sábado, 22 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Manuscrito das obsessões inexatas

 

 

Não caminhamos para a Unidade, somos desde a origem a Unidade que nunca existiu.

MARIA DE NAGLOWSKA

 

A poesia é uma afirmação de todos os mundos

e não a idolatria de um só.

FM

 

NISE

 

• UMA ÁRVORE PARA CADA PALAVRA

 

Não busque explicação em meu corpo.

Apenas me toque, com irremediável curiosidade.

Espalha por toda parte a tinta selvagem de teus medos.

Traz em tuas mãos os nomes de todos os espíritos.

A chama acesa na ponta dos dedos.

O espinhaço do vento mudando meus hábitos.

Cava bem fundo as minhas superstições.

Destrói em mim o que não for continuidade da vida.

Muda a linguagem de teu sexo dentro de mim.

Eu quero pronunciar teu olhar sobrevivendo a tudo o que vês.

Devora a história errante de meus dons e dotes.

Introduz em meus vícios as tuas palavras mais astutas.

Vem para o mais íntimo da casualidade ser o homem que jamais esperei.

 

• UM PASTO PARA CADA MORTE

 

Bem cedo eu colhi as vacilações de teu silencioso vigor.

Ainda dormias em minhas mãos como um oráculo vagando pela vegetação dos sonhos. Eu fui até o céu buscar farinha.

Guiada por meus seios que obsequiavam as melhores trilhas.

Nada como as estrofes abrasadas de meu ventre para lembrar-me que inferno algum faria de meu remanso uma fossa vazia.

No caminho de volta minha pele resmungava exigindo que eu me apressasse.

A primeira fábula de cada manhã deverá estar ao alcance de teu olhar.

 

• MAGIA SOBERANA

 

Em reverência a todos os potros eu mascava a tua relva.

Gosto de caçar o teu espanto antes que o sol abra o olho.

Não considero teus ciclos, pois me permito revelar o milagre de cada um deles.

Os teus cadáveres sutilmente se afastam, descrentes de seus efeitos.

Vamos desenhar aqui um bosque com sua clareira imprevisível.

As marcas em cada árvore são o calendário de teus vislumbres.

Nossa biografia é fruto de escavações no corpo e na alma.

Eu reluto em dizer que te quero, para que não saibas nunca se deves ou não ir embora.

No lago de meu umbigo mergulhas a tua sede voraz, enquanto tateamos a identidade verdadeira de nossas sombras.

 

• UMA EXPEDIÇÃO EMPAPADA

 

Livra-me de mim antes que eu toque meu reverso e não queira mais voltar.

Eu preciso que saias um pouco para que eu não enferme de ti.

Os ramos de nossos abraços se multiplicam com seus suores viscosos.

Dificilmente ressurgirá em nós um estado normal.

Tocamos juntos o rosto do sol e a tábua de cantos fazedores de chuvas.

Os nossos tabus tornaram-se familiares em sua vida ordinária.

Tatua a tua tempestade em mim – aqui – bem aqui – aqui também.

Quero aprender a respirar com os teus bambus e alvoroçar a tribo de teus pentelhos.

Eu perturbarei a tua imagem ao ponto dela sangrar sem restrição.

 

• ALMA VERSADA EM ILUSÕES

 

Teu olhar interpreta em minha carne as mais antigas formas.

Um dia fui o ferro eficiente de tuas transformações.

Tempos depois navegavas no santuário de meus líquidos.

Houve certo momento em que desgraçaste meus tempos, me deixaste intensificada da mais brutal solidão.

Caí em descrédito ante cada nova forma que assumia.

Soubeste ser navalha, archote, escopeta e depenaste as minhas sombras como aves nascidas para o sacrifício.

Abandonar-me agora requer ler ao contrário cada sentença que almejo de abstenção ou invisibilidade.

Teu olhar me obriga a depredar os utensílios da sobrevivência.

Demônio impiedoso, não vês que agora mesmo eu poderia te amar?

 

• DELITOS PÚBLICOS

 

Vem por os nós de teu mistério em mim.

Não me importa quantos sejas, traz a extração curativa de teus faunos.

Prefiro que vivas o melhor de tua vida dentro de mim.

Não proíbo teus nativos de trazerem consigo amuletos e poções.

Quero sentir em meu ventre uma rede eficaz de feitiços.

Quero o perigo de tua imensurável extensão.

A fiação elétrica de rezas de teu orgasmo.

O antigo depósito de objetos selvagens que mesmo no escuro latejava como uma tumba indecisa.

Quero vir a conhecer alguns de teus escrúpulos, porque eu não os tenho, nenhum que seja.

 

• O JUÍZO, AFINAL

 

O que ocorreu aqui ninguém jamais saberá.

Como um ardil omisso, uma nódoa arrependida.

Demônio débil alheio a agonias sucessivas.

Velho hábito de matar sem indagar o nome.

Rochas obcecadas pela fragilidade dos despenhadeiros.

Vultos arrastados pela impunidade de seus atavios.

Como a orfandade das primeiras sílabas repetidas.

Enfermaria esponjosa de teus êxitos desgastados.

Ronda rival que anseia por esmagar teus pecados.

Esquece tudo isto e vem ocupar o recinto de minha obstinação.

Vem lutar contra pastores e substâncias intravenosas.

Não quero que me protejas ou veneres e sim que me fodas.

Quero ser tocada pela obscuridade de teu espírito divino.

Quero que te multipliques dentro de mim como a mais nervosa de todas as calamidades sobre a terra.

Este é o desígnio consentido de tudo quanto nós podemos ser.

Não te iludas. A ninguém interessam tuas boas intenções.

 

• DESERTO ARENOSO DO DESEJO

 

Ao crepúsculo amarramos as árvores todas, como se quiséssemos recuperar uma evasão de espíritos.

Infestação de lamúrias e ossos vestidos para a ode triunfal.

Meu corpo transportando as tuas quimeras arrependidas.

Testemunhos frequentes sempre que enterramos as máscaras.

O teu pau em minha mão como um archote iluminado desde o interior, feliz com os vislumbres que atraem novas efígies.

