Quanto mais se observa uma realidade
com atenção e obstinação, mais se compreende que ela não corresponde à ideia
que todo mundo faz a seu respeito.
MILAN
KUNDERA
1.
Os temas se repetem como um suicídio simulado.
Algumas visitas reclamam haverem sido
abandonadas pelo narrador.
Os sósias prevaricam com a melancolia e a
velha mobília do clube.
A noite se admira em suas galhofas.
Nos vestuários abastecidos com álbuns de
falsas identidades as persianas deixam escapar os personagens indesejáveis.
Os bustos não perdem tempo.
O mofo persevera com uma trágica ideia acerca
do futuro.
A realidade é uma sucessão de notícias sem o
menor atrativo.
Nós nos desgastamos no súbito monopólio da
repetição.
Inesperadamente solicito uma gorjeta.
⎼
Com o passar do tempo já não somos os mesmos, me diz um dos sósias como quem exagera nas
rugas da metafísica.
Os temas se desprezam, rejeitam o direito a
perpetuar argumentos, a majestade do discurso e até mesmo a lira supersticiosa
da glória.
A noite por vezes morre de desgosto.
A diretoria do clube decidiu reduzir o ser a
nada.
Os sósias compartem uma cerveja e desistem de
qualquer iniciação.
A realidade é alegórica, não necessita
gorjeta.
Todos temos direito a nos desfazer daquilo que
somos.
A repetição é inevitável.
2.
Deus é um fabricante de espelhos.
Quando este pequeno monstro buscou emprego de
escultor entre nós deveríamos ter percebido que a imagem é tudo menos sincera.
A ciência adoraria dominar o espírito,
porém o mito há muito não cumpre com sua
palavra,
e o homem já não sabe o que fazer com as
lâminas da curiosidade.
Não há mais o que procrastinar.
Sob o ranger das máquinas de deslizamento
retórico,
o século XXI se encontra diante de um péssimo
negócio: a indulgência escorada no servilismo.
Não estou aqui por um pecado a mais.
Deus é um frustrado fabricante de
espelhos.
3.
Há muito tempo cheguei a teus lábios através
de estranhos ritos.
Fagulhas de um passado ancorado na
frondosidade do esquecimento.
Destes voltas em minha vida como uma máquina
criada para iludir.
As tuas visitas sussurrantes aplicadas à pele
de meus inventos
tanto incomodaram que passei a descrer das
fórmulas e aparelhos
empenhados na permanência de nossos
fundamentos e pecados.
Por algum tempo me aperfeiçoei na arte da
subtração dos sentidos.
Não regressaria a mim mesmo sem me convencer
do próprio fracasso.
A visita de duplos e quimeras provam apenas
que nada criamos.
Somos um vespeiro decadente de cismas e
inúteis velocímetros.
Viciada em cálculos banais, a arte se tornou
um berço de fantasmas.
Eu peso os meus dias antecipando a moral de
tantos métodos e fins.
Não guardo recortes de minha alma no bolso ou
trafico armas
como quem confia em espectros para garantir a
existência do milagre.
Apenas observo um velho truque do átomo: o
crime perfeito
não necessita ameaça, apenas se traslada antes
de ser identificado.
4.
Como surgiu o acaso? Escândalo bem articulado
ou condenação de alguém a fazer fortuna encarnando o inesperado? Ofensa à
quietude ou uma mera arte de soletrar impulsos?
O guardião celebra seus segredos como quem
suprimiu a morte e a bênção.
O guardião entende que o mundo é bem pequeno,
por mais que tenhamos devotado as nossas vidas à procriação de ruínas.
Apenas a imaginação converte o mármore em
bronze ou dá asas a um transatlântico naufragado nas províncias do erro.
O homem nunca soube como corrigir a carcaça da
realidade, a não ser a falseando de um continente a outro, como um asco
ajustado para a primeira página.
O guardião não tem braços ou pernas. Em seu
íntimo reluta sobre os reais motivos da permanência.
No entanto, guarda a audácia que deve nortear
a existência humana.
Este é seu bem mais secreto e valioso: as
nossas obras não devem servir, mas sim libertar; não devem queimar, mas antes
iluminar; jamais devem transcender, sem que tenham curado toda debilidade
retórica.
