O homem é divino na experiência de seus limites.
GEORGES BATAILLE
I.
Seu
mamilo despontava como uma pequena ilha surgindo no oceano. Os pecados são
íngremes e a água escorre por entre a relva de seu corpo trêmulo. Suas pernas
naufragaram em meu olhar. Nenhuma de nós pensou em indagar o nome da outra. O
mar enchia seus pulmões de frágil resistência. Ela tossia enquanto o crepúsculo
mudava de cor. Sua mão displicente me afagava o ventre. Seu olhar vinha
das noites frias do mar. Quando subi em seu barco um círculo de cipós me
aguardava. Eu deveria escrever ali a fortuna do efêmero. O céu se desdobrando
em novas simetrias, regurgitando os símbolos de sua ambivalência. As suas
lágrimas eram uma suspeita de castidade.
– Estamos em lados
opostos, mas se me deixares morrer eu posso renascer a teu lado. Podemos cobrir
a noite com o domo de nossos espíritos irradiados. Eu beberia a tua abundância,
tu me iluminarias com teus hieroglíficos insaciáveis.
Quando tentei lhe dizer algo a minha confissão se desfez
em palavras que nem mesmo eu pude escutar. Ela se tornou inefável como a mãe de
todas as coisas incomparáveis. Como um império de milagres relutantes. E
comecei a receber seus guias, o frêmito de suas luzes preparando o cenário para
que ela pudesse vir buscar em mim a semelhança, a harmonia fecunda de seus
elementos sagrados. Um de seus caboclos me instruiu:
– Deves chamá-la por
Cibele, a amante dos abismos, aquela que acenderá em tua carne as raízes
delirantes.
Ao me dizer isto, no círculo de cipós vi abrir-se uma sala
que me convidava a conhecer a origem de seus pilares. Aquela passagem era uma
espécie de canal que me conduzia aos calores de suas metáforas. Ali estava
Cibele, que me queria enroscada em seu corpo como uma kundalini, como se eu
fosse o seu novelo vital, a sua crença nos dias ascendentes de nossas carícias.
Não deveria haver comedimento entre nós. A deidade primordial buscando a
representação do humano como aquelas aves que fazem seu ninho no dorso rochoso
sob as torrentes de água. Eu faria de sua pele a minha pia batismal, caldeirão
revigorado ao mergulho de cada novo símbolo em suas vísceras. Areia antecipada
de mil taças onde eu distribuiria meu néctar em uma orgia mística.
A imensa sala, no entanto, não correspondia ao ouro de tão
sublime princípio e seu lampejo de feitiços. Escuro, sombrio, o chão talhado de
excrementos, o nauseabundo odor de urina, sepulturas abertas, imundície
exaltada, tudo ali descrevia uma materialização de malefícios, talvez pela
simples dedução de que todas as perversões se agarram ao inconsciente como uma
alma de outro mundo que fosse designada a nos salvar. O acaso seria um
mensageiro e um ladrão. Quando rompemos a bolsa para o nascimento de quem um
dia seremos, também a nossa antiga morada parece um ovo putrefato. Temos que
nos livrar de todo o passado. Uma nova alma inquieta nos conduz por um corredor
de auroras sedutoras. Mas nem todas somos Cibele.
II.
Cibele, Atis, Damia, são apenas alguns dos nomes que me
foram dados desde o início dos tempos. Eu vivi dentro das cavernas – ali onde
os abismos deixam de ser verticais para se tornarem labirintos que aguardam um
novo Teseu. Alguns lamberão meus seios e, com isso, perderão a memória. Meu
cheiro os levará para longe de Ariadna e minhas curvas sinuosas serão seu único
caminho. As naus de Egeu cairão no redemoinho de minha respiração, cujo bravo
exército desaparecerá nas profundezas de Poseidon – seu verdadeiro pai. Os
gestos de guerra, aprendidos em longo e doloroso treinamento bélico, serão
transmutados em refrãos que cantam a glória eterna do deus das profundezas –
emulando aqueles que Corina de Tanagra ensinou a Píndaro.
Teseu, assim como inumeráveis
Teseus que passaram por minha cama, dorme ao meu lado até o fim dos tempos. Não
há como escapar. O retorno é uma utopia mesmo para quem não consegue esquecer
completamente a vida pródiga nos palácios da infância. Quando me canso de
deitar ao lado dele, brinco com suas embarcações ou bato palmas para ouvir as
canções. Enquanto isso, meu cabelo comprido é penteado por uma comitiva de
Perséfones – ou então, elas servem como cavalariças para cuidar dos corcéis de
Poseidon. Nelas cavalgo pelas planícies do Tártaro, o rastro deixado por seus
capacetes serve de teatro para a dança dos golfinhos.
III.
O nome de Teseu é Alfredo. Eu soube disto desde nosso
primeiro encontro, quando o vi no metrô e descemos na mesma estação. Alguma
força secreta me levou a seguir seus passos. As cidades cresceram confusas, com
seus desterros mal planejados. As ruas eram sinuosas como um labirinto de
serpentes amatórias. Alfredo certamente desconhecia seu destino, porém
caminhava com enigmática displicência. As luzes pigarreavam como se a qualquer
momento a escuridão desabasse sobre nós. Um estranho pensamento me abateu,
fazendo com que eu me sentisse parte desse mundo. Talvez fosse apenas um sonho,
tornado possível pela simples menção ao nome de Teseu. Em uma das esquinas pude
ver uma grande mesa, os pratos sujos como sinal de uma refeição abandonada de
modo inesperado. As tochas ainda acesas. Nem mesmo ratos e insetos ficaram para
o banquete interrompido. Quantos deuses não gostariam de ser lembrados assim,
em meio a essa ausência invulgar de seus adoradores? Quantas orações abortadas
sem que se pudesse compreender a origem daquele insuspeito milagre? Alfredo
aproximou-se do centro da mesa e recolheu um copo de latão ressecado. Não havia
mais nada ali que lhe despertasse interesse. Eu também procurei entre as sobras
algo comestível. Era inútil. Alfredo me olhou pela primeira vez. Nosso silêncio
tecia um mantel de símbolos que nos abrigaria – ainda não o sabíamos – por
longas noites. Ao sairmos dali fomos nos deitar sob uma árvore desfolhada no
centro de uma praça. Logo seríamos tragados por uma densa névoa, porém nos
mantemos conscientes pela sensação elétrica que nossos corpos despertavam um no
outro. Dormimos por algum tempo. Sonhamos o mesmo sonho, que nos tirou dali
para o interior de um antigo casarão.
IV.
O caminho que nos conduziu até lá era ladeado por árvores
centenárias que, no verão, deveriam dar sombra às pessoas que se aventurassem
por esses lugares inóspitos. Era uma noite de lua cheia, então a trilha estava
iluminada – apenas o canto das corujas e o bater das ondas nos penhascos podiam
ser ouvidos. Senti a presença de Alfredo como se fosse parte de mim – percebi
que era sua sombra e que só agora poderia me juntar a seu corpo.
Não falamos, pelo menos não com
sons – no entanto, travamos um diálogo que correspondeu ao de um casal que vive
lado a lado há milênios. As recordações ficaram claras em minha memória e a
sensação de orfandade, que me dava um ar sombrio, desapareceu por completo.
Depois de cerca de duas horas de
caminhada (ou seriam dois séculos?), ou assim parecia, chegamos em frente a uma
porta descolorida e pesada que tinha uma aldrava enferrujada. Ao toque, a porta
se abriu como se a mansão aguardasse nossa chegada. Entramos em um corredor
aparentemente vazio – suas paredes, cheias de rachaduras, revelavam pedaços de
papel que já foram um sinal de seu esplendor. Ao fundo, vimos uma escada em
espiral. Começamos a subir, a madeira rangeu como um barco em alto mar – o ar
úmido e salgado agarrou-se à nossa pele – reconhecemos a morada que nos abrigou
em alguma vida anterior. Depois de uma longa subida, chegamos ao sótão – no
fundo estava Cronos amarrado a uma cadeira – o tempo parou. Seus olhos não
refletiam incerteza – compreendemos que aquele era seu domínio e que fazíamos
parte de seu feudo.
V.
As paredes do salão ainda lacrimejavam com a perda de sua
pele estampada. Em um dos cantos distinguíamos uma pilha de velhos relógios de
vários tamanhos e modelos, e o canto roufenho de um cuco indicava que a pobre
ave de madeira havia sido soterrada em meio àquela avalanche do tempo caído em
desuso. Alfredo afastou alguns relógios e recolheu em sua mão o pobre pássaro
machucado. Quando chegamos na água-furtada ele já respirava melhor, porém
assustou-se ao ver Cronos. O trêmulo coração do cuco parecia querer nos dizer
que o deus havia se cansado de reger o tempo e que havia então destruído todos
os relógios. Alfredo me deu a ave e se aproximou da cadeira. Cronos estava
preso nela por seus oito cipós apertados e não podia se mover. No entanto, tive
a impressão de uma docilidade ou mesmo cumplicidade com aquela aparente coação.
Talvez o próprio deus tivesse ordenado a cadeira a deter seus impulsos. Diante
de seu silêncio nada pudemos confirmar. Alfredo me pediu que soltasse o cuco,
que saiu voando pela janela. Foi quando notamos que toda a paisagem
descortinada do parapeito da água-furtada era uma inconfundível aquarela com
nuvens retalhadas e um sol manchado. O cuco logo sumiu por um dos rasgos
daquele painel gasto. Quando estávamos para ir embora ouvimos um indeciso
resmungo de Cronos.
– Eu contarei a vocês o que houve desde que em momento algum pensem em me
soltar daqui. Não sei quanto tempo ainda me resta, mas estou convicto de que
devo apodrecer prostrado nesta cadeira.
Alfredo assentiu com um gesto e
nos sentamos ao chão.
– O fato de não poder sonhar nunca me afligiu, até que uma noite eu fui
sacudido por um pesadelo aterrador. Eu havia sido encarcerado por algum crime
cometido que não era de meu conhecimento. Trancafiado em uma pequena cela, na
grade a meu lado estava um outro preso. Logo que os guardas se foram ele então
me disse:
– Não vais querer saber?
– O que me queres contar?
– Eu não quero contar nada, mas certamente indagarás pelo motivo que me
trouxe aqui.
– Não estou bem certo, mas… Sim, podes contar.
– Não digo nada até que insistas.
– Não sei quanto tempo me manterão aqui e não há nada para se fazer, de
modo que, sim, eu insisto que me contes o motivo de tua prisão.
– Eu matei a minha sombra. Até onde eu me lembro nós tínhamos um acordo
de que não faríamos nada sem o consentimento do outro. E deste modo levamos uma
vida de satisfeita cumplicidade. Certa vez eu comecei a perceber que sempre que
acordava ela parecia não estar tão descansada quanto eu. Cheguei a pensar que
algo lhe devia estar atormentando o sono, mas como poderíamos ter sonhos
distintos?
– E a que conclusão chegaste?
– Já? Queres assim tão de imediato o final da história?
– Não é isto. Acontece que me deu imensa curiosidade o tema de uma sombra
que sonha.
– E por que ela haveria de não sonhar? Afinal, deveríamos ser iguais em
tudo.
