sábado, 22 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Anatomia suspeita da realidade

 

Sei que de todos os modos a realidade é errante,

tão suspeita e tão ambígua como a minha própria anatomia.

OLGA OROZCO

 

1.

 

Por vezes o vazio gosta de preencher a si mesmo.

 

Por três noites as areias silenciaram recolhidas como um novelo de abismos.

E foi possível perceber como o tempo se antecipava para nos dizer algo.

Os caminhos buscados se desequilibram.

Vozes escondidas emboscam os espíritos em sua jornada.

Insistem que revelem alguns nomes como uma oferenda à luz que abrigam em suas gargantas.

As vozes se misturam e imitam todas as espécies.

 

A primeira noite é um deserto que se desloca em distintas formas, buscando uma réplica de si mesmo.

Amanhece como uma virgem sacrificada cansada de tanto sonhar.

Diante das vestes ensanguentadas nunca sabe quantas foi.

 

A segunda noite é um temporal repleto de duplos que embaralham as refeições e desfiguram os amuletos.

Amanhece como uma latitude saqueada dando pela falta de seus bezerros de ouro.

A falta que mais lhe dói é a intangível.

 

A terceira é um albergue hipotecado pela luxúria, labirinto de espelhos onde os espectros perdem a colheita de suas identidades.

Ali não se amanhece jamais.

 

Por vezes o vazio gosta de confortar a si mesmo.

Uns buscam, outros riem, muitos sofrem.

De tal forma que não partiremos daqui sem uma boa razão.

 

2.

 

Quando o olhar se desencontra de si mesmo os olhos se multiplicam.

Devo aprender a recuar, a respirar em teu mundo inferior, a acabar com a matança que exiges de mim.

O teu olhar cravejado de rotinas, a pedra negra tingida de frustrações.

Poucos foram além do medo que inspiras.

Não me reconheças nas convulsões de teu rosto.

Eu não estarei aqui para livrar-te de nada.

Livra-te de mim, tu, antes que o abismo siga em teu encalço.

As tuas duas terras serão ceifadas, a casa, a carne, os lábios com que aprendeste a soletrar o invisível.

Eu não estarei aqui sequer para julgar-te.

 

3.

 

A dor me pediu uma homenagem e eu não soube dizer o teu nome.

Vasculhei as pronúncias de teu olhar e então descobri o curso diário de cada solidão.

Por onde trafegas sem que sejas nada além de mistério.

É pouco dizer que todas as coisas são abomináveis.

As seitas, as vidas abandonadas, os sofrimentos escondidos pela resignação.

A todo instante sentimos um calor que oprime ou liberta a expressão que guardamos dentro de nós.

As tuas cabeças acumuladas como um totem.

A vertigem como um traje de pureza.

Aqui.

Bem aqui.

Eu te concedo uma força manifesta no que queiras.

Guarda este nosso segredo.

Não haverá mal algum no mundo se me disseres teu nome.

Sopra aqui.

Todas as coisas permanecerão onde estão.

O mundo não vale um nome.

Não me faças crer o contrário.

 

4.

 

Não permita que teu olhar jamais sofra uma derrota.

A tua memória está comigo, repleta de sortilégios e outros capítulos da ansiedade.

Quantos somos? Indaga o espelho enquanto se veste com a pele dos rios.

Mascamos sempre a erva da mais imunda veneração e nos perdemos em ossos que jamais seriam os nossos.

Dança com a minha imagem esta noite.

Não te esqueças como eu sou, mas agora podes me ver em outra forma.

As sombras reviram tudo, procurando seu alimento.

Com a decisão de que no mundo nada se explica antes que a fome seja aplacada.

 

Eu zelo pela companhia dos deuses e o trovão de nossas vidas indefesas.

Eu colho o ensaio de teus desastres e os corpos arrastados de tua delicadeza perdida na terra.

O poder de tua força reside em minha imagem.

As tuas aspirações não estarão mais perto de ti um só instante antes que me beijes.

Sou um desconhecido até que pronuncies meu nome.

