sábado, 22 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Reflexões sobre o inverossímil

 


Quanto mais se observa uma realidade com atenção e obstinação, mais se compreende que ela não corresponde à ideia que todo mundo faz a seu respeito.

MILAN KUNDERA

 

 

1.

 

Os temas se repetem como um suicídio simulado.

Algumas visitas reclamam haverem sido abandonadas pelo narrador.

Os sósias prevaricam com a melancolia e a velha mobília do clube.

A noite se admira em suas galhofas.

Nos vestuários abastecidos com álbuns de falsas identidades as persianas deixam escapar os personagens indesejáveis.

Os bustos não perdem tempo.

O mofo persevera com uma trágica ideia acerca do futuro.

 

A realidade é uma sucessão de notícias sem o menor atrativo.

Nós nos desgastamos no súbito monopólio da repetição.

Inesperadamente solicito uma gorjeta.

  Com o passar do tempo já não somos os mesmos, me diz um dos sósias como quem exagera nas rugas da metafísica.

 

Os temas se desprezam, rejeitam o direito a perpetuar argumentos, a majestade do discurso e até mesmo a lira supersticiosa da glória.

A noite por vezes morre de desgosto.

A diretoria do clube decidiu reduzir o ser a nada.

Os sósias compartem uma cerveja e desistem de qualquer iniciação.

 

A realidade é alegórica, não necessita gorjeta.

Todos temos direito a nos desfazer daquilo que somos.

 

A repetição é inevitável.

 

2.

 

Deus é um fabricante de espelhos.

Quando este pequeno monstro buscou emprego de escultor entre nós deveríamos ter percebido que a imagem é tudo menos sincera.

A ciência adoraria dominar o espírito,

porém o mito há muito não cumpre com sua palavra,

e o homem já não sabe o que fazer com as lâminas da curiosidade.

Não há mais o que procrastinar.

Sob o ranger das máquinas de deslizamento retórico,

o século XXI se encontra diante de um péssimo negócio: a indulgência escorada no servilismo.

Não estou aqui por um pecado a mais.

Deus é um frustrado fabricante de espelhos.

 

3.

 

Há muito tempo cheguei a teus lábios através de estranhos ritos.

Fagulhas de um passado ancorado na frondosidade do esquecimento.

Destes voltas em minha vida como uma máquina criada para iludir.

As tuas visitas sussurrantes aplicadas à pele de meus inventos

tanto incomodaram que passei a descrer das fórmulas e aparelhos

empenhados na permanência de nossos fundamentos e pecados.

Por algum tempo me aperfeiçoei na arte da subtração dos sentidos.

Não regressaria a mim mesmo sem me convencer do próprio fracasso.

A visita de duplos e quimeras provam apenas que nada criamos.

Somos um vespeiro decadente de cismas e inúteis velocímetros.

Viciada em cálculos banais, a arte se tornou um berço de fantasmas.

Eu peso os meus dias antecipando a moral de tantos métodos e fins.

Não guardo recortes de minha alma no bolso ou trafico armas

como quem confia em espectros para garantir a existência do milagre.

Apenas observo um velho truque do átomo: o crime perfeito

não necessita ameaça, apenas se traslada antes de ser identificado.

 

4.

 

Como surgiu o acaso? Escândalo bem articulado ou condenação de alguém a fazer fortuna encarnando o inesperado? Ofensa à quietude ou uma mera arte de soletrar impulsos?

O guardião celebra seus segredos como quem suprimiu a morte e a bênção.

O guardião entende que o mundo é bem pequeno, por mais que tenhamos devotado as nossas vidas à procriação de ruínas.

 

Apenas a imaginação converte o mármore em bronze ou dá asas a um transatlântico naufragado nas províncias do erro.

O homem nunca soube como corrigir a carcaça da realidade, a não ser a falseando de um continente a outro, como um asco ajustado para a primeira página.

 

O guardião não tem braços ou pernas. Em seu íntimo reluta sobre os reais motivos da permanência.

No entanto, guarda a audácia que deve nortear a existência humana.

Este é seu bem mais secreto e valioso: as nossas obras não devem servir, mas sim libertar; não devem queimar, mas antes iluminar; jamais devem transcender, sem que tenham curado toda debilidade retórica.

