o mundo continua sendo um breve colapso logo
que as pálpebras baixem
& meu amor por ti uma profanação
consciente de eternas estrelas de rapina
ROBERTO PIVA
Longe da blasfêmia, deus algum
resiste.
FM
1.
Minha nudez de bruços espalhada pelo sofá
dava boa acolhida aos afagos de sua
mão.
Talvez se espantasse ao tocar-me entre
as coxas,
pois aqueles dedos esboçavam alguma
surpresa
antes de mergulharem em minha umidade.
Depois me abria toda, com as duas
mãos,
como se viesse do olhar sua fome
maior.
E ali, me admirando, mal arriscava um
beijo,
até que lhe mandasse enterrar-se em
mim de vez.
Com suportável violência então me
atendia,
suando todo o peso de seu corpo sobre
o meu.
Parecia rasgar-me, mas ninguém jamais
o fizera
tão bem quanto aquele garoto. Não há
dúvida:
havê-lo morto deixou-me um pouco sem
mim.
2.
À noite eu lhe disse que seria sua menina,
evocaria as forças que fariam dele um
maestro
a afinar-me toda em cada toque. Foi
delicado
ao me atar enquanto repetia o que lhe
era
por mim sussurrado. Meus mamilos
queimavam.
Ele os mordia cozendo-me em saliva
como
se fosse óleo. Eu lhe pedia que não deixasse
um santo
descoberto. Suguei-lhe tudo quanto
coube em minha boca. Bem sabia o que
fazer
enquanto atiçava meus lábios, me
incitando
a mordê-lo. E o fiz, até que sangrasse
um pouco.
Porém naquela noite algo lhe espantou
o gozo.
Deixou-me presa ao chão e se foi.
Jamais o pude
entender, ou a quem quer que ali tenha
estado.
3.
Desde quando me visitas, delírio flamejante,
enquanto durmo e nem sequer sonho
contigo?
Não sei como me exploras, porém
saberás
o quanto me encanta esse queimante
latejo
que deixa suas marcas em minhas
entranhas.
Todas as noites eu me enrosco em meu
desejo
à espera que me venhas consumir como
um rito.
Presa fácil de tuas virtudes ou
perversão,
nada disto importa. O que me intriga,
anjo
ou demônio, é que afinal me evites
desperta,
que não me queiras enquanto não
adormeço.
Para onde me levas, desfalecida e sem
memória,
sem que me deixes vestígio algum além
do fogo
que quando acordo me inunda a carne
inteira?
4.
Cenas retiradas de um corte, ainda em sangue,
tão invisíveis quanto cicatrizes.
Agudeza
de gestos imprevistos. Quero provar
teu corpo
agora, enquanto o extraio do meu,
deleitosa
habilidade de fazer com que saias de
mim
ensopado de gozos. Retorna um pouco
mais,
seu bruxo arredio.
Espedaça-me o que reste.
Sou tua loba exasperada até que me
cegues
de tanto prazer. Rimos das cenas que
saltam
de tuas mordidas e arranhões. A minha
dor
também te deseja, garimpeiro devasso.
Quando me sangras bailam fogos-fátuos,
e um quero-quero desponta nos brejos
de minha alma. Apenas tu, diabo de
homem.
5.
Nunca o pude encontrar, residente incerto
em todos os lugares. Descria do rigor
das formas,
entretinha-se a criar receitas com
fragmentos
de corpos humanos, e em meus braços
revivia
os amores que tivera com sua mãe.
Também
eu tinha fome e sede do sangue de sua
alma,
e nada em meu corpo o acusava de
herético.
Dosava saliva em mim a enlouquecer-me,
deixava-o morder-me a nuca como se
gravasse
ali um testemunho inextinguível de sua
visita.
Mas o desgraçado ia sempre embora,
sempre,
deixando-me o avesso jorrado por toda
a casa.
Atormenta-me a imagem de ter que
matá-lo
para dispor de sua morada sempre que o
queira.
6.
Dorme comigo esta noite. Quem sabe invento
um nome para ti. Sei que há quem
desconheça
como possa vir a ser chamado, ou quem
prefira
jamais pronunciar o próprio nome. Toco
em ti,
em tua lasca em desuso enquanto
dormes,
habitante feliz entre pentelhos, sossegada
pela
inocência ou pelo amor que não posso
crer
seja algo além da imagem de meu
preciso desejo.
Se o extirpo para que não ame outras
jamais,
dele também me privo, uma prova além
de mim.
Como arrastar para dentro de si um
homem
sem que lhe falte tudo o que lhe cabe
em vida?