 

Queres abrigar toda a maldade? Ressuscita-me e com gosto trarei para teus olhos as pedras mais negras.

Eu fiz a tua loucura guardar segredo de si mesma.

E posso retornar mil vezes até que me contemples como teu verdadeiro rosto.

 

5.

 

Os olhos se satisfazem com os primeiros bordões da aurora.

Criam nichos de desejo, membros esvoaçantes como uma bíblia talhada no hábito.

Todos os dias à mesma hora eu me ergo e brilho ante a tua incompreensão.

Embora seja o mais presente entre todos os desconhecidos de tua vida ainda sou o que vive há uma infinidade em teus braços sem que me reconheças.

Não há safira mais ciente de suas vertigens.

Ou pedra alguma que salte em tuas mãos até que a mereças.

 

6.

 

Eu recomeço a esquecer o que fui em cada lugar por onde passaste.

O tempo reluta em acomodar-se nos pergaminhos.

Com o arado meticuloso de teus braços soletras meu desejo.

Porém a carne se desfaz sempre antes que a toques.

 

Não posso ser senão uma vinheta de teus sonhos, um ramo de relâmpagos, o espírito errante acerca do qual será sempre muito pouco tudo o que possas saber.

E quando finalmente me esqueço me vejo deitado em teu olhar.

Uma sombra dilacerada acende seus castiçais e busca por entre os lugares menores da terra um ermo onde restaurar-se.

Por vezes o vazio se esgota de tanto pensar em si.

E toca, toca seus tambores inutilmente, chamando os vigilantes esquecidos da escuridão.

Quantos lhe rogam clemência e que volte de imediato à sua árvore descarnada.

 

Aos poucos pus alguns nomes em teu coração para que te esqueças como sou.

Uma centelha regular que constantemente destrói aquele que suspeita lhe conhecer.

A vida cai sempre para o alto, onde quer que a tomes, onde quer que a habites.

A verdade nunca sabe ao certo com quem se encontra.

Teu olho masca os mundos inferiores.

Eu me oriento pela estrela que sobrevive em teu íntimo.

 

Há muito que não vamos a parte alguma.

Só a misericórdia nos transfere de um sitio a outro.

Quantos somos? Jamais chegaríamos a um acordo.

 

7.

 

A pedra se gasta imaginando um precipício onde ancorar.

O olhar de pedra, o sentido de pedra, a voracidade da pedra.

Hora de despertar e saber que contemplas um amontoado de misérias visuais.

Que apodreces a alma na colheita do imutável.

Ao mesmo tempo em que sangras teu último estoque de existência sem saber ao certo onde aplicar o legado das transgressões.

Jamais alcançaremos a alma imortal.

As noites se iludem colhendo pecados inconjugáveis.

As perguntas se desfazem antes que surja uma resposta.

Todos nós somos um delta ignorado.

Uma catástrofe aleatória por incompreensão do que somos.

Um estado de sítio, o júbilo evasivo por não estar em parte alguma, uma perpetuidade de abandonos.

Eu te marquei com um sinal de minha ausência.

Não creias nunca em mim.

Os dias em que estivemos juntos são o legado de outro entendimento do viver.

Quando deste por mim já não sabias quem eras.

 

8.

 

Inútil saber em que casebre se esconde a eternidade.

Quando se foi já nenhum de nós estava aqui.

Recordo que se queixava de guardar mundos fragmentados, passíveis de toda ordem de desfigurações.

Não a vi por aqui enquanto estive ao teu lado.

Simplesmente se foi.

E já ninguém acredita que um dia retorne.

 

9.

 

O olhar entalhado em cada estilhaço de tua miragem,

permaneces em mim como um delírio.

Altar devorador de imagens, corpo mudando de sombra.

Como se a treva fosse a sua forma última.

A alma cortada antes dos rituais de sua destruição.

Recitas o teu canto afivelando minhas quedas,

retidas como um lugar conhecido ao qual sempre retornas.

A tua habilidade me desfalece e eu te procuro.