 

O guardião é um enigma, como o papel ou a linha do horizonte.

Nós somos o fruto de sua mais insuspeita fragilidade.

 

5.

 

Até onde eu represento as tuas ânsias

eu me protejo de minhas frustrações.

Se acaso revelo o que te aborrece

logo trato de educar minhas alegrias.

Evitamos os cenários fixos, o enredo

obscuro e o preenchimento de endereço,

pelo menos em nosso primeiro contrato.

A verdade é a arte mais perfeita,

e o homem só a suporta no palco.

 

6.

 

Eu quis trazer para mim tudo o que antes imitara.

Talvez fazer com que a dor fosse um passo até a alma acariciada e feliz.

Tantas vezes me desfiz de minhas crenças que a ofensa tornou-se um sistema irrisório.

É possível que eu ainda estranhe quando me roubam um nome ou submetem um personagem meu a revelar o que seguramente desconhecem.

 

A amnésia é o mais triunfante método de tortura.

Esvazio o continente e o preparo para uma nova vida de revelações.

Que ninguém estranhe quando digo que aprendi não propriamente a esquecer, mas sim a variar a cabeceira de minhas lembranças.

Se quero esquecer quem sou tenho que pensar em alguém que me substitua.

Alguém menos covarde que não inventarie as dores como forma de escapar de si mesmo.

Alguém que dê curso à febre ou qualquer outra manobra do desastre até que os sintomas se tornem irrelevantes.

Alguém que escave uma palavra certo de que a mesma guarde um mistério que ninguém poderia imaginar.

Eu não saberia transcrever o registro de tantas adivinhações.

 

O homem aparenta uma insanidade sem a menor persistência.

Como tutelar a alegoria se ele desconhece o que pode vir a ser?

Já não me lembro quantas vezes chamei esse desgraçado para conversar.

Um dia tratei de começar a apagar tudo o que fiz em minha vida.

Sigo atenuando ou reparando as falhas, ainda convicto de que posso esquecer quem sou.

 

7.

 

Minha sombra frutifica como um fragmento de espelho.

Meus olhos fechados estocam todo o ouro da imaginação.

Não há tempo para imprimir a memória de tudo quanto rabisco em silêncio.

Melhor confessar ao braseiro que as formas mudam segundo um plano próprio do acaso.

 

O que torna a eternidade acessível é a trilha sonora de seus moldes retalhados.

Uma confabulação de esculturas em galpões flutuantes.

As citações contínuas de hábitos esquecidos destinados à véspera de um mistério sempre refeito.

O tesouro genuíno dessas obras destina-se à publicidade de incontáveis quimeras.

 

O que torna a eternidade verossímil é este seu semblante de sucata.

A impressão que agenda em nosso espírito de que as confissões guardam sempre um segredo com o qual garantem a perpetuidade do crime.

Os vestígios empoeirados do símbolo, a avidez da tradição por ocupar as primeiras filas do teatro, os rótulos arquivados minuciosamente até mesmo para os vícios mais inesperados.

 

A eternidade é o mais aborrecido de todos os tratados de patologia.

 

8.

 

Há 381 anos não durmo.

O tempo é um método sutil de opressão.

Observo que não tenho imitadores.

Ninguém sequer arremeda minhas dúvidas.

Médiuns e telepatas trocam envelopes lacrados com senhas para seus números mais ousados.

O negócio das senhas falsas gera lucros fabulosos.

Os fatos já não mais surpreendem quando coincidem com a realidade.

 

Reconheci o gordo fantasma inalando rapé após haver afinado seu violino.

Quando me viu começaram a saltar cifras de sua algibeira.

A música é um espectro voraz que se alimenta do que resta de nossa sensibilidade.

A verdade é que ando farto de aforismos e outros fogos-fátuos.

Há 381 anos vagueio pelas ruas escuras de um mesmo e monstruoso crime.

Ninguém me socorre do mal que fiz a mim mesmo.

A generosidade tem sido um silogismo ineficaz, um monumento enfermo, um calendário imóvel.

 

Venho consumindo mais da metade de minha vida desperto.

Meus olhos se tornaram uma semelhança do absurdo.