Variedade de frutas a decantar os líquidos da melhor morte.

Reverberação de símbolos que personalizam a tua existência.

Eu te quebro por dentro e continuas inteiro me penetrando.

Tudo em ti é análogo ao esforço humano que jamais soube aceitar.

 

• A METAMORFOSE MATA A FOME

 

Os céus mordem.

Meu ventre salpica a civilização perdida de teu mistério.

A realidade é icônica até que as pedras mudem de forma.

Depois nada mais corresponde a qualquer representação idealizada.

O desejo é um grão omisso.

Jamais soube o que é pecar.

Uma sucessão fálica de pinturas é a sua melhor colheita.

Paredes reportadas por uma excitação quase raivosa.

As tuas flechas me incendiaram tanto a medula que agora me enrosco com tuas sombras, deixo-me estocar por miragens e outros truques de tuas taras.

Tento ser sucessivamente outra.

A tua fertilidade exclama dentro de mim.

Somos dissecados pelo desejo, descamados pela volúpia.

Meus símbolos descarrilaram na medida em que me possuías.

Meu sacerdote prescrito.

Minha descarga elétrica evocada.

A carne roubando concessões aos deuses.

A saliva encarregada de mostrar um novo caminho.

Não reduzas jamais os teus esforços.

Estou certa de que um dia despedaçaremos nossos cadáveres.

 

• PEQUENA VASILHA

 

Acabei não lembrando ao mito que não ficasse mais por perto.

Ele trouxe suas serpentes mortas, estojos de ferrugens, madeiras úmidas, molho de espantos.

Assim o mito se expande, como uma colmeia.

O mito é capaz de por fogo em sua própria casa.

Ninguém que creia na ressurreição quer morrer.

O mito é um paradoxo metafísico, como a religião e a política.

De manhã cedo o escapulário de minha fadiga eu gosto de entregar aos teus caprichos.

Gosto quando sabes ser ingênuo em meu corpo.

A prosperidade de meus mamilos na ponta de tua língua.

Preciso que me chupes ritualisticamente, para que o mito entenda que deve nos deixar.

Nenhuma confissão impressiona mais do que a sincera.

 

• ARTEFATO PERDIDO

 

As palavras são ruidosas quando incineram sentidos.

As melhores significam inúmeras coisas. Soam como feitiços.

Agora a pedra quer comer. É como uma ousadia vulcânica.

Preciso desterrar teu pênis até que revele outra caligrafia.

A verdadeira vida é uma véspera. A saliva enternecida a indicar uma colheita menos sofrida. O pecado madrugando.

As hóstias vencidas. Um barril de bênçãos jogado ao mar.

Deveria ter sido uma tarde ardendo no sofá da casa de meus pais, a família na igreja, meus vestígios doados à tua fome.

Não soubeste o que fazer com o instante e a eternidade se apossou de teu paganismo indeciso.

Tens que ir pela janela, não há outro modo.

Sempre me puseste em fuga. Nada entre nós seria distinto.

Temos ainda um ou dois segundos. Esquece a virtude.

Goza em minha boca e vai embora antes que te vejam.

Esta noite não teremos que nos ocupar de mais nada.

 

• UMA MAIS ÍNTIMA REAÇÃO

 

Salve o gueto. A escada está caindo.

As dores estão se deixando desmontar.

Este é o último desenho que peguei enquanto a lama brotava das gavetas.

A fisionomia é uma nódoa. Um casulo de esgares imprecisos.

Eu posso por a tua figura dentro ou fora de qualquer paragem.

Migro a tua sede para uma tênue linha de ansiedade.

Faço a tempestade dormir coladinha em um ninho de seios.

Teu corpo me escapa por uma janela ou outra, deixando pistas em uma escadaria de vínculos indecisos.

Degraus que até hoje não sabemos nos levam para cima ou para baixo do que sonhamos.

A dúvida conjuga seus hábitos.

O mito insiste em ser incomparável.

Ninguém quer retornar a si mesmo.

Velhos orgasmos se riem quando se encontram à sombra do que ainda representam.

Não farás de mim um exemplo mais fundo do que já cavei em mim uma vida inteira.

Não somos, tu e eu, um dogma, uma impertinência, uma leviandade.

Porém somos um o que o outro jamais será.

 

 

 

ANTONIO

 

• ANTES QUE O PENSAMENTO ME ESMAGUE

 

Esta noite a dor pode escrever suas cartas.

A pele grunhindo como um sonho desfeito.

Ao menor apego o abismo transmite suas falhas.

A besta afunda sem copiar as falas de um teatro fantasmagórico.

Não espero por ti. Dificilmente existirás.

Teus dias são casebres adernados.

Ninguém se ocupa de seu fermento espiritual.

Eu danço ao pé de uma confusa epifania.

Sou constantemente espancado por ecoar os pormenores de tanta blasfêmia.

Já nascemos intoxicados pelo destino e seu vandalismo místico.

As minhas confidências queimam a carne de Deus.

Existir é uma arte putrefata.

É preciso ir além, com a eficácia de uma catástrofe.

 

• SINISTRA INTERRUPÇÃO DO SER

 

A noite queima como um êxtase decomposto.

Eu descamo as impurezas de tua brutalidade.

Deito-me sobre o túmulo inesperado do amor.

Eu te chamo. Tu me chamas. Ignoramos nossos nomes.

Contemplo a tua ereção como quem teme a própria fome.

Eu me chamo Antonio. Sou a tua inestimável perversão.

A pintura atormentada de teus conflitos.

Onde estarás esperando por mim?

Eu te chamo, com toda a violência de meu coração.

Sepulto as aberrações de teu mistério desesperado.

Aquieta a tua sombra dentro de mim.

Penetra-me a equação de um deus que não sabe prosperar.

Bebo o sangue espesso de teu orgasmo.

A noite se martiriza por um excesso de escuridão.

 

• ASPECTO ELEMENTAR DA NOITE

 

A noite me suga para o íntimo de uma identidade promíscua.

Nenhuma razão persevera em mim.