– É verdade, mas…
– Ah és daqueles que não acreditam na vida das sombras…
– Talvez seja isto. O fato é que estás me contando uma história que
jamais me havia passado pela cabeça.
– Quem és, então?
– Eu sou um deus, eu controlo o tempo.
– Certamente estás brincando. Como alguém que acha que controla o tempo
pode duvidar da presença viva das sombras…
– Talvez tenhas razão.
– Não deves controlar tempo algum, já que me pareces tão ansioso.
– Por favor, conta-me o sonho.
– Sonho? Mas eu não sonhei com nada. Estou contando a história de um
crime e tudo foi bem real.
– Tens razão. Conta-me o que houve.
– Pois bem. Comecei a desconfiar da ausência de descanso noturno de minha
sombra. O motivo certamente é que, ao invés de dormir, ela estava fazendo algo
escondido de mim. Considerando a inclinação passional de todo malfeito,
desconfiei que estava me traindo com outro corpo. Certa noite sem que ela
percebesse coloquei meu relógio no pulso. Por reação automática o relógio logo
lhe apareceu em seu braço. No entanto, tão logo ela dormiu, eu, que apenas
fingia dormir, com os olhos fechados, retirei o relógio. Pela manhã ali estava
ela usando o relógio que eu havia retirado. Quando lhe confrontei, ficou sem
gestos. Diante daquilo não havia mais motivo para confiar na própria sombra.
Enquanto nos banhávamos eu a afoguei na banheira. Ela ficou parcialmente
diluída, irreconhecível. Chamei a polícia e confessei o crime. Mas os guardas
não queriam acreditar e só me levaram preso quando confirmaram que de meu corpo
não emanava mais sombra alguma.
Alfredo então indagou a Cronos se
aquela história era real ou se não passava de um sonho seu. Cronos riu diante
de nossa ingenuidade, como se houvesse a menor importância em distinguir o que
era real ou não em nossa vida. Alfredo insistiu:
– Mas se um deus que controla o tempo não pode evitar que a própria
sombra o traia com outro, para que então servirá esse controle?
– Esta talvez fosse a razão de minha prisão no sonho. O fato é que quando
acordei disse a mim mesmo que o mundo estaria melhor se eu não controlasse mais
o tempo.
VI.
– Porém, esta enorme
casa está cheia de relógios, uns parados, outros com o seu tique-taque infernal
– também é verdade que desde que começamos a nos aproximar deste lugar tivemos
a impressão de que o tempo havia cessado – então eu não entendo.
– A resposta é muito simples, você tem relógios, em vez disso eu sou o
tempo. Em outras palavras, o tempo pode parar e a mecânica do relógio pode
continuar a funcionar – e tudo isso pela simples razão de que foi o homem quem
criou este mecanismo – enquanto eu, Cronos, sou o deus do tempo. Sem mim, o
caos nem existiria – eu já existia antes dele. De certa forma, sou seu pai.
– Pode ser, não sei… Porém, tenho dúvidas…
– Você duvida que eu seja Cronos, o deus do tempo?… Que descrente!
– Sim, é verdade – eu sou incrédulo por natureza. Como você chegou
aqui? Outra coisa, você não se olhou no espelho? As rugas que cruzam seu rosto
parecem fossos. Sua pele está cheia de rêmoras. Você diz que existia antes do
caos, poderia ser… – porém, tudo aqui é um caos… como se devorasse as horas
murchas, exaustas, esgotadas… Você só respira a solidão da última luz… E
aqueles cipós que o amarram nessa cadeira bamba? Um deus, especialmente o deus
do tempo, pode fazê-los desaparecer num piscar de olhos… E seus cabelos oleosos
rastejam pelas paredes deste antigo sótão. Acho que toda essa desordem é uma
vingança por aquele caos que você tanto despreza.
VII.
Cronos e Alfredo permaneceram horas envolvidos nessa cascata
insalubre de inquietudes. Um ardil impossível de ser acompanhado sem cair na
malha pegajosa da ansiedade, a teia de uma aranha milenar que guardava a
passagem dos caminhos cruzados. Uma hora alguém teria que dinamitar a entrada
da direção escolhida. Eu não queria participar daquele jogo mesquinho. Adônis,
um de meus negros mais fabulosos, me tirou dali graças à força de sua mente, e
logo me vi com as três graças enroscadas em minha nudez, suas fibras reluzentes
engendrando safras extravagantes em meu corpo acidentado. Adônis acendeu os
santos óleos do desejo e nos recebeu em seu altar. Ele sempre foi o meu pequeno
deus preferido, único com quem reparti minhas orações ao lado das três graças.
Selamos um pacto que só poderia ser representado por uma risca de luz na
escuridão do palco. A representação do ser submetido a seu casulo por um tempo
maior do que poderia suportar. Essa sempre foi uma curiosidade de Adônis, à
qual finalmente resolvi atender. Até quando podemos demorar a nascer? Uma vez
que a vida nos foi prometida, qual a origem do suplício que devemos cumprir
indefinidamente no interior do ovo? As três graças pressionavam meu estômago
forçando a criatura ali encerrada a saltar fora de meu ventre. Adônis a tudo
assistia com seu olhar enfeitiçado, até que uma pequena figura veio à luz e
antes que secassem as plumas engorduradas começou a cacarejar:
– Por que razão demorei tanto a sair desse cativeiro?
Adônis se apressou a lhe dizer
algo, incrédulo com o que estava acontecendo:
– Acaso não saíste antes do tempo previsto?
– Como podes ser tão tolo! As previsões nunca se cumprem. A vida não
nos dá motivo para aceitar seus caprichos. Eles simplesmente são impostos.
– Deste modo também nada é extemporâneo…
– Eis um modo bastante ingênuo que render-se à divindade.
– Mas somos todos crentes…
– Ah pedanteria ignóbil! Devo sair daqui o mais rápido, tão logo sequem
minhas plumas e eu possa voar para bem longe.
– Por favor, não vás embora antes de me alimentar a curiosidade.
– O que mais queres saber, além do sentido figurado da existência?
– Figurado? Eu quero entender essa álgebra que mascara o tempo…
– Ah ah ah! Quem diria! O devoto aturdido, que se deleita com a deusa
que o escraviza e logo quer dominar seus instintos regulando os descompassos da
reprodução humana! Que trapo de gente habita esse lugar!
VIII.
Cibele permaneceu calada e atenta à conversa entre Adônis e
o pintainho atrevido. Seu corpo se afastava lentamente da cena na medida em que
ela refletia:
– Todo nascimento implica destruição, o fim. Esta seria a definição
mais precisa da existência humana. No mesmo momento em que nasce, começa o
tempo regressivo – aquele que leva ao último suspiro. A reprodução é apenas uma
estratégia grosseira para enganar a Foice. De certa forma, acreditamos que é a
fonte da juventude eterna – outra estratégia que inventamos para continuar no
submundo. E quando finalmente damos à luz, percebemos que a busca pela
eternidade não é trazer ao mundo uma pequena prole procriada por nossos
fracassos. Isso só perpetua a agonia e o inferno a que está condenada a espécie
humana em geral e cada pessoa em particular. E eis que passamos nossas vidas
inteiras – séculos, milênios, na verdade – ignorando que o abismo está do outro
lado da esquina. Nós o contornamos e não o vemos, até o dia em que ele
inevitavelmente nos engole inteiros. Eu penso sobre isso no escuro. Está frio,
ouve-se o uivo do vento a quilômetros de distância, a água ameaça inundar o
quarto, quero correr, mas uma força enorme me prende à cama fedorenta em que
dormi nas últimas horas, ou nos últimos dias, já nem sei – de repente, sinto
que o mundo, ou o que resta dele, está tremendo com uma intensidade que eu não
conhecia. Eu os ouço gritar: – Temos que sair, é um terremoto. É quando acordo e percebo que o pesadelo
mais uma vez me transformou em sua presa favorita.
IX.
A chuva forte não continha o
fogo que continuava devorando as ruínas do povoado. A pequena igreja está
desfigurada pelas chamas e em seu interior, na coluna central do presbitério,
pendia um Cristo de ponta-cabeça amarrado pelos pés. Escuto meu nome do outro
lado do fogo. Por aqui não há mais como nascer ou perdurar. – Teseu, Teseu, tu és a nossa
direção. As vozes insistem, e vão se
amontoando em torno de um chamado que soa como um imperativo. Há muito ninguém
me chama por este nome. Desde que desisti de ser um herói e me converti em um
conselheiro de peregrinos. Escuto os gritos ecoando de um labirinto: –
Temos que sair, é um
terremoto. Teseu, tens que nos guiar. A
paisagem sombria espanta a chuva e logo todo aquele ermo prolifera uma plaga
desértica onde as vozes uma vez mais me inquietam: – Deus está por um fio, Teseu,
somente tu o poderás salvar. Eu me recuso
a crer em um Deus que precisa ser salvo. Minotauros não criam asas. Como alguém
que acredita em céu e inferno pode rogar a outros que salvem o sem casta, o
tangedor de bumbo, o rato evadido? O terremoto cresce dentro do homem, o
nauseabundo comedor de hóstias. Eu me recuso a ser herói desse bastardo ordinário,
o excluído de sua própria imagem, a podre maçã que um dia acreditou ser de
ouro. Saiam de mim, vozes malditas! Aqui não encontrarão senão Alfredo, o único
que pode lhes indicar um caminho onde a salvação seja proscrita. O fogo levou
consigo todos os papiros. Eu mesmo não me recordo mais que ano era aquele. Um
pequeno diabo sentado nos destroços de uma tribuna resmungava com os restos de
uma bíblia nas mãos, rasgando palavras em páginas a esmo e as engolindo.
Segundo ele, aquelas palavras poderiam conter um encantamento que permitisse a
união de Deus e do Diabo. Tudo, no entanto, me parecia igual. Este era o meu
conselho final, não o ato heroico de Teseu, mas uma dúvida engenhosa de
Alfredo. Ao crer em uma divindade o homem desistiu de si.
X.
Apesar de tudo, Cronos ainda estava preso às trepadeiras, de
vez em quando visitava Alfredo em seus sonhos – uma maneira de se encontrar
novamente com seu amado e corajoso Teseu. Ele estava ciente de que os tempos
haviam mudado e com eles as divindades. A Teogonia
de Hesíodo foi substituída por um livro, A
Bíblia, a parte mais antiga do qual pertence a uma religião que desapareceu
antes que ele mesmo existisse, como a Mesopotâmia. Que labirinto! Quando
pensamos que alcançamos o centro ou o deixamos, percebemos que apenas voltamos
ao início! Cronos tem plena consciência de que o tempo está girando e de que
não há como escapar.
Nessas visitas noturnas, Alfredo
sentia que o deus do tempo estava instalado no meio do colchão, entre ele e sua
sombra. Sentiu novamente a umidade da velha casa e o cheiro de confinamento. As
rêmoras do velho o fizeram arder e a transpiração do molusco o sufocou.
