não sendo capazes de rasgar o tempo, cresceram desmedidamente – logo não mais podiam dar corda nos relógios ou ajustá-los na hora certa. O tempo em Nova York imitou o de Pequim e o de Buenos Aires o de Moscou. Eu não matei o tempo – eu apenas o fiz cair em delírio. Então, em uma noite apocalíptica, o céu estremeceu com uma chuva de pássaros que anunciou o encontro da peste bubônica com outra tão voraz como ela – não veio de ratos comuns, mas de ratas-calvas-voadoras – não foi um renascimento, mas a continuidade do fim. O tempo caiu em senescência e o Caos reinou novamente. Minhas rugas não eram mais fossos, mas abismos que engoliram o poder que sempre tive – e a foice passou para as mãos do novo Senhor e Mestre. No entanto, isso não me afetou, nem a mim nem aos meus cérberos, apenas aos mortais que nos adoram.

Eu não venci o Caos – mesmo assim não me sinto derrotado.

 

XXVIII.

 

As noites gélidas de 2073 esculpem sombras trêmulas em um bosque de árvores mortas, fantasmas que há muito perseguem Alfredo, espectros atormentados da memória, mutações de Teseu que ele herdou após o grande esforço que resultou no extermínio do herói.

O corpo escamoso da paisagem conservava aspectos da animalidade de seu antigo duplo, cercos erguidos à espreita do inimigo. Teseu era uma máquina de guerra e Alfredo agora combatia um novo sentimento, o de um assassino arrependido, vegetando pela pradaria como um canibal angustiado. Suas almas alertam para o perigo dessas dores fossilizadas e os venenos da antropofagia. Alfredo era um velho que deambulava por aldeias à beira da extinção, sobreviventes famintos mascando os restos da vegetação, assando ratos magérrimos em fogueiras, ruínas amontoadas por toda parte.

Em meio às ossadas de grandes mamíferos Alfredo descobrira uma passagem subterrânea, e mais à frente uma gruta cujo reboco de suas paredes era um entrançado de cipós de variadas espessuras. Logo teve que se acostumar à escuridão plena, pois se acaso acendesse algum archote acabaria queimando todo o minguado oxigênio. Alfredo fez daquela caverna a sua nova morada.

 

XXIX.

 

Em 2173, hordas de famintos vagaram pelos campos abandonados por décadas – a terra estéril continha dentro de si um veneno pior do que cicuta. Esses bandos de duas pernas ignoraram nomes comuns menos de dois séculos antes. Arroz, milho ou batata não faziam parte de seu vocabulário ou memória olfativa. O céu estava sulcado por pássaros carniceiros que esperavam o menor descuido da turba para cair sobre uma criança que estava ao seu alcance. Os únicos animais terrestres eram ratos, baratas e répteis. As fontes de água não abrigavam peixes, em vez disso, fervilhavam as enguias gigantescas. A onda de calor oscilou em temperaturas entre 65ºc e 80ºc – uma eterna onda de calor que em um passado distante queimou as poucas árvores que ainda precisassem de sombra. A antropofagia era a única chance de encontrar proteína animal. É por isso que as guerras entre clãs de não mais de vinte ou trinta indivíduos abundaram. As velhas cidades, transformadas em ruínas, escondiam dezenas de machados – as hordas furiosas e famintas sabiam disso muito bem. A guerra é uma memória que não desaparece.

 

XXX.

 

Alfredo habitava agora uma anomalia que de muitos modos o satisfazia. Sua vida se transformara em uma cuia mágica de fatos de memória, porém a inexistência de tempo lhe permitia ir e vir por situações vividas ou por viver. Uma alegoria de evidências que o núcleo suspenso da consciência não ousava rejeitar seus sinais, suas chagas, o colosso de suas imprevisões. Os fantasmas de Alfredo atuavam como médiuns prodigiosos que não buscavam a solução de quaisquer cenários, mas sim o empirismo daquelas vidas inumeráveis que despejavam em seus olhos.