Estas paredes são de cal ou são de ventre?

São de linho ou são de trigo? Tijolo ou desvario?

Esta cela é meu rio ou um desmentido do quanto imagino ser?

Eu te chamo Nise e sei quem és.

Pela sôfrega astúcia de teu coração.

Pelo ritmo da tinta em tuas anotações quando estás comigo.

Quantos de mim rastejam pelos quartos desse abrigo?

Nós somos as árvores vizinhas do Paraíso.

Eu rompo as tuas ilusões a caminho de mim.

 

Por quem podes passar?

– Talvez por um náufrago, porém por ninguém.

Sugeres não saber quem és?

– Afirmo não saber que importância tenha sabê-lo.

Se te chamo Guilherme, o que me dizes?

– Que sou Antonio, tu bem sabes.

Então algo te importa. Em quem te reconheces?

– Em ti. Quando me desorientas, querendo me tornar cativo.

Te enganas. Nós ainda nem começamos a nos revelar um no outro.

 

A noite é um saque, uma possessão amotinada, um oráculo inseguro.

Creio que estamos aqui por nada.

 

• EVIDENTE REGRESSÃO DE REFLEXOS

 

O sol me conduz para debaixo da cama.

A luz me encarcera.

Temo pela zombaria de espectros que habitam dois mundos.

Passam por mim fantasmas que não reconheço.

Imagino um extenso corredor encravado em minhas vértebras.

Onde dançam escadas que desaprenderam a subir ou descer.

Minhas noites tinham estrelas.

Agora pareço não estar em mundo algum.

Nem mesmo sexo me apetece ter e ouço longe um jogo de fervores.

Talvez o gemido de um espelho melancólico.

A impontualidade de um sino comunicando a ausência de Deus.

Dentes rangendo ante o fracasso da fome.

Eu não estou em parte alguma deste casebre imundo em que me aprisionam.

Esta senhora me confunde com seus próprios pensamentos.

Livrar-me dela agora equivale a livrar-me de mim.

 

• ÚLTIMOS RUÍDOS SECRETOS

 

A escuridão é uma luz indispensável.

O engano é uma auréola de símbolos.

Eu me despi para que sondasses meu equilíbrio.

Que te vistas com a mesma intenção.

Jamais me ocorreu aprisionar-te.

Não posso garantir que estejas livre de ti mesma.

Por vezes somos tudo menos o que imaginamos ser.

Quantas coisas em nosso olhar parecem destinadas a viver?

Não é mais comum contemplar a morte?

Não te deixes enganar, os verbos também destroem.

Creio que fomos tomados por um mesmo temor.

Eu a queria como uma chama indócil a convencer o vento.

Cheguei a sonhar levado por ela até seus hortos desordenados.

Uma mulher assim poderia decifrar um êxtase irrefreável.

Amanheço Nise em teus braços.

Amanheces Antonio em meu sol descrente.

Jamais saberíamos o mistério de nossos bosques desertos.

Não faríamos sexo jamais.

Tu me guardas em teus infernos intermináveis.

Eu te guardo comigo onde jamais me revelarias.

 

• MÉRITO DO VAZIO

 

Apenas o teu corpo reconhece a tua dor.

Não lhe cabe posologia ou palco constrito.

Quando lhe disse isto me parecia um sábio.

Seu corpo inteiro me disse que queria comer.

Não apenas asa de frango, ingresso de circo,

corpos cativos ou alucinações contratadas.

Senti-me quase adoecido por sua magia.

Eu quero que gozes de uma vez por todas.

O inferno se multiplica longe de teu orgasmo.

Deveríamos acabar com o julgamento em si.

Até onde a tua loucura deforma a minha dor?

Vícios possuem cheiro próprio. A que fedes?

Que porcaria temos em nós que nos nega?

A dor é um engodo malsão de atos praticados.

Não há como voltar a ser o que jamais fomos.

 

• ESFERA REGURGITADA

 

O céu é um descalabro.

Eu contrapeso tudo o que aniquilo.

O meu verbo se repete e definha até que a esfinge se curve e diga seu verdadeiro nome.

Eu fui trazido para teus cuidados.

Não daríamos três voltas em torno da mesma cela.

Nossos fantasmas sequer nos reconhecem.

Há uma desordem que trapaceia o lugar dos móveis

Onde te sentas podes me tocar por inteiro.

Mesmo agora, que já não estou amarrado.

Agora que o tempo não diz mais respeito a nada.

Quantas vezes tenho que te dizer que jamais estive de todo aqui?

Não importa o que faças comigo, alguém voltará a te amar.

 

• ÚLTIMO RASCUNHO DO ACASO

 

Não há milagre maior do que a fé.

Como castigar alguém por descrer em deus?

Qual arpão corrige a rota do desejo?

As três moças que estavam comigo eram a minha riqueza de vertigens. Cozinhávamos o mapa de nosso prazer.

Para que precisamos de uma régua, se vamos a qualquer parte, não importa a distância ou o sacrifício?

Entre elixires e alfinetes, nada presume erro e culpa, pois caímos sempre onde só a repetição nos representa.

Talvez por isto a arte seja uma dramatização do tesouro perdido.

Uma forma levando a crer na formação de novos sonhos.

Destino rude apregoado por seus defeitos.

Quimera dando a si outro nome diante do espelho.

Quantas mentiras podem ser ditas por um mesmo deus?

O milagre é o único recurso de qualquer religião.

 

• BILHETE QUASE APÓCRIFO

 

Venho de uma noite desesperada.

Todos os dias são excrementos do abismo.

Máculas obscenas pregadas no cadáver do que resto de mim.

Mas eu não resto nada. Já me deportei de todo.

De modo que engano a ilusão e seus contágios fecais.

Não há mais natureza a ser regada ou dialética que me constranja.

Não me sangrem. Não me excitem. Não me recriem.

Não há nada mais sinistro do que a cautela e a posteridade.

Não há mais nada em mim.

Não há mais ninguém chamado Antonio.

Não há mais febre ou meu sexo empinado.

Não há mais círculos em que me possam manter para que eu reabasteça o automatismo de seus viços.