Em todos os mistérios relacionados com a tua ausência.

Na teologia de todos os crimes que me desamparam.

Na urna em que os verbos se renovam.

No regime de ilusões de teu livro sagrado.

Viajo na direção de teu mito.

Porém nunca estás quando me deito em teu leito.

 

10.

 

Encontramos a grande porta e sua água clara ali retida.

A escuridão prepara seu cenário em meus olhos.

Ainda não sei o que vejo e tudo me inunda como um destino desmedido.

 

Onde encontrar a quietude do coração com que erguer a própria morada?

Como compartilhar as visões sem que elas incendeiem seu ninho?

Ou percorrer o teu corpo antes que existas em mim?

Semear tantas versões do abismo até que a noite distribua benefícios para seus herdeiros.

Encontramos o que parece ser um simulacro de estrela-guia.

 

O que tens para mim é o que eu não posso te dar.

O que trago em meu íntimo jamais semearia em ti.

À entrada observamos a caixa de moedas e o livro onde deixar o nome escrito.

Até hoje não sei como chegamos ao interior sem cumprir esses termos.

Mesmo por oferenda não levávamos mais do que a inquietude do encontro.

A escuridão nos sorria quase displicente enquanto abrigava os primeiros móveis em cena.

Ainda não sei o que somos nem com que palavras confortar este momento.

A grande porta não descansa e sua água clara pronuncia um nome que imaginamos ser o nosso.

 

11.

 

As primeiras páginas estão manchadas, de impossível leitura.

Os vislumbres tatuam vinhetas na pedra, no interior da sombra.

Alguém recorta as páginas do tempo e monta um livro intangível.

Eu faleci inúmeras vezes ao pé de uma mesma cerimônia.

Não estamos aqui para jejuar ou semear seguidores.

Para ornar a fala de silêncios ou despir o calor do fogo.

Nem mesmo para ensinar a memória a desfazer-se de si.

O homem habituou-se ao aconchego das justificativas.

Arrebatado de si por sua ingenuidade, desaprendeu o mais simples truque de reluzir suas perdas preciosas.

Há passagens ilegíveis no livro, porém algo ali se pode identificar:

 

eu alcancei o domínio do amor.

 

Como não ser arrebatado desse mundo de ataduras antes de reconhecer-me no hálito do que imagino que seja?

Ante a sensação de regresso, como identificar o sítio exato para onde somos sugados de volta?

Quando nos desfazemos de algo, é só isso: já não estás.

Algo se foi de mim, ou eu também me evadi um pouco?

Por onde começamos a ler um livro?

Por onde começamos a existir?

O verbo no princípio foi um pronome.

Até hoje protegido pelas manchas das primeiras páginas.

 

12.

 

E a vida se disse toda senhora de si em tuas mãos.

Como se fosse o erro, o abismo, a névoa, a queima de fogos.

Em tuas mãos o meu corpo se refazendo de suas ferrugens.

A minha vida tendo a visita inesperada de teus cuidados.

Uma celebração de encaixes com pernas humanas.

Eu te quero aqui, e rejuvenesço quando me tocas.

Escuto a tua voz como uma fruta que questiona as estações.

Nada está fora de lugar, exceto o observador.

O controlador se ergue e indaga: então o que faço aqui?

Em seguida, a vida gosta da brincadeira e o distrai:

Quem crês que somos? Uma devoção ao acaso, um sinal de Deus?

Quando os olhos decaem, eles apenas denunciam uma ausência.

Quando deixamos de estar em algum sítio, quantos de nós sumimos dali?

Eu te olho em algumas noites e não me encontro.

Sei que estás buscando prazer em outras mãos e não me importa.

Olhas para mim como se eu fosse a tua serpente,

o deus que reboca a tua alma, as palavras seguintes à dor.

Há muito já não estás em mim… O que te trouxe de volta?

 

13.

 

Agora me olhas como se um espelho caísse dentro de outro.

Devolver o livro à árvore e reaprender o uso dos lugares permanentes.