Em uma dessas fábulas milagrosas o reboco de uma das paredes se assemelhava com uma pintura, um desses tableaux vivants que reproduzia o hospício onde conhecera Lavínia, cujo retrato agônico de seus dias estava sempre a repetir, incansavelmente: – Eu não tenho tempo, eu não tenho tempo. Um portal de hesitações infindáveis e perdas de sentido. Lavínia teatralizava sua vida como uma obra-prima. Saltava de um ponto a outro de seu palco imaginário em meio a múltiplas confissões e conjuros. Parecia respirar um ar repleto de astúcias e contaminava todos os presentes – pacientes, médicos, enfermeiras – com a fraude de suas figurações, o bailado farsesco de sua histeria.

O corpo de Lavínia verdadeiramente se transfigurava, em um paradoxo escultórico incessante. A cada enunciado de suas cópias, uma tensão distinta se impregnava em todo o ambiente e ela conseguia nos convencer a representar os mais abjetos papéis.

Ao final de uma dessas transmissões ascéticas, extenuada, no leito improvisado em seu camarim imaginário, Lavínia confessou a Alfredo que sentia a presença de um deus em seu íntimo que a buscava como a última oportunidade de interpretação do mundo. Foi quando este compreendeu que ela deslocava o núcleo de seus êxtases, raptando os sentidos, mesclando a volúpia das formas que assumia. Sentada na cama, com as pernas quase cruzadas, ela o olhava em uma atitude beatificada, com um sorriso que era a mais pura zombaria, e lhe dizia:

– Eu sou uma mulher embriagada por deus, uma deusa alterada. O meu amor por ele é recíproco e quando eu ponho palavras em sua boca eu o faço meu até o último orgasmo dissimulado.

Impossível prever as consequências daquela tão convicta instabilidade cênica. A pose psíquica de um duplo que Lavínia abrigara em seu íntimo. Uma euforia que anunciava seus óbitos nas imagens retorcidas com que encerrava a participação de cada personagem naquela alegoria assustadora.

Ela levantou-se da cama. Queria dançar para Alfredo. Começou a ondular seu corpo em um bailado sombrio e minimalista que beirava a catalepsia. Talvez aqueles espasmos quase inexistentes fossem a sua memória de um androide estropiado. Alfredo tentou lhe tocar, porém, de súbito, o olhar de Lavínia apoderou-se de fulminantes adagas, e ele recuou. Por instantes a empatia entre ambos estava desarrumada. Um segundo a mais e aquela mulher alterada começou a cacarejar, com os braços erguidos como se entoasse uma prece, os olhos embaralhados como se presenciassem mil movimentos diante de si. Médico e enfermeira dela se aproximaram e lhe deram uma injeção.

Alfredo agora contemplava, em sua nova morada subterrânea, aquele quadro vivo em que observava o corpo de Lavínia em seu leito hospitalar. Décadas separavam um olhar do outro, porém aquele lhe parecia o retrato de uma vida dupla, as confidências do inconsciente, o redirecionamento de seus delírios. Naquele anfiteatro ele fatalmente desvendaria os humores da esfinge e a gravidade de um planeta devastado.

 

XXXI.

 

A gruta forrada de juncos representava para Alfredo um enorme útero do qual não queria nem podia sair. Ele não sabia muito bem se aquele refúgio era o de sua mãe ou da mulher que ele amou e que agora vegetava em um antigo asilo. Ele saiu tão pouco que finalmente ninguém pensou nele novamente – nem mesmo Cibele. A escuridão eterna roubou-lhe a sombra, por isso sequer se lembrava das disputas que uma vez os aproximaram ou afastaram. Sua vida como rufião de esquina, vigarista de oito centavos ou jogador de cassinos decadentes, foi enterrada sob estratos e estratos de movimentos geológicos. Sua própria existência foi um terremoto contínuo, em que as camadas tectônicas destruíram dez, vinte, mil vezes a memória que o impedia de entrar no labirinto de Teseu. E agora, no fundo da caverna, não precisava mais fazer nenhum esforço. O labirinto veio até ele, instalado em suas costas – enquanto Teseu, escondido em algum de seus cantos, o chamou em silêncio. Ele esperava por ele com a paciência de um gato e sem nenhuma armadura. Teseu e Alfredo aprenderam a viver juntos no mesmo espaço – mesmo que eles nunca estivessem se encarando.

