sábado, 22 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Duas mentiras

 

 

o mundo continua sendo um breve colapso logo que as pálpebras baixem

& meu amor por ti uma profanação consciente de eternas estrelas de rapina

ROBERTO PIVA

 

Longe da blasfêmia, deus algum resiste.

FM

 

1.

 

Minha nudez de bruços espalhada pelo sofá

dava boa acolhida aos afagos de sua mão.

Talvez se espantasse ao tocar-me entre as coxas,

pois aqueles dedos esboçavam alguma surpresa

antes de mergulharem em minha umidade.

Depois me abria toda, com as duas mãos,

como se viesse do olhar sua fome maior.

E ali, me admirando, mal arriscava um beijo,

até que lhe mandasse enterrar-se em mim de vez.

Com suportável violência então me atendia,

suando todo o peso de seu corpo sobre o meu.

Parecia rasgar-me, mas ninguém jamais o fizera

tão bem quanto aquele garoto. Não há dúvida:

havê-lo morto deixou-me um pouco sem mim.

 

2.

 

À noite eu lhe disse que seria sua menina,

evocaria as forças que fariam dele um maestro

a afinar-me toda em cada toque. Foi delicado

ao me atar enquanto repetia o que lhe era

por mim sussurrado. Meus mamilos queimavam.

Ele os mordia cozendo-me em saliva como

se fosse óleo. Eu lhe pedia que não deixasse

um santo descoberto. Suguei-lhe tudo quanto

coube em minha boca. Bem sabia o que fazer

enquanto atiçava meus lábios, me incitando

a mordê-lo. E o fiz, até que sangrasse um pouco.

Porém naquela noite algo lhe espantou o gozo.

Deixou-me presa ao chão e se foi. Jamais o pude

entender, ou a quem quer que ali tenha estado.

 

3.

 

Desde quando me visitas, delírio flamejante,

enquanto durmo e nem sequer sonho contigo?

Não sei como me exploras, porém saberás

o quanto me encanta esse queimante latejo

que deixa suas marcas em minhas entranhas.

Todas as noites eu me enrosco em meu desejo

à espera que me venhas consumir como um rito.

Presa fácil de tuas virtudes ou perversão,

nada disto importa. O que me intriga, anjo

ou demônio, é que afinal me evites desperta,

que não me queiras enquanto não adormeço.

Para onde me levas, desfalecida e sem memória,

sem que me deixes vestígio algum além do fogo

que quando acordo me inunda a carne inteira?

 

4.

 

Cenas retiradas de um corte, ainda em sangue,

tão invisíveis quanto cicatrizes. Agudeza

de gestos imprevistos. Quero provar teu corpo

agora, enquanto o extraio do meu, deleitosa

habilidade de fazer com que saias de mim

ensopado de gozos. Retorna um pouco mais,

seu bruxo arredio. Espedaça-me o que reste.

Sou tua loba exasperada até que me cegues

de tanto prazer. Rimos das cenas que saltam

de tuas mordidas e arranhões. A minha dor

também te deseja, garimpeiro devasso.

Quando me sangras bailam fogos-fátuos,

e um quero-quero desponta nos brejos

de minha alma. Apenas tu, diabo de homem.

 

5.

 

Nunca o pude encontrar, residente incerto

em todos os lugares. Descria do rigor das formas,

entretinha-se a criar receitas com fragmentos

de corpos humanos, e em meus braços revivia

os amores que tivera com sua mãe. Também

eu tinha fome e sede do sangue de sua alma,

e nada em meu corpo o acusava de herético.

Dosava saliva em mim a enlouquecer-me,

deixava-o morder-me a nuca como se gravasse

ali um testemunho inextinguível de sua visita.

Mas o desgraçado ia sempre embora, sempre,

deixando-me o avesso jorrado por toda a casa.

Atormenta-me a imagem de ter que matá-lo

para dispor de sua morada sempre que o queira.

 

6.

 

Dorme comigo esta noite. Quem sabe invento

um nome para ti. Sei que há quem desconheça

como possa vir a ser chamado, ou quem prefira

jamais pronunciar o próprio nome. Toco em ti,

em tua lasca em desuso enquanto dormes,

habitante feliz entre pentelhos, sossegada pela

inocência ou pelo amor que não posso crer

seja algo além da imagem de meu preciso desejo.

Se o extirpo para que não ame outras jamais,

dele também me privo, uma prova além de mim.

Como arrastar para dentro de si um homem

sem que lhe falte tudo o que lhe cabe em vida?