As três moças serão infinitas e eu não serei nada.

Eu sou a inexistência predestinada.

Não me repatriem.

Eu não caberia mais em mim.

Gozem sozinhas, e me enterrem no quintal.

Não deixem nunca o taxidermista se aproximar de meus vícios.

 

• QUASE UM PRIMEIRO PECADO

 

A todo instante abortamos fantasmas.

O mundo metafísico também nos açoita o lombo.

Descrer é uma figura de retórica, assim como a crença por vezes não passa de uma falácia da pertinência.

Somos o mundo que temos, descrevemos ou ansiamos?

Mas por que diabos somos escravos da eficácia?

Tenho por encargo cósmico errar infinitas vezes.

Não quero resignar consciência alguma em meu íntimo.

Tampouco dar a extrema unção de conflitos ou acatar a eucaristia de guetos que se desfazem a lágrimas vistas.

Os verbos são indiferentes entre si.

Um homem pode ser impossível, resignado e vítima em 24 horas.

Nenhuma força em nós nos deseja de todo coração.

A realidade não confessa indiferença irrestrita por nós.

Tampouco somos a garantia de permanência em terra firme.

Eu vi aquelas flâmulas todas no lombo do horizonte.

Como a eternidade pode ter hábitos tão sombrios?

 

• O PERIGO COMO ÚNICO PROCIDEMENTO POSSÍVEL

 

Ela sabia que não poderia ser de outro modo.

Nossos hábitos jamais foram semelhantes.

Não tenho necessidade de ganhar confiança de alguém.

Sua teoria se torna instável mediante aceitação pública.

O abismo em mim predomina fácil. Nela, é um escalpo.

Mesmo assim ela me fez crer que nada se explica enquanto deuses agem em sigilo.

Ela compreende a representação de meu espírito.

Eu a vejo como uma sucessão de impossibilidades.

Sua lenda é a de um tribunal do qual planejo sempre escapar.

Enquanto nos beijamos e a penetro ela me diz que a minha origem sobreviverá a mim mesmo.

Quantas vezes um homem pode ter uma mulher até que ela se torne sua única semelhança?

Quantos de mim eu erro até saber quem não posso ser?

Nenhum de nós sobrevive.

Até que o cansaço nos convença do contrário.

 

 

 

MARIA

 

• ALMA AFINANDO SEUS TROÇOS

 

Vamos desenhar a espinha dorsal de um enigma.

Um empório de alquimias insólitas.

Uma nuvem pode viajar ao pé da bagagem.

Um peixe pode embalar rios para uma sesta inesperada.

Pedi a Antonio que pusesse seu coração na mesa.

O pó… Era uma vez o pó e todas suas chagas…

Ele próprio se descrevia como uma impossibilidade.

Não era renúncia ou indignação, como as conhecemos.

Antonio estava manchado de ilusões degeneradas.

O homem não daria um passo além de uma árvore.

O vento não voltaria à mesma paisagem invariável.

Eu o retive comigo para que me sorrisse por dentro.

Não para curar-me ou curá-lo. Não para negar-nos.

Eu sempre quis saber o quanto este homem esteve perto de mim ao ponto de confundirmos o relâmpago.

Talvez sejamos o mesmo órgão em movimento.

 

• DESAFIO DE APRECIÁVEL AUTORIA

 

Um dia confinarei a tua flecha em meus sonhos.

Como uma iniciação disparada que me rasgasse inteira.

Eu quero os teus corpos martirizando minha libido.

O teu nome anunciado como uma chaga no dorso infecto dos dragões. A cusparada suntuosa dos mitos.

Eu quero que sejas o mistério pendente de toda mulher.

O sacerdócio depredado antes da dissolução de toda crença.

Eu te quero, minha encomenda fálica, como epígrafe de fogo.

O Grande Hotel declina seus pecados mais sagazes.

Sua falésia assexuada de corpos mortos. Rota de fuga de tantos mistérios fúteis e tremores empoeirados.

O taxidermista Guilherme foi a melhor aquisição da casa.

E será meu o desafio de descobrir o número de sua flecha.

 

• AGENDA PROVISÓRIA DA ETERNIDADE

 

As horas caem e ninguém guarda o perfume de seus gozos. As fraternidades eróticas são a única fonte de poder absoluto. Tu me lapidas com a improvisação de teus falos noturnos. Eu me banho sem repouso com o verbo líquido de tuas feras. Os teus pelos ramificados como uma constelação em meu corpo. Dança a comédia de teus infantes sobre meus seios carnívoros. Eu quero o teu beijo como um templo sacrificado. As palhas são cílios aromáticos e pentelhos litúrgicos. Cada quarto é como um casebre pousado no sexo da casa. As quedas são arbitrárias e jamais teremos acesso à cura de tantos males. Vultos chafurdam em nossa individualidade. A casa foi construída para ser um refúgio perene, um triunfo contra o tempo e o parlamento das pequenas catástrofes.

 

• TARÔ MATINAL

 

– Por onde começamos?

A furar um paiol e iludir o obstáculo.

– Uma carta pesada ou de pouca sorte.

Um acaso renovado?

– Não, uma incerteza de ação prolongada.

Pequenos ganhos resignados.

– Como fracassos herdados?

Como bens estabelecidos fora de todo princípio.

– Morte?

O que for preciso. Sem queixas.

 

• SEMENTE ENTRE ELAS

 

Recortemos o triunfo do que imaginamos ser.

Nise enamorada de sua inspiração, crente que um arco pode dar ao mundo sua melhor redoma espiritual. A consciência é um arco.

Aurora dedicada à transmutação. Talvez esqueça que a ciência do êxito é determinada pelo julgamento.

Eu me quebro, como um destino imprudente. Uma alegoria sem proteção. Heróis depenados.

O Grande Hotel é nossa redoma blasfema.

As nossas ambições foram proscritas.

Deixamos para trás uma tábua infame de argumentos.

Guilherme com a matemática compulsiva de seu canibalismo, soprando no ouvido de seus cadáveres empalhados a senha para que se tornem emblemas de sua tara.