Soletrar o instinto como quem deslacra os cofres da vastidão.

 

Agora me olhas e não sabes quantos realmente és.

O teu corpo perdeu a conta dos membros e a companhia das sombras mais sigilosas.

Estender a imagem multiplicada como quem consagra abismo a cada gesto.

Os gatunos vitoriosos se disfarçam em emblemas de tua alma.

Sopras em meu peito as migalhas de sonhos atônitos.

O mundo refeito procura outro mapa em antigos escombros.

É bom que estejas aqui antes que os deuses comecem a nascer.

 

Agora me olhas como se os véus ocultassem as imagens que os criarão.

Mas nenhum de nós sabe exatamente qual é o corpo do escriba.

Até aqui não somos mais do que espelhos protegidos em um santuário de relíquias.

E caímos um dentro de outro, alheios à própria força.

 

14.

 

Nunca sabes quando estou em teu corpo.

Ages com uma naturalidade pendente.

A tua ideia de diálogo é sempre impositiva.

Não há parte de mim que não te deseje.

Os teus seios estão descritos em meu sonho.

Caminho com teus pés sem que nos falte abismo.

Cuidas de mim como uma deusa, sem que eu saiba

como uma deusa cuida de seus pergaminhos.

Que mergulhes teu rosto até onde me alcances.

Não há transformação antes do orgasmo.

Que teu corpo se converta em mil, não importa.

Eu quero te amar mil vezes onde quer que estejas.

E não voltarei jamais aqui para contar como foi.

 

15.

 

Agora recortamos a tua visão e a cada um de seus fragmentos destinaremos uma sombra. A sombra de dentro é o murmúrio de teus ossos. Um deus inclinando-se até recuperar o cetro. A sombra do alto é o relógio do sol acertando suas contas com o destino. Não me verás aqui novamente por muito tempo. A sombra inferior é o inferno que não sabes mitigar. Ainda não tens ideia de quantos de mim carregas sobre os ombros. A sombra de fora é um abscesso da vertigem. Desconheces como cair e o que vês faz com que te desequilibres sempre. A tua visão posta assim em uma mesa de dissecção nos revela um acúmulo de imagens que se retraem e expandem. As tuas sombras vão e voltam, obedecem a outro ciclo. Ao acaso, um dia, certos papiros desenrolados mostrarão que a tua visão foi recortada em muito mais partes. E que alguns fragmentos ainda hoje se encontram perdidos.

 

16.

 

A minha silhueta é a silhueta de teu vulto.

O sol desperta nu e logo se veste de tudo em que toca.

Já não recordo onde guardei teu abismo.

Tenho um monturo aqui de ansiedades, cegas, nem há como separá-las.

A imagem destrói seus deuses.

Não perderei o sono guardando a minha porta.

Sei como cresces em teus campos e certamente aqui não retornarás.

Nem descerro a janela mascando teu regresso.

 

17.

 

O santo mora na porta da agonia.

Desfalece de si sem tocá-la.

Morre ali infinitas vezes.

Sem saber que foi julgado.

O pecador esvaece a seu lado.

Que herança paterna eles buscam?

Como disfarçar o domínio do olhar?

Ambos foram escritos como uma chaga.

A aflição não muda de sítio.

Quando avanças, abro a minha boca.

Uma folhagem se ergue e me escutas em teu coração.

Não te ofendas com meus cuidados.

Tange de mim o que abominas.

Esta cabeceira é nossa, onde quero te amar.

As tuas portas falam por dentro; por fora, as minhas.

Eu te ambiento e tu me disfarças.

Não somos nada, exceto a sombra.

Regidos por ela, contra o que nos rebelamos?

Santos, moedas, mercado, qual o domínio possível nesse vozerio de iniquidades?

Já nos fomos há muito, sem caber em voz alguma.

E quando regressamos temos que iludir:

jamais deixamos de estar aqui, não importa o nome do santo.

 

18.

 

A casa ficou do lado de fora.

Onde quer que tenhamos entrado não percebemos que ela não veio conosco.

