Tudo é possível, só eu impossível.
CARLOS
DRUMMOND DE ANDRADE
O impossível acontece o tempo todo.
WILL
ROBINSON
O VESTIDO
O reflexo dentro
do vestido escolhe o espanto com que fazer-se notar. Por instantes pensa em
quem se deixa seduzir, em olhares instáveis que cultuam a inveja, em risos de
aconchego. Há uma elegância incomum no ardil que concilia. Ondula como se
promulgasse a inquietude. Porém aos olhos de quem o vê, é tudo menos um
mecanismo planejado. Por vezes o reflexo cai dentro do corpo em que prefigura
seus jogos sensuais. E eriça enredos distintos em cada lábio que se incline a
cotejá-los. O reflexo é um corte perfeito de um tratado de encantos
imprevisíveis. Progride como um comparsa do abismo. Haverá humanidade
suficiente para este bailado de sombras?
Se um de nós se
puser a rastejar em busca de um ângulo por onde desfiar o milagre de tal cena,
é possível que algo cômico se produza. Deve haver alguém dentro dessa esfera
enigmática que nos resume. Há uma orquestra no palco que muda o ritmo da música
sempre que começamos a dançar. O reflexo se põe a rir, o que o torna ainda mais
sedutor. E em seguida rimos todos, levados pela conjetura de que aqueles corpos
dentro do reflexo evocam a pantomima de um grande amor. Quando as sombras
ensanguentadas se desgarram da cena, entrevemos as marionetes que correm de um
lado para outro, como cascatas desaprumadas, temendo que o destino se desfie
por completo. O enredo entretece as suspeitas fatigadas. Podemos fingir de
várias maneiras acerca do que vimos. O reflexo segue em seu trabalho,
despertando um espanto inusitado em cada um de nós.
As cenas observam
os espectadores. As luzes não necessitam disfarçar-se em feras domadas. O
reflexo torna a configurar seus meneios. E por onde escaparam uns lábios
aturdidos com a excitação defraudada, novos filetes de sombras rubras esboçam
certa excitação na plateia. Não havia uma música prevista para quem
contrariasse o programa. O silêncio oprimiu os sentidos. Por um segundo fomos
mundanos a ponto de não sabermos quem somos. Fomos de um horror sublime. O
reflexo tornou-se sangue entornado do vestido de onde pendiam as imagens de um
fascínio incomparável. Como recorrer a um artifício tão ciente de seus males? O
teatro então não passa de um móvel com pequenos braços onde pendemos o reflexo
de nossas contradições mais terríveis? E agora desencadear toda uma onda de
perguntas. O vestido não se desgasta pelo excesso de sombras. Para alguns
residentes, o inferno não passa de uma roupa apertada. Talvez alguém saiba o
número certo de seu abismo. Mas não se pode cobrar isto do vestido. Menos ainda
de seu reflexo em um cabide.
O CENÁRIO
Ao afastar a
cômoda uns dias retidos caíram por trás como fulgores que fossem reencontrados.
Lâmpadas disformes soletravam bosques por todas as ranhuras de seus corpos
desconhecidos. Ramagem de objetos acariciados pelo esquecimento. Por onde cai
uma imagem de nossa angústia, os fogos-fátuos se constrangem. Deixamos escapar
alguns segredos da rivalidade entre esses monstros que se confundem com o
eterno. Por vezes o visível não passa de seios arbitrários entalhados em uma madeira
apodrecida. Este é o traje com que abençoamos o carvão orgulhoso da existência.
Não vestimos senão uma combinação de naufrágios. E a mobília se ri da maneira
como a utilizamos para disfarçar a inaptidão para o abismo.
Peças instáveis,
que a todo instante requerem um reflexo distinto de sua utilidade, ensaiam
efeitos sonoros, dissimulações de trevas, afiam sombras que possam projetar ao
menos uma interrogação presumível. Uns poucos objetos resmungam, não aceitando
que a realidade se conforme com o entendimento. Os móveis então começam a
afastar-se das paredes. A casa inteira entreabre seus lábios para um novo
sobressalto. Vasculham as gavetas do tempo. Não querem mais sonhar conosco.
Rejeitam o mistério que impusemos a cada um deles. Por entre uns trapos
inseguros de sonhos e o bailado descompassado de fantasmas, as mesmas fugas
ensaiadas. Estes são os primeiros véus que o tempo leva para dentro de si.