Afago-a por baixo e beijo a glande adormecida,

enquanto as lágrimas sugerem outro modo de ser.

 

7.

 

Antes não era assim. Estávamos no poema,

elementos esvoaçantes por toda a festa – baile

de hereges e corruptos –, estávamos ali, entre

anjos bêbados atribuindo culpa a quem seja.

Eu te procurava alheio às máscaras, meu reino

independente, imaginativo. Homem ou mulher,

tu eras sempre único. Não te daria um nome

bíblico. Refazes a ti de tuas ilusões como jamais

imaginei houvesse alguém. Não quero um olhar

piedoso em mim. Tenho que te matar e não sei

se algo um dia explique este impulso. O dilema

será sempre o meio, o recurso com que desatar

tua existência da minha. Um cancro molestando

meu amor e requerendo que eu te mate, apenas.

 

8.

 

Houve um momento em que fiquei apenas contigo.

Todos se retiraram e até ríamos, sem saber ao certo

quem éramos: um diante do outro. Tu eras só

gracejo, farto de heresias e artimanhas. Imagens

camuflavam-se em quimeras portáteis, sacolas

de serpentes malignas. Eu sabia que não eras aquilo,

que havia uma ilusão adulterada diante de mim,

não eras, não eras, não eras nada daquilo, mas era

exatamente assim como estavas à minha frente.

Como discutir com a vida quando ela se mostra

o que não é? A quem interessa a conversão, senão

aos desesperados? O mundo também está infectado

de mim. Somos tão estranhos entre nós, que todos

queremos um mal isolado, uma fatalidade distinta.

 

9.

 

Uma greta de claridade que nunca soubemos se vinha pelos olhos na cena que se entremostrava a insultar-nos ou pela over the raimbow que o piano de Keith Jarrett afirmava não haver engano. Era assim: era assim: mil vezes buscar o mesmo ponto no mesmo ponto. Andávamos a repetir acordes dispersos da existência, afeitos às boas sementes, crendo na justiça, no poder guardado em salmos, à disposição de selos agudos. Não era apenas como me penetravas. Eram praças, a maneira como o vento me tocava o rosto e a senhora que vendia florais já o reconhecia. Um atracadouro sabia com exatidão o nome que nunca nos dissemos. Ando por aquelas ruas todas, inquieta, sem que nada explique por que não pude deixar de matá-lo.

 

10.

 

Dissecados ali sobre a mesa: o rosto e a máscara,

dilema minucioso de interferências de espectros

cujo juízo não cabe sequer a eles mesmos. Ainda

que se integre o Diabo aos processos sangrentos

da Igreja, toda a repugnância virá de Deus,

pela presunção de que poderia salvar a todos.

As opiniões suspeitas são filhas da vaidade e não

há prova em contrário. Ouvíamos Shakti, nossos

corpos entornados no tapete da sala, o vinho

de sua saliva embriagando meus mamilos. De qual

obra tratávamos senão da latitude desses versos,

do caráter da espátula nas cores que lhes revelam

os mais secretos dons? Não há destino ou mérito,

e todo juízo deriva sempre de uma frustração.

 

11.

 

Tocava meu corpo de ouvido, disposição gráfica

alguma do acaso me despertaria melhores gozos.

Cheiro de anca, joelho se mostrando acanhado,

solecismo de intervalos indecisos, flancos irônicos,

ríamos de tudo com ele vendado e sendo vidente

de meus afrescos e retábulos. E identificava-me

o fundo da agulha como se lhe fosse o criador.

Arejava-me a bunda a lamber-me em toda parte,

rumorejando: nem Pollock ou Bandeira captariam

a abstração rugosa deste pequeno centro do mundo.

E detalhava cidades inteiras na ponta da língua,

imagens que o meu suplício gozoso logo desfazia

em sua volúpia de restaurar o mundo a cada hora.

Como recriá-las agora, desfeita a semelhança?

 

12.

 

Quem foi? O Diabo não diz. Deus não se encontra.

A vida reduz o trabalho da imprensa a um mesmo

lugar-comum. Mesmo que eu declare minha culpa

não haverá provas. Não há motivo nem se localiza

a arma do crime. Estás simplesmente morto,

um conflito a menos nas relações diplomáticas.

Houvéssemos planejado isto e nem seria preciso

desferir-te um golpe fatal. Ocultaria teu corpo

por algum tempo e logo me voltarias a foder, meu

anjo, como nenhum outro homem jamais jamais.