Pela primeira vez sentimos algo nos faltar.

Redecoramos o cenário com a invisibilidade à nossa mão.

Uma mobília de emblemas abraçando o vazio.

Ritos dissecados da beleza, boas vindas ao duplo, animais imortais dos quais muitas vezes nos alimentamos.

Casa descarnada como um corpo ausente de si e de sua sombra.

Pele esvoaçando sem encontrar repouso.

O teu olhar estava pronto para guardar os meus segredos.

Quando demos pelo silêncio à nossa volta não era silêncio ou noite ou degredo ou mesmo a espinha dorsal da angústia.

Era simplesmente a casa que não nos havia acompanhado em mais uma jornada.

Deixou-nos por um sinal que até hoje desconhecemos.

Por vezes o vazio não sabe a que sítio retornar.

 

19.

 

O meu olhar é o centro de uma pedra.

Com seus ossos pulsando ao ritmo de uma visibilidade lentamente recuperada.

Ciclos inconcebíveis de janelas que mudam de lugar.

Casulos passam por mim com seus interiores sombreados.

Tão protegidos que por vezes me parece que nada os protegerá deles.

E o verbo que adotam é a chave de sua própria agonia:

os deuses se aperfeiçoam em nós, graças à nossa demência.

Uma descendência de falhas ergue panteões por toda a história.

Não sei como fazê-las recuar, pois a cada dia te esqueces de tudo o que passou.

Símbolo, mensagem, rito – já nada encontra residência em teu ser.

O meu olhar trafega pela semeadura de teus santos e demônios.

Jamais compreendestes a escritura de tua dor.

Os teus livros desconsideram o tempo e impõem uma falsa eternidade.

Duas letras mortas que impedem de germinar a tua razão de ser.

Apaga o fogo por uma noite.

Deixa a imensidão sussurrar em teu ouvido algo mais do que uma fórmula de unguentos.

Escuta bem.

E depois volta aqui.

 

20.

 

Os olhares foram passando, como ângulos desencontrados.

Alguns deles fixos em suas dores canonizadas. Outros

obcecados por sombras que saltavam de mãos em mãos.

O instante nunca sabe como multiplicar-se. Os olhares, sim.

 

21.

 

Este é o selo da jornada dos castigos descarnados.

Esta é a rosa do infortúnio e sua estrada extinta.

Este é o deserto de círculos incendiários.

Esta é a nuvem que se esconde em um armário invisível.

 

Os meus assuntos são impiedosos e não sabes onde lhes alimento.

As tuas quimeras são feras em cativeiro.

Aprendeste a amar a tudo o que te confunde e emporcalha.

Eu jamais te revelaria o peso de minhas palavras.

 

Esta é a mordida voraz que eu reservo a teu coração.

Este é o ninho de tijolos de tua queda e o tumulto da dor.

Esta é a ilha onde inutilmente aprendes a não falhar.

Este é o ferro onde moldas o rosto das vítimas que encarnas.

 

Os teus segredos estropiados batem à porta de novas ruínas.

As minhas fúrias espalham cidades por onde passam.

Eu jamais pude esperar que o sol refizesse o atalho.

Tanto moeste o teu espírito que as sombras te perderam.

 

Este que vês refletido em mim és tu.

Esta que nos olha de soslaio é a ilusão.

Não passou um só instante desde que chegamos aqui.

 

22.

 

Acaso conheces o deus que quer morar em ti?

Tens ideia do que ele criaria uma vez em teu íntimo?

Residente em túmulo ou santuário,

ele seria um deus morto ou vivente?

A árvore erguida no centro dessa união,

sabes dizer a quem pertenceria?

A quem atribuir as faltas dele, seus pudores e pecados?

E como esperas que ele retribua as tuas oferendas?

Qual dos dois um dia apunhalaria o outro?

Não crês que todos os deuses se temam entre si?

Quem julga o outro mais sábio, justo ou soberano?

Por que não se sentam todos e compartem uma mesma fatia de luz?