Quando me tocas, não penso no que pode estar se passando comigo. Se a tua pele
descobre o fogo no contato com a minha, não te amo mais por esta compreensão. A
mobília não festeja as chamas na casa como se um novo quadrante fosse
instaurado em sua visão de mundo. Não há magia sem a consciência de seus
ingredientes? Quanto custa sonhar contigo?
Faço os apontamentos
em suspiros, devaneios, vômitos, desarmonias, masturbações. É fácil levar um
texto a recorrer a seu equipamento de incêndio. Presumimos uma saída de
emergência para tudo, considerando a existência de uma queda unida. Os móveis
ensaiaram repetidas vezes o mesmo procedimento. Para o caso de quem desistir de
si? Tratemos de prever os deslocamentos improváveis do passado. Não cabem
argumentos em favor da transparência. As películas a que submetemos nosso
tráfico entre visível e invisível denunciam que somos infratores da
substancialidade. Os meus sentidos são tão confiáveis quanto os teus. Toda
realidade se evapora na medida em que é considerada.
O ESPELHO
Um espelho
caminha por entre as ruas, atormentado por imagens que insistem em acusá-lo de demasiada
passividade. As sombras projetadas sobre sua angústia tricotam um manto de
luxuriosas figuras em transe. Nada comparte a metafísica frustrada dessa
realidade desfeita em síncopes aparentes. O espelho sabe que recai sobre si o
embaraço de estampas que flutuam no sentido suspenso de suas representações.
Como explicar agora o tráfico intenso de inversões? Hesita em seu caminhar. Os
passos começam a jorrar uma torrente de vultos que se dispersam assustados.
Saltam do restante do corpo emblemas, fotocópias, figurações agônicas.
Incontáveis rostos salpicam do olhar aturdido. A esta altura o poema não pensa
senão em uma maneira de retirar de cena a ruinosa aparição do espelho em sua
escritura automática.
O palco terá que
ser refeito em destroços? A arte evapora-se em aposentos vulgares rendida por
uma transcendência que a torna ausente de si. O espelho já não recusa a
desigualdade de seus modelos. As imagens
são inconstantes, é da natureza delas, confessa cabisbaixo sem reter uma
imitação que seja do que andara ressoando. Diante de todos insiste que não
alonga cenas, que a plateia se encanta pelo quadro real que ele próprio
configura. E enquanto depõe fac-símiles se agitam como se garantissem a
permanência da realidade.
Já não olha para
parte alguma. Reflete um vazio ainda mais carente de sentido. Diante de tudo,
qual a extensão de nossa reação elementar? E já de tal maneira decaído no abalo
de sombras decompostas, o espelho se retrai, e toda forma se cala. A plateia
vocifera, desambientada. Qualquer que seja a maneira com que o espelho prove
sua humanidade, jamais será aceito se recusar espelhá-la. A ilusão não teria
outra dieta mais favorável à sua gula.
O TRUQUE
Viscosa simetria
de deleites em braços inúmeros que saltam pelo proscênio de um corpo a outro,
lábios líricos que se banham em tintas desconcertantes, um arrazoado de gozos
se esfuma na lábia frenética de pernas que mal se tocam expandem toda conjunção
possível. Irradiar a deriva de teu beijo no meu no outro em mais algum. Os
sulcos da cena se refazem. Somos animados por utensílios fanáticos: vestíbulos
fantasistas, leques automáticos, pentes facciosos, uma preamar de desertos
oblongos, grenha de conceitos, gemidos que são um regaço entre dores surdas.
Quem nos diz uma palavra impura esta noite? Quem teme a própria pele? Por vezes
a ordem é o desperdício.
Um bulício de
ansiedade, teu pênis passa sobre mim e abro as salas para a descida variada da
ilusão. Pequenas mortes com fundo falso, pantomimas lavradas em partituras: um
poema todo assim, quebrando ao meio a esperança. Dá-me aqui a tua pluma
molhadinha. Damos volta uns por sobre outros, afoitos no embaraço, banhados em
coxas cotovelos queixos, agitados pelo anonimato. Este lábio é teu? De quem a
pelve esvoaçante? Esta penugem barroca, a quem pertence? Há um teatro do
palavreado, do qual toda cena se resguarda, meu nome, tua pele, a memória do
outro. Carraspana de denúncias de lugares onde nunca estive.