Às vezes, para fugir daquela
sensação de enclausuramento, resolveu levantar-se do colchão de palha e
caminhar sozinho até as falésias onde as ondas do mar arrebentavam com uma
brutalidade que o deixava atordoado. Então ele sentiu uma força enorme que o
jogou repetidamente no vazio. Como se ele fosse um Sísifo moderno, cuja pedra é
o peso da própria vida. E quando ele não estava caindo do penhasco, foi uma
enorme fissura que se abriu diante dele – uma besta que abriu suas mandíbulas
para engoli-lo inteiro. Em seguida, uivou como um animal ferido. Sentiu que
estava sendo encurralado por dezenas de gladiadores no centro de um antigo circo
romano – enquanto centenas de espectadores aplaudiram sua humilhação. Ao
acordar, Cronos já havia partido – e ele e sua sombra destilaram água salgada.
A fadiga o deixou prostrado, desamparado – sentiu que mais uma vez havia sido
derrotado e que nunca seria o herói de outrora.
XI.
Devemos estar atentos às forças que operam do outro lado do
espelho. Cibele morou por algum tempo em uma velha pensão em Santillana del
Mar. O quarto foi preparado por ela e sua ajudante, e tinha apenas uma cama, um
armário e uma banheira ao centro e sobre um pentagrama riscado a giz. Lavínia
era uma mulher tão lendária quanto a princesa de quem emprestara seu nome. A
pele de seu rosto representava as escrituras de um antigo papiro. Nuas, as duas
cumpriam um ritual irrepetível a cada vez que entravam na banheira. As velas
eram dispostas nas pontas do pentagrama. Quantas enigmáticas virtudes ali foram
acolhidas enquanto Lavínia se ausentava para dar lugar a cada uma delas! Cibele
lia em seu rosto:
– As falhas desmentem o destino dado como certo.
Era o suficiente para que Lavínia
abrisse os olhos e uma outra presença fizesse surgir em sua mente uma passagem
enevoada recordando as ruas sinuosas lá fora. Cibele percorria aquele labirinto
de pedras, um emaranhado de saídas que ela temia não fossem dar em parte
alguma. Lavínia lhe dava de beber um elixir vegetal que a fazia esquecer tudo
aquilo. Cibele prendia o fôlego e voltava a tatear o rosto de sua amante:
– Não há como embrulhar a espiral e deixar os espelhos de fora.
Novamente mudança repentina do
semblante de Lavínia. As águas se repetiam em seus corpos como a expressão da
imortalidade. Porém Cibele era devota da cena isolada e não de sua repercussão
em seu espírito. Os orgasmos se multiplicavam a cada dia e por vezes Lavínia embalava
seus truques para ir embora dali. Cibele percorria os cinco elementos de seu
corpo e voltava a tocar a caligrafia de seu rosto:
– As duas moradas estão prontas para entrar e sair.
Aquela frase abaixo de uma das
sobrancelhas de Lavínia estava quase ilegível e Cibele a recitou com alguma
indecisão. Não houve alteração no rosto da assistente. Tudo à sua volta
desapareceu. Aos poucos um outro cenário ia surgindo como um quebra-cabeças. A
brevidade da vida, os gestos dissociados, os opostos duplicados à exaustão.
Cibele e Lavínia pela primeira vez se sentiram abraçadas pelo símbolo de sua
união. A arquitetura que as envolvia era uma alongada torre de vidro e metal,
com tantos andares quanto a imaginação possa contar. De onde elas estavam era
possível observar toda aquela cidade tentacular com sua opulência ambivalente.
Cada símbolo parecia existir em função de seu adjetivo. Em um dos cantos
daquele vestíbulo espaçoso havia uma cadeira e um homem atado a ela por oito
liames enérgicos. Quando Lavínia lhe apontou Cibele rapidamente deixou escapar
o nome de Cronos.
– Como ele terá chegado aqui?
Do outro lado do vão um vulto
recurvado varria o piso repetidamente, indo e vindo com a vassoura como se por
mais que se dedicasse à varredura não conseguisse limpar o lugar.
– Não posso crer que seja Alfredo. Meu amor, como viemos parar aqui?
Como tudo isto é possível?
XII.
Os espelhos levam a mundos paralelos – especialmente se
estiverem rodeados por água. Gestos, pensamentos, palavras, perfuram o lago de
suas luas. Lavínia sabia muito bem – não é à toa que ela tem o nome da lendária
princesa de que Virgílio lembra em seu poema – embora nunca dê voz a isso. Como
a Casildea de Vandalia de Cervantes. Mulheres sem voz. A Lavínia nesta história
fala pelas duas e por mil mulheres se necessário. Ela não é esposa de Enéias,
mas amante de Cibele. E com isso todas as portas permanecem abertas, não há
limites proibidos – cada vez que passam por eles, penetram no tempo e em seus
jogos infinitos.
Com a palavra, perfuram a rocha e
os buracos do tempo.
Com a palavra, saltam de um
quadrado para o outro.
Não são peças de xadrez.
São a rainha e o cavalo.
Em uma das casas do tabuleiro de
xadrez há um trono soberbo que Cronos usa para lembrar a Lavínia e Cibele que
ele continua a dominar os silêncios, as auroras e os crepúsculos. Escreva neles
com uma das penas do corvo que vive em seu ombro esquerdo. Ele bate com a foice
– e Alfredo, cada vez mais encurvado, obedece-lhe com o vaivém incessante da
sua vassoura. Não olha para cima – seu rosto está murcho e sua língua indefesa.
Cibele tenta detê-lo – ele apenas se limita a virar as costas para ela e
continua com seu eterno vai e vem. Cibele grita:
– Alfredo, sou eu, a tua Cibele.
Ele não olha para ela. Continua
indo e voltando. Lavínia, horrorizada, tenta abraçar Cibele. Ela a afasta.
Cronos, impassível, observa seu movimento de peças de xadrez como ele deseja.
Ele é o pai do tempo, o deus do tempo dos lobos.
XIII.
As horas mordidas em meio à confusão gerada pelas marionetes
que se atracam como inimigos. O barulho voraz daquele massacre e logo os
bonecos se despedaçam mortos pelo chão. Nada interfere nos planos de Cronos.
Nada permite a Alfredo varrer as sobras daquelas sombras calcinadas espalhadas
no chão. Lavínia reúne secretamente seu séquito, tendo sugerido à distância –
de tempo e espaço – as coordenadas para que dela se aproximassem todas as
mulheres sem voz. Ainda era cedo para contar sua estratégia a Cibele. Ela
levita por todo o piso da torre, circunda toda a extensão que parece infinita.
Os fantasmas de mil mulheres vão chegando e juntos rodopiam formando um
turbilhão que em grande velocidade cria um cenário eletrificado que ninguém
pode decifrar.
Cibele, desesperada, tenta se
livrar das pinças de armas e redemoinhos – e grita novamente:
– Alfredo, onde está tua sombra? O que fizeste com ela? Acaso a
perdeste novamente em um lugar miserável? Ou a mataste mais uma vez? Alfredo,
responde! Preciso ouvir tua voz para ter certeza de que não estás morto!
Lavínia e sua comitiva de
mulheres a rodeiam, tentando lhe abafar a voz.
Enquanto isso, Cronos continua a
golpear com seu cetro, e Alfredo varre incessantemente para frente e para trás.
Suas costas se dobram ainda mais, seus passos se tornam cada vez mais lentos e
seus pés arrastam o sofrimento de séculos. Nem mesmo a corda infernal dos
pulsos que a vassoura tenta afastar consegue um movimento dos olhos ou uma
careta que dê sinais de vida.
Cibele grita de novo:
– Cronos, o que fizeste com Teseu-Alfredo? Por que o estás tirando de
mim novamente?
E dirigindo-se a Lavínia:
– Me deixe em paz! Diga às tuas mulheres para não bloquearem meu
caminho. Se for necessário descer de volta ao Hades, eu o farei. Teseu, olhe
para mim! Sigas meus passos, Teseu!
XIV.
O inesperado destempero de Cibele, sua talvez involuntária
perda de humor, fez com que toda aquela arquitetura de vidro e metal se
congelasse no tempo, em pleno requinte de vertigens, em meio àquele rigoroso
tumulto que buscava o apogeu da revelação. Talvez ainda fosse cedo para ela
compreender o que estava se passando.
Qual o efeito que provoca em nós a limpeza? Quando varremos a poeira
diária da casa ou lavamos a impureza do espírito em um terreiro de umbanda ou,
ainda, quando apagamos da memória os episódios indesejados. Não temos muito a
dizer quando a limpeza é bem-sucedida. Do contrário, insistimos, antes que a
frustração nos destrua.
Safir havia sido abduzida aos 16 anos. Envolta por uma névoa foi
suspensa no ar até encontrar-se no interior de um cubículo escuro com suas
pequenas luzes azuis cravadas no teto. Sentia a seu lado uma presença não
identificada que telepaticamente lhe revelava a crescente desertificação de
certas áreas do planeta contrastando com a inundação de outras. Quando foi
devolvida ao sofá de sua sala, em Manizales, Safir se sentiu no dever de
revelar o que lhe fora dito. Sua decisão, contudo, só lhe trouxe desassossego.
Desacreditada e silenciada, sua vida se tornou um inferno.
Zaya era uma flor de luz em Mênfis. Uma velha senhora lhe havia revelado
que Zaya viera ao mundo para acabar com as matanças do mundo inferior. Ela
cresceu se preparando para isto, percorrendo as pistas deixadas por escribas
anônimos. Com o tempo todos se acostumaram a levar até ela seus corações, para
que ela avaliasse o teor de maldade que eles continham. Zaya escrevia então seu
nome ao contrário em cada coração e todos voltavam a ser bons. Os deuses se
sentiram traídos por aquela mulher e em certa noite ela foi amarrada ao falo de
Seth com os olhos vendados para que jamais voltasse a ver o dia.
Renata foi a primeira bailarina do Royal Ballet em 2043. Era um pássaro
de mil asas cujo corpo se desdobrava no palco como uma revoada de leques
multicores. Em uma de suas excursões pela África, conheceu Murayama, a cidade
sem mar, cujos habitantes eram ágrafos. A palavra falada era a única fonte de
vida, selo sagrado de um povo que jamais pensou em deixar registro de sua
história. Diante daquele estranho modo de ser, Renata tomou a decisão de
abandonar o balé e se dedicar a alfabetizar os nativos de Murayama. A fome, a
guerra, a corrupção eram fatores vividos em espantosa naturalidade, sem que as
suas causas fossem compreendidas. Ao aprender a ler e escrever a gente se
horrorizou com toda aquela violência e curiosamente decidiu responsabilizar
Renata por haver trazido sua consciência apavorante. A bailarina foi
acorrentada no alto de Taragiteca, a árvore de metal despida de folhas que
nascera no centro de Murayama. Seu corpo perdura ali até que se desfaça, como
símbolo de uma época negra de conhecimento.
Este é o desafio de Lavínia. Buscar a compreensão de todas as mulheres
que faziam parte de Cibele para que elas lhe ajudem a recuperar a voz dessas
três e tantas outras caladas, assassinadas, traídas…
XV.