Qual terapêutica nos livra do carteado moral?

Converto em bronze qualquer centelha de entendimento que eu tenha de meus fracassos.

Conservo tingida a máscara com que o homem reconstitui seu afastamento da própria sombra.

 

Há 381 anos resido no mesmo sulco de existência.

Jamais indaguei por que o sono me abandonou.

Quem faz protestos contra o acaso?

Há algum tempo me sento no parapeito da janela da casa do violinista.

A minha insônia se alimenta do rapé da memória.

 

9.

 

Acabo de herdar um galpão de almas vagamente familiares.

Ao que parece, todas resistiram até a última carta para revelar sua faceta mais piegas.

A herança veio anotada em minúcias singulares:

a hora certa do banho de cada uma delas, a predileção por Shostakovich ou Mozart, a exigência de evitar leituras extravagantes.

Ao fazer o reconhecimento de suas inclinações e habilidades deduzi que as almas me encantam porque não temem a semelhança.

Trafegam de um empório a outro de seus fardos sem nenhum desprezo pelo corpo a que estão subjugadas.

A alma é uma página jamais ocorrida ao corpo em sua simpatia por todas as veleidades de um apego a coisas visíveis.

Tenho uma vida inteira protegida por heranças.

Nenhuma delas até hoje demonstrou estranheza ao ser destinada a mim.

Tampouco quando alguém me visita, curioso pelas vértebras do absurdo que mantenho em minha loja, uma única sílaba se parte em nosso entendimento.

Tenho notado que algumas peças descoram a cada vez que retorno.

O passado de qualquer um de nós também apaga a expressão de seu rosto na medida em que nosso espanto muda de ângulo.

Fui anotando suas resignações e repugnâncias.

Imagino que cada uma delas imagine uma vida nova alheia ao espectro ou ao cadáver.

Elas estão bem aqui.

Limpas, polidas, iluminadas em suas prateleiras, a bom preço.

As sete alunas que herdei de um irmão de minha mãe que em vida as perseguia como a projeção disforme de seus erros.

Não sei o quanto as preparei para uma nova vida.

A realidade não conta senão com cadáveres.

Eu ensinei a elas que a morte não é o único discurso vazio.

 

10.

 

Os vagos reflexos da memória se escondem atrás de uma parede falsa.

Experiência projetada por um mago decidido a encontrar uma cura para a culpa.

Ele mesmo tratou de recortar os intervalos indigestos de sua vida: tumores da sensualidade, fístulas da avareza, ilusões bem precárias da lucidez.

Não deixou mais do que uns poucos verbos expostos,

temendo a intrusão de alguns males precoces.

Tudo deveria ser esquecido por um período não inferior a três anos.

Moléstias como a infidelidade e a mágoa poderiam apodrecer no confessionário.

Certamente não haveria o que prever em relação aos sonhos, porém as ambições seriam advertidas de que poderiam ser interpretadas como distúrbios mentais.

O mago estava convicto de que as avarias do espírito tinham na memória sua origem.

Cinco anos se passaram até que as escavações de um túnel deram com uma alucinação projetada em imprevisível parede.

O homem até hoje desconfia do triunfo de sua impotência sobre todas as coisas.

Mesmo com tantos refletores dispostos iluminando a cena descoberta

o que vislumbrava não era senão uma ilusão de ética:

uma vez desossada a memória o que resta é um acúmulo de vícios inconscientes.

 

11.

 

As dores crescem por todos os lábios.

Meu coração celebra os borbotões do impossível.

Os vislumbres são estrepitosos, o silêncio é um alvoroço repentino, eu naufrago nas águas tépidas de tua loucura.

Somente a música toca o invisível.

Os móveis se inclinam sobre a tinta espontânea do horizonte.

A casa é um enigma de manequins alados.

A música encontrou uma maneira de sobreviver ao regente.

Os demais milagres se declaram sindicalizados.

Meu cadáver espera pelo teu antes que a esquina favoreça outros pecados.

Eu queria tratar todas as frases com um espelho, para que compreendessem as forças contrárias que movem a nossa existência.

Como conjugar o acaso, quando a esperança viciou todas as fichas?

 

12.