Afago-a por baixo e beijo a glande
adormecida,
enquanto as lágrimas sugerem outro
modo de ser.
7.
Antes não era assim. Estávamos no poema,
elementos esvoaçantes por toda a festa
– baile
de hereges e corruptos –, estávamos
ali, entre
anjos bêbados atribuindo culpa a quem
seja.
Eu te procurava alheio às máscaras,
meu reino
independente, imaginativo. Homem ou
mulher,
tu eras sempre único. Não te daria um
nome
bíblico. Refazes a ti de tuas ilusões
como jamais
imaginei houvesse alguém. Não quero um
olhar
piedoso em mim. Tenho que te matar e
não sei
se algo um dia explique este impulso.
O dilema
será sempre o meio, o recurso com que
desatar
tua existência da minha. Um cancro
molestando
meu amor e requerendo que eu te mate,
apenas.
8.
Houve um momento em que fiquei apenas contigo.
Todos se retiraram e até ríamos, sem
saber ao certo
quem éramos: um diante do outro. Tu
eras só
gracejo, farto de heresias e
artimanhas. Imagens
camuflavam-se em quimeras portáteis,
sacolas
de serpentes malignas. Eu sabia que
não eras aquilo,
que havia uma ilusão adulterada diante
de mim,
não eras, não eras, não eras nada
daquilo, mas era
exatamente assim como estavas à minha
frente.
Como discutir com a vida quando ela se
mostra
o que não é? A quem interessa a
conversão, senão
aos desesperados? O mundo também está
infectado
de mim. Somos tão estranhos entre nós,
que todos
queremos um mal isolado, uma
fatalidade distinta.
9.
Uma greta de claridade que nunca
soubemos se vinha pelos olhos na cena que se entremostrava a insultar-nos ou
pela over the raimbow que o piano de Keith Jarrett afirmava não haver
engano. Era assim: era assim: mil vezes buscar o mesmo ponto no mesmo ponto. Andávamos
a repetir acordes dispersos da existência, afeitos às boas sementes, crendo na
justiça, no poder guardado em salmos, à disposição de selos agudos. Não era
apenas como me penetravas. Eram praças, a maneira como o vento me tocava o
rosto e a senhora que vendia florais já o reconhecia. Um atracadouro sabia com
exatidão o nome que nunca nos dissemos. Ando por aquelas ruas todas, inquieta,
sem que nada explique por que não pude deixar de matá-lo.
10.
Dissecados ali sobre a mesa: o rosto e a
máscara,
dilema minucioso de interferências de
espectros
cujo juízo não cabe sequer a eles
mesmos. Ainda
que se integre o Diabo aos processos
sangrentos
da Igreja, toda a repugnância virá de
Deus,
pela presunção de que poderia salvar a
todos.
As opiniões suspeitas são filhas da
vaidade e não
há prova em contrário. Ouvíamos
Shakti, nossos
corpos entornados no tapete da sala, o
vinho
de sua saliva embriagando meus
mamilos. De qual
obra tratávamos senão da latitude
desses versos,
do caráter da espátula nas cores que lhes
revelam
os mais secretos dons? Não há destino
ou mérito,
e todo juízo deriva sempre de uma
frustração.
11.
Tocava meu corpo de ouvido, disposição gráfica
alguma do acaso me despertaria
melhores gozos.
Cheiro de anca, joelho se mostrando
acanhado,
solecismo de intervalos indecisos,
flancos irônicos,
ríamos de tudo com ele vendado e sendo
vidente
de meus afrescos e retábulos. E
identificava-me
o fundo da agulha como se lhe fosse o
criador.
Arejava-me a bunda a lamber-me em toda
parte,
rumorejando: nem Pollock ou Bandeira
captariam
a abstração rugosa deste pequeno
centro do mundo.
E detalhava cidades inteiras na ponta
da língua,
imagens que o meu suplício gozoso logo
desfazia
em sua volúpia de restaurar o mundo a
cada hora.
Como recriá-las agora, desfeita a semelhança?
12.
Quem foi? O Diabo não diz. Deus não se encontra.
A vida reduz o trabalho da imprensa a
um mesmo
lugar-comum. Mesmo que eu declare
minha culpa
não haverá provas. Não há motivo nem
se localiza
a arma do crime. Estás simplesmente
morto,
um conflito a menos nas relações
diplomáticas.
Houvéssemos planejado isto e nem seria
preciso
desferir-te um golpe fatal. Ocultaria
teu corpo
por algum tempo e logo me voltarias a
foder, meu
anjo, como nenhum outro homem jamais
jamais.