Cibele tinha consciência do peso incomensurável do silêncio
imposto a milhares de mulheres antes e depois dela. Ela conhecia a ausência de
imagens – seu próprio passado se perdeu mil vezes nos pesados bancos do espesso
nevoeiro. Ou então derreteu na escuridão. Ela esqueceu a própria história –
caiu no intervalo de tempo – tornou-se um pária, vagou por túneis de espelhos,
por becos secretos, subindo e descendo escadas em espiral. Cronos, e sua
ampulheta, a controlaram e a impediram de ouvir a música de sua cachoeira. É
por isso que ela não conseguia ouvir a lira de Orfeu – ela ficou no submundo
enquanto ele e Teseo-Alfredo foram para a primavera. Ela se esqueceu de
Lavínia. Não conseguia mais decifrar o crocitar do corvo de seu guardião.
Estava perdida no túnel de sombras onde Cronos é o senhor e mestre. O labirinto
de xadrez a prendeu para sempre. Uma pergunta ainda permanecia: poderia ela
escapar?
XVI.
A cena congelada em pleno torvelinho se parte em infinitos
pedaços, com suas crepitações lancinantes e suas imagens despedaçadas. Aos
poucos a escuridão registra a sua presença, a escritura de seus dons. A plena
escuridão que a tudo engole e regurgita um assombroso silêncio.
Não há como decifrar a ausência
de tudo senão através dos movimentos de seu corpo. Para tanto é preciso
esvaziar-se também por dentro. Aceitar a nulidade afetuosa do ser. Um mundo sem
símbolos, métodos, aparições. Nós somos um rio de almas que soluçam estupefatas
diante da descoberta de um caminho transfigurado. É preciso deixar essas almas
hibernarem até que reconheçamos a visão de um outro mundo.
Durante aproximadamente um tempo
que se desconhece a escuridão pernoitara no vazio. Um pequeno rasgo ao centro e
por ali vemos finalmente surgir uma frágil língua de luz. Impossível
identificar se a magia adormecia ou despertava. O filete de luz ia se
arrastando pelo cenário como o fantasma de uma serpente. De seu corpo minúsculo
a luz ia ganhando potência.
Lavínia, com a incomparável
substância de sua nudez, em movimentos latentes, ia revelando uma grande árvore
ao centro daquele abismo negro. Uma árvore talvez ilusória, representação de
uma vontade imperfeita, transe automático do desejo, a grande árvore-mãe como
receptáculo de uma alegoria mística.
Quando todo aquele ambiente de
intensidade quase inverossímil está formado, Lavínia faz com que vislumbremos a
presença de Cibele e Alfredo. Telepaticamente diz a eles que não importa se
recorram a um êxtase religioso ou quaisquer outros truques de ilusionismo, a
parelha não deve esquecer que está ali para que invente a maçã.
XVII.
A vida é feita de perdas, Lavínia sabia disso muito bem. No
momento em que Alfredo estava ganhando o jogo, ele conseguiu sair do labirinto
em que Cronos o jogou, e Cibele estava a seu lado. Lavínia tinha muita
paciência e tempo – sabia que as peças de xadrez têm movimentos infinitos e que
em uma delas sua amada voltaria para a banheira com ela. Então trocou os
espelhos por outros maiores – o pentagrama desapareceu do conjunto – e em seu
lugar colocou uma foto que ela e Cibele haviam tirado do oráculo de Delfos em
uma visita não muito distante. Lá elas ouviram, em linguagem silenciosa, que
sua aliança sobreviveria ao caos – que poderia haver aguaceiros que as
separariam, mas que mais tarde os rios se tornariam um só e que se encontrariam
novamente no mesmo barco. Nem mesmo Caronte poderia separá-las definitivamente.
O tempo é feito de armadilhas, iscas, é esquivo e às vezes se deixa apanhar –
ele se disfarça, hoje é um lobo e amanhã um gato. E os gatos adoram liberdade,
conforto – e Alfredo não ofereceu nenhuma das duas coisas a Cibele.
Lá fora, um pica-pau preparava
seu ninho dentro de uma árvore – uma espécie de concerto que Lavínia apreciou.
Agora só faltava esperar que as
águas calmas voltassem ao seu curso.
XVIII.
Caronte, no entanto, ainda insistia, com seu olhar
penetrante, em descobrir o ponto de soltura em que se pudesse esvaziar o ser de
Cibele ou Lavínia. Apenas uma delas poderia trazer de volta ao mundo a ruptura
dos contrários. O erotismo espírita que as unia estava se espalhando por toda a
terra e logo só compreenderíamos os compostos como uma unidade insubornável. Os
deuses seriam derrotados por uma magia sexual. O palimpsesto que quanto mais
fosse rasgado mais nos conduziria por um santuário sanguíneo.
Quantas formas assumiria a maçã?
Cronos havia desistido de lutar.
Os cipós que o envolviam não tinham mais função, embora não pensassem em
soltá-lo.
Alfredo incansavelmente varria
tudo à sua volta, decidido a apagar os rastros de sua sombra. Seus fluidos
vitais foram contaminados. Suas noites na terra perderam a essência líquida dos
mistérios. Talvez Cronos não tenha desejado tão ardentemente o domínio do
tempo. Talvez Teseu tenha deixado escapar os sentidos que fixavam o duplo em
cada ser. Por isto as ampulhetas foram esbagaçadas. Por isto as sombras foram
dilaceradas. Novos deuses certamente teriam que ser inventados.
Quantos sumos distintos teria a
maçã?
Quais novas luzes sangrariam a
escuridão reticente?
Os céus estavam desmoronando e
Lavínia tinha diante de si a irredutibilidade de um desafio, a transfusão da
alma de um oráculo para outro. Cibele teria que beber as vísceras
fosforescentes de antigos espelhos mágicos. A ela caberia oficiar como
necromante e ouvir uma a uma as vozes silenciadas de todas as mulheres e as
elas transmitir a faísca vital que seria escrita como a mais avançada de todas
as ciências. Superior em tudo a todas as demais. Onde os deuses não mais
existiriam e Alfredo e Cronos teriam que semear uma nova razão de ser.
Quantas vidas guardaria em
segredo a maçã?
A cama está pronta.
Cibele e Lavínia não devem mais
estar em lados opostos.
Os mares se erguem e as suas
noites frias choram uma oração nupcial.
XIX.
– Sim, a cama está
pronta – Lavínia disse para si mesma e sussurrou nos ouvidos de sua
comitiva de mil mulheres que a acompanharam nesta longa e tediosa espera –
aparentemente um duelo no qual não há cadáver para enterrar – uma espécie de
jornada através de um rio diferente do Estige. Lavínia não sabia que Alfredo
continuava com sua vassoura em seu incessante vaivém ao qual foi condenado por Cronos. Ele não conseguiu escapar.
Cibele se esqueceu de dizer a ela para não olhar para trás, para segui-lo em
seus próprios passos – para que ela tivesse certeza de não perdê-lo novamente.
O silêncio sideral confundiu seus ouvidos – ela pensava que seu amado milenar a
mantinha evitando fazer barulho e sem olhar para trás. Alfredo não a viu nem
ouviu seus lamentos, pois ele não tinha lembranças. Ele continuou em sua
tentativa inútil de unir os pedaços de sua sombra – não sabia que nunca mais
montaria o quebra-cabeças que ele mesmo havia explodido em milhões e milhões de
partículas infinitesimais.
Enquanto isso, outro big bang
explodiu no céu. As pintadas-negras gostaram do show, mesmo que não
conseguissem rir. Cronos ordenou que olhassem para o infinito e o mantivessem
informado de cada surto. Pensei, com imensa satisfação, como já fizera muitas
vezes, como os homens são ingênuos. Eles acreditam que Zeus, ao presidir o
Olimpo, é o pai de todos os deuses. Ignoram, portanto, que o deus criador,
aquele que existia antes mesmo do caos, era Ele, Cronos, o deus dos tempos.
XX.
Cibele e Lavínia coincidem em que a cama está pronta dentro
delas. As cartas de um coito sagrado são distribuídas por todo o corpo. Este é
o momento em que se escreve pela primeira vez a Grande Obra da Carne e as
trepadeiras imaginárias percorrem as sílabas das duas peles como se fossem
números primos. As mãos de Lavínia viajam pela coluna vertebral de Cibele. Suas
carícias se ampliam pelos interiores de suas coxas e braços.
– Quando me tocares os seios eu certamente já não estarei aqui, pois me
sinto tragada por uma hipérbole inominável.
– Então jamais tocarei teus seios, pois te quero sempre comigo.
As duas balbuciavam mantras
afrodisíacos em movimentos espiralados a caminho do centro vulcânico de cada
vagina. Não poderia haver mal nesse mundo. Uma corrente elétrica despistava
qualquer culpa ou qualquer forma de flagelação. Longe do vampirismo ou das
seitas de uma evolução futura. Elas estavam ali unicamente absorvidas pelo
instante. À sua volta as mil mulheres que abraçavam aquela reconciliação
imperativa do eu consigo mesmo.
Quando Cibele viu o filme O credo dos hereges pôde finalmente
compreender que a ciência nada poderia contra o mal. Assim como a arte e a
religião, a ciência repetia os mesmos vícios, as mesmas experiências falhas.
– Há um olho dentro da casa que me observa quando bem quer.
Se passeio pelos corredores me dá a impressão de ser mais de um. Uma noite ao
descer a escada eu o vi no último degrau. Era um olho com estranho brilho
furta-cor que fazia toda a casa se virar para mim.
XXI.
Cibele, antiga deusa, sacerdotisa, maga, feiticeira e
conhecedora de cartomancia, costumava esquecer que o livre arbítrio é uma
ilusão e que somos apenas fantoches pendurados em longos fios movidos por
pintadas-negras.
E embora ela mal tenha descoberto
a presença do Olho, ele reinou na casa por muito tempo. Foi uma gota de suor
que caiu do rosto de Cronos em um dos mil surtos que orquestrou inúmeras vezes
e com os quais controla os multiversos que lhe servem de morada. Incluindo, é
claro, o Olympus e os Persas Paerdís – o mesmo que mais tarde se tornaria
paraísos. Por isso mesmo Cibele tinha certeza de que se não fosse neste mundo
onde ela voltaria para os braços de sua amada Lavínia pelo menos estaria no
paraíso – isto é, por toda a eternidade. Isso era o que as cartas que costumava
consultar lhe diziam repetidamente. Mesmo em algumas de suas vidas anteriores,
quando ela era uma sacerdotisa Viking, as runas haviam lhe mostrado que este
era seu destino inelutável. Não em vão em um de seus poemas, na verdade um
oráculo, ela escreveu:
– Quem esteve
no Oeste,
desembarcou e lutou
nas cidades.
Sabia todos
os pontos fortes da viagem.
E se Cibele, uma navegante de
milhares de existências, sempre carregava consigo um escudo e uma espada,
símbolo de sua bravura e coragem, quando dormia suas defesas desapareciam.
Lavínia sabia, por isso esperava por ela na cama e a perseguia em seus sonhos.
Assim, o despertar da Cibele foi um pouco menos ousado e, portanto, mais
frágil.
XXII.