Tu és meu quando
onde. Sofreguidões do momento em que nunca estás. Dá-me a tua queda desenfreada,
a linguagem enrabichada por si mesma, peculato de orgasmos. Procura um joelho
ziguezagueante qualquer, um dorso experiente em quedas, uma vestal… Não há
representação sem falha. Isto o poema nos ensina a todo instante, quando o
lemos e a ele confiamos nossa vida. Por trás de tuas coxas passa um verbo, por
trás do script o sonho que nunca se aplica. Estar onde a própria queda se
esvai, cadáver esquisito a todo instante consultando manuais de bordo. O
reverso é o que de fato se escreve?
A BANHEIRA
Fricções entre
quatro paredes. Tua imensidão nua ao lado dos copos momentaneamente esquecidos,
transparentes como a pintura aplicada da realidade sobre a nossa pele esquiva.
Gozos descascados como quem se desembaraça de certo mofo de ideias que nos
perseguem até este ponto capital em que nos afogamos na mais plena liberdade.
Depois abrir a chave esmaltada do paraíso e deixar a água consumir ao menos uma
parte do tesão que nos levou àquele hotel. Estar ali nos deleitava, em meio à
insuficiência de todo ato humano. Descrevias em goles de um tinto seco as
paisagens percorridas dentro de mim enquanto a música arranhava a pele do tempo
e nos provocava: – qual tempo? – e aceitavas a provocação ecoada como uma
travessura: em que parte do mundo estamos? – me arranhavas as costas à procura
da localização de nosso desatino.
Uma estranha
cidade entalhada na escarpa de uma montanha que nos recebeu com o batuque de um
temporal. O sertão encravado no olhar do guia que nos levou por labirintos
solares cujo recurso famigerado era dar a si um novo nome a cada passo. A curva
bem desenhada de tuas ancas ao escalar a aspiração de que tudo retornasse ali…
Sempre tu, meu amor já sem nome, a última fome da terra, não dar nome a mais
nada, me aceitas assim? O sagrado não sabe de si sem que se descarne. Há um
duplo por trás da pele de todo amor. Não necessariamente uma réplica, um
tratado da desilusão ou uma latitude indecifrável. Um pouco mais de vinho e
brincavas comigo: – Louco, sabes onde isto vai dar… – Mantém a água quente,
tens a chave. Não há realidade suficiente para o amor, rimos.
Por mais que
escavemos o desejo, ele não se mostra, não é real, não cabe em um prato. O amor
é representação de si, cuja persuasão lhe é atributo fatal. Não mora em parte
alguma. Não há atlas que o convença a hospedar-se em uma coordenada, mesmo em
deriva. – Está fria a água, bandida linda. – Morde aqui. – Dá-me mais vinho. –
Singra-me. Mesmo assim – o amor é submersão? – pouco [muito pouco] se revela
entre quatro paredes que possa ser aplicado à pintura da realidade. – Não
estamos, amor, em parte alguma, não há este hotel, menos ainda banheira e
vinho, não somos a detonação de mistério algum, por mais tolo, o mais infantil
dos mistérios. Um segundo que seja, tuas pernas [elas] atracadas ao meu corpo, enquanto
te sentes a doidice mais plena, e só. O infinito não sonha consigo mesmo. Tudo
no mundo parece ter uma aversão natural à representação como sendo o fato real.
Quando deixamos de ser o que somos? Quando deixamos de ser o que aparentamos
ser?
AS CORTINAS
Os passos correm
de um lado para outro do cenário a preparar as sombras para um próximo ato.
Confundem-se na marcação e as cortinas se põem a rir. Ouço teu corpo por toda noite, a inventariar os modos com que nos
desfizemos uns dos outros. A memória postergada pelo bailado sibilante do
sangue arrebatando a beleza das mãos dos barbantes que prendiam uma vítima à
outra. Como seguir a rota de seus
desvãos? Como abrir covas no alongamento de tuas quedas? O que fizeram do adeus
que não demos a todos os nossos vícios? As vozes iam chegando para o
ensaio. As cortinas vigiavam os improvisos com um olhar enfeitiçado. As falhas
se punham imóveis. As sombras se engrenavam em círculos, repetições que se
tornam pegajosas em meio a uma sentença: o texto não te salva.