Quanto em nós consumimos amanhando o impossível?

Que horrores justificam o amor ausentar-se de si?

Quantas vezes então terei que matá-lo, diabinho,

até que me identifiquem e eu possa dizer quem és?

 

13.

 

Na banheira o riso é que nos sacode e nem pensamos em carnes trêmulas ou restos humanos empurrando-se uns aos outros no matadouro das ruas. Não estamos no maio de ‘68 ou talvez dali nunca tenhamos saído. A conspiração é filha dos pontos de interesse. Pregoeiros como Dennis Arcand ou Bernardo Bertolucci, compreendem a ação do punhal na banheira de maneiras distintas. Dennis esvazia seus filmes dos formidáveis tolos que ainda acreditam na inocência. Bernardo se sente atravessando um nevoeiro, e impõe a seus personagens uma visão que afinal lhes é cedo para conquistá-la. Quando o meu amor me mordiscava os dedos dos pés, na banheira, nos lembrávamos de Peter Weiss, da alucinação da realidade representada em um hospício, loucos atores que indagavam que cidade é esta na qual a carne está nua nas ruas? E enquanto ouvíamos Joss Stone e tomávamos um Quinta do Côtto nos entreolhávamos: quantos suportarão tudo antes de se vingarem? O meu amor dedilhava minha xota submersa e não segurávamos punhal algum em nossas mãos. Longo ruflar de tambores, dizia ele. Eu ria e cheia de admiração confessava que o dedão de seu pé era o máximo dentro de mim.

 

14.

 

Em que cidade te encontras? Toda vez que tocava

eu o instigava rindo. Já te decidiste quantos queres

ser em mim? Sabes quantos suporto, meu anjo?

Tuas privações se multiplicam e quase todas são

fruto de uma falsa ideia de justiça no mundo.

Põe tua mão bem aqui. Não te disfarço a umidade.

Eu te quero bem mimoso dentro da confissão, e

que lambas em mim as escamas mais desconformes.

Os raros desenhos dos pratos de meus gozos são teus.

Só não me insultes com a anatomia do irreversível.

Tudo já foi embora ou aguarda sua oportunidade.

Não há crises ou queixas, inspiração ou agonia.

Aos indecisos não sobra sequer um prego, uma hora

marcada na jaula a que se recolhem. Eu nos vejo.

 

15.

 

Adoro quando me fotografas nua, inaugurando ângulos insuspeitos. Ver meu corpo assim dobrado em elegância e desvario, rindo com o desaparecimento súbito de certos conceitos, como se não mais tumultos e assobios nos arrastassem a revolução alguma, perceber como escreves levado apenas por um segundo, que não queres construir nada, que isto caberá um dia à tua escrita ou a teus leitores, por isto és tão livre para soterrar belezas e pôr em dúvida o fanatismo disfarçado de harmonia… De que outra maneira eu leria um manuscrito teu ao lado da câmara digital?

 

Eu sempre soube de nossa impossibilidade, mas quis levá-la até o limite porque te amo demais.

 

Contudo, indago se este não é um pastiche do cinema francês que tanto detestamos? Por que agora descarnar a lucidez em busca de um palimpsesto da miséria intelectual já compreendida e refutada? A nenhum homem entreguei a minha nudez tão sem obstáculo. Ensaiávamos juntos o meu deleite quando me agarravas. Tu me amas demais? Insuficientemente de menos? E não conta o quanto eu te amo? Queres que eu repita com todo o meu ser o quanto me amas e que até sonhe com isto? E quando me darás o teu amor? Empurro-te com o pé e amarroto teu nariz a quase te deixar sem fôlego. Eu não quero ter razão, mas sim que te desfaças de tuas migalhas de presunção. Somos apenas o que neste instante estamos a ser. Se não compreendes isto, poeta, não terei remorso algum em matá-lo.

 

16.

 

Deitávamos para o filme e nos púnhamos para além

do mesmo. Quando estava bem uma Emma Thompson

ou um Sean Penn, o vinho se enriquecia e as mãos

ameigavam nossos pêlos sob o edredom como se

fôssemos nós a melhor representação de cada cena.

Diante de uma má atuação, as mãos não se continham

e refazíamos o enredo, fosse contra os cátaros ou a

excomunhão de algum dualismo não revelado. O amor

não tem nenhum apreço pela história. Não há lei divina

que escreva tão bem seus postulados quanto o jorro

picante do esperma de meu homem dentro de mim.