Antonio, o blasfemo jamais coroado. Insultou a vida em todas as suas manifestações, sem ter sido compreendido uma só vez.

Eu me rebento, como uma fábula masturbatória. Uma cavidade exausta. Íncubos de pedra.

 

• CORTINAS PREMONITÓRIAS

 

Contamos as nossas estrelas e sombras, o rumo descompassado de tantas sílabas e a ramagem decepada dos lugares desconhecidos.

Fomos até o último dígito da ilusão.

Dissipamos uma corredeira de espelhos e as árvores drenadas pelos mais antigos truques de levitação.

Os vícios se desfiguram ao pé da estrada.

Viajamos de uma estatura a outra do alfabeto de nossas ruínas.

Estamos acabados, no alvo de tantas frases e na vocação dos abismos.

Se ousas um resumo da estirpe de nossas dissonâncias, certamente eu me deixo aqui no leito, o olhar raspando a gravura desfigurada do teto, o sexo meditando sobre a extinção de seus vocábulos.

Não queiras saber mais nada.

O mundo que nos restou é uma estrutura incorpórea, um pecado sem rosto, uma árvore decaída sem saber a que estação pertence.

Não me chames pelo nome. Permanecerei invisível.

 

• PALAFITAS DO ACASO

 

A nave não vai a parte alguma.

Nós somos a síndrome de ditirambos e o estojo de lantejoulas.

Os móveis passeiam pela casa, excedidos de falso orgulho.

Ali nasceu um criado mudo.

Nenhum espelho voltou a habitar aquela parede imatura.

Lâmpadas descem as escadas em busca de presságios.

Não há o que temer. Todos os danos já foram perturbados.

Ninguém me diz com quantos pregos uma imagem volta a submeter-se aos mesmos olhares.

O homem com o guarda-chuva afirma que os olhares não se repetem.

Guardamos o sinistro de uma morada vazia.

A memória acata atribuições impossíveis.

Os móveis reclamam um diagrama de suas atitudes.

Uma casa não vai a parte alguma sem que o eixo do mundo esteja em sua alça de mira.

O homem é a única morada simbólica de si mesmo.

Tudo o mais é uma chave sem porta.

 

• FÁBULA DE UM ESPELHO RETORCIDO

 

– Quero que te filies a meu corpo.

Nem que recorras à mais suprema corte do espírito.

– Que sejas meu homem aproximativo em qualquer língua.

Não quero te iludir, mas estou me desvinculando até de mim mesmo.

– És um padrão de sublevações localizadas.

A tua fome de conhecimento é puramente mecânica.

– Os teus urros são sacrílegos, porém jamais inventaram outra ordem.

Sacrificas tua vocação pela ciência, consternada redução do ser.

– Eu quero que me engulas toda.

Não queres senão a mistura liquefeita de teus caprichos.

– Não te quebras?

Jamais por um truque erótico. O meu sêmen anseia por outra representação.

– És tão monarquista quanto o outro, que odeias.

Os teus erros são irrepreensíveis.

 

• GRAVURA SIMBÓLICA

 

As minhas pernas se movem, buscando os teus mapas mais propícios. A tua febre desordenada caçoa de meus métodos. Deves abrir em mim a porta de teu céu, anunciação de um coito iluminado, ascensão de nossas vontades opostas. Eis como te quero: renúncia provisória a tudo quanto mais amas. Expressão voraz de um ninho de ampulhetas. Oração de fervores a confessar seus crimes: a identidade jamais foi comprovada. Não destruímos no outro o que somos, mas sim o que tememos vir a ser. Desastre embrionário da presunção. O que somos? Eu quero te despir do luto de tanto mistério. A tua melancolia é atávica e, como um teatro alquímico, viciada em agendas, relógios bizarros e falsos encontros consigo mesmo. Eu me ponho a teu lado, como teu contrário, tua oposição essencial, tua mulher, para que me penetres e desfaleças.

 

• DOMÍNIO INEXATO

 

O teu único vício é o combate.

A folhagem agitada de teus labirintos.

A tua irritação pela ausência de adeptos.

O futuro inventará um princípio comum que decretará a morte do outro.

No entanto odeias a grande força moral que caminha em direção contrária a teu espírito.

Quantas lousas devem anunciar as possibilidades de tua morte?

Não podes seguir dizendo que sejam todas.

Por mais que almejes, ainda não estás pronto para fundar uma religião.

As mulheres te perseguem pelo tanto que as desprezas.

Soa inacreditável que até o momento não tenhas tirado tua vida.

Daqui para onde? Que cínico. Não morrerás nunca.

Tampouco te entregarás a mim. Direi à pobre Nise que és um caso perdido. Uma rara qualidade da loucura.

 

• FLEXÍVEL ATRAÇÃO PELAS IMPUREZAS

 

O corpo não pertence ao homem nem à mulher.

É como um templo, uma fecunda exaltação do desejo.

Uma ordem espiritual que não se limita a deuses ou sacerdócios.

O teu lugar em teu corpo não é uma capela sombria.

Não tens que ser Antonio como uma imposição litúrgica.

Jamais considerar o ódio de teus conflitos decifrados.

O corpo é um termo involuntário de tua escrita existencial.

Toca a minha infâmia, o meu escrúpulo e a minha ilusão.

Aceita as minhas reivindicações até que teu parlamento conheça as dádivas de um orgasmo comum.

Ainda é possível reverter o erro magnânimo de nossas vidas.

A razão jamais governará sobre a tua libertinagem.

Dá-me tua intimidade, uma ereção apenas, um súbito tremor.

E eu te darei um mundo em que estarás formado pelo absoluto.

Uma graça profana, um truque de armário, uma pista falsa, não importa. O corpo jamais buscou pureza alguma.

 

 

 

GUILHERME

 

• ATRAÇÕES MAIS SEVERAS

 

Reunidas as primeiras letras de nossos nomes alcançamos a relevância precisa de singular jornada:

 

M

A

G

N

A

 

Como uma casa privada cujas portas se multiplicam em prodigiosa opulência. Nós somos um pacto de sonhos e miragens suculentas. Somos as cinco árvores que alimentam os passos exultantes de tudo quanto é forma na terra. Nossos nomes estão juncados de visões.