O guardião é um enigma, como o papel ou a
linha do horizonte.
Nós somos o fruto de sua mais insuspeita
fragilidade.
5.
Até onde eu represento as tuas ânsias
eu me protejo de minhas frustrações.
Se acaso revelo o que te aborrece
logo trato de educar minhas alegrias.
Evitamos os cenários fixos, o enredo
obscuro e o preenchimento de endereço,
pelo menos em nosso primeiro contrato.
A verdade é a arte mais perfeita,
e o homem só a suporta no palco.
6.
Eu quis trazer para mim tudo o que antes
imitara.
Talvez fazer com que a dor fosse um passo até
a alma acariciada e feliz.
Tantas vezes me desfiz de minhas crenças que a
ofensa tornou-se um sistema irrisório.
É possível que eu ainda estranhe quando me
roubam um nome ou submetem um personagem meu a revelar o que seguramente desconhecem.
A amnésia é o mais triunfante método de
tortura.
Esvazio o continente e o preparo para uma nova
vida de revelações.
Que ninguém estranhe quando digo que aprendi
não propriamente a esquecer, mas sim a variar a cabeceira de minhas lembranças.
Se quero esquecer quem sou tenho que pensar em
alguém que me substitua.
Alguém menos covarde que não inventarie as
dores como forma de escapar de si mesmo.
Alguém que dê curso à febre ou qualquer outra
manobra do desastre até que os sintomas se tornem irrelevantes.
Alguém que escave uma palavra certo de que a
mesma guarde um mistério que ninguém poderia imaginar.
Eu não saberia transcrever o registro de
tantas adivinhações.
O homem aparenta uma insanidade sem a menor
persistência.
Como tutelar a alegoria se ele desconhece o
que pode vir a ser?
Já não me lembro quantas vezes chamei esse
desgraçado para conversar.
Um dia tratei de começar a apagar tudo o que
fiz em minha vida.
Sigo atenuando ou reparando as falhas, ainda
convicto de que posso esquecer quem sou.
7.
Minha sombra frutifica como um fragmento de
espelho.
Meus olhos fechados estocam todo o ouro da
imaginação.
Não há tempo para imprimir a memória de tudo
quanto rabisco em silêncio.
Melhor confessar ao braseiro que as formas
mudam segundo um plano próprio do acaso.
O que torna a eternidade acessível é a trilha
sonora de seus moldes retalhados.
Uma confabulação de esculturas em galpões
flutuantes.
As citações contínuas de hábitos esquecidos
destinados à véspera de um mistério sempre refeito.
O tesouro genuíno dessas obras destina-se à
publicidade de incontáveis quimeras.
O que torna a eternidade verossímil é este seu
semblante de sucata.
A impressão que agenda em nosso espírito de
que as confissões guardam sempre um segredo com o qual garantem a perpetuidade
do crime.
Os vestígios empoeirados do símbolo, a avidez
da tradição por ocupar as primeiras filas do teatro, os rótulos arquivados
minuciosamente até mesmo para os vícios mais inesperados.
A eternidade é o mais aborrecido de todos os
tratados de patologia.
8.
Há 381 anos não durmo.
O tempo é um método sutil de opressão.
Observo que não tenho imitadores.
Ninguém sequer arremeda minhas dúvidas.
Médiuns e telepatas trocam envelopes lacrados
com senhas para seus números mais ousados.
O negócio das senhas falsas gera lucros
fabulosos.
Os fatos já não mais surpreendem quando
coincidem com a realidade.
Reconheci o gordo fantasma inalando rapé após
haver afinado seu violino.
Quando me viu começaram a saltar cifras de sua
algibeira.
A música é um espectro voraz que se alimenta
do que resta de nossa sensibilidade.
A verdade é que ando farto de aforismos e
outros fogos-fátuos.
Há 381 anos vagueio pelas ruas escuras de um
mesmo e monstruoso crime.
Ninguém me socorre do mal que fiz a mim mesmo.
A generosidade tem sido um silogismo ineficaz,
um monumento enfermo, um calendário imóvel.
Venho consumindo mais da metade de minha vida
desperto.
Meus olhos se tornaram uma semelhança do
absurdo.
Qual terapêutica nos livra do carteado moral?
Converto em bronze qualquer centelha de
entendimento que eu tenha de meus fracassos.