Emenda tuas doutrinas umas nas outras de tal forma

que não tenhas, a custo, que ilustrar o meu mundo.

Apenas tua heresia pacifica e me abrasa as dádivas.

 

17.

 

Os corpos dançavam todos, como se expulsassem

os espíritos corruptos. Nus com asas, ilustrados

feito uma parábola insofismável, cuja escritura

os evitasse por temor. Quantos laços eclesiásticos

não foram rompidos por taras, em penas mitigadas

pela autoridade subversiva do esplendor a todo

custo? Qual doutrina pode se basear na descrença

absoluta? Quantas almas constituem um rebanho

em termos de mercado? O que cabe ainda a Deus

entender antes que se sinta de todo inutilizado?

Pus um lençol sobre o corpo inerte de meu amor

e o segui tocando como se quisesse reavivá-lo.

Só não escondeu de mim sua memória, frações

onde o safado disse aguardar-me em outra cama.

 

18.

 

Por onde querem que caia a queda?

Pelo punhal sob o lenço sonegado

ou pelo disparo de origem indeferida?

 

Por onde matamos o amor de uma forma

regulamentada pela lei? O amor acaba

por se confundir com tudo e pode ser

 

o estopim de uma matança estúpida.

De repente me ocorre aqui que a vida

nos leva sempre a matar a ela mesma.

 

Fosse apenas um romance e por tudo

o que ali houvesse de mim, o que estaria

a derrotar senão a própria linguagem?

 

Todo este homem que tanto amei, cujo

frêmito eu sinto ainda a pronunciar-me

um despenhadeiro langoroso por todo o ser,

 

todo ele é apenas linguagem que desbarato

ao fim de um livro? E se outros amores

me ocorrem, saio a confundir seus clamores

 

afundando-me na puríssima areia mítica

da semelhança de páginas de todos os livros?

Então o que buscamos em tais papiros senão

 

uma pérola impura do que de fato somos?

Contaminação, sordidez, lascívia? Disfarce

do que afinal mais tememos encontrar em nós?

 

Um livro como um ponto de fuga, semelhança

secreta, ficcional ao tornar-se mais fácil negá-la?

Por isto dormimos todos apodrecidos de nossa

 

própria morte. Se vasculhar por entre móveis,

decerto encontrarei clavículas ou rótulas

desse monstro de pedra ígnea que me sacudiu

 

toda a existência. Desfazia-me com unguentos

de sua doçura harmonizada em meus poros.

Ágrafo capaz de me revelar escritos submersos.

 

Se não pensei em refazer a queda, em deixar

de lado o livro, em sair a buscar seus pedaços

a ver se o recompunha como um ser redivivo,

 

é que desconheço como os despojos comungam

entre si, se são incondicionalmente insurrectos,

que ideias cada uma de suas partes considera

 

acerca do prodígio da rearticulação. Só agora

dei por mim: se não há lei que regulamente

a morte do amor, em que base restabelecê-lo?

 

Sem cairmos em golpes de linguagem, como

tratar de entranhas sem que sejam prevenidas

que saem gotas de sangue de mármore e papel?

 

E de que serve tudo isto? Entramos em um reino

crepitante de línguas que roçam nossa pele

e nos atormentam de maneiras palpitantes.

 

Os remos chegam forjados e nem desconfiamos

que vamos apenas remar, apenas, apenas remar.

Então por onde matamos esse amor, forrando

 

em trapos a hemorragia com que o destroçamos

quando não havia mais recurso à difamação?

Representamos a queda, a grácil similaridade

 

entre o trágico e o cômico, o uso do punhal,

e a regulamentação da lei tão sobrecarregada

de lacrimosas origens e verbetes hesitantes?

 

Não há lei para nada. Nisto nos prolongamos.

 

19.

 

Não rompe nunca o pano. Os detalhes sangrentos

não passam de improvisos. Umas poucas imagens

quisera retocar, porém o morto já ali estava,

dessangrado e sem recurso a novos argumentos.

Não me serviam as vestes de sombras em terracota,

e suas vozes escorreram todas pelo proscênio.

Nunca se sabe ao certo com que morto se pode

contar em um teatro em ruínas, o oficial de justiça

por vezes sendo o único espectador. Além de nós,

as vítimas mais abjetas de tudo o que escrevemos.

Seríamos semelhantes ao rosto estriado de um diabo

que não costuma nos revelar de todo o que somos?

Ou mal reconhecemos nosso espírito o mudamos,

para que não nos venha dominar o que tememos?

 

20.