 

Eu agora devo sofrer o castigo de cada lágrima,

como a trapaça de um espelho sem caráter algum.

Não importa o quanto a honra soletre teu orgulho,

certamente já havíamos feito mal um ao outro.

A morte é uma sutileza corroída de inocência.

Cadáveres que não se permitem jamais enterrar

promulgam leis tanto vulgares quanto virulentas,

paciente tradição da mais perpétua iniquidade.

Eu te convido a visitar a província de meus erros.

Se nos recortássemos, qual de nós dois gritaria?

A quem caberia a primeira febre de indulgência?

A tua orelha esquerda não tem a mesma cicatriz

que gravei na minha tentando escutar tua voz.

O meu sorriso desconhece a alegria perdida

do que imagino dias futuros de teu passado feliz.

Jamais fomos a parte alguma, nenhum remorso,

apenas o homem estimando o que pensa criar.

Ainda pretendes sair daqui correndo desse jeito?

Não me deixes nunca a uma milha de mim mesmo.

Eu não saberia atender a tudo quanto planejei

longe de ti, de mim, buscando nova intimidade.

 

13.

 

Um dia começou a duvidar da própria sombra.

Ao menos nos momentos em que ela se escondia dele atrás da cristaleira.

Considerava os primeiros sintomas de uma enfermidade: a imitação.

Olhava fixamente cada novo absurdo cometido.

Sua sombra já não se interessava por excessos, opostos, a grande verdade dos vislumbres.

Talvez o quisesse submeter a um novo desastre retórico

ou quem sabe simplesmente perdera a alegria de viver.

As sombras gostam de ser provocadas, desafiadas a viajar por ângulos inesperados, estimuladas a embriagar-se nos camarins da obstinação.

A dele por vezes se esquecia de si agachada atrás do móvel.

Recordo que quando visitei Wells me disse que não profetizasse sobre meu reflexo no espelho, a menos que fosse outro quem eu quisesse encontrar do lado de lá de minha própria ilusão.

Agora o vejo ali interrompido pela ausência brusca de uma sombra.

Eu vim ao mundo para criar.

Tanto aprendi com este homem agora debruçado sobre a ausência de seu reflexo que não me desengano:

a sombra era a única metafísica que tínhamos ao nosso alcance.

 

14.

 

A tua idade não me serve, os teus caprichos me dizem pouco.

Não me conforta a tua astúcia, tampouco me atrai a tua usura.

A tua surdez teme escutar, como um pranto escalando o vazio.

Não me ofendas como cúmplice de teus antojos, ruínas, infortúnios.

Jamais me preocupei em morrer ou estive em tribunal algum.

Não me tenhas como palhaço ou neófito seguidor de si mesmo.

A loucura é tão repulsiva quanto a caridade: ante o espelho

o mundo é demasiado comum para ser traído por seu oposto.

A que velocidade rasteja a inconsciência, entre escrúpulos

e demais imundícies que satisfazem tão pouco a alma humana?

Não provamos um a existência do outro, e certamente não estamos

na mira de um assassino contratado ou de outros planos de vingança.

Há poucos dias nos encontramos em um cenário tão desalinhado

que era a própria ausência de truques ou distrações de camarim.

Não reconhecemos um no outro a mínima sobra de autenticidade.

 

15.

 

O futuro não se deixa turvar tão facilmente quanto o passado.

Um adora ocultar-se, o outro é uma alegoria do templo.

São sucedâneos de uma mesma voragem de distração.

O presente não tolera ficções, despachou para os dois outros monos

as virtudes da cegueira e da surdez. O presente apenas silencia

sobre todas as fábulas de necrotério, as fórmulas ritualísticas,

cancros da fé. O presente é uma impossibilidade inspirada

em cenas falaciosas. Sabes que estive contigo suficiente tempo

para que não acredites em mim. Estou indo embora esta noite.

 

16.

 

As horas mortas não se liquefazem ou petrificam.

O mito deposto não tem aonde retornar.

Os deuses acabam se distraindo com tão pouco,

que as janelas repartem entre elas o horizonte.

O acaso apenas distribui as cartas.

Ao final do dia pude contar quantas vezes meu nome foi esquecido.

Um punhado de quedas não torna sagrado livro algum.