 

XXXII.

 

– É possível que o ano agora seja 2097, mas quem determinaria essas datas? E que importância elas poderiam ter? Enquanto Alfredo faz a si mesmo essas indagações, os seus olhos, já melhor acostumados à escuridão da caverna, finalmente começam a distinguir, no cipoal entrançado de uma das paredes, uma silhueta que aos poucos identifica como sendo Cronos. Quanto mais as enredadeiras se contorcem, mais nítidos aparecem os contornos da figura daquele velho, com barbas e cabelos desgrenhados, no regozijo de uma inércia que ilude toda a mecânica racional. Não há dúvidas de que se trata de Cronos.

O acaso engordava as pequenas catástrofes forjadas pela memória. As ampulhetas revelavam a contragosto o fundo falso de seus absurdos. Como contrabalançar os opostos quando cada um deles esconde alguns de seus caprichos? Juntamente com os traços corpóreos de Cronos o que a intuição de Alfredo lhe revelava é que a obsessão pelo tempo era uma doença ainda mais extorsiva do que a vontade de poder. A grande tragédia do homem é que ele não consegue esquecer os fantasmas de suas heresias mais misteriosas. As vitrines insinuantes dos malefícios. As cartilhas baratas do tédio. A obra de arte eternamente falsificada que mantinha seu preço elevado no mercado negro.

Alfredo limpava as vidraças de seus vislumbres. Rasgava o vazio em busca do que acreditava ser o exemplar único de sua própria agonia. As páginas envelhecidas da indefinida duração de seus tormentos. Ele continha em si toda a miséria da raça humana. Mesmo que tivesse abdicado do repulsivo heroísmo que fez dele um monstro, ainda assim os resíduos de sua natureza comerciavam as relíquias de suas lamentações. Ao rejeitar Teseu, tudo nele se reduzia a uma metade perfurada e carcomida. Alfredo não passava de uma maldição cuja fatura não tinha a quem cobrar.

Chorava tão desesperadamente cada vez que olhava para a indiferença de Cronos e via nela a civilização carbonizada entregue ao parlamento de sua aniquilação. Não havia mais Lavínia ou a suntuosidade sombria daquela casa de delírios. Tampouco a obsessão original do tempo lhe servia de amparo. Nada restara das esmolas desleixadas da razão ou dos pergaminhos viciados em aforismas redentores. Aquela caverna não era mais parte do mundo. Lá fora certamente não sobrara uma só alma viva. Alfredo gritava o nome de Cibele, porém sua voz o surpreendia como a de um imbecil arruinado. A escuridão era um último sortilégio, porém seus enormes olhos não refletiam mais a abnegação dos deuses. A própria animalidade seria esquecida. E nem mesmo Cibele o faria despertar de seu sonho irrecuperável.

 

XXXIII.

 