Sempre ao acordar ao lado de um vazio que havia sido
preenchido em sonhos por sua amada, Cibele questionava a razão de ser da
vigília. Lembrava quando esteve diante do mistério de Cronos sentado em uma
cadeira entregue aos abraços de cipós insubornáveis. Ela também poderia, assim
como Cronos abdicou do tempo, resignar-se a viver entregue a uma instância
onírica. O que nele poderia identificar como uma espécie de Cronos ex Machina, em seu caso seria a
sua completa ausência do mundo.
Certa manhã, no entanto, algo
estranho se passou. Embora o lugar de Lavínia na cama estivesse vazio, Cibele
podia ouvir a sua voz ali tão próxima de si como se estivessem abraçadas.
Aquela voz sussurrada com que Lavínia lhe dizia tantas coisas. Uma voz que aos
poucos ia se desdobrando em duas e uma outra e outra mais, e que pareciam falar
entre elas:
– As noites em que te espero são as que mais aguçam a minha pele e me
trazem um arrepio cortante.
– Algumas chegam a ser dilacerantes, porque anunciam algo que não se
cumpre.
– Mas estás aqui…
– Na verdade, este é um mistério que não se explica.
– Verbos sorrateiros caminham pelo meu corpo.
– Toca-me.
– Quando te aproximas é quase como se já estivesses indo embora.
– Não vês que te espero…
As vozes denunciavam o curioso
mecanismo de uma espiral. Cibele sabia que era Lavínia, mas quantas? O futuro
não podia ser corrigido, e se repetia como uma incongruência, uma escala de
conflitos, uma abstração precipitada sobre o mundo físico.
– Eu já estive aqui tantas vezes, e em nenhuma delas te alcanço além da
memória.
– Não entendo como podemos nos lembrar do que jamais ocorreu.
– As evidências oníricas dissipam nosso tato.
– Ali estás, vejo agora, ou será apenas uma de tantas… Parece que vens
ao meu alcance, mas já não estás, agora és outra.
– Risco as paredes em desespero, porém as paredes riscadas não voltam
com a tua imagem seguinte.
– O cenário é quase sempre o mesmo, mas nunca te repetes.
– Toca-me.
Cibele já não busca as causas
daquela linguagem contraditória. Sequer a considera mais um despropósito.
Levanta-se da cama decidida a esquecer Lavínia. Veste-se e sai para caminhar. O
mundo lá fora decide mudar de tática.
XXIII.
– Não entendo como
podemos lembrar o que nunca aconteceu.
Cibele repetia essa frase
indefinidamente, tornou-se uma espécie de mantra, um refrão pegajoso – e
conforme ela o repetia, sua memória ficava cada vez mais turva, enquanto o
rosto de Lavínia ficava inexoravelmente perdido nas sombras escuras do
esquecimento. Ao mesmo tempo, a voz de Teseu cavou um túnel para alcançar seus
ouvidos e assim abrir um caminho para penetrar em sua memória.
– A memória é frágil, ela nos aprisiona, brinca conosco, nos faz cair,
às vezes nos joga no vazio – é por isso que geralmente esquecemos – assim
vivemos mais serenos.
Essa foi a primeira frase que
ouviu de uma voz distante, como do além-túmulo, e então, aos poucos, foi
ficando mais clara, mais próxima – e com isso o rosto de Teseu estava tomando
forma em seus olhos – o cheiro do corpo invadiu seus sentidos, a ausência de
suas carícias era uma espécie de tortura insuportável. O caminho que fizera
naquela manhã para esquecer alguém que não tinha mais nome fora revelado como
uma ponte para recuperar a memória – e talvez encontrar a pessoa amada com quem
em um passado muito remoto se regozijou no fundo do mar.
XXIV.
Teseo-Alfredo, em um de seus muitos jogos de cartas em casas
noturnas, mais uma vez foi capaz de recuperar a sombra perdida diante de um de
seus inúmeros adversários.
– Os deuses são pagãos – costumava dizer, com olhar irônico, como
se quisesse desconcentrar os jogadores. – A
simples ideia de renascimento entre as cartas é um blefe que contamina toda a
mesa.
Teseu sabia que era um erro falar
de assuntos pouco mundanos enquanto jogava, porém estava decidido a oferecer a
todos a mais abstrata das inquietudes:
– O que fazemos com a memória quando a esvaziamos? É possível que ela
chegue a um ponto em que não recorde sequer a si mesma? E que influência tão
decisiva terá sobre ela o desejo?
A sala de jogos se convertia em
um afresco mal pintado, uma plena dissociação de imagens, com um pano de fundo
que esmaecia a ponto de tornar-se irreconhecível.
A efígie daquelas almas entregues
aos caprichos do azar fertilizava toda forma de decadência social que
mergulhava o mundo em um conjuro, uma catástrofe inevitável, um museu de cera
com suas figuras infiéis, os flácidos perfis daqueles eternos perdedores.
Teseu descartava seus rancores,
há muito buscara superar os agouros e invejas que tão obstinadamente enevoaram
sua natureza. Ou talvez fosse essa natureza uma mácula defensiva que não lhe
permitia ver que dentro de si havia mais um duende do que um deus. Era mais um
errante dado às travessuras do que o guardião heroico das ambiguidades humanas.
Em seu íntimo Alfredo ganhava
forças e na mesa de jogatina, com a mão esquerda reordenava as cartas,
desfazendo-se de toda arrogância, recuperando as dobras do humor.
– As lâmpadas giram em torno da escuridão, com a inconfundível decisão
de plantar um punhado de sombras. Serão nossas essas sombras ou apenas a ilusão
de que em nós algo se duplica?
Alfredo não poderia ter escolhido
outro momento para despir as precárias certezas da existência. Talvez assim
pudesse retornar à infância, quando ainda acreditava na magia do paradoxo. As
civilizações regurgitavam suas primeiras ruínas – fábricas, igrejas,
penitenciárias, quartéis e manicômios – o mundo parecia entregue aos desígnios
de um mesmo arquiteto. Por mais que se espalhassem pela terra os mascates das
novidades, onde quer que acordássemos éramos tomados pela mesma conveniência
assustadora: o credo. O patrão, o pároco, o delegado, o general, o psiquiatra –
triunfantes nos impunham a despedida de nós mesmos.
Alfredo crescera em meio a esse
tumulto de detritos humanos. O desespero era sua filarmônica espiritual.
Temendo ser devorado pelo niilismo, deixou que Teseu lhe habitasse a alma e o
conduzisse a outro inferno, a saga heroica da resistência, a sabedoria racional
das controvérsias, a enlouquecedora revelação do orgulho.
Enquanto Teseu saiu pelo mundo a
derrotar inimigos onde houvessem ou não, Alfredo, encurvado no interior daquele
corpo do herói invencível, repetia os esgares de sua demência voluntária, a voz
cuspida de uma indiferença profética: –
Sabem os sábios o sabor da sabedoria? Tão solene quanto alucinado, patético
como um espantalho invisível.
XXV.
Teseu e Alfredo ocupavam o mesmo corpo e tinham a mesma
sombra, fosse porque Alfredo a perdeu em covis miseráveis, ou a trocou por uma
garrafa de cachaça, ou a assassinou pois ela o incomodava demais – no entanto,
eles usavam duas máscaras completamente diferentes. Teseu, navegador milenar,
soldado disposto a enfrentar a guerra, era conhecido como herói, uma espécie de
divindade a quem inúmeras pessoas ainda veneravam cegamente. Alfredo, por outro
lado, tropeçava a cada passo que dava, caía de cara no chão, ora se levantava e
ora ficava indefeso, afundando na lama e nas próprias fezes. Ele era um
condenado entre os condenados, um renegado entre os renegados, um pária entre
os rejeitados – e isto lhe atraía. Costumava dizer que se uma parte sua, Teseu,
era um semideus, ele, Alfredo, era o deus dos ímpios, o deus do inferno, o deus
das cavernas. Não foi em vão que repetiu sem parar que aquela barriga úmida,
escura e quente dera à luz a espécie humana. Por isso olhava com ar de
condescendência para Teseu, que o considerava seu irmão mais novo, que deve ser
protegido e que é punido de vez em quando apenas para mostrar quem manda. Na
realidade, entre Teseu e Alfredo a luta era pelo poder – um poder fútil,
absurdo e geralmente mortal.
Porém, havia algo que os unia
muito mais do que o corpo e a sombra: Cibele. Ambos sabiam disso. Eles
contestaram como leões feridos em um circo romano. Então o bode que luta pela
fêmea surgiria neles. Eles sabiam muito bem que o perdedor tinha que se
afastar, fugir, trilhar o caminho do exílio com o rabo entre as pernas. Embora
na realidade a escolhida tenha sido ela, Cibele. Em suas mãos e em seus olhos
estava o verdadeiro poder. Era seu sistema olfativo que decidia quem deveria
sair e quem deveria ficar – se o bravo Teseu ou o espantalho alucinado e
patético de Alfredo.
Por uma razão se chama Cibele,
Atis, Damia, nomes que a acompanham desde os primórdios dos tempos – quando ela
ainda vivia dentro das cavernas – ali onde os abismos deixam de ser verticais
para se tornarem labirintos que aguardam um novo Teseu que sairá vitorioso
graças ao fio que alguma Ariadne põe no seu caminho ou novos Alfredos que
rastejam como a Hidra de Lérnia, a cobra com várias cabeças. Ambos lamberiam
seus seios e, ao fazê-lo, perderiam a vontade e a memória.
XXVI.
Os deuses serão tantos que um dia o homem não poderá mais
nada fazer contra eles. As pestes serão tantas que um dia nenhum homem
conseguirá evitá-las. Os perigos e os pecados foram de tal modo se perdendo em
meio a uma desbotada vegetação moral que as religiões se tornaram nossa maior
inimiga. Somos quase dez bilhões de egos entulhando o planeta de cultos e
humilhações. As fezes triunfantes da onipresença humana. As máquinas de
supressão das diferenças desaguaram nos rios a variedade tóxica de sua química
absurda. O capítulo das presunções famélicas desalojou do planeta toda a sua
fortuna vegetal. A incompreensível relatividade do acaso. Todo o esforço humano
tomou um curso único: a síntese de uma anomalia que agora ninguém consegue
conter.
Primeiramente pensei em matar
Narciso. Porém as suas torpezas já haviam contaminado a existência. Recortei em
mil fragmentos as falsas virtudes que foram se convertendo no idioma natural
das catástrofes. O sonho decadente da manipulação anímica. As degradações
cismáticas que definiram toda uma cartografia de guetos. O semitismo patológico
atestado como um novo tratado de implosão demográfica. Todo este repertório me
levou a desistir da ideia de matar Narciso. O que fazer então? Apenas aguardar
que os assassinos migrassem de uma colônia para outra e que uma nova safra de
androides melancólicos substituísse no palco os atores de todo o teatro do
mundo? O tempo, o tempo era a grande impossibilidade de justiça, o templo
sinistro de todas as surpresas, a insuperável enfermaria dos desejos. Era
preciso acabar com o tempo e as sombras icônicas de suas tempestades. Tornar o
mundo absolutamente variável.
Não digo com isto que eu tenha me
iludido ao ponto de achar que a ausência de tempo seria o melhor adubo para o
renascimento da espécie humana. Já não havia mais como alimentar dez bilhões de
habitantes. Os espíritos definhavam repetindo as mesmas teorias salvacionistas.