 

ANTONIO – Alguém dirá que a casa é impossível.

 

Pregamos a experiência imemorial. Tudo aquilo que descobrimos ou que supomos inventar é a linguagem atemporal de tantos quantos somos, de todos que se abrigam em nós, das inesgotáveis fatias de uma vida comum.

 

ANTONIO – A poça repleta de sofrimento e o rio entrecortado de espelhos. O domínio da angústia mais fétida e as cartas de exasperação assinadas por todos os deuses.

 

Aos cavalos a magia solene do açúcar. Aos homens a retórica dos mitos naufragados. Os fatos são apenas um vestígio do que ainda será revelado. Nenhuma casa se materializa se não é impossível. O mundo tangível é uma ilusão do vácuo primordial. Tudo é matéria suscetível. Tudo é fixidez e desordem. O homem é um pastor de lendas.

 

• PRIMEIRO RECIPIENTE VAZIO

 

Os males descalços percorrem jardas a fio de virtudes irrecuperáveis. Os nomes desenvolvem um mecanismo em constante desequilíbrio. As palavras perdem os sentidos. Descamam, como uma pintura antiga em uma parede chorosa. As aves concretam o horizonte com suas fezes ácidas. Cada um de nós acaba por se revelar a mais trágica expressão de um desencanto. Quantos somos? O fundo da paisagem será sempre negro e primitivo. Da esquerda para a direita, os ângulos ameaçadores se cumprem. Somos frutos de nossa vidência. Ninguém se atreva a dizer que não há mais no que transformar-se.

 

• NOVAS TÁBUAS DA LEI

 

Deram-me um porão por oficina.

Onde ensino aos mortos a jura secreta e a submissão ao risco de meus caprichos.

Decifro em cadáveres suas formas imprevisíveis.

Sou o legista das sombras, a única testemunha viva da paródia que destruiu a espécie humana.

Não satisfaço a deus ou ao diabo.

E se adentram meu terreiro, eu os condeno à circuncisão.

Renasço cada vulto com seu quinhão destinado.

Muitos em vida mudaram de forma em nome da beleza.

Aqui retoco as almas que sobreviveram à fé.

Refaço a vida clandestina de homens, deuses e animais.

O espaço é insuficiente para a pilha de corpos e os caixotes reservados aos fulcros mais requintados.

A esperança é a única anomalia incorrigível.

Demais fímbrias da crueldade serão remendadas.

Os corpos mais humildes ou resignados um dia lerão a representação majestosa de suas inquietudes.

 

• RAZÕES DA PERMANÊNCIA

 

Não há tragédia maior do que a blasfêmia empalhada, e um louco rezando por ela até que a reencarne.

A morte não sugere a ninguém desventrar seus motivos.

A vida é uma obsessão inconstante. Ninguém nos livra da perversão de permanecer vivo. A morte não sabe morrer.

Talvez dê a todos uma falsa forma de perseverança.

Caçamos os vivos como um quadro assustador, um mérito de provar que a vida supera qualquer desígnio ou consciência.

O homem é um predador convencional que se recusa a sê-lo.

A moral é uma obra-prima do ilusionismo e a miséria de toda prudência. O homem é o único animal orgulhoso de si.

Por isto o empalho. Como uma fábula perdida. Um mal findo.

 

• DECOMPOSIÇÃO DE IMAGENS SOLETRADAS

 

Como quem masca frases inexplicáveis, eu quero embotar o sol em tua retina insatisfeita.

Laçar as tuas quedas como se elas fossem o meu dever esta manhã.

Aproximar os verbos dilacerados por temores excessivos.

A tua curiosidade era como o focinho de um cão, cuja cauda me espanava como uma constelação heroica.

Os ditos se perdem, como afetos impacientes.

Cada vez que te olho admiro a tua inexatidão virtuosa.

Pressinto que regarás o recinto em que nos despimos com os símbolos inconciliáveis de teu sacrifício.

Do princípio ao fim, sujaremos os corpos, sem a menor ideia das sementes que estamos tateando em meio aos detritos.

 

• IRRECUSÁVEL PROMESSA

 

As tuas pernas desoladas veneram as formas que rabisco.

Flores talhadas em troncos de árvores, imagens amassadas até que percam a consciência. Pintura ressecada.

Cores desvanecidas dois dias depois. A ilusão esgotada acata os caprichos das mais fraudulentas metamorfoses.

Algo no mundo quer sentar a teu lado. Algo que nem parece ser deste mundo. Algo que desconhece de que lado está.

Eu não tenho nada a ofertar a essa ambição que se ocupa de mim. Terei que regredir até encontrar uma prenda.

Terei que rabiscar a mim mesmo até que surja algo que eu possa demarcar como o princípio de nova inconsciência.

Eu posso te realizar em mim. Se puderes esperar pelo que serei.

 

• HÁBITOS FENOMENAIS

 

Eu a vi se multiplicando em uma bandeja indisciplinada de formas. Cada imagem coroada pelo que parecia ser um contágio do acaso. As pedras da caverna estão frouxas. Não sei por quanto tempo a estrutura suporta nossa inquietude. Ela se ramifica como artérias de um rio caudaloso. Eu me aproximo de seus pés, com minhas mãos de pincéis. Destaco o que está além de minhas forças em sua vegetação repleta de sombras personificadas. Com quantos rostos ela sustenta aquela gruta imprecisa. O desejo é a solda queimante de seu mistério. Meus dedos são os atributos faiscantes de sua mais arcaica voragem. Ela nos isola do mundo, como um princípio encantado. E me diz seu nome como um punhal que me fere cada vez que o pronuncio. No fundo, seu amor por mim é uma aula de pintura.

 

• HISTÓRIA SECRETA DOS MOINHOS

 

Jamais quis me afastar da torrente de teu olhar.

Nós nos correspondíamos de um silêncio a outro, no tumulto de uma corrente sanguínea que conhecia a senha dos oceanos e das lágrimas.