Alfredo inelutavelmente entrou em uma letargia sem fim – de certa forma, uma gruta ainda mais profunda do que aquela que abrigava seu corpo dilacerado pela deterioração do tempo e da vida abjeta que outrora levava e que agora só aparecia diante de seus olhos em forma de pesadelo, de condenação. Não porque alguém o tivesse jogado no inferno, mas porque ele mesmo encontrou, no ato de se flagelar, uma espécie de láudano – talvez porque tenha se lembrado das drogas que usou em uma de suas vidas longínquas e esquecidas. O arrependimento, como se sabe, raramente é verdadeiro. E, claro, isso não o incomodou. Talvez essa seja a causa de sua longevidade, sua incapacidade de morrer e a maestria que teve centenas de vezes para se reinventar em um corpo jovem e incorrupto. Ele não precisava de pinturas ou espelhos para se repetir em uma juventude infinita. Porém, o refúgio úmido, quente e silencioso que agora o acolheu o lançou em uma senescência sem volta. Seu corpo perdeu o antigo vigor, suas bochechas grudaram nos ossos e sua memória vagou por labirintos desconhecidos até mesmo para Teseu. Aos poucos, ele se curvou, voltou à posição fetal e finalmente tornou-se uma pequena bola. As aranhas fizeram dele o centro de suas teias – uma espécie de mapa do cosmos que elas próprias inventavam a cada instante daquela noite eterna que era o tempo da caverna que as abrigava. Alfredo não fez nada para impedir – pouco importava para ele se vivia em uma cela feita de fios ou se era mais um pesadelo dos tantos que o perseguiam desde o início dos tempos.

 

XXXIV.

 

O big bang se dissipara e Cibele voltara a indagar como é possível esquecer o que jamais aconteceu. Na banheira com Lavínia ou tratando de inventar a maçã com Alfredo ou atônita diante da alucinação do tempo, Cibele queria retornar a cenários equidistantes. Porém como fazê-lo sem a certeza de tê-los vivido?  As imagens espectrais se reproduzem à sua frente com seus abismos sedutores. Uma iniciação respiratória de silêncios e vacuidades. As divindades iam surgindo a cada sílaba pronunciada em seu íntimo. Cibele buscava as vertigens do solipsismo.  Queria amar Cronos e Lavínia e Alfredo como uma forma de dissolução de toda moral, uma espécie de mística licenciosa. Seu corpo queria reter em si o barqueiro e o rio, a espada e a lei, o cadáver e a lágrima. Extenuação dos símbolos até que o paradoxo rasgasse os véus do inconsciente e ela se transformasse na cortesã dos abrigos preciosos da existência.

As visões de Cibele eram marcadas por uma especulação seminal – mais do que a dualidade ou a alquimia sexual, o que ela buscava era a chave das metamorfoses, as passagens secretas de uma cura a outra, sugestivas conchas de absorção de metáforas, em meio à crescente extinção das fontes de vida. Não tinha propriamente a imortalidade como objetivo, mas queria, em sua peregrinação inesgotável, entregar-se à ramificação prazerosa dos desejos. As suas máscaras se chamavam Alfredo, Lavínia, Cronos.

 

XXXV.

 

Cibele sabia que a cada máscara seu rosto adotava uma pessoa diferente. Assumia assim a vida de um personagem de cada vez, sua história, suas frustrações, ódios, rancores e até mesmo o próprio esquecimento inevitável. Batalhas, guerras perdidas, e nunca completamente abandonadas, colocam um escudo em seu peito e uma espada em sua mão. Espada que às vezes parecia uma catapulta, um arcabuz ou uma bomba atômica. Como se seu destino fosse destruição ad infinitum – anti-criação. De certa forma, ela e seu verdadeiro ego – se existir –, somados aos egos de seus múltiplos companheiros de cama e luxúria, eram a representação do caos. A metamorfose contínua, e ao mesmo tempo repetitiva, longe de esculpir a memória, perfurou o esquecimento. Por isso, ela não se lembrava de que Mnemosine era sua eterna adversária, pois duelou com ela, muito antes de queimar no fundo do mar na companhia de Teseu. Esse era seu carma, seu destino trágico – pelo que ela foi repetidamente condenada à tortura tártara. Quando isso acontecia era dominada por uma sede insaciável – e apesar de estar cercada por água, essa se afastava toda vez que ela queria tomar um gole. Ou, em seus sonhos, ela se viu apoiada em uma imensa árvore onde várias frutas estavam penduradas, e quando ela ergueu as mãos, para acalmar a fome, cada uma desaparecia antes de ser tocada. O ato repetitivo levou-a inexoravelmente ao delírio, depois perdeu a consciência e caiu em uma espécie de letargia centenária da qual era muito difícil voltar a acordar.