Conservo tingida a máscara com que o homem
reconstitui seu afastamento da própria sombra.
Há 381 anos resido no mesmo sulco de
existência.
Jamais indaguei por que o sono me abandonou.
Quem faz protestos contra o acaso?
Há algum tempo me sento no parapeito da janela
da casa do violinista.
A minha insônia se alimenta do rapé da
memória.
9.
Acabo de herdar um galpão de almas vagamente
familiares.
Ao que parece, todas resistiram até a última
carta para revelar sua faceta mais piegas.
A herança veio anotada em minúcias singulares:
a hora certa do banho de cada uma delas, a
predileção por Shostakovich ou Mozart, a exigência de evitar leituras
extravagantes.
Ao fazer o reconhecimento de suas inclinações
e habilidades deduzi que as almas me encantam porque não temem a semelhança.
Trafegam de um empório a outro de seus fardos
sem nenhum desprezo pelo corpo a que estão subjugadas.
A alma é uma página jamais ocorrida ao corpo
em sua simpatia por todas as veleidades de um apego a coisas visíveis.
Tenho uma vida inteira protegida por heranças.
Nenhuma delas até hoje demonstrou estranheza
ao ser destinada a mim.
Tampouco quando alguém me visita, curioso
pelas vértebras do absurdo que mantenho em minha loja, uma única sílaba se
parte em nosso entendimento.
⎼ Tenho
notado que algumas peças descoram a cada vez que retorno.
⎼ O
passado de qualquer um de nós também apaga a expressão de seu rosto na medida
em que nosso espanto muda de ângulo.
Fui anotando suas resignações e repugnâncias.
Imagino que cada uma delas imagine uma vida
nova alheia ao espectro ou ao cadáver.
Elas estão bem aqui.
Limpas, polidas, iluminadas em suas
prateleiras, a bom preço.
As sete alunas que herdei de um irmão de minha
mãe que em vida as perseguia como a projeção disforme de seus erros.
Não sei o quanto as preparei para uma nova
vida.
A realidade não conta senão com cadáveres.
Eu ensinei a elas que a morte não é o único
discurso vazio.
10.
Os vagos reflexos da memória se escondem atrás
de uma parede falsa.
Experiência projetada por um mago decidido a
encontrar uma cura para a culpa.
Ele mesmo tratou de recortar os intervalos
indigestos de sua vida: tumores da sensualidade, fístulas da avareza, ilusões
bem precárias da lucidez.
Não deixou mais do que uns poucos verbos
expostos,
temendo a intrusão de alguns males precoces.
Tudo deveria ser esquecido por um período não
inferior a três anos.
Moléstias como a infidelidade e a mágoa
poderiam apodrecer no confessionário.
Certamente não haveria o que prever em relação
aos sonhos, porém as ambições seriam advertidas de que poderiam ser
interpretadas como distúrbios mentais.
O mago estava convicto de que as avarias do
espírito tinham na memória sua origem.
Cinco anos se passaram até que as escavações
de um túnel deram com uma alucinação projetada em imprevisível parede.
O homem até hoje desconfia do triunfo de sua
impotência sobre todas as coisas.
Mesmo com tantos refletores dispostos
iluminando a cena descoberta
o que vislumbrava não era senão uma ilusão de
ética:
uma vez desossada a memória o que resta é um
acúmulo de vícios inconscientes.
11.
As dores crescem por todos os lábios.
Meu coração celebra os borbotões do
impossível.
Os vislumbres são estrepitosos, o silêncio é
um alvoroço repentino, eu naufrago nas águas tépidas de tua loucura.
Somente a música toca o invisível.
Os móveis se inclinam sobre a tinta espontânea
do horizonte.
A casa é um enigma de manequins alados.
A música encontrou uma maneira de sobreviver
ao regente.
Os demais milagres se declaram sindicalizados.
Meu cadáver espera pelo teu antes que a
esquina favoreça outros pecados.
Eu queria tratar todas as frases com um
espelho, para que compreendessem as forças contrárias que movem a nossa
existência.
Como conjugar o acaso, quando a esperança
viciou todas as fichas?
12.
Eu agora devo sofrer o castigo de cada
lágrima,
como a trapaça de um espelho sem
caráter algum.