 

O que planejas? O tolo marcava a nós uma faixa, sentado ao pé da estante. Vinha então me apertar os seios com aqueles laços e era tanta a doçura que meus requebros desafiavam a música que nos acompanhava. E espremia cerejas em meu peito, sugando-as como se lesse a mais esplêndida beleza tatuada no abismo iminente. O ar está tão róseo na tarde e não sabia como amá-lo ainda mais se isto acaso me fosse pedido. Quem nos toca nessa porta? O que deseja? Quem pensa que mora em nós? O amor é para ser dito de uma só vez e mesmo assim não vou dizê-lo.

 

21.

 

Quando me sentei aqui para escrever este livro tua ausência ainda me doía. Não pude contar a ninguém que te matei, nem o que fiz com teu corpo. O assunto é fácil de resolvê-lo, bem mais que a sedução de compartir com alguém nossas migalhas da existência. Quando se perde um filho até se pode levar uma amiga ao cemitério ou dizer do rádio imprestável que simplesmente foi posto no lixo. Mas quando se mata o homem que se ama e esconde seu corpo, o que enunciar a quem quer que seja? E quando se tem dúvida onde este corpo esteja? E quando já não se sabe se de fato o matou? Tu me dóis tanto em mim que já não sei ao certo o que fiz de ti.

 

22.

 

Os mortos se escondem por toda parte em nós.

Cobrejam quando o assunto é terreno e lavram

suas asas quando o vento lhes é benfazejo.

Afinal já estão mortos e de nada podem valer.

Que ajam assim os vivos já é outra doutrina,

tornada a imaginação um distúrbio e a crença

uma encenação desprovida de toda originalidade.

Numa noite assim teu corpo desce sobre o meu

e a minha nudez é tanta que a tens com tudo,

e é tão bom que me penetres, que tuas árvores

sejam pássaros e teus casebres nuvens, e a flor

de teu sexo seja afável no meu e os mortos

não caibam em cena sequer na memória, pois

eu verdadeiramente te amo, e te quero bem vivo.

 

23.

 

Era assim, meu anjo de quantas asas?

Toda a música que me tocavas, era assim?

Bagres lascivos em suas guelras com entradas secretas,

exuberância dissoluta por onde se entrevia um banho de quimeras,

malícia de falos levitando em penhascos…

Era este o teu livro?

Pinturas de naufrágio,

relicário de árvores decaídas como corpos celestes ou o tombo de amantes decepadas pelos pés…

Toda a força humana moída por um cancro na imaginação,

as inúmeras formas descritas disformes…

Estás mesmo escrevendo este livro?

E ainda me queres tua puta de meia idade,

tu com a tua matança humana disfarçada em versos,

teu deplorável enredo romântico:

quantas vezes mal olhastes em direção a teus pés?

E já nem me lembro ao certo onde te enterrei:

 

24.

 

Não vejo nenhum policial. Ninguém deu pela tua falta. A dúvida maior ficou comigo: não há quem me faça recordar o que fiz com teu corpo. Um de nós não passa de um lapso de memória. Não é que queiramos poupar um ao outro, mas simplesmente não sei o que fiz de ti. Nos banhávamos o corpo todo de vinho, esperma, cereja, e por vezes sangrávamos um pouco, entre risos. Um flagelo poético que a música ajudava a dissipar. Mas onde estás agora? Não quero com isto te propor uma ausência erudita. Assim vais acabar me matando. Onde estás, diabo? Onde enfiei a porcaria de teu corpo morto? O mal de tua ausência me sufoca. Não passas de um reles amante desaparecido, sórdida criatura que se nega a aceitar a morte. Mostra-te, feiura corroída pelo desamor…

 

25.

 

Tu me eras tudo: como me tocavas bem dentro,

na carne e no espírito, sem jamais separá-los.

A vida de ninguém está preparada para o amor.

A poesia, a liberdade e o amor decerto são fraudes

mais patéticas do que a polidez que por vezes

os quer fazer de reféns. Álibi ou simulacro, é fato

que há um programa de recapacitação de hereges.

Proscrita ou prescrita: a tinta será sempre um risco.

Não sei se tive um amante, se vivi um louco amor

e o matei. Desperto dando gritos alheios, como

se vivesse um verso de Díaz-Casanueva. Dedicar-me

a estas memórias, faz com que me identifique a

rostos iluminados por uma imagem que se repete:

nada sei de mim: não me lembro ao certo o que fui.

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

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Dirigida por Elys Regina Zils

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