 

 

XXXVI.

 

Uma tatuagem circulando o umbigo de Lavínia revelava um dos enigmas de sua natureza: Nem todas somos Cibele. Adônis encontrou o corpo gélido, enrijecido e nu, e o levara até Cibele. Abraçada à amante, na medida em que suas lágrimas lhe banhavam o rosto foi se revelando um último manuscrito: O esquecimento não dura para sempre. Aquela sentença trazia de volta os sonhos da árvore, do casarão e de Alfredo, e Cibele logo concluiu que a ponte entre eles era uma mesma porta que se repetia, por vezes entreaberta, em outras lacrada e sem paradeiro de sua chave.

As repetições são um rio fervilhante de descuidos. Aquele que se repete o faz por não haver encontrado o significado de sua mensagem. As lágrimas de Cibele também se repetiam, devotas do carinho de Adônis em seus ombros pesados. Os aforismas do rosto da morta ecoavam na memória de sua amante. Suas sombras vagavam como criaturas semelhantes pela expressão necessária de cada sofreguidão. Frases milenares, algumas com repugnantes ideologias, outras descrentes de qualquer idealismo, umas invertidas, outras escondidas, imperfeitas e malignas. O rosto de Lavínia era uma grande obra da relatividade.

Cibele transcreveu dali incontáveis processos de condenação de inocentes. Uma contaminação de valores supérfluos. A difamação irreparável das discordâncias. Declínio de deuses e carrascos. A eloquência putrefata do absurdo. Tais processos procriavam crimes inexistentes, amaldiçoava a inocência, lacerava os ociosos. Milhares de mulheres envergonhadas, brutalizadas, seviciadas. Todos os ramos do martírio. Toda a folhagem sanguinária de uma árvore de flagelos.

Os santos óleos que Adônis acendeu agora circulam a pira destinada a cremar o corpo de Lavínia. As flores brancas elípticas e a ramificação de incensos. Cerimônia sem adoração. Apenas deixar o corpo desfazer-se, a alma levar consigo a carne. Uma despedida do eu sem intermediários. Lavínia em vida foi uma politeísta litúrgica. Agora nada mais está a seu alcance.

 

XXXVII.

 

Um corvo perfurou o terceiro olho de Cibele, engoliu-o e deixou uma ferida aberta – uma nuvem de pássaros predadores cruzou o céu – o céu escureceu e pressagiou uma longa temporada de inverno em que o sol estava proscrito. Foi quando ela se viu sentada em frente a um cenotáfio. A memória da mulher que amava em uma de suas outras vidas feriu sua frágil memória. Ela vestiu uma túnica preta e cobriu o rosto com um véu. Só então disse o nome de Lavínia três vezes. Era um ritual milenar para que a alma, que já não vivia no corpo, fosse conduzida ao local onde repousaria até o fim dos tempos.

O delírio e a senilidade, em que Cibele viveu durante décadas, mergulharam-na em um abismo do qual não havia volta. O duelo teve a força de um raio – ele a derrubou e um cheiro de carne queimada invadiu a velha casa onde morara nos últimos anos –, então a casa na falésia desapareceu atrás da fumaça. Naquele preciso momento, talvez em uma última tentativa de recuperar Lavínia, ela cruzou o limiar de Hades.

 

XXXVIII.

 

As imagens surgiam abaladas pelas próprias descrições. A casa amargurada por um império de cinzas ainda vagava como uma herança inclemente. Seus personagens extravagantes agora estão soltos pelas margens corrosivas do Hades. Três alongadas mulheres cadavéricas, em acentuada desproporção, protegiam seus fetos incomuns: a primeira sob o manto, sentada em uma coxia – a segunda balançando a sombra de um pequeno berço – a terceira se arrastava pela areia com um pequeno vulto sob o corpo. O suplício eletrificado que essas imagens projetavam no olhar de Cibele abriu a bocarra fantasmagórica do rio por onde jorraram as mais repugnantes mensagens.