Quanto em nós consumimos amanhando o
impossível?
Que horrores justificam o amor
ausentar-se de si?
Quantas vezes então terei que matá-lo,
diabinho,
até que me identifiquem e eu possa
dizer quem és?
13.
Na banheira o riso
é que nos sacode e nem pensamos em carnes trêmulas ou restos humanos
empurrando-se uns aos outros no matadouro das ruas. Não estamos no maio de ‘68
ou talvez dali nunca tenhamos saído. A conspiração é filha dos pontos de
interesse. Pregoeiros como Dennis Arcand ou Bernardo Bertolucci, compreendem a
ação do punhal na banheira de maneiras distintas. Dennis esvazia seus filmes
dos formidáveis tolos que ainda acreditam na inocência. Bernardo se sente
atravessando um nevoeiro, e impõe a seus personagens uma visão que afinal lhes
é cedo para conquistá-la. Quando o meu amor me mordiscava os dedos dos pés, na
banheira, nos lembrávamos de Peter Weiss, da alucinação da realidade
representada em um hospício, loucos atores que indagavam que cidade é esta na qual a carne está nua nas ruas? E enquanto
ouvíamos Joss Stone e tomávamos um Quinta do Côtto nos entreolhávamos: quantos
suportarão tudo antes de se vingarem? O meu amor dedilhava minha xota submersa
e não segurávamos punhal algum em nossas mãos. Longo ruflar de tambores, dizia ele. Eu ria e cheia de admiração
confessava que o dedão de seu pé era o máximo dentro de mim.
14.
Em que cidade te encontras? Toda vez que tocava
eu o instigava rindo. Já te decidiste
quantos queres
ser em mim? Sabes quantos suporto, meu
anjo?
Tuas privações se multiplicam e quase todas
são
fruto de uma falsa ideia de justiça no
mundo.
Põe tua mão bem aqui. Não te disfarço
a umidade.
Eu te quero bem mimoso dentro da
confissão, e
que lambas em mim as escamas mais
desconformes.
Os raros desenhos dos pratos de meus
gozos são teus.
Só não me insultes com a anatomia do
irreversível.
Tudo já foi embora ou aguarda sua
oportunidade.
Não há crises ou queixas, inspiração
ou agonia.
Aos indecisos não sobra sequer um
prego, uma hora
marcada na jaula a que se recolhem. Eu
nos vejo.
15.
Adoro quando me fotografas nua,
inaugurando ângulos insuspeitos. Ver meu corpo assim dobrado em elegância e
desvario, rindo com o desaparecimento súbito de certos conceitos, como se não
mais tumultos e assobios nos arrastassem a revolução alguma, perceber como escreves
levado apenas por um segundo, que não queres construir nada, que isto caberá um
dia à tua escrita ou a teus leitores, por isto és tão livre para soterrar
belezas e pôr em dúvida o fanatismo disfarçado de harmonia… De que outra
maneira eu leria um manuscrito teu ao lado da câmara digital?
Eu sempre soube de nossa impossibilidade, mas
quis levá-la até o limite porque te amo demais.
Contudo, indago
se este não é um pastiche do cinema francês que tanto detestamos? Por que agora
descarnar a lucidez em busca de um palimpsesto da miséria intelectual já
compreendida e refutada? A nenhum homem entreguei a minha nudez tão sem
obstáculo. Ensaiávamos juntos o meu deleite quando me agarravas. Tu me amas
demais? Insuficientemente de menos? E não conta o quanto eu te amo? Queres que
eu repita com todo o meu ser o quanto me amas e que até sonhe com isto? E
quando me darás o teu amor? Empurro-te com o pé e amarroto teu nariz a quase te
deixar sem fôlego. Eu não quero ter razão, mas sim que te desfaças de tuas
migalhas de presunção. Somos apenas o que neste instante estamos a ser. Se não
compreendes isto, poeta, não terei remorso algum em matá-lo.
16.
Deitávamos para o filme e nos púnhamos para
além
do mesmo. Quando estava bem uma Emma
Thompson
ou um Sean Penn, o vinho se enriquecia
e as mãos
ameigavam nossos pêlos sob o edredom
como se
fôssemos nós a melhor representação de
cada cena.
Diante de uma má atuação, as mãos não
se continham
e refazíamos o enredo, fosse contra os
cátaros ou a
excomunhão de algum dualismo não
revelado. O amor
não tem nenhum apreço pela história.
Não há lei divina
que escreva tão bem seus postulados
quanto o jorro
picante do esperma de meu homem dentro
de mim.