Não importa o quanto a honra soletre
teu orgulho,
certamente já havíamos feito mal um ao
outro.
A morte é uma sutileza corroída de
inocência.
Cadáveres que não se permitem jamais
enterrar
promulgam leis tanto vulgares quanto
virulentas,
paciente tradição da mais perpétua
iniquidade.
Eu te convido a visitar a província de
meus erros.
Se nos recortássemos, qual de nós dois
gritaria?
A quem caberia a primeira febre de
indulgência?
A tua orelha esquerda não tem a mesma
cicatriz
que gravei na minha tentando escutar
tua voz.
O meu sorriso desconhece a alegria
perdida
do que imagino dias futuros de teu
passado feliz.
Jamais fomos a parte alguma, nenhum
remorso,
apenas o homem estimando o que pensa
criar.
Ainda pretendes sair daqui correndo
desse jeito?
Não me deixes nunca a uma milha de mim
mesmo.
Eu não saberia atender a tudo quanto
planejei
longe de ti, de mim, buscando nova
intimidade.
13.
Um dia começou a duvidar da própria sombra.
Ao menos nos momentos em que ela se escondia
dele atrás da cristaleira.
Considerava os primeiros sintomas de uma
enfermidade: a imitação.
Olhava fixamente cada novo absurdo cometido.
Sua sombra já não se interessava por excessos,
opostos, a grande verdade dos vislumbres.
Talvez o quisesse submeter a um novo desastre
retórico
ou quem sabe simplesmente perdera a alegria de
viver.
As sombras gostam de ser provocadas,
desafiadas a viajar por ângulos inesperados, estimuladas a embriagar-se nos
camarins da obstinação.
A dele por vezes se esquecia de si agachada
atrás do móvel.
Recordo que quando visitei Wells me disse que
não profetizasse sobre meu reflexo no espelho, a menos que fosse outro quem eu
quisesse encontrar do lado de lá de minha própria ilusão.
Agora o vejo ali interrompido pela ausência
brusca de uma sombra.
⎼ Eu vim
ao mundo para criar.
Tanto aprendi com este homem agora debruçado
sobre a ausência de seu reflexo que não me desengano:
a sombra era a única metafísica que tínhamos
ao nosso alcance.
14.
A tua idade não me serve, os teus caprichos me
dizem pouco.
Não me conforta a tua astúcia, tampouco me
atrai a tua usura.
A tua surdez teme escutar, como um pranto
escalando o vazio.
Não me ofendas como cúmplice de teus antojos,
ruínas, infortúnios.
Jamais me preocupei em morrer ou estive em
tribunal algum.
Não me tenhas como palhaço ou neófito seguidor
de si mesmo.
A loucura é tão repulsiva quanto a caridade:
ante o espelho
o mundo é demasiado comum para ser traído por
seu oposto.
A que velocidade rasteja a inconsciência,
entre escrúpulos
e demais imundícies que satisfazem tão pouco a
alma humana?
Não provamos um a existência do outro, e
certamente não estamos
na mira de um assassino contratado ou de
outros planos de vingança.
Há poucos dias nos encontramos em um cenário
tão desalinhado
que era a própria ausência de truques ou distrações
de camarim.
Não reconhecemos um no outro a mínima sobra de
autenticidade.
15.
O futuro não se deixa turvar tão facilmente
quanto o passado.
Um adora ocultar-se, o outro é uma alegoria do
templo.
São sucedâneos de uma mesma voragem de
distração.
O presente não tolera ficções, despachou para
os dois outros monos
as virtudes da cegueira e da surdez. O
presente apenas silencia
sobre todas as fábulas de necrotério, as
fórmulas ritualísticas,
cancros da fé. O presente é uma
impossibilidade inspirada
em cenas falaciosas. Sabes que estive contigo
suficiente tempo
para que não acredites em mim. Estou indo
embora esta noite.
16.
As horas mortas não se liquefazem ou
petrificam.
O mito deposto não tem aonde retornar.
Os deuses acabam se distraindo com tão pouco,
que as janelas repartem entre elas o
horizonte.
O acaso apenas distribui as cartas.
Ao final do dia pude contar quantas vezes meu
nome foi esquecido.
Um punhado de quedas não torna sagrado livro
algum.