Viajávamos na velocidade de nossas vertigens, assistidas por ciclopes que nos confundiam com a sua profecia preferida.

O tempo perdia seus domínios cada vez que nos roçávamos.

A noite descascava as árvores que iriam compor a próxima estação.

Queres ser minha? Aqui estou. Ainda recordo o que me disse teu corpo quando o encontrei sob o tetragrama de teu mistério.

Por mais que desfolhássemos a rota o teu olhar se refletia dentro de mim.

Vagamos entre a terra e o céu, como um feitiço inviolado.

Destroçamos as formas e os hábitos, para que não retornemos jamais.

Mesmo assim o teu olhar me queima, como a primeira causa anunciada.

– Ainda queres? Não me ausentarei nunca de teu imaginário.

 

• VÉSPERA DE UM NAUFRÁGIO

 

A eternidade é a única forma de imprevisibilidade do tempo.

 

Não há como perder-se nesse cárcere, dada a dimensão inclemente de seu vulto. De carne e osso, e sem memória.

A realidade é um voo misterioso, sem autorização para pouso.

Descrevo em meu diário as cortinas candentes de seu mistério.

Alguém em mim decerto pensa que jamais teremos certeza alguma. As jornadas nos embriagam pela soberba do acaso.

Quanto mais cremos no que possuímos menos nos reconhecemos no que descobrimos a nosso respeito.

Quantos de nós regressamos ao final da noite e dizemos:

– não somos nada e mesmo assim amanhã aqui retornaremos?

 

Não passamos de reminiscências e nos vestimos como mortos.

 

• RECEITAS DEÍFICAS

 

Há quem diga que nada significa mais do que a cólera.

Talvez o desejo de iludir ou a determinação por permanecer.

Como fazê-lo arrebatado por uma força que não seja ura ferocidade?

A distância que imprimimos entre o que somos e nossos atos,

acaso justifica a angústia que nos leva a uma servidão?

A imaginação não se delata, por maior que seja seu crime.

A imaginação não crê, nem se submete ao juízo do ideal.

A perda é uma evasiva, em nome do que não temos.

Como estancar o inesperado e o evangelho das impurezas?

Os deuses ou são decorativos ou fedem tanto quanto nós.

Quando estou a ponto de rejeitar todas as minhas crenças

uma firma religiosa explode um bairro inteiro. Há milênios

a fé é uma forma de insulto e a cólera uma máscara evangélica.

 

• ELIXIRES E SORTILÉGIOS

 

Os verbos estão cobertos por uma letra descorada que se aproveita deles como um pesadelo se aproveita de nós enquanto nos deixamos singrar pelo rio dos sonhos.

Cada letra assume a forma de um arpão que sangra o refúgio que eu havia encontrado na balsa, na janela, no verbo fugidio.

Preciso revelar-me em meu íntimo, porém não quero carregar pedras de um sonho a outro.

Os valores recolhidos em uma estação são como cadáveres no cenário seguinte.

Os milagres não se encontram sequer para um café.

Deus não sonha conosco.

Quando despertamos da realidade somos um quitute de palavras desconexas.

Quem indagaria ao morto se a morte lhe foi benfazeja?

 

 

 

AURORA

 

• ROTINA DOS SÁBADOS

 

Dia de faxina. Até a memória acorda suja.

Criamos uma rotina para nos livrarmos dos tropeços.

Venho ao Grande Hotel uma vez por semana.

Recolho máscaras por cada recanto, cada frase desferida como uma rejeição ao que somos.

Creio que os hóspedes atuais são encarnações de outros visitantes.

Mesmo nos corredores encontro rostos retorcidos.

Semblantes colados ao teto, expressões deformadas.

Fronteira intimidante entre o que vejo e o que certamente eles queriam me dizer.

Não há conceito que não seja uma aparência.

Eu me limito a limpar o frontispício de nossas fadigas.

Se me perguntassem eu diria: por vezes é só isto, uma fadiga.

Um dia acordamos cansados do que somos.

Mas ninguém me pergunta nada. Sou apenas a faxineira.

 

• CONFISSÕES DESFAVORÁVEIS

 

A vassoura reclama de algumas fibras insurgentes.

Reclino-me para conversar com ambas.

O que ouço dizer é que há momentos em que a poeira se recusa a ser recolhida, por entender que os quartos guardam em si enigmas que não foram sequer percebidos.

Vômitos, paredes riscadas a sangue, uma energia febril.

Cada cubículo é como uma caverna de prodígios.

Antes eu varria cantando. A música era a minha terapia infalível.

Aqui é impossível cantar. Tudo o que existe nega a si mesmo.

Como pontes que desmoronam, como ardis conjugados.

Deus algum viria ao Grande Hotel confiante em sua cura.

Mesmo assim venho todos os sábados. Limpo o que posso.

Tenho imensa consideração pelas coisas impossíveis.

 

• RESIGNAÇÃO DAS IMAGENS PERDIDAS

 

Hoje encontrei Antonio em seu quarto.

Tremia como uma cidade sinistra que perdera seus códigos.

Quanto mais o olhava me parecia transmutar a expressão.

– Eu me atolei na desgraça de meu sexo.

Em sua imundície fecal, em seu esgoto de pesadelos corporais.

Eu cobro de cada noite que venha me enterrar.

E reprovo a eletricidade ecumênica de tua faxina.

Este lugar é um ninho de energia reprimida.

Aqui apenas nos arrastamos, como mortos, iludidos de alguma última sombra de vida.

Se alimentamos a raça, é uma dieta de condenação.

Desde que cheguei querem que eu me livre de mim.

Mas o que considero espúrio é o que persiste de humano em meu ser.

Certamente ele não conversava comigo.

Mas vi os traços em seu rosto. Ali estavam todos.

Ele era uma vastidão de personagens.

Cada um com a sua arte de predizer o passado e pormenorizar o futuro como uma gravura inevitável.

Foi o único dos internos que olhou para a minha vassoura.