O conceito de propriedade, seja ela orgânica, ideológica, imaginária, tornou o
homem prisioneiro de um sacrifício que não podia compreender. Um ardil
virulento em que a eventual compreensão conduzia a outras salas sacrificiais.
Em meio a esse horror eu me vi levado por uns guardas, acusado de um crime que
desconheço. Trancafiado em uma cela, ali me encontrei com um tipo
esquizofrênico que havia matado a própria sombra. Fiat lux! Era preciso acabar com os privilégios do tempo.
XXVII.
Se um pobre mortal foi capaz de assassinar a própria sombra,
eu, Cronos, o Deus do Tempo, aquele que estava antes do Caos e muito antes de
Zeus – e, portanto, antes do deus crucificado, aquele que era o protagonista do
único deicídio da história dos deuses –, como não poderia matar o tempo?
Por isso, assim que saí da
prisão, onde dividia cela com o sombricida, refugiei-me na casa da falésia – eu
sabia que havia sido abandonada há décadas, talvez séculos – e que a selva, de
certa forma, a preservou de seu desaparecimento. E embora sua deterioração
fosse mais do que evidente, acomodei-me na mansarda e me sentei na cadeira
bamba para nunca mais me levantar – eu estava ciente de que, ao fazer isso, a
hera rapidamente me tornaria sua presa favorita. De certa forma, era o que eles
sempre esperaram. Eles são divindades da floresta. Os antigos tupis-guaranis os
adoravam e eles os respeitavam.
Enquanto os cipós invadiam o
local do meu auto-cativeiro, meus cabelos, numa espécie de mimetismo, começaram
a subir pelas paredes aderindo a eles. De certa forma, eles também se tornaram
meus cérberos. As unhas, não sendo capazes de rasgar o tempo, cresceram
desmedidamente – logo não mais podiam dar corda nos relógios ou ajustá-los na
hora certa. O tempo em Nova York imitou o de Pequim e o de Buenos Aires o de
Moscou. Eu não matei o tempo – eu apenas o fiz cair em delírio. Então, em uma
noite apocalíptica, o céu estremeceu com uma chuva de pássaros que anunciou o
encontro da peste bubônica com outra tão voraz como ela – não veio de ratos
comuns, mas de ratas-calvas-voadoras – não foi um renascimento, mas a
continuidade do fim. O tempo caiu em senescência e o Caos reinou novamente.
Minhas rugas não eram mais fossos, mas abismos que engoliram o poder que sempre
tive – e a foice passou para as mãos do novo Senhor e Mestre. No entanto, isso
não me afetou, nem a mim nem aos meus cérberos, apenas aos mortais que nos
adoram.
Eu não venci o Caos – mesmo assim
não me sinto derrotado.
XXVIII.
As noites gélidas de 2073 esculpem sombras trêmulas em um
bosque de árvores mortas, fantasmas que há muito perseguem Alfredo, espectros
atormentados da memória, mutações de Teseu que ele herdou após o grande esforço
que resultou no extermínio do herói.
O corpo escamoso da paisagem
conservava aspectos da animalidade de seu antigo duplo, cercos erguidos à
espreita do inimigo. Teseu era uma máquina de guerra e Alfredo agora combatia
um novo sentimento, o de um assassino arrependido, vegetando pela pradaria como
um canibal angustiado. Suas almas alertam para o perigo dessas dores
fossilizadas e os venenos da antropofagia. Alfredo era um velho que deambulava
por aldeias à beira da extinção, sobreviventes famintos mascando os restos da
vegetação, assando ratos magérrimos em fogueiras, ruínas amontoadas por toda
parte.
Em meio às ossadas de grandes
mamíferos Alfredo descobrira uma passagem subterrânea, e mais à frente uma
gruta cujo reboco de suas paredes era um entrançado de cipós de variadas
espessuras. Logo teve que se acostumar à escuridão plena, pois se acaso
acendesse algum archote acabaria queimando todo o minguado oxigênio. Alfredo
fez daquela caverna a sua nova morada.
XXIX.
Em 2173, hordas de famintos vagaram pelos campos abandonados
por décadas – a terra estéril continha dentro de si um veneno pior do que
cicuta. Esses bandos de duas pernas ignoraram nomes comuns menos de dois
séculos antes. Arroz, milho ou batata não faziam parte de seu vocabulário ou
memória olfativa. O céu estava sulcado por pássaros carniceiros que esperavam o
menor descuido da turba para cair sobre uma criança que estava ao seu alcance.
Os únicos animais terrestres eram ratos, baratas e répteis. As fontes de água
não abrigavam peixes, em vez disso, fervilhavam as enguias gigantescas. A onda
de calor oscilou em temperaturas entre 65ºc e 80ºc – uma eterna onda de calor
que em um passado distante queimou as poucas árvores que ainda precisassem de
sombra. A antropofagia era a única chance de encontrar proteína animal. É por
isso que as guerras entre clãs de não mais de vinte ou trinta indivíduos
abundaram. As velhas cidades, transformadas em ruínas, escondiam dezenas de
machados – as hordas furiosas e famintas sabiam disso muito bem. A guerra é uma
memória que não desaparece.
XXX.
Alfredo habitava agora uma anomalia que de muitos modos o
satisfazia. Sua vida se transformara em uma cuia mágica de fatos de memória,
porém a inexistência de tempo lhe permitia ir e vir por situações vividas ou
por viver. Uma alegoria de evidências que o núcleo suspenso da consciência não
ousava rejeitar seus sinais, suas chagas, o colosso de suas imprevisões. Os
fantasmas de Alfredo atuavam como médiuns prodigiosos que não buscavam a
solução de quaisquer cenários, mas sim o empirismo daquelas vidas inumeráveis
que despejavam em seus olhos.
Em uma dessas fábulas milagrosas
o reboco de uma das paredes se assemelhava com uma pintura, um desses tableaux vivants que reproduzia o
hospício onde conhecera Lavínia, cujo retrato agônico de seus dias estava
sempre a repetir, incansavelmente: – Eu
não tenho tempo, eu não tenho tempo. Um portal de hesitações infindáveis e
perdas de sentido. Lavínia teatralizava sua vida como uma obra-prima. Saltava
de um ponto a outro de seu palco imaginário em meio a múltiplas confissões e
conjuros. Parecia respirar um ar repleto de astúcias e contaminava todos os
presentes – pacientes, médicos, enfermeiras – com a fraude de suas figurações,
o bailado farsesco de sua histeria.
O corpo de Lavínia
verdadeiramente se transfigurava, em um paradoxo escultórico incessante. A cada
enunciado de suas cópias, uma tensão distinta se impregnava em todo o ambiente
e ela conseguia nos convencer a representar os mais abjetos papéis.
Ao final de uma dessas
transmissões ascéticas, extenuada, no leito improvisado em seu camarim
imaginário, Lavínia confessou a Alfredo que sentia a presença de um deus em seu
íntimo que a buscava como a última oportunidade de interpretação do mundo. Foi
quando este compreendeu que ela deslocava o núcleo de seus êxtases, raptando os
sentidos, mesclando a volúpia das formas que assumia. Sentada na cama, com as
pernas quase cruzadas, ela o olhava em uma atitude beatificada, com um sorriso
que era a mais pura zombaria, e lhe dizia:
– Eu sou uma mulher embriagada por deus, uma deusa alterada. O meu amor
por ele é recíproco e quando eu ponho palavras em sua boca eu o faço meu até o
último orgasmo dissimulado.
Impossível prever as
consequências daquela tão convicta instabilidade cênica. A pose psíquica de um
duplo que Lavínia abrigara em seu íntimo. Uma euforia que anunciava seus óbitos
nas imagens retorcidas com que encerrava a participação de cada personagem
naquela alegoria assustadora.
Ela levantou-se da cama. Queria
dançar para Alfredo. Começou a ondular seu corpo em um bailado sombrio e
minimalista que beirava a catalepsia. Talvez aqueles espasmos quase
inexistentes fossem a sua memória de um androide estropiado. Alfredo tentou lhe
tocar, porém, de súbito, o olhar de Lavínia apoderou-se de fulminantes adagas,
e ele recuou. Por instantes a empatia entre ambos estava desarrumada. Um
segundo a mais e aquela mulher alterada começou a cacarejar, com os braços
erguidos como se entoasse uma prece, os olhos embaralhados como se
presenciassem mil movimentos diante de si. Médico e enfermeira dela se
aproximaram e lhe deram uma injeção.
Alfredo agora contemplava, em sua
nova morada subterrânea, aquele quadro vivo em que observava o corpo de Lavínia
em seu leito hospitalar. Décadas separavam um olhar do outro, porém aquele lhe
parecia o retrato de uma vida dupla, as confidências do inconsciente, o
redirecionamento de seus delírios. Naquele anfiteatro ele fatalmente
desvendaria os humores da esfinge e a gravidade de um planeta devastado.
XXXI.
A gruta forrada de juncos representava para Alfredo um
enorme útero do qual não queria nem podia sair. Ele não sabia muito bem se
aquele refúgio era o de sua mãe ou da mulher que ele amou e que agora vegetava
em um antigo asilo. Ele saiu tão pouco que finalmente ninguém pensou nele novamente
– nem mesmo Cibele. A escuridão eterna roubou-lhe a sombra, por isso sequer se
lembrava das disputas que uma vez os aproximaram ou afastaram. Sua vida como
rufião de esquina, vigarista de oito centavos ou jogador de cassinos
decadentes, foi enterrada sob estratos e estratos de movimentos geológicos. Sua
própria existência foi um terremoto contínuo, em que as camadas tectônicas
destruíram dez, vinte, mil vezes a memória que o impedia de entrar no labirinto
de Teseu. E agora, no fundo da caverna, não precisava mais fazer nenhum
esforço. O labirinto veio até ele, instalado em suas costas – enquanto Teseu,
escondido em algum de seus cantos, o chamou em silêncio. Ele esperava por ele
com a paciência de um gato e sem nenhuma armadura. Teseu e Alfredo aprenderam a
viver juntos no mesmo espaço – mesmo que eles nunca estivessem se encarando.
XXXII.
– É possível que o ano
agora seja 2097, mas quem determinaria essas datas? E que importância elas
poderiam ter? Enquanto Alfredo faz a si mesmo essas indagações, os seus
olhos, já melhor acostumados à escuridão da caverna, finalmente começam a
distinguir, no cipoal entrançado de uma das paredes, uma silhueta que aos
poucos identifica como sendo Cronos. Quanto mais as enredadeiras se contorcem,
mais nítidos aparecem os contornos da figura daquele velho, com barbas e
cabelos desgrenhados, no regozijo de uma inércia que ilude toda a mecânica
racional. Não há dúvidas de que se trata de Cronos.
O acaso engordava as pequenas
catástrofes forjadas pela memória. As ampulhetas revelavam a contragosto o
fundo falso de seus absurdos. Como contrabalançar os opostos quando cada um
deles esconde alguns de seus caprichos? Juntamente com os traços corpóreos de
Cronos o que a intuição de Alfredo lhe revelava é que a obsessão pelo tempo era
uma doença ainda mais extorsiva do que a vontade de poder. A grande tragédia do
homem é que ele não consegue esquecer os fantasmas de suas heresias mais
misteriosas. As vitrines insinuantes dos malefícios. As cartilhas baratas do
tédio. A obra de arte eternamente falsificada que mantinha seu preço elevado no
mercado negro.