Há muito estamos na lista das grandes razões
falhadas,
e veneramos as chances perdidas como se fossem
a velha gaveta de desastres de um colecionador.
Quantos estamos vivendo em casa? Quantos se
foram?
As noites saem para pescar os galhos azulados
de antigos arvoredos.
As dores não pensam em si mesmas enquanto
doem.
O mundo é uma impropriedade.
Um relato de todas as vezes que nos desfizemos
de nós mesmos.
As vozes furtivas que não encontraram motivo
algum para a permanência.
Dilemas que são feitos de nada e não saem do
lugar por várias eternidades.
As horas batem à porta e esperam convite para
entrar.
Não veio ninguém mais para o jantar e os
demônios se divertem com tudo o que perdemos à nossa volta.
As pedrinhas não cansam de brilhar, com sua
excitação de sabores esvoaçantes.
Nenhum de nós desejou a vida sangrando em
parte alguma.
Ninguém contou os dias. Ou quantos vivemos à
toa.
Tudo aquilo que imagino ser não chega ao fim
em momento algum.
O mundo visível se despede de cada fragmento
de seus suores compartidos,
porém não ficamos mais perto de nada sem que a
noite se complete.
Não me escutem. Há muito que digo a mesma
coisa.
Há muito desisti de entender a lógica de minha
sobrevivência.
17.
As árvores imitam uma cidade sonâmbula.
Há luzes que não descansam ao sair de uma
sombra a outra.
Quanto tempo mais eu insistirei em descrever
um mundo que mal cabe em meu olhar?
As árvores quebram seus galhos para assumir
formas humanas.
Os deuses já não se reconhecem na chuva ou no
vento.
Quantas vezes mais eu direi a mim mesmo que os
extremos um dia se tocam?
As árvores jamais sonharam com o retorno a
algum paraíso perdido.
Meus dias ajustaram seus planos para que a
queda não florescesse tanto.
O olhar murcha quando não fixa bem o que
acredita ver por trás de todo plano.
Eu aceito não saber. Aceito jamais ter estado
aqui. Ou mesmo não ter a quem regressar.
As árvores se habituaram a fingir o que não
teriam como ser.
O tempo ia simplesmente passando enquanto a
realidade perdia contato com suas formas.
Quanto mais cobrarei de mim por tudo o que
confundi em um vislumbre?
As árvores descobrem surpresas o leito em que
as cidades deliram sua insônia.
E o imitam, como se fosse o ninho de uma outra
ilusão de estar no mundo.
As trevas não cabem aqui. Eu não recordo meu
nome. Nem identifico o que vejo.
18.
As esculturas
passam todas por aqui, e logo se repetem.
Como vulcões que
vão se aquietando ou exceções descortinadas.
Estou cercado de
mesas e o espaço por onde vejo o mundo é quase uma miragem.
Multiplicamos os
ninhos para que renasçam as ilusões.
Shajadi um dia me
escreveu, no idioma secreto de seus lábios:
– não dês aos
olhos mais imagens do que eles possam suportar.
Leio agora que os
olhos ocultam lágrimas em vários idiomas.
Todos estão longe
de casa por alguma razão.
Os motivos costumam
ser ágrafos e jamais confessam seus crimes.
Um truque da
solidão é fazer com que os rostos anônimos recordem o de alguém conhecido.
Em lugares assim a
vida se repete como o trailer de um filme inconcluso.
As esculturas
circulam uma vez mais,
sem dar tempo para
que alguém se decida a pensar em si.
19.
Se um de nós desfolhasse a memória do acaso
decerto não alcançaria mais do que ruínas de
silêncio.
De um lado ou de outro de tudo quanto vimos
não se descortina dia algum o motivo de não
termos ali chegado antes.
As decisões mais simples se deixaram despir
pela ansiedade.
Não mate alguém antes de saber a qual deus
confiará sua lembrança.
Os nomes estão debilitando as raízes do que
plantamos.
Evitemos os nomes. As orações devem regar o
inominável.
O abismo deve guardar lugar para aqueles que
jamais regressarão.
Não há conforto na dúvida. Ninguém espera por
si fingindo estar ausente.
O verbo se rompe como uma aldeia descarnada
pela imensidão,
o anúncio de escadas trotando na noite ou o
súbito desapego
com que atingimos as vertigens mais
insuspeitas.