À imagem e semelhança de quem exatamente foram criados?

E antes que não me escutes mais, quantos pensas que somos?

 

23.

 

As salas se abriram e a passagem majestosa era invisível.

Os mundos se opunham entre si, como recortes de uma mesma dor.

Eu queria o teu nome colado ao meu, como uma família imprevista.

Nada me daria maior regozijo do que semear a contradição.

Somente em nome do acaso um dia cruzaremos a linha do horizonte,

onde uma nova geração de verbos talvez nos ensine algo mais

do que nascer, servir, sofrer, sangrar, arder, lamentar, fugir, morrer.

Sempre que me vou, lamento como te deixo entre os teus.

As tuas palavras se convertem em cetros, tábuas da lei, pedestais.

O teu nome é apenas um sinal de fogo, sem mandamentos ou falsos testemunhos.

As letras se escrevem e sabem a que vieram.

Olha bem para a noite, antes que amaldiçoes o teu dia.

Repete o nome dessa porta até que ela se abra ou repete o teu até que ela te reconheça.

De outro modo sequer haverá uma porta e não importará que existas.

Não é a palavra que prevalece, nem o mito, nem o rito.

Não repitas amanhã o mesmo acerto de uma alma devota.

Ainda que se abram as salas a passagem majestosa será sempre invisível.

Eu não ousaria dizer seu nome, antes que lhe apontasse um defeito.

Longe da contradição, não há mundo possível.

 

24.

 

O mundo sempre esteve aberto e tem tomado todas as formas que teu olhar imprime à paisagem.

A breve nota sobre uma tempestade, a queda impensável de um governo, longe ou perto, o mundo é este.

Não há outro.

Sequer é permitida a entrada de outro mundo em teu horizonte.

Nenhuma catástrofe atende pelo nome que não seja o teu próprio.

Nenhuma beleza. Nenhum sonho. Nenhuma mudança de estação.

Não importa que tomes em tuas mãos as cores do assombro,

se não pensas em deixar o dia correr, a alma exaltar-se,

o barco ir além dos mares como a luz muito além da escuridão.

Quantos iguais recebes em tua casa? Quantos falam contigo sem que lhes reprima o selo de outros nomes que não o teu?

Como repartir a vida se a parte que doas nada significa?

Como tornar os verbos insuspeitos?

Haverá mesmo alguma diferença entre o pai, o filho e uma garrafa de vinho?

Antes que o passado gagueje, o mundo recorda que seguirá em aberto.

 

25.

 

Se te digo que faças de meu corpo a tua morada

ainda assim não terias onde repousar tuas inquietudes.

Não anotes, não ergas nenhum templo ou caves relíquias.

Eu não estarei aqui por muito tempo e não saberás onde encontrar-me.

O que esperavas de nós? Que te déssemos a sílaba certa?

Um amontoado de ruínas e julgas que somos apenas isto?

Quantas salas repletas de itens invisíveis, feitas para burlar tua presunção.

Não somos os teus deuses nem o infortúnio de tua jornada humana.

Não te oponhas à imagem desgastada na pele de teus espelhos.

Ainda tomará algum tempo até que compreendas que não existimos.

 

Vem, meu príncipe, abre a tua luz para que a vida nela se conforte.

Os que estão aqui finalmente sabem aonde irão. Os demais restarão.

 

26.

 

Nenhum de nós entrou em ventre algum para nascer.

Os teus olhos sempre nos viram com outros méritos,

deformando a rota dos milagres e suas miragens.

Não somos a abundância de teu imaginário, mas sim a relíquia incontida de tua memória.

Quando retornamos a teu mundo as portas de todos os ventres estavam às escâncaras e se empenhavam em multiplicar-se.

Um mundo ilusório de portas devotadas à multiplicação.

Foi quando ouvimos pela primeira vez a palavra Inferno, criada como oposição a uma ideia errônea do Céu.

A devoção é uma alucinação, pois o culto sempre deforma o mito.

Como poderíamos existir se em tua mente somos sempre os mesmos?