Há muito estamos na lista das grandes razões falhadas,

e veneramos as chances perdidas como se fossem a velha gaveta de desastres de um colecionador.

Quantos estamos vivendo em casa? Quantos se foram?

 

As noites saem para pescar os galhos azulados de antigos arvoredos.

As dores não pensam em si mesmas enquanto doem.

O mundo é uma impropriedade.

Um relato de todas as vezes que nos desfizemos de nós mesmos.

As vozes furtivas que não encontraram motivo algum para a permanência.

Dilemas que são feitos de nada e não saem do lugar por várias eternidades.

 

As horas batem à porta e esperam convite para entrar.

Não veio ninguém mais para o jantar e os demônios se divertem com tudo o que perdemos à nossa volta.

As pedrinhas não cansam de brilhar, com sua excitação de sabores esvoaçantes.

Nenhum de nós desejou a vida sangrando em parte alguma.

Ninguém contou os dias. Ou quantos vivemos à toa.

Tudo aquilo que imagino ser não chega ao fim em momento algum.

O mundo visível se despede de cada fragmento de seus suores compartidos,

porém não ficamos mais perto de nada sem que a noite se complete.

 

Não me escutem. Há muito que digo a mesma coisa.

Há muito desisti de entender a lógica de minha sobrevivência.

 

17.

 

As árvores imitam uma cidade sonâmbula.

Há luzes que não descansam ao sair de uma sombra a outra.

Quanto tempo mais eu insistirei em descrever um mundo que mal cabe em meu olhar?

As árvores quebram seus galhos para assumir formas humanas.

Os deuses já não se reconhecem na chuva ou no vento.

Quantas vezes mais eu direi a mim mesmo que os extremos um dia se tocam?

As árvores jamais sonharam com o retorno a algum paraíso perdido.

Meus dias ajustaram seus planos para que a queda não florescesse tanto.

O olhar murcha quando não fixa bem o que acredita ver por trás de todo plano.

Eu aceito não saber. Aceito jamais ter estado aqui. Ou mesmo não ter a quem regressar.

As árvores se habituaram a fingir o que não teriam como ser.

O tempo ia simplesmente passando enquanto a realidade perdia contato com suas formas.

Quanto mais cobrarei de mim por tudo o que confundi em um vislumbre?

As árvores descobrem surpresas o leito em que as cidades deliram sua insônia.

E o imitam, como se fosse o ninho de uma outra ilusão de estar no mundo.

As trevas não cabem aqui. Eu não recordo meu nome. Nem identifico o que vejo.

 

18.

 

As esculturas passam todas por aqui, e logo se repetem.

Como vulcões que vão se aquietando ou exceções descortinadas.

Estou cercado de mesas e o espaço por onde vejo o mundo é quase uma miragem.

Multiplicamos os ninhos para que renasçam as ilusões.

Shajadi um dia me escreveu, no idioma secreto de seus lábios:

não dês aos olhos mais imagens do que eles possam suportar.

Leio agora que os olhos ocultam lágrimas em vários idiomas.

Todos estão longe de casa por alguma razão.

Os motivos costumam ser ágrafos e jamais confessam seus crimes.

Um truque da solidão é fazer com que os rostos anônimos recordem o de alguém conhecido.

Em lugares assim a vida se repete como o trailer de um filme inconcluso.

As esculturas circulam uma vez mais,

sem dar tempo para que alguém se decida a pensar em si.

 

19.

 

Se um de nós desfolhasse a memória do acaso

decerto não alcançaria mais do que ruínas de silêncio.

De um lado ou de outro de tudo quanto vimos

não se descortina dia algum o motivo de não termos ali chegado antes.

As decisões mais simples se deixaram despir pela ansiedade.

Não mate alguém antes de saber a qual deus confiará sua lembrança.

Os nomes estão debilitando as raízes do que plantamos.

Evitemos os nomes. As orações devem regar o inominável.

O abismo deve guardar lugar para aqueles que jamais regressarão.

Não há conforto na dúvida. Ninguém espera por si fingindo estar ausente.

O verbo se rompe como uma aldeia descarnada pela imensidão,

o anúncio de escadas trotando na noite ou o súbito desapego

com que atingimos as vertigens mais insuspeitas.