Pequenas fraudes
de enumeração. Ruídos girando em sentidos confusos. Corpos embaralhados com as
sombras que representam. Meus dedos foram
deglutidos por teus seios como um metal que se liquefizesse em nome do desejo.
Tua felicidade se disfarça em peixe no vestíbulo de meus sonhos. Uma mesma
chama viola nosso tormento. Onde foram recolher essas frases? As cortinas
mal disfarçam a dúvida de que esse abuso transborde. O cenário ainda não pôs a
roupa devida. Há um excesso de sangue em relação ao quinhão de corpos de que
podem se valer os atos. São bocados de dramas desencontrados. Não se sabe se
houve crime ou festa. Os hábitos são capazes de tudo. Meu corpo não sabe viver sem teus particípios. Não devo socorro ao
encaixe de tua pele em meu desejo. És testemunha de tudo quanto me sangras.
As cortinas confabulam o imaginário. Riem porque sabem que são fantoches que
podem ser retirados de si.
Tudo é muito
fácil no balcão dos feitiços. Umas sombras rasgadas, símbolos com ar fatal de
enigmas insolúveis, testemunhas improváveis. Tudo em nossa vida se repete de
maneira tão maçante que nos fechamos para a intromissão do encantador. Os
barbantes amarravam os fantoches em uma combinação de elementos palpitantes no
encaixe. A morte aprisionada por suas razões de ser. Mesmo o corpo quebrado da
cena ainda suspirava. Havia lugar para tudo. As feridas se viciaram em recursos
fáceis. Uma orgia de fantoches, uma matança de títeres. Os passos correm de um
lado para outro do cenário a preparar as sombras para um próximo ato.
AS CARTAS
O mundo se
esquece dentro de ti como uma revelação traquina que se oculta. És como um
enigma que pendesse dos bosques do visível, apenas o suficiente para que
ninguém se sentisse só durante a queda. Todos
temos direito às trevas, eis o que líamos em uma carta enquanto ecoavas tua
indisfarçável ausência entre nós. As cartas confessam o que há de
irreconhecível no desejo. Através delas não sabemos sequer como regressar ao
desconhecido. Nossas lágrimas desterradas ou fugidias localizadas em vagões
povoados de ansiedade. Não há melhor maneira de cultuar o esquecimento:
desaparecer. Fugir da proeza dos refúgios. Deixar para trás as noites decoradas
pelo extravio. Sumir de si. As cartas se disfarçam de embarques relâmpagos e
sussurram carícias sombrias. A muitos de nós fazem crer que não passam de um
instante de indiferença.
Eu mergulho sem
cerimônia a minha fragilidade dentro de ti. Teu corpo me aceita como um dilúvio
e deixa escapar minhas mãos por suas escarpas criminosas. Apenas ele me atravessa
o infortúnio da semelhança e identifica nos escombros uma verdade que não se
chame retratos de família. Teu corpo não diz aos vestidos do silêncio como
cerzir o passado e muito menos expande as raízes até que se torne o ruído
legítimo da esperança. Geme, trafega, naufraga, viaja, morde os meus tremores,
arrasta-me de uma lâmpada a outra do abismo. Eis por onde os subterfúgios
perdem o lacre e através deles o tempo segue a repassar sacrifícios como se
fossem rotas irrepetíveis. Apenas teu corpo se desfaz dos ferrolhos da piedade.
Já não sei enlouquecer sem tua mão escavando meu desejo. Talismã surpreendente
que aceita o inferno da insônia.
Não há lugar para nós onde o sossego acampa com suas olheiras previsíveis e o refrão de amores perdidos. As cartas soletram atavios por toda a textura da viagem. A experiência vive um romance secreto com a denúncia e juntas tecem a heráldica da necessidade. Como esperar que fiquemos quietos o suficiente para compor uma cena? Não pude dormir com o espelho de teus vestígios impalpáveis. A noite foi se satisfazendo com a suspeita de abandono. A realidade do crime confunde-se com umas dores mal vestidas. Teu corpo é ágil na tormenta de meus prazeres. As cartas se fingem de imóveis enquanto gozamos. As imagens poéticas se foram. Não sobrou quase nada para garantir a memória de nosso amor. Dizer que te busquei a vida inteira? Que de outra maneira jamais te encontraria? Alguém está gravando tudo isto? Teu corpo dorme dentro do meu sem uma última palavra. O mundo – essa vitrina do inconfundível sarcasmo – é mais manhoso do que imaginamos. Jamais morreria por nós.