 

• NATUREZA ERRANTE E PACÍFICA

 

A sala de metais era uma penumbra encardida.

Sempre me viu como se não me reconhecesse aquele rosto na parede marcado por infinitos furos.

Eu sei que muitos pontos ali querem me dizer algo.

Se eu fui bem sucedida no amor, se restei viva em uma matança ou me desfiz de velhos móveis na casa de meu terceiro marido.

O meu rosto é uma ciência proscrita de catarses e delírios.

Dentro do ônibus que me leva ao Grande Hotel, nas manhãs de sábado, repito exaustivamente: sou uma faxineira.

De corpo inteiro. Meu rosto não é a minha única arte.

Não quero deixar o céu para trás, nem mesmo o inferno.

Quero apenas reduzir a sujeira do mundo e voltar para casa.

 

• AURORA E MARIA EM ORAÇÃO CIRCULAR

 

Por vezes o protocolo da faxina desafia minha habilidade.

As carnes descrevem seus hábitos imperfeitos.

Metais designados para o regozijo se confundem com lemas proscritos, de acordo com a hora em que são sublimados.

Eu sou o desequilíbrio apaixonado. Tu és a minha balança.

Degusto a gordura de teus elixires. Escalas minha fome.

Geramos um fluido dourado em mútua corredeira.

Urina ou sêmen, leite ou sangue – somos o centro flamejante.

Tu me ensinas a ler em teu livro de presságios.

Unimos nossos sentidos para que te descubras em mim.

Reajo à sujeira dos corpos. Desentranhas a sujeira das almas.

Somos talvez a única simetria possível, nas manhãs de sábado, nos manuscritos ilegíveis das paredes deste lugar sombrio.

 

• A MEDIDA DO UNIVERSO

 

O véu liberta a casca.

A noite se desdobra em trevas iluminadas.

Meus nomes cultivam a terra.

Teus rostos são folhas descortinadas de uma mesma árvore.

Os nossos passos descrevem a avidez do que jamais alcançamos.

Os ossos reclamam as mortes efêmeras.

Nenhuma sabedoria, por mais confusa que seja a língua, reporta o farrapo em que me deixastes quando não pude desaparecer em teu íntimo.

Eu sou uma cruz de lágrimas pela ereção impossível.

Eu sou um osso despovoado e um desequilíbrio infalível.

E sou o estrondo consumido pela decepção.

As tuas juras me tornam irreconhecível ante meus erros.

Não podemos sonhar um com outro ou eleger a perfeição como a falácia venturosa de nosso reino.

Somos o assombro insubmisso.

Nada nos ultraja sem que antes nos excite a desmembrá-lo.

 

• MELANCOLIA DE UM ANJO SEM VOZ

 

Uma noite partida e não quis voltar a ser o que era.

Casebre com cores impuras e uma safra de reflexos.

A sombra nos golpeava uma vez extintas as velas.

A madrugada ardendo em nossos corpos suados.

Ah como sonhei! Como me vi despida por ele!

Com seus caprichos me preparando para a eternidade.

Eu sempre quis ser um símbolo, uma catedral, um modo da morte se aprofundar em mim para não perecer jamais.

Guilherme era o diagrama mágico de meu renascimento.

O calafrio de um talho, a lágrima multiplicando ângulos de uma suavíssima morte, todo meu ser em suas mãos.

Tu me ensinarias [uma noite] a ser o que nunca soube.

 

• RESIDENTE SEM LIMITES

 

Nunca me perguntes onde eu pus o piano.

Eu o espalhei pela casa, por onde coube.

Um livro, o encontras ali, sob a cama.

Como um perfume naufragado no lago.

Uma pintura fingindo ser a parede que amas.

A casa é o melhor lugar para aprender onde estão as coisas.

Os objetos nunca sabem exatamente o que são, até que os localizamos onde não deviam estar.

As cadeiras costumam se perder.

Por vezes são pintadas de modo inexpressivo.

Não posso me sentar em um aquário ou beber um candelabro.

Mas são adoráveis as coisas quando perdem significado.

O piano sempre me pediu para ser retirado de onde estava.

Eu não o deixaria esgrimir-se com sua natureza.

Fui tornando possível a evidência de seu desejo, em cada nota.

Aos poucos descobri inúmeros espaços onde hospedar sua verdade mais latente.

O piano é o que somos. E deve estar na casa inteira.

 

• MANUSCRITO SILENCIOSO

 

Foi um forasteiro em sua vida durante muitos meses.

Quando enfim conseguiu destrancar as janelas do quarto sentiu que seu espírito começava a enxovalhar-se.

Jamais o vi como um homem de hábitos, embora de sua boca as imprecações jorrassem com exaustiva repetição.

Fora possuído por um estranho modo de odiar a si mesmo.

Chego a crer que a morte sentiu-se liberta quando já não havia mais o que cumprir em Antonio.

Ao lado de seu corpo foi encontrado um papelote com esta única frase de um enigmático Sifu: O sábio age fazendo nada.

Uma pista falsa, como quase todos os seus anátemas?

Não saberemos nunca.

 

• DEIXO A CASA ONDE A ENCONTREI

 

O ar perambulava inquieto aquela manhã pelo corredor.

Parecia derramar-se sobre o silêncio a soletrar os contornos de um mínimo significado para o pronunciado estado de abandono.

A casa nunca estivera tão vazia.

Desde que entrei me vi procurando algum vulto: uma lágrima, um escorpião, um fragmento de mistério disposto a falar.

O corpo de Antonio estava em ordenado sossego.

Em completo desalinho, três cômodos adiante, me esperava o de Maria.

Árvore fatigada a quem lhe custara muito perder seiva e ramos.

Desci ao porão temendo o que ali encontraria.

Nenhuma palavra escondida. Nenhum crime denunciado.

Segui o conselho inesperado de meus ossos e me fui dali.

Não me reconheci jamais naquela casa, assim que não deixaria que ela agora desencadeasse algum tormento em minha vida.

Fechei a porta e lhe dei as costas.

O corpo de Nise não soube encontrar.

Nunca mais retornamos ao Grande Hotel.

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

 

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