Alfredo limpava as vidraças de
seus vislumbres. Rasgava o vazio em busca do que acreditava ser o exemplar
único de sua própria agonia. As páginas envelhecidas da indefinida duração de
seus tormentos. Ele continha em si toda a miséria da raça humana. Mesmo que
tivesse abdicado do repulsivo heroísmo que fez dele um monstro, ainda assim os
resíduos de sua natureza comerciavam as relíquias de suas lamentações. Ao
rejeitar Teseu, tudo nele se reduzia a uma metade perfurada e carcomida.
Alfredo não passava de uma maldição cuja fatura não tinha a quem cobrar.
Chorava tão desesperadamente cada
vez que olhava para a indiferença de Cronos e via nela a civilização
carbonizada entregue ao parlamento de sua aniquilação. Não havia mais Lavínia
ou a suntuosidade sombria daquela casa de delírios. Tampouco a obsessão
original do tempo lhe servia de amparo. Nada restara das esmolas desleixadas da
razão ou dos pergaminhos viciados em aforismas redentores. Aquela caverna não
era mais parte do mundo. Lá fora certamente não sobrara uma só alma viva.
Alfredo gritava o nome de Cibele, porém sua voz o surpreendia como a de um
imbecil arruinado. A escuridão era um último sortilégio, porém seus enormes
olhos não refletiam mais a abnegação dos deuses. A própria animalidade seria
esquecida. E nem mesmo Cibele o faria despertar de seu sonho irrecuperável.
XXXIII.
Alfredo inelutavelmente entrou em uma letargia sem fim – de
certa forma, uma gruta ainda mais profunda do que aquela que abrigava seu corpo
dilacerado pela deterioração do tempo e da vida abjeta que outrora levava e que
agora só aparecia diante de seus olhos em forma de pesadelo, de condenação. Não
porque alguém o tivesse jogado no inferno, mas porque ele mesmo encontrou, no
ato de se flagelar, uma espécie de láudano – talvez porque tenha se lembrado
das drogas que usou em uma de suas vidas longínquas e esquecidas. O
arrependimento, como se sabe, raramente é verdadeiro. E, claro, isso não o
incomodou. Talvez essa seja a causa de sua longevidade, sua incapacidade de
morrer e a maestria que teve centenas de vezes para se reinventar em um corpo
jovem e incorrupto. Ele não precisava de pinturas ou espelhos para se repetir
em uma juventude infinita. Porém, o refúgio úmido, quente e silencioso que
agora o acolheu o lançou em uma senescência sem volta. Seu corpo perdeu o
antigo vigor, suas bochechas grudaram nos ossos e sua memória vagou por
labirintos desconhecidos até mesmo para Teseu. Aos poucos, ele se curvou,
voltou à posição fetal e finalmente tornou-se uma pequena bola. As aranhas
fizeram dele o centro de suas teias – uma espécie de mapa do cosmos que elas
próprias inventavam a cada instante daquela noite eterna que era o tempo da
caverna que as abrigava. Alfredo não fez nada para impedir – pouco importava
para ele se vivia em uma cela feita de fios ou se era mais um pesadelo dos
tantos que o perseguiam desde o início dos tempos.
XXXIV.
O big bang se dissipara e Cibele voltara a indagar como é
possível esquecer o que jamais aconteceu. Na banheira com Lavínia ou tratando
de inventar a maçã com Alfredo ou atônita diante da alucinação do tempo, Cibele
queria retornar a cenários equidistantes. Porém como fazê-lo sem a certeza de
tê-los vivido? As imagens espectrais se
reproduzem à sua frente com seus abismos sedutores. Uma iniciação respiratória
de silêncios e vacuidades. As divindades iam surgindo a cada sílaba pronunciada
em seu íntimo. Cibele buscava as vertigens do solipsismo. Queria amar Cronos e Lavínia e Alfredo como
uma forma de dissolução de toda moral, uma espécie de mística licenciosa. Seu
corpo queria reter em si o barqueiro e o rio, a espada e a lei, o cadáver e a
lágrima. Extenuação dos símbolos até que o paradoxo rasgasse os véus do
inconsciente e ela se transformasse na cortesã dos abrigos preciosos da
existência.
As visões de Cibele eram marcadas
por uma especulação seminal – mais do que a dualidade ou a alquimia sexual, o
que ela buscava era a chave das metamorfoses, as passagens secretas de uma cura
a outra, sugestivas conchas de absorção de metáforas, em meio à crescente
extinção das fontes de vida. Não tinha propriamente a imortalidade como
objetivo, mas queria, em sua peregrinação inesgotável, entregar-se à
ramificação prazerosa dos desejos. As suas máscaras se chamavam Alfredo,
Lavínia, Cronos.
XXXV.
Cibele sabia que a cada máscara seu rosto adotava uma pessoa
diferente. Assumia assim a vida de um personagem de cada vez, sua história,
suas frustrações, ódios, rancores e até mesmo o próprio esquecimento
inevitável. Batalhas, guerras perdidas, e nunca completamente abandonadas,
colocam um escudo em seu peito e uma espada em sua mão. Espada que às vezes
parecia uma catapulta, um arcabuz ou uma bomba atômica. Como se seu destino
fosse destruição ad infinitum –
anti-criação. De certa forma, ela e seu verdadeiro ego – se existir –, somados
aos egos de seus múltiplos companheiros de cama e luxúria, eram a representação
do caos. A metamorfose contínua, e ao mesmo tempo repetitiva, longe de esculpir
a memória, perfurou o esquecimento. Por isso, ela não se lembrava de que
Mnemosine era sua eterna adversária, pois duelou com ela, muito antes de
queimar no fundo do mar na companhia de Teseu. Esse era seu carma, seu destino
trágico – pelo que ela foi repetidamente condenada à tortura tártara. Quando
isso acontecia era dominada por uma sede insaciável – e apesar de estar cercada
por água, essa se afastava toda vez que ela queria tomar um gole. Ou, em seus
sonhos, ela se viu apoiada em uma imensa árvore onde várias frutas estavam
penduradas, e quando ela ergueu as mãos, para acalmar a fome, cada uma
desaparecia antes de ser tocada. O ato repetitivo levou-a inexoravelmente ao
delírio, depois perdeu a consciência e caiu em uma espécie de letargia
centenária da qual era muito difícil voltar a acordar.
XXXVI.
Uma tatuagem circulando o umbigo de Lavínia revelava um dos
enigmas de sua natureza: Nem todas somos
Cibele. Adônis encontrou o corpo gélido, enrijecido e nu, e o levara até
Cibele. Abraçada à amante, na medida em que suas lágrimas lhe banhavam o rosto
foi se revelando um último manuscrito: O
esquecimento não dura para sempre. Aquela sentença trazia de volta os
sonhos da árvore, do casarão e de Alfredo, e Cibele logo concluiu que a ponte
entre eles era uma mesma porta que se repetia, por vezes entreaberta, em outras
lacrada e sem paradeiro de sua chave.
As repetições são um rio
fervilhante de descuidos. Aquele que se repete o faz por não haver encontrado o
significado de sua mensagem. As lágrimas de Cibele também se repetiam, devotas
do carinho de Adônis em seus ombros pesados. Os aforismas do rosto da morta
ecoavam na memória de sua amante. Suas sombras vagavam como criaturas
semelhantes pela expressão necessária de cada sofreguidão. Frases milenares,
algumas com repugnantes ideologias, outras descrentes de qualquer idealismo,
umas invertidas, outras escondidas, imperfeitas e malignas. O rosto de Lavínia
era uma grande obra da relatividade.
Cibele transcreveu dali
incontáveis processos de condenação de inocentes. Uma contaminação de valores
supérfluos. A difamação irreparável das discordâncias. Declínio de deuses e
carrascos. A eloquência putrefata do absurdo. Tais processos procriavam crimes
inexistentes, amaldiçoava a inocência, lacerava os ociosos. Milhares de
mulheres envergonhadas, brutalizadas, seviciadas. Todos os ramos do martírio.
Toda a folhagem sanguinária de uma árvore de flagelos.
Os santos óleos que Adônis
acendeu agora circulam a pira destinada a cremar o corpo de Lavínia. As flores
brancas elípticas e a ramificação de incensos. Cerimônia sem adoração. Apenas
deixar o corpo desfazer-se, a alma levar consigo a carne. Uma despedida do eu
sem intermediários. Lavínia em vida foi uma politeísta litúrgica. Agora nada
mais está a seu alcance.
XXXVII.
Um corvo perfurou o terceiro olho de Cibele, engoliu-o e
deixou uma ferida aberta – uma nuvem de pássaros predadores cruzou o céu – o
céu escureceu e pressagiou uma longa temporada de inverno em que o sol estava
proscrito. Foi quando ela se viu sentada em frente a um cenotáfio. A memória da
mulher que amava em uma de suas outras vidas feriu sua frágil memória. Ela
vestiu uma túnica preta e cobriu o rosto com um véu. Só então disse o nome de
Lavínia três vezes. Era um ritual milenar para que a alma, que já não vivia no
corpo, fosse conduzida ao local onde repousaria até o fim dos tempos.
O delírio e a senilidade, em que
Cibele viveu durante décadas, mergulharam-na em um abismo do qual não havia
volta. O duelo teve a força de um raio – ele a derrubou e um cheiro de carne
queimada invadiu a velha casa onde morara nos últimos anos –, então a casa na
falésia desapareceu atrás da fumaça. Naquele preciso momento, talvez em uma
última tentativa de recuperar Lavínia, ela cruzou o limiar de Hades.
XXXVIII.
As imagens surgiam abaladas pelas próprias descrições. A
casa amargurada por um império de cinzas ainda vagava como uma herança
inclemente. Seus personagens extravagantes agora estão soltos pelas margens
corrosivas do Hades. Três alongadas mulheres cadavéricas, em acentuada
desproporção, protegiam seus fetos incomuns: a primeira sob o manto, sentada em
uma coxia – a segunda balançando a sombra de um pequeno berço – a terceira se
arrastava pela areia com um pequeno vulto sob o corpo. O suplício eletrificado
que essas imagens projetavam no olhar de Cibele abriu a bocarra fantasmagórica
do rio por onde jorraram as mais repugnantes mensagens.
Ossos se desprendiam de corpos
humanos naquela província de assombros, cujos rostos não mereciam ser vistos.
Os semblantes desaparecidos em meio aos assuntos de seu sofrimento. As dores em
leilão, as lágrimas caluniadas, os gritos raspados até o silêncio. Pequenas
criaturas infestaram aquele velório maldito. Macacos, rinocerontes, girafas
tinham seus corpos amputados e da ausência de seus membros extraviados surgiam
hastes metálicas, pedras recortadas imitando carnes purulentas, gazes sob
efeito de um desses tantos feitiços da imortalidade. Não eram os únicos e eram
seguidos à deriva por mulheres com o corpo se metamorfoseando em vagens, tronos
destroçados, círculos incompletos.