O PALCO
Saímos para
comprar relâmpagos. A luz soluçando em seus recantos mais imprevisíveis.
Deixamos os corpos se arrastando por entre as nervuras do cenário, a brancura
da pele desatando rotas em variações rebentadas de suor. Tua beleza insiste em
retocar imagens com o bico dos relâmpagos. O traço se desnuda se é feito com
ponta abrasadora. Começas a rabiscar uma série de caprichos. Não recordo por
onde recortas o desejo, como perfuras as noites falsas, as portas sem repouso,
ossos amantes do desespero… Teus olhos não saem mais daqui, e relevam corpos
mal entrados no inferno, fantasmas esplêndidos que ainda não se deram por
mortos, uma fantasia de deuses banhados de excitação.
Descemos ao fundo
de nossas mãos, onde elas soletram um fogo de tramas. A claridade era para
estar tomada de figuras laceradas. Em vão procuramos os utensílios dessas
estampas devassas, curiosos por saber como elas se lapidam e renovam e se
desfazem. Esboças todo um fundo de loucura que irás romper com o próprio terror
decifrado nos tipos excêntricos que emendas. Assim repousas em meu corpo,
enquanto o cenário se encharca de alegorias a rastejar por um monturo de
delícias. Não me deixas cair de ti, e nos disfarçamos com os lábios roçando o
limite de tudo. Por vezes vou sozinho comprar mais relâmpagos. De regresso te
encontro atiçando a vileza de novos corpos empilhados sobre a cena. Não me
levas escrito a parte alguma. Teus olhos mal suspeitam de mim. Eu quase diria
que te amo, ao te ver assim desfeita em laços, aceita por uma horda de sombras
encarniçadas. São teus aspectos, emblemas, figurações. Procuro estar com todos
e os trato como criaturas humanas.
Vejo como
recortas as terminações nervosas de estátuas, intervalas voos em asas de cera
ou salientas um delito em abismos ingênuos. Tuas personagens desconhecem a
distinção entre ternura e perigo. Praticam um tumulto de cena, lugar do olho
devastado pelo acúmulo. Somos todos desfeitos em palco. Não nos resta uma
desilusão que nos dilacere no camarim ou a caminho de casa. Todos os teus
corpos se acumulam em igual ambiente, despido pela mesma ponta abrasadora com
que me tocas a pele enquanto repousas dentro de mim. Tudo está ali, arruinado
ou não. Os traços se movimentam no desenho, animação vertiginosa em uma
desordem de suspeitas, amontoado de argumentos delirantes. As figuras todas
elas descrevem a mesma vertigem: um pouco mais de inferno no rastejo de cada
vítima. Tão doce, recostas sobre mim. Saio uma vez mais, sempre para comprar
relâmpagos.
O VULTO
A noite
desfigurando-se enquanto, em silêncio, Gabriela descascava seus olhos famintos
e mascava triângulos velozes que se despediam de todos, uma alegoria de nervos
fora de lugar, tudo em semelhança com resplendores afogados para quem não
conhecesse o idioma dos sonhos. Ela desdobrava suas formas e a pele tão
afetuosa entretinha as sombras convulsas a desenharem interrogações por toda a
noite. Ela roía as pequenas paisagens que não conseguiam escapar de sua fome. A
escrita indulgente dos sonhos. Um ossuário de lâmpadas que mal deixavam
entrever o enredo de seus delicados pés, incompletos. Gabriela embaçada por um
clamor de vapores disfarçados em uma lógica atrevida: não toque jamais em seus
lábios ou o jogo inteiro recomeça.
Com que bom
proveito arrancar da vida a própria vida? A noite desbaratada em naipes de
vidro com duas faces, baralho saqueado por manequins que a todo instante
blefavam. Eu trouxe o teu amor para o centro do labirinto. Ali o derramei pelo
espinhaço dos esgotos. Uma selva de rumores a enamorar-se de tudo quanto
cheirasse a subterrâneo. Gabriela me ensinando a desmoronar as cores indecisas
da noite. Improvisos ocultos sob a língua. Beijos questionando a legitimidade
do amor. Evitamos as paisagens com corpos soterrados pela poeira das lágrimas.