Destripar a consciência dos segredos antes que eles cresçam.

Todas as causas morrem com seus alfabetos incompletos.

Os castigos sucedem as crenças, a inocência masca uma ração diária de pecados.

Passaremos a vida inteira buscando uma razão para esta conversa.

Cada um de nós, quando afinal descobre do que é feito,

encontra o celeiro vazio e o horizonte estendido no varal.

 

20.

 

Um jovem mestre em suposições encomenda

pequenas monografias a cada uma das sombras que frequentam sua cela.

Dá a elas a liberdade de eleger os temas,

porém os dias devem se confundir com páginas

tomadas por diálogos interiores.

É hora de deixar os braços estendidos na névoa.

Eu criei meus filhos antes que batessem à porta as bombas caseiras e os vetores invisíveis da angústia.

O infinito levou uma tarde inteira a ser recortado em postais

que seguiram viagem para os lugares mais previsíveis.

Que conselhos práticos podemos dar à indiferença?

Por onde as noites vão decaindo até que não amanheça jamais?

O que as cartas mais temem é que um dia não tenhamos mais o que contar a elas.

Não há vertigem quando aposentamos o essencial.

Escolas de imagens razoáveis são abertas em cada esquina.

Nelas se prepara o pensamento para expandir-se apenas o necessário.

As vocações implodem em um labirinto de imitações banais.

Sinceramente cansamos de dar chance à paz.

Os corpos se contraem no varal, esquecidos de suas roupas.

Os manifestos são fábulas escritas ao revés.

Os valores foram tão remarcados que perderam importância em qualquer prateleira que ainda lhes dê guarida.

A mais simples ideia de valer a interpretação de si mesmo.

O humor mantido durante a coleta diária de mundos possíveis.

Quantos se livram da própria miséria?

As moedas são valores degenerativos.

Decerto há alguma distinção entre viver e frequentar casas de aposta.

 

Um jovem mestre rascunha displicentes modelos para o espírito humano.

Os espelhos perderam seu aspecto original.

Já não reproduzem senão a plenitude avariada da memória.

Os meus filhos foram relatando aos sonhos seus dragões inconscientes.

As escolas subornam desejos, conflitos, astúcias.

Há personagens que transcrevem a ordem conveniente de suas falas.

Os livros sagrados bafejam uma névoa de figurações que nos afastam de nossos sentimentos.

Não recordo quando vim aqui solfejar minha agonia,

porém há fascículos arquivados em minha aura que garantem que o tempo é impessoal.

A imagem é uma árvore de lacres. Um cadafalso na ponta da espada. Uma soberba gerada entre dois corpos.

A imagem jamais compreendeu as emoções.

O homem precisa se livrar da imagem.

Como passar para a fase seguinte quando deciframos nosso engano?

Rei de ouro, rainha de espadas, quem melhor desfruta meu coração?

Cada verbo erige conjugação e conjuração de suas forças.

Eu sou a pedra caída antes que o mundo se reconcilie com o abismo que foi esquecido em seu bolso.

A vontade é uma figura de retórica.

Não há evasão de milagre na criação ou túnica tão bem guardada que não se distraia com o retábulo de outras forças primitivas.

A televisão modera a versão de uma épica intransigente.

As noites ardem com certa constância e os assassinatos não dependem disto.

Morrer jamais foi uma solução adequada para qualquer enigma.

Eu volto a dizer que um dia meus filhos saíram de casa e não se associaram às pressões da imagem.

A alegria de viver não se converteu em um postal da autonomia.

Eu não ensinei nada a eles. Não desceram aos céus ou subiram ao inferno. Jamais aboliram as contradições.

Em casa não julgávamos as repetições ou a tensão sangrenta do insólito.

A iluminação não é um conforto ou um prêmio.

 

Um jovem mestre oferece sua propensão à instabilidade a quem almeje uma consciência coletiva.

Quando o mundo tarifa a verdade o absoluto se perde de si.

Viver é um tabu, uma vontade, uma evacuação?

Quem nos descreve, limita ou parodia?

Somos enfadonhamente pioneiros em nossa extraordinária perda da razão de ser.

 



 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 


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