O velório de Lavínia crescia como
uma calamidade hermética. Ao longo de passagens embaralhadas, aquele verdadeiro
credo de hereges forjava seus indultos bestiais. Como seguir aquela coleção de
calvários? Onde refugiar-se quando todas as terras foram tomadas e todas as
relíquias foram dissuadidas? Nada vale mais o que lhes garantiu uma expedição
de virtudes. Criaturas dementes, tísicas, banhadas por falsos pretextos. Urnas
acorrentadas aos pés de seus mortos em fuga. Névoa dedicada a mudar a origem de
todas as coisas.
Como Cibele um dia pudera
acreditar naquela fortaleza sobre o nada? Suas nuvens envoltas em véus imitando
as criaturas traficadas pela memória. Livros fuzilados, pontes carcomidas,
riscos adulterados. Uma região de instintos depredados, crianças molestadas,
morais declinadas. Somente agora Cibele percebia a deformidade monstruosa de
sua vida. Quantas farsas concretadas em seu âmago. Vítimas agônicas das terras
que não soube recriar. A ausência do outro agora lhe deixava impotente e
ridícula. Em lágrimas repetia como um açoite que aquele velório não era de
Lavínia. Aquela morte era a sua.
XXXIX.
Cibele confundiu o limiar do Hades com a passagem do rio Estige.
O estado de colapso moral e físico que experimentava ao chegar ao ancoradouro
fez Caronte ter pena dela, por isso não exigiu os três óbolos obrigatórios para
a passagem à outra margem. Em todo caso, Cibele não ouviu nem viu nada. Já no
barco, naquela viagem da qual não há volta, as imagens do inferno se sucederam.
As memórias necessárias ao seu resgate se perderam inexoravelmente no tabuleiro
de onde um dia tentou resgatar seu amado, Teseu-Alfredo, de modo que ficaram
vagando, pulando de uma pintura para outra, para sempre voltar ao centro – lá
onde Cronos estava com seu corvo e sua foice.
Cibele ficou confusa com as
sombras que emergiam das águas. Lutou com elas para não cair em suas
profundezas. Envolta na túnica de Eurídice, tentou evitar as imagens horrendas
que estavam por rasgar a tela fina. Ela apertou a mão da morte e aceitou o
exílio em um túmulo sem nome. A chama que a iluminou por séculos foi extinta e
a árvore da eternidade não existia mais.
XL.
O diário de Adônis foi encontrado em um dos caixotes mofados
no porão de sua sombria residência, em Havana Velha. Dentro dele havia uma
única foto amarelecida que mostrava uma cova aberta na cozinha da casa. A foto
trazia a data de agosto de 2034 e a indicação de uma página do diário, cuja
leitura narrava que o buraco havia sido aberto a pedido de Alfredo, quando este
visitara Adônis para solicitar sua ajuda na extração de Teseu de seu próprio
ser.
– Eu penso que poderíamos removê-lo através de hipnose e confio em teus
dons para tanto.
– Não sei se conseguimos, pois o herói indesejável está impregnado em
tua vida inteira, desde o nascimento.
– Não importa. Eu preciso me livrar desta sombra que certa vez me disse
que seu maior orgulho vinha de seu domínio sobre mim.
– E se não conseguirmos?
– Eu te peço que me enterres naquela cova, cimentando a mim e a essa
criatura desprezível.
Segundo as páginas seguintes do
diário, Adônis amarrou Alfredo a uma cadeira e, hipnotizando-o, usou de todo o
seu poder de sugestão para convencer Teseu a abandonar seu corpo. Sem contar
com sua renúncia, Adônis passou a recorrer ao exorcismo.
– Alfredo sou eu! Se nos desligamos um do outro, nós nos faremos em
pedaços.
– Esta é a vontade de Alfredo, demônio, que desistas dele.
– Nenhum de nós pode sair do outro.
– O homem te ordena, deus delirante, que largues este corpo e vás viver
em outra imaginação.
Ameaças, conjuros, evocações,
tudo fora inútil. O corpo de Alfredo já quase desfalecido mantinha apenas uma
voz duradoura se recusando a vagar fora dali. Adônis então arrastou cadeira e
corpo até a cozinha. Jogado na cova cobriu então com cimento e descansou.
Enquanto o túmulo secava, escreveu no diário o que se passou.
XLI.
O que Adônis não sabia é que os buracos, mesmo que tenham a
aparência de cavernas, são uma armadilha que impede o descanso e que são a
representação do caos e da angústia. Portanto, se Alfredo ansiava pelo
extermínio da própria sombra, só conseguiu aumentar a sufocação que o
acompanhava há séculos. Teseu percorreu o labirinto nas costas e se dedicou a
narrar repetidamente a série de existências nas quais rastejou e emulou a mais
atroz das criaturas que povoam o imaginário do inferno – e então ele recriou
uma espécie de encenação de milhares de sombras que o encurralaram enquanto
gritavam e faziam gestos que imitavam sua existência abjeta. Uma forma de
lembrá-lo da fraude em sua vida. Alfredo entendeu que o passado não pode ser
ignorado – e que, se alguma vez sentiu arrependimento, foi apenas para
retornar, pouco depois, à verdadeira condição da criatura vil que governava
todas as suas ações. A palavra desculpa
nunca fez parte de seu vocabulário – pelo contrário, as imagens dantescas que
povoaram sua memória eram um incentivo para não cair no poço profundo do
esquecimento.
XLII.
Os estertores da agonia humana saltavam de uma época a
outra, crepitantes como uma conturbação sem princípio ou fim. Uma agonia que
enfurecia a causalidade e a ilusão de propriedade. Uma agonia que durasse tanto
quanto a estranha crença em sua extinção. Este era o horripilante credo dos
hereges, que mancha o brilho das associações e faz da moral uma arte em
decomposição. Em um mundo assim, de nada adianta buscar significado para os
extravios e outros truques migratórios. O homem está sempre a subestimar o
romance de seus ideais. Suas reflexões descontrolam a máquina de equilíbrios
construída justamente para insuflar a aparência polifônica dos extermínios. Sob
o domínio de tais máquinas, nada pode durar. E os sonhos destinados à imitação
de uma memória doutrinária devem apodrecer nos lamaçais da solidão. Nenhum
homem deve acreditar em outro. As digressões são enforcadas ao crepúsculo, para
que tenham toda a noite dedicada ao esquecimento. O homem se torna a
perspectiva da perda do labirinto em seu âmago. Um dia os deuses não estarão
mais aqui para apagar os esboços.
XLIII.
O homem, em uma espécie de naufrágio, esqueceu-se de
conjurar o tempo e a história – ele então quis procurar por si mesmo nos
espelhos quebrados em milhões de micropartículas. Foi nesse instante que perdeu
o esboço de si mesmo. O homem parou diante da roda da fortuna e viu sua sombra
repetida até o infinito – sua cabeça era a de um lobo e uma píton inerte
pendurada em sua mão direita. Símbolo de fracasso. A máquina infernal, que
girava a roda, puxava seus membros, só se ouvia o uivo da besta.
O olho do ciclope iluminou o
horizonte – a paisagem estava revestida de brasas fumegantes. Enquanto isso, os
pássaros carniceiros rasgaram o ar envenenado e jogaram toneladas de detritos
nos oceanos.
Caronte abandonou o barco – já
não havia passageiros que lhe pedissem para atravessar o rio – e mergulhou nas
águas que lavrava desde o início dos tempos.
XLIV.
As datas foram extraídas de todas as sentenças. Os exílios
eram recíprocos não importava o ângulo para onde davam as portas. Cata-ventos
sopravam para dentro, para o abismo de suas direções equívocas. A velha caneca
de latão abrigava poções que destruíram as vegetações. Os moinhos regurgitados
pela boca dos gigantes convulsivos. Não havia beleza em nada que era manifesto.
Como vestir os monstros segurados pelo acaso? Os poços de água benta foram
punidos com a semente negra do holocausto. Um diabinho manco cuspia fogo no
tornozelo dos gigantes. Deuses corrompidos se embriagavam de propósito,
decaídos nas páginas rasgadas do evangelho. Com elas a taberneira mantinha
aceso o fogo onde esquentava a sopa com que alimentava a todos. Malvados,
corruptos, degenerados – dissimulados, putos, traficantes. Todos os dias uma
mesma escrita, transmitida como um simulacro da anterior, decretava o fim da
espécie. O comércio das almas consistia em trocar capões empalhados por fadas
envelhecidas. Cronos determinou que todas as datas fossem recolhidas. Levou
algum tempo até que homens e diabos aprendessem a saltar de um vazio para
outro. A realidade se desfigurava como um buraco de minhoca ou o fundo falso do
baú do ilusionista que há dois milênios se contentara com ser deus. O intuito
cifrado de Cronos tardou ainda mais para funcionar porque no mercado negro
alcançaram preços atrozes ampulhetas e relógios digitais. O herético Cronos que
agora tínhamos diante de nós rasgou os parágrafos das extravagâncias humanas e
fez com que todos se sentissem igualmente perdidos.
– Ouço como as virtudes tropeçam ao fugir. Afasto delas as momices e os
discursos políticos. As mais atrevidas jamais chegarão ao final dessa história.
Mesmo aquelas que guardam no bolso um resumo dos milagres exigidos pela fé. As
mais vis perscrutam os motivos de cada oração. Todos querem mais tempo, porém
caem os dentes e nada aprendem. Todos querem ser bons e só veem maldade nos
outros. Tempo para crucificações, desmembramentos, sedições. Tempo para
remissões, torturas, prevaricações. Para os privilégios do inferno e as guerras
púnicas. Para a divisão do átomo e a multiplicação dos pães. Todos querem tempo
e batem à minha porta para me roubar ou subornar. Uns poucos me apontam seu
olhar de basilisco, rastejantes criaturas que sonham com a minha morte – muitos
contratam meu assassinato. Todos estes também precisam de tempo. Os mitos congelarão
em seu jardim secreto e os mensageiros voltarão sempre sem resposta. Em nenhum
lugar me encontrarão. Farei com que se percam celebrando a hipocrisia.
Simplesmente não haverá mais tempo para todos esses parasitas. Farei com que o
tempo esteja sempre em outro lugar.
Os dias deixaram de ser dias. As
esperas convalescem descrentes. As lembranças foram prescritas. O homem se
arrasta como um animal fantástico a quem não pode mais alimentar. Ouçam o
alarido devastado do terror, o caos saqueado em pleno estupor, a catástrofe
redentora de um mundo que engoliu a si mesmo.
– Aos diabos com o tempo.
∞
BERTA LUCÍA ESTRADA (Colômbia, 1955). Poeta, dramaturga, crítica literária e de arte, autora do blog El Hilo de Ariadna do jornal El Espectador (Colômbia). Membro do PEN Internacional/Colômbia. Ela é uma livre-pensadora, feminista, ateia e defensora da alteridade. Publicou treze livros, entre eles La route du miroir (poesía, 2012), Náufraga Perpetua (ensaio poético, 2012), Trilogía de la agonía (comprende las siguientes obras: El museo del Visionario, Naufragios del Tiempo y Las sombras suspensas –escritas a quatro mãos com Floriano Martins, 2021).
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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