Destripar a consciência dos segredos antes que
eles cresçam.
Todas as causas morrem com seus alfabetos
incompletos.
Os castigos sucedem as crenças, a inocência
masca uma ração diária de pecados.
Passaremos a vida inteira buscando uma razão
para esta conversa.
Cada um de nós, quando afinal descobre do que
é feito,
encontra o celeiro vazio e o horizonte
estendido no varal.
20.
Um jovem mestre em suposições encomenda
pequenas monografias a cada uma das sombras
que frequentam sua cela.
Dá a elas a liberdade de eleger os temas,
porém os dias devem se confundir com páginas
tomadas por diálogos interiores.
É hora de deixar os braços estendidos na
névoa.
Eu criei meus filhos antes que batessem à porta
as bombas caseiras e os vetores invisíveis da angústia.
O infinito levou uma tarde inteira a ser
recortado em postais
que seguiram viagem para os lugares mais
previsíveis.
Que conselhos práticos podemos dar à
indiferença?
Por onde as noites vão decaindo até que não
amanheça jamais?
O que as cartas mais temem é que um dia não
tenhamos mais o que contar a elas.
Não há vertigem quando aposentamos o
essencial.
Escolas de imagens razoáveis são abertas em
cada esquina.
Nelas se prepara o pensamento para expandir-se
apenas o necessário.
As vocações implodem em um labirinto de
imitações banais.
Sinceramente cansamos de dar chance à paz.
Os corpos se contraem no varal, esquecidos de
suas roupas.
Os manifestos são fábulas escritas ao revés.
Os valores foram tão remarcados que perderam
importância em qualquer prateleira que ainda lhes dê guarida.
A mais simples ideia de valer a interpretação
de si mesmo.
O humor mantido durante a coleta diária de
mundos possíveis.
Quantos se livram da própria miséria?
As moedas são valores degenerativos.
Decerto há alguma distinção entre viver e
frequentar casas de aposta.
Um jovem mestre rascunha displicentes modelos
para o espírito humano.
Os espelhos perderam seu aspecto original.
Já não reproduzem senão a plenitude avariada da
memória.
Os meus filhos foram relatando aos sonhos seus
dragões inconscientes.
As escolas subornam desejos, conflitos,
astúcias.
Há personagens que transcrevem a ordem
conveniente de suas falas.
Os livros sagrados bafejam uma névoa de
figurações que nos afastam de nossos sentimentos.
Não recordo quando vim aqui solfejar minha
agonia,
porém há fascículos arquivados em minha aura
que garantem que o tempo é impessoal.
A imagem é uma árvore de lacres. Um cadafalso
na ponta da espada. Uma soberba gerada entre dois corpos.
A imagem jamais compreendeu as emoções.
O homem precisa se livrar da imagem.
Como passar para a fase seguinte quando
deciframos nosso engano?
Rei de ouro, rainha de espadas, quem melhor
desfruta meu coração?
Cada verbo erige conjugação e conjuração de
suas forças.
Eu sou a pedra caída antes que o mundo se
reconcilie com o abismo que foi esquecido em seu bolso.
A vontade é uma figura de retórica.
Não há evasão de milagre na criação ou túnica
tão bem guardada que não se distraia com o retábulo de outras forças
primitivas.
A televisão modera a versão de uma épica
intransigente.
As noites ardem com certa constância e os
assassinatos não dependem disto.
Morrer jamais foi uma solução adequada para
qualquer enigma.
Eu volto a dizer que um dia meus filhos saíram
de casa e não se associaram às pressões da imagem.
A alegria de viver não se converteu em um
postal da autonomia.
Eu não ensinei nada a eles. Não desceram aos
céus ou subiram ao inferno. Jamais aboliram as contradições.
Em casa não julgávamos as repetições ou a
tensão sangrenta do insólito.
A iluminação não é um conforto ou um prêmio.
Um jovem mestre oferece sua propensão à
instabilidade a quem almeje uma consciência coletiva.
Quando o mundo tarifa a verdade o absoluto se
perde de si.
Viver é um tabu, uma vontade, uma evacuação?
Quem nos descreve, limita ou parodia?
Somos enfadonhamente pioneiros em nossa
extraordinária perda da razão de ser.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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