Ossos se desprendiam de corpos humanos naquela província de assombros, cujos rostos não mereciam ser vistos. Os semblantes desaparecidos em meio aos assuntos de seu sofrimento. As dores em leilão, as lágrimas caluniadas, os gritos raspados até o silêncio. Pequenas criaturas infestaram aquele velório maldito. Macacos, rinocerontes, girafas tinham seus corpos amputados e da ausência de seus membros extraviados surgiam hastes metálicas, pedras recortadas imitando carnes purulentas, gazes sob efeito de um desses tantos feitiços da imortalidade. Não eram os únicos e eram seguidos à deriva por mulheres com o corpo se metamorfoseando em vagens, tronos destroçados, círculos incompletos.

O velório de Lavínia crescia como uma calamidade hermética. Ao longo de passagens embaralhadas, aquele verdadeiro credo de hereges forjava seus indultos bestiais. Como seguir aquela coleção de calvários? Onde refugiar-se quando todas as terras foram tomadas e todas as relíquias foram dissuadidas? Nada vale mais o que lhes garantiu uma expedição de virtudes. Criaturas dementes, tísicas, banhadas por falsos pretextos. Urnas acorrentadas aos pés de seus mortos em fuga. Névoa dedicada a mudar a origem de todas as coisas.

Como Cibele um dia pudera acreditar naquela fortaleza sobre o nada? Suas nuvens envoltas em véus imitando as criaturas traficadas pela memória. Livros fuzilados, pontes carcomidas, riscos adulterados. Uma região de instintos depredados, crianças molestadas, morais declinadas. Somente agora Cibele percebia a deformidade monstruosa de sua vida. Quantas farsas concretadas em seu âmago. Vítimas agônicas das terras que não soube recriar. A ausência do outro agora lhe deixava impotente e ridícula. Em lágrimas repetia como um açoite que aquele velório não era de Lavínia. Aquela morte era a sua.

 

XXXIX.

 

Cibele confundiu o limiar do Hades com a passagem do rio Estige. O estado de colapso moral e físico que experimentava ao chegar ao ancoradouro fez Caronte ter pena dela, por isso não exigiu os três óbolos obrigatórios para a passagem à outra margem. Em todo caso, Cibele não ouviu nem viu nada. Já no barco, naquela viagem da qual não há volta, as imagens do inferno se sucederam. As memórias necessárias ao seu resgate se perderam inexoravelmente no tabuleiro de onde um dia tentou resgatar seu amado, Teseu-Alfredo, de modo que ficaram vagando, pulando de uma pintura para outra, para sempre voltar ao centro – lá onde Cronos estava com seu corvo e sua foice.

Cibele ficou confusa com as sombras que emergiam das águas. Lutou com elas para não cair em suas profundezas. Envolta na túnica de Eurídice, tentou evitar as imagens horrendas que estavam por rasgar a tela fina. Ela apertou a mão da morte e aceitou o exílio em um túmulo sem nome. A chama que a iluminou por séculos foi extinta e a árvore da eternidade não existia mais.

 

XL.

 

O diário de Adônis foi encontrado em um dos caixotes mofados no porão de sua sombria residência, em Havana Velha. Dentro dele havia uma única foto amarelecida que mostrava uma cova aberta na cozinha da casa. A foto trazia a data de agosto de 2034 e a indicação de uma página do diário, cuja leitura narrava que o buraco havia sido aberto a pedido de Alfredo, quando este visitara Adônis para solicitar sua ajuda na extração de Teseu de seu próprio ser.

– Eu penso que poderíamos removê-lo através de hipnose e confio em teus dons para tanto.

– Não sei se conseguimos, pois o herói indesejável está impregnado em tua vida inteira, desde o nascimento.

– Não importa. Eu preciso me livrar desta sombra que certa vez me disse que seu maior orgulho vinha de seu domínio sobre mim.

– E se não conseguirmos?

– Eu te peço que me enterres naquela cova, cimentando a mim e a essa criatura desprezível.