Sorrimos um para o outro antes que a transparência mude de roupa. É tão fácil
deslustrar a lucidez. Sentar para um café enquanto a carne cai.
A tua pele
tatuada de incestos da linguagem. Tremores míticos modificados para atender a
velhos planos de fuga. Gabriela pondo a centrífuga no último ponto, ao triturar
as estátuas do desejo. Muitos fragmentos não admitem a farsa. Também os sonhos
são contagiantes. Há muito não abrimos a porta para o fogo fértil da memória.
Não dormimos bem na última noite. Não conquistamos os abismos mais simples.
Gabriela ainda me tinha entre dentes, mesmo sabendo que andei a escapar de mim.
Escapamos. Fomos dali. Não havia outra maneira de ser. O deserto não está para
entreter. Tateamos uma última imagem, juntos. Ela ria muito, dizendo que o amor
leva algum tempo até se desfazer.
OS FANTOCHES
Nossos fantoches
se amam. Remontam o cenário que lhes dedicamos. Desenham novas salas no
subterrâneo. O olhar dele a acode com a mais doce fúria: meu anjo, o homem não mais nos controla. E entre beijos sequer
desconfiam ser este o ardil de toda criação. Abrir os olhos mudos ao despontar
a realidade e neles derramar o sangue de novas expectativas. Perder-se no
labirinto de formas desconexas das chaves liquefeitas. A memória renova seu estoque
de despojos. Até onde me recordo, nossos fantoches se amam. Abordam os espelhos
intermináveis de suas virtudes. Desativam os sistemas de angústia e vingança. E
se despem desconhecendo os vestígios de tudo quanto deixam para trás. Mal sabem
em que se prolonga a mentira mais bela. Rever a mecânica das cenas para que
nada seja seguro em toda a jornada. Tornar o imponderável o mais altivo dos
farsantes.
Com indisfarçável
excitação, alguém deduzirá na plateia: nossos
fantoches se amam. E para tanto haverá contribuído o ato em que os dois
acariciam as costuras desfeitas dos corpos após a união elétrica de seus fios.
Um colar de urros e vertigens entrelaçadas. Luzes insistentes no estômago das
lâmpadas queimadas. A criação é uma hipótese incompleta. Os personagens se
entreolham pondo em dúvida os argumentos da farsa. Silhuetas desmontam o
cenário. A linguagem fuma seus finos impressionantes e apressa o passo quando
as contradições se agitam entre ruas. Por onde trafego meu olho fura uma nova
geometria sem saída. Presume-se que a representação confunda os turnos de
ensaio. Um absurdo desfeito de suas audácias, um épico desmemoriado, um
experimental sinalizado e regido por pontos. Não há pantomima mais esplêndida
que a vaidade. Um novo proscênio para cada ilusão.
O que passa
depois? O orgulho se dilata, a infâmia não pensa duas vezes, as virtudes não se
reconhecem. Esta é a casa que construímos para todos e onde estranhamos que os
fantoches se amem. Os deuses, no esplendor dos subterfúgios, riem tanto,
desgraçados, que mal vemos pretexto para degolá-los. Rimos com eles, evasivos.
E se nos sentamos para produzir algo, decerto não hesitaríamos em trapacear a
linguagem. Nunca se sabe por que insistimos tanto em representar a própria
vida. Somos apenas a metade de algo. Não importa como um fantoche se despe
diante do outro, como se põe a rir a cada fio de si que desfia. Não importa
como uma representação nos assombra diante de sua entrega, como se torna
inumerável a cada escama extraviada. Não importa como nos julgamos tão reais ao
ponto de não entrarmos em cena sem maquiagem. Rigorosamente não importa nada.
Algo na criação deu errado e já não nos importamos com nada. O teatro está
aberto: mesmos dias, iguais sessões programadas há tempo. Vez que outra um
visitante arrisca olhar para os lados na saída. Este gesto miúdo não sabe ao
todo se busca aniquilar o entendimento do outro ou juntar-se a ele.
CAI O PANO
Eles se foram. Aqui apenas os escombros de
suas obras. Pessoas passam por elas e não se perturbam. Lembram as palavras de
Blake sobre a tarefa de abrir os mundos eternos. Diante de mim este museu em
chamas. Na caixa preta as instruções de como proceder durante a queda.