Emenda tuas doutrinas umas nas outras
de tal forma
que não tenhas, a custo, que ilustrar o meu mundo.
Apenas tua heresia pacifica e me
abrasa as dádivas.
17.
Os corpos dançavam todos, como se expulsassem
os espíritos corruptos. Nus com asas,
ilustrados
feito uma parábola insofismável, cuja escritura
os evitasse por temor. Quantos laços
eclesiásticos
não foram rompidos por taras, em penas
mitigadas
pela autoridade subversiva do
esplendor a todo
custo? Qual doutrina pode se basear na
descrença
absoluta? Quantas almas constituem um
rebanho
em termos de mercado? O que cabe ainda
a Deus
entender antes que se sinta de todo
inutilizado?
Pus um lençol sobre o corpo inerte de
meu amor
e o segui tocando como se quisesse
reavivá-lo.
Só não escondeu de mim sua memória,
frações
onde o safado disse aguardar-me em
outra cama.
18.
Por onde querem
que caia a queda?
Pelo punhal sob o
lenço sonegado
ou pelo disparo
de origem indeferida?
Por onde matamos
o amor de uma forma
regulamentada
pela lei? O amor acaba
por se confundir
com tudo e pode ser
o estopim de uma
matança estúpida.
De repente me ocorre aqui que a vida
nos leva sempre a matar a ela mesma.
Fosse apenas um romance e por tudo
o que ali houvesse de mim, o que estaria
a derrotar senão a própria linguagem?
Todo este homem que tanto amei, cujo
frêmito eu sinto ainda a pronunciar-me
um despenhadeiro langoroso por todo o
ser,
todo ele é apenas linguagem que
desbarato
ao fim de um livro? E se outros amores
me ocorrem, saio a confundir seus
clamores
afundando-me na puríssima areia mítica
da semelhança de páginas de todos os
livros?
Então o que buscamos em tais papiros
senão
uma pérola impura do que de fato
somos?
Contaminação, sordidez, lascívia?
Disfarce
do que afinal mais tememos encontrar
em nós?
Um livro como um ponto de fuga,
semelhança
secreta, ficcional ao tornar-se mais
fácil negá-la?
Por isto dormimos todos apodrecidos de
nossa
própria morte. Se vasculhar por entre
móveis,
decerto encontrarei clavículas ou
rótulas
desse monstro de pedra ígnea que me
sacudiu
toda a existência. Desfazia-me com
unguentos
de sua doçura harmonizada em meus
poros.
Ágrafo capaz de me revelar escritos
submersos.
Se não pensei em refazer a queda, em
deixar
de lado o livro, em sair a buscar seus
pedaços
a ver se o recompunha como um ser
redivivo,
é que desconheço como os despojos
comungam
entre si, se são incondicionalmente
insurrectos,
que ideias cada uma de suas partes
considera
acerca do prodígio da rearticulação.
Só agora
dei por mim: se não há lei que
regulamente
a morte do amor, em que base
restabelecê-lo?
Sem cairmos em golpes de linguagem,
como
tratar de entranhas sem que sejam
prevenidas
que saem gotas de sangue de mármore e
papel?
E de que serve tudo isto? Entramos em
um reino
crepitante de línguas que roçam nossa
pele
e nos atormentam de maneiras
palpitantes.
Os remos chegam forjados e nem
desconfiamos
que vamos apenas remar, apenas, apenas
remar.
Então por onde matamos esse amor,
forrando
em trapos a hemorragia com que o
destroçamos
quando não havia mais recurso à
difamação?
Representamos a queda, a grácil
similaridade
entre o trágico e o cômico, o uso do
punhal,
e a regulamentação da lei tão
sobrecarregada
de lacrimosas origens e verbetes
hesitantes?
Não há lei para nada. Nisto nos
prolongamos.
19.
Não rompe nunca o pano. Os detalhes sangrentos
não passam de improvisos. Umas poucas
imagens
quisera retocar, porém o morto já ali
estava,
dessangrado e sem recurso a novos
argumentos.
Não me serviam as vestes de sombras em
terracota,
e suas vozes escorreram todas pelo
proscênio.
Nunca se sabe ao certo com que morto
se pode
contar em um teatro em ruínas, o
oficial de justiça
por vezes sendo o único espectador.
Além de nós,
as vítimas mais abjetas de tudo o que
escrevemos.
Seríamos semelhantes ao rosto estriado
de um diabo
que não costuma nos revelar de todo o
que somos?
Ou mal reconhecemos nosso espírito o
mudamos,
para que não nos venha dominar o que
tememos?