Segundo as páginas seguintes do diário, Adônis amarrou Alfredo a uma cadeira e, hipnotizando-o, usou de todo o seu poder de sugestão para convencer Teseu a abandonar seu corpo. Sem contar com sua renúncia, Adônis passou a recorrer ao exorcismo.

– Alfredo sou eu! Se nos desligamos um do outro, nós nos faremos em pedaços.

– Esta é a vontade de Alfredo, demônio, que desistas dele.

– Nenhum de nós pode sair do outro.

– O homem te ordena, deus delirante, que largues este corpo e vás viver em outra imaginação.

Ameaças, conjuros, evocações, tudo fora inútil. O corpo de Alfredo já quase desfalecido mantinha apenas uma voz duradoura se recusando a vagar fora dali. Adônis então arrastou cadeira e corpo até a cozinha. Jogado na cova cobriu então com cimento e descansou. Enquanto o túmulo secava, escreveu no diário o que se passou.

 

XLI.

 

O que Adônis não sabia é que os buracos, mesmo que tenham a aparência de cavernas, são uma armadilha que impede o descanso e que são a representação do caos e da angústia. Portanto, se Alfredo ansiava pelo extermínio da própria sombra, só conseguiu aumentar a sufocação que o acompanhava há séculos. Teseu percorreu o labirinto nas costas e se dedicou a narrar repetidamente a série de existências nas quais rastejou e emulou a mais atroz das criaturas que povoam o imaginário do inferno – e então ele recriou uma espécie de encenação de milhares de sombras que o encurralaram enquanto gritavam e faziam gestos que imitavam sua existência abjeta. Uma forma de lembrá-lo da fraude em sua vida. Alfredo entendeu que o passado não pode ser ignorado – e que, se alguma vez sentiu arrependimento, foi apenas para retornar, pouco depois, à verdadeira condição da criatura vil que governava todas as suas ações. A palavra desculpa nunca fez parte de seu vocabulário – pelo contrário, as imagens dantescas que povoaram sua memória eram um incentivo para não cair no poço profundo do esquecimento.

 

XLII.

 

Os estertores da agonia humana saltavam de uma época a outra, crepitantes como uma conturbação sem princípio ou fim. Uma agonia que enfurecia a causalidade e a ilusão de propriedade. Uma agonia que durasse tanto quanto a estranha crença em sua extinção. Este era o horripilante credo dos hereges, que mancha o brilho das associações e faz da moral uma arte em decomposição. Em um mundo assim, de nada adianta buscar significado para os extravios e outros truques migratórios. O homem está sempre a subestimar o romance de seus ideais. Suas reflexões descontrolam a máquina de equilíbrios construída justamente para insuflar a aparência polifônica dos extermínios. Sob o domínio de tais máquinas, nada pode durar. E os sonhos destinados à imitação de uma memória doutrinária devem apodrecer nos lamaçais da solidão. Nenhum homem deve acreditar em outro. As digressões são enforcadas ao crepúsculo, para que tenham toda a noite dedicada ao esquecimento. O homem se torna a perspectiva da perda do labirinto em seu âmago. Um dia os deuses não estarão mais aqui para apagar os esboços.

 

XLIII.

 

O homem, em uma espécie de naufrágio, esqueceu-se de conjurar o tempo e a história – ele então quis procurar por si mesmo nos espelhos quebrados em milhões de micropartículas. Foi nesse instante que perdeu o esboço de si mesmo. O homem parou diante da roda da fortuna e viu sua sombra repetida até o infinito – sua cabeça era a de um lobo e uma píton inerte pendurada em sua mão direita. Símbolo de fracasso. A máquina infernal, que girava a roda, puxava seus membros, só se ouvia o uivo da besta.

O olho do ciclope iluminou o horizonte – a paisagem estava revestida de brasas fumegantes. Enquanto isso, os pássaros carniceiros rasgaram o ar envenenado e jogaram toneladas de detritos nos oceanos.