A água é incessante em seu leito e a tua meditação transborda como um método desejoso de ausentar-se de si.

Nós fechamos todas as portas até que identificasses a ausência por seu nome certo.

E em nome dela é que nos tornamos visíveis uma vez mais.

 

27.

 

Quando saímos do mar o deserto era como um lago de fogo.

Uma obsessão por nomes se repetia como um segredo a ponto de rebentar-se.

Quantos são? Quais são? Quem me conhece?

Não pode haver justiça ou verdade enquanto a obsessão respira.

Quem é aquele? Com quantos anda? O que herdou?

Os que alastram o fogo e soterram a terra e encharcam a água e sufocam o ar vieram a nós indagar pelo curso de sua devoção.

O que dizer àquele que só admira o mundo de joelhos?

O mundo gostaria de repetir o nome do homem como uma dádiva.

 

28.

 

Não, não somos daqui. Não somos.

Não dormimos de ponta-cabeça

ou renascemos quando crucificados.

Tampouco temos a ver com a ordem dos desatinos.

Subornos, catástrofes, desesperações.

Uma lástima que só percebas isto quando te dou as costas.

Fui pondo um olhar em cada variação de teus reinos, para que me encontrasses para um chá.

Leríamos as tuas memórias e quem sabe dissiparíamos a sofreguidão de um inimigo posto sem descanso em cada sítio.

Renasces mais vezes do que eu, que não necessito de tantas mortes.

Uma vez mais me tens de costas para teus triunfos precários.

Não respiremos juntos ou nos rendamos homenagem.

Aguardemos o fim do incenso ou que o barco toque a outra margem.

Escuta o silêncio da imagem idealizada. Não há nada.

A tua realidade somente a ti pertence.

Os teus desastres são teus, as tuas frustrações, as tuas agonias.

Nenhum deus jamais será solidário aos teus arrependimentos.

 

29.

 

Tatear a claridade em busca de um ponto cego.

O excesso de luz pode embaralhar tua visão.

Como quem tropeça no esplendor, vagas pelo céu

a confundir os sortilégios de tantas almas ceifadas.

Quando os vermes degustam tua mesa de oferendas

já não sabes mais a qual deus te entregaste.

O mundo tem a extensão de tua ilusão.

E das espigas de tua devoção se alimenta.

A reverência deveria ter um canal secreto por onde navegasse um barco em chamas, queimando um estoque diário de óleo destinado a seus altares.

Ainda que os deuses percam sua imortalidade, o mito se refaz e não cessa sua fome.

Os deuses amam tua distração.

E celebram com orgias matinais quando te desfazes de teu duplo.

Esta é a tua fortuna na terra, até que te percas o suficiente para saber quem és.

 

30.

 

Finalmente pusemos teu nome no espelho.

Relutava como uma treva longe de casa.

Uma grande ave bicava o sol até que se sentisse honrado e lhe abrisse um capítulo de seu mistério para que adentrasse como lâmina ou serpente ou rio de lava.

Grande é a febre que inspiras enquanto teu nome se debate no espelho.

Os verbos mudam de tempo, as orações são fúnebres, o instante se assemelha à queima de um fósforo.

 

Os gritos são inomináveis.

Os que parecem vir de uma caverna à esquerda rangem o dia inteiro como adoradores da corrosão mais brutal.

Do outro lado há que ficar bem atento, porque até hoje não se conhece a origem de seus emblemas.

 

O mundo é o que nos escapa à vista.

O que sobra é fruto de nosso descuido.

Variávamos as letras de teu nome em suas finitas possibilidades na pele do espelho.

Somente o tempo parecia uma raríssima ocorrência.

Já não estamos tão seguros de que sejas uma criação nossa.

 

31.

 

Confesso que não vejo nada.

Tenho dedicado meu olhar à tua invenção.

E desapareces quando menos dou por ti.

Fechei o livro, quem sabe te escondas em outra parte.

Não estás.

Simplesmente não estás.

 

Ponho uma parede ali e a alimento com um pequeno cenário.