20.
O que planejas? O tolo marcava a nós uma faixa, sentado ao pé
da estante. Vinha então me apertar os seios com aqueles laços e era tanta a
doçura que meus requebros desafiavam a música que nos acompanhava. E espremia
cerejas em meu peito, sugando-as como se lesse a mais esplêndida beleza tatuada
no abismo iminente. O ar está tão róseo na tarde e não sabia como amá-lo ainda
mais se isto acaso me fosse pedido. Quem nos toca nessa porta? O que deseja?
Quem pensa que mora em nós? O amor é para ser dito de uma só vez e mesmo assim
não vou dizê-lo.
21.
Quando me sentei
aqui para escrever este livro tua ausência ainda me doía. Não pude contar a
ninguém que te matei, nem o que fiz com teu corpo. O assunto é fácil de
resolvê-lo, bem mais que a sedução de compartir com alguém nossas migalhas da
existência. Quando se perde um filho até se pode levar uma amiga ao cemitério
ou dizer do rádio imprestável que simplesmente foi posto no lixo. Mas quando se
mata o homem que se ama e esconde seu corpo, o que enunciar a quem quer que
seja? E quando se tem dúvida onde este corpo esteja? E quando já não se sabe se
de fato o matou? Tu me dóis tanto em mim que já não sei ao certo o que fiz de
ti.
22.
Os mortos se escondem por toda parte em nós.
Cobrejam quando o assunto é terreno e
lavram
suas asas quando o vento lhes é
benfazejo.
Afinal já estão mortos e de nada podem
valer.
Que ajam assim os vivos já é outra
doutrina,
tornada a imaginação um distúrbio e a
crença
uma encenação desprovida de toda
originalidade.
Numa noite assim teu corpo desce sobre
o meu
e a minha nudez é tanta que a tens com
tudo,
e é tão bom que me penetres, que tuas
árvores
sejam pássaros e teus casebres nuvens,
e a flor
de teu sexo seja afável no meu e os
mortos
não caibam em cena sequer na memória,
pois
eu verdadeiramente te amo, e te quero
bem vivo.
23.
Era assim, meu
anjo de quantas asas?
Toda a música que me tocavas, era assim?
Bagres lascivos em suas guelras com
entradas secretas,
exuberância dissoluta por onde se entrevia um
banho de quimeras,
malícia de falos levitando em penhascos…
Era
este o teu livro?
Pinturas de naufrágio,
relicário de árvores decaídas como corpos
celestes ou o tombo de amantes decepadas pelos pés…
Toda a força humana moída por um cancro na
imaginação,
as
inúmeras formas descritas disformes…
Estás mesmo escrevendo este livro?
E ainda me queres tua puta de meia idade,
tu com a tua matança humana disfarçada em
versos,
teu deplorável enredo romântico:
quantas vezes mal olhastes em direção a teus
pés?
E
já nem me lembro ao certo onde te enterrei:
24.
Não vejo nenhum
policial. Ninguém deu pela tua falta. A dúvida maior ficou comigo: não há quem
me faça recordar o que fiz com teu corpo. Um de nós não passa de um lapso de
memória. Não é que queiramos poupar um ao outro, mas simplesmente não sei o que
fiz de ti. Nos banhávamos o corpo todo de vinho, esperma, cereja, e por vezes
sangrávamos um pouco, entre risos. Um flagelo poético que a música ajudava a
dissipar. Mas onde estás agora? Não quero com isto te propor uma ausência
erudita. Assim vais acabar me matando. Onde estás, diabo? Onde enfiei a
porcaria de teu corpo morto? O mal de tua ausência me sufoca. Não passas de um
reles amante desaparecido, sórdida criatura que se nega a aceitar a morte.
Mostra-te, feiura corroída pelo desamor…
25.
Tu me eras tudo: como me tocavas bem dentro,
na carne e no espírito, sem jamais
separá-los.
A vida de ninguém está preparada para
o amor.
A poesia, a liberdade e o amor decerto
são fraudes
mais patéticas do que a polidez que
por vezes
os quer fazer de reféns. Álibi ou
simulacro, é fato
que há um programa de recapacitação de
hereges.
Proscrita ou prescrita: a tinta será
sempre um risco.
Não sei se tive um amante, se vivi um
louco amor
e o matei. Desperto dando gritos alheios, como
se vivesse um verso de Díaz-Casanueva.
Dedicar-me
a estas memórias, faz com que me
identifique a
rostos iluminados por uma imagem que
se repete:
nada sei de mim: não me lembro ao
certo o que fui.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
∞
Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
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