Microfilmes das visões dos antigos sábios. Única luz possível no interior da
paisagem dilacerada. Eles não estão mais aqui. As formas futuras de todas as
coisas derivam do impulso de recolher os escombros de suas obras. Umas não
absorvem outras. Pessoas ao redor. Palavras queimam por dentro. Quase uma
chave. Reconciliação com o caos no curso interrompido das tarefas humanas.
As máscaras guardam em si a terrível verdade
sobre nossas vidas. As contradições são disfarces do que não ousamos senão em
sigilo. Noite em mim que o inferno
atravessa, desce a corrente sombria e nela recomeça – eis o que me diria um
emissário de San Juan de la Cruz. Criaturas gravitando na órbita de seus
anseios. Meus versos, um reconhecimento de demônios que falam por mim. A
verdade é sempre teatral. Raskolnikov e Willy Loman jamais se conheceram. Ambos
desceram ao inferno. Ali recomeçaram nossas vidas. Por trás de suas máscaras as
pessoas estiveram a ponto de salvar-se.
Lágrimas ateiam fogo ao passado. Os elementos
preservados exigem o cuidado de um deus que a tudo observa. Os que encontraram
sua lei se foram. Árvores não são homens. Fantasmas adernados com uma mensagem
cujo significado já ninguém decifra. A leitura de um livro abre os portões do
inferno que conduzimos em nossas entranhas. As furiosas revoltas de nossa
miserável condição. Quantas vezes ante o espelho sombrio do passado nos
indagamos o que somos? Ante o Retábulo
dos eremitas aflição maior nos castiga. Em que serpente de marfim nos
transformamos? Também Hieronymus criara com fogo os destinos de sua alma.
Homem algum é capaz de fazer algum bem a si
mesmo. As vítimas sinistras da esperança aguardam todas na outra margem do
espelho um dia serem reconhecidas por seu abominável apego à vida. Antonio
Francisco Lisboa mastigara suas próprias mãos em uma ceia implacável. Pessoas
pelo mundo erguem com seus corpos um labirinto vazio. Máscaras em agonia. Ópera
voraz de nossa semeadura de ossos pela terra. Leda soluçando ao reunir as
minúsculas criaturas de pedra que antes bailavam em suas visões. A experiência
é uma falha no dorso do tempo. Mansamente o homem pousa a mão em seu próprio
fim.
Aquele que ama as letras desvela o argumento
das trevas com serenidade. Assevera uma sentença árabe que o homem se dissimula
atrás de sua língua. Moisés não encontrara senão em Aarão as palavras com que
transmitir ao seu povo as aspirações de uma união total com Deus. Schöemberg
morrera sem concluir Moses und Aron.
Que luz tão severa suprime a paisagem à nossa volta? Que dibuk penetra em nossa afligida alma e com um escândalo a arrebata?
O definitivo rio que flui nos tecidos da linguagem conduz o homem a um abismo
sem fim. Aquele que ama as letras supera a obsessão de revelá-las.
As inumeráveis formas do espanto recebem a
poesia em seus limites feitos de nada. Luz e sombra. Resíduo das destruições
que soerguem o mundo. Inacabável sinfonia, a morte nos lembra o quanto a vida
nos devora em nome do amor e a obscura sombra do desejo. Que voz escuto
dizendo-se destino quando morrem os pais? Quem a deusa audaz que sibila pelos
corredores da Biblioteca? A que refaz com fogo e lágrimas as dizimadas rotas de
uma alegoria surgida no seio da mãe. Cinzas… Cinzas… A terra… Goya penetrara
nos abismos ruidosos de sua surdez, onde residiam alucinadas suas pinturas
negras. Aos olhos de Deus a retidão é insuportável.
A Biblioteca está em chamas. Eles se foram,
além do nível do fogo. O que resta ao final é o indizível. Corpo em repouso.
Como nos versos de José Lezama Lima, aqui estamos falando das expirações da morte universal e a qualidade
tranquila da luz. Longe das palavras, quem nos reconhecerá? Criaturas
disformes ateando fogo ao corpo da história. Corpos escritos na noite.
Fragmentos de um mesmo deus que não se conhecera a si mesmo muito bem. Eles não
estão mais aqui. O supliciado adeus ao mundo de Violetta Valéry. As veredas terríveis da morte por onde
Trakl se fora. Uma pequena multidão de rostos se identifica ao vazio. Fogo…
Fogo… Luzes…
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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