Investigo uma silhueta fictícia de teu corpo.

Mesmo assim ainda não te vejo.

Talvez seja o dilema da demasia.

Passo a recortar às cegas o que imagino que sejas.

Não és.

Simplesmente não és.

 

A tesoura vai trazendo os primeiros minérios de tua existência.

Eles se articulam como se a cola fosse dispensável.

Ainda não identifico o que ali esteja se formando, mas sei que és tu.

Não importa a extensão de minha cegueira.

Agora eu te vejo.

Eu simplesmente te vejo.

 

Estás?

 

32.

 

Um gole de tua longevidade e as máquinas sussurram inquietudes. Árvores se convertem em tambores canoas tronos e te ajoelhas perante a magia do tempo. Óleos deixam teu corpo e teu espírito renovados ante o desgaste da carne. Eu te acoberto quando não puderes vir. Os deuses torcem o nariz, mas não estamos aqui por eles. Anda. Diz por onde foste ontem, me conta dos rostos que vistes como que sangrados na pedra e na folhagem. Eram robustos e seus traços indicavam movimento. Não me deixes sem saber. É possível um mundo sem deuses?

 

33.

 

Quando a nave se foi alguns rostos forçaram outro curso ao livro de bordo, por incompleta previsão de um nome que corresponda a cada ato. As minúcias da adoração. Como ousa este deus aqui, como morre outro ali, e de que se lastima aquele? Fertilizamos nosso alimento. Porém a nave se foi. O maquinário que construímos é a nossa utopia. Continuamos vazando os quatro elementos. Com a delicadeza abissal de nossa compreensão de quanto isto signifique.

 

34.

 

As vértebras estão banhadas pelo fogo.

A tua respiração é a mesma minha.

O meu corpo te fareja como um ovo que o contém.

O que olho me envelhece, a hostilidade das formas.

Eu te amo como és: um pássaro, o galope de um alce, o ritmo de minha respiração.

Eu te trouxe aqui, a esta cidade, para que me ensines a viver contigo.

Todos os espíritos tocam tambores comigo, descasco as razões de ser porque não há dúvida de que te quero.

És o criador de todas as formas em que me manifesto.

Eu me decifro como um enviado aos teus braços.

Evito o teu nome, mas sabes quem és.

Eu te amo.

Não há outro modo de chegar até aqui.

 

35.

 

Agora abrimos a escada, para que possamos ir e vir.

Objetos e nomes saltam em todas as direções.

Um livro rasteja por entre pernas alongadas de móveis incertos.

Os adjetivos semeiam sua tempestade de assombros.

Vozes não identificadas ensaiam um happening que se reescreve indefinidamente.

Muitos de nós nos encontramos em dois tempos no mesmo sítio.

O livro-serpente vai deixando seus ovos por onde passa.

São pequenos símbolos que ao romperem a casca se convertem em dragões.

Os esconderijos são anfíbios e confundem todas as espécies.

Aos poucos descobrimos que respiramos o ar que produzimos.

A terra já nos extinguiu e ainda não demos por conta.

As escadas cambaleiam, não sabem a quem recorrer: aos que entram, aos que saem.

Eu perdi o meu nome em um desses conflitos.

E agora só me resta esperar que saibas retornar ao ponto em que nos surpreendemos um com o outro.

 

36.

 

O inferno todo passa por aqui e se lastima do que vê.

Uma tapeçaria de agonias e os saqueadores festejando.

 

O homem jamais se reconciliou com suas dores.

Sempre emborcou a taça de sua inestimável racionalidade.

Ou fez dela o totem de seu horror exaltado.

O homem não vai a lugar nenhum, porém a tudo desfigura quanto mais segue adiante.

Sua falácia não distingue um olho do outro.

Eu seu mundo danado já não sabe o que é visível ou invisível, quando vê e quem o vê.

E sua incompreensão de tudo o leva a temer a própria imagem.

Não sabe a quem pertence seu olhar.

Não sabe o que come ou como chegar às partes