Caronte abandonou o barco – já não havia passageiros que lhe pedissem para atravessar o rio – e mergulhou nas águas que lavrava desde o início dos tempos.

 

XLIV.

 

As datas foram extraídas de todas as sentenças. Os exílios eram recíprocos não importava o ângulo para onde davam as portas. Cata-ventos sopravam para dentro, para o abismo de suas direções equívocas. A velha caneca de latão abrigava poções que destruíram as vegetações. Os moinhos regurgitados pela boca dos gigantes convulsivos. Não havia beleza em nada que era manifesto. Como vestir os monstros segurados pelo acaso? Os poços de água benta foram punidos com a semente negra do holocausto. Um diabinho manco cuspia fogo no tornozelo dos gigantes. Deuses corrompidos se embriagavam de propósito, decaídos nas páginas rasgadas do evangelho. Com elas a taberneira mantinha aceso o fogo onde esquentava a sopa com que alimentava a todos. Malvados, corruptos, degenerados – dissimulados, putos, traficantes. Todos os dias uma mesma escrita, transmitida como um simulacro da anterior, decretava o fim da espécie. O comércio das almas consistia em trocar capões empalhados por fadas envelhecidas. Cronos determinou que todas as datas fossem recolhidas. Levou algum tempo até que homens e diabos aprendessem a saltar de um vazio para outro. A realidade se desfigurava como um buraco de minhoca ou o fundo falso do baú do ilusionista que há dois milênios se contentara com ser deus. O intuito cifrado de Cronos tardou ainda mais para funcionar porque no mercado negro alcançaram preços atrozes ampulhetas e relógios digitais. O herético Cronos que agora tínhamos diante de nós rasgou os parágrafos das extravagâncias humanas e fez com que todos se sentissem igualmente perdidos.

– Ouço como as virtudes tropeçam ao fugir. Afasto delas as momices e os discursos políticos. As mais atrevidas jamais chegarão ao final dessa história. Mesmo aquelas que guardam no bolso um resumo dos milagres exigidos pela fé. As mais vis perscrutam os motivos de cada oração. Todos querem mais tempo, porém caem os dentes e nada aprendem. Todos querem ser bons e só veem maldade nos outros. Tempo para crucificações, desmembramentos, sedições. Tempo para remissões, torturas, prevaricações. Para os privilégios do inferno e as guerras púnicas. Para a divisão do átomo e a multiplicação dos pães. Todos querem tempo e batem à minha porta para me roubar ou subornar. Uns poucos me apontam seu olhar de basilisco, rastejantes criaturas que sonham com a minha morte – muitos contratam meu assassinato. Todos estes também precisam de tempo. Os mitos congelarão em seu jardim secreto e os mensageiros voltarão sempre sem resposta. Em nenhum lugar me encontrarão. Farei com que se percam celebrando a hipocrisia. Simplesmente não haverá mais tempo para todos esses parasitas. Farei com que o tempo esteja sempre em outro lugar.

Os dias deixaram de ser dias. As esperas convalescem descrentes. As lembranças foram prescritas. O homem se arrasta como um animal fantástico a quem não pode mais alimentar. Ouçam o alarido devastado do terror, o caos saqueado em pleno estupor, a catástrofe redentora de um mundo que engoliu a si mesmo.

– Aos diabos com o tempo.



 


BERTA LUCÍA ESTRADA (Colômbia, 1955). Poeta, dramaturga, crítica literária e de arte, autora do blog El Hilo de Ariadna do jornal El Espectador (Colômbia). Membro do PEN Internacional/Colômbia. Ela é uma livre-pensadora, feminista, ateia e defensora da alteridade. Publicou treze livros, entre eles La route du miroir (poesía, 2012), Náufraga Perpetua (ensaio poético, 2012), Trilogía de la agonía (comprende las siguientes obras: El museo del VisionarioNaufragios del Tiempo y Las sombras suspensas –escritas a quatro mãos com Floriano Martins, 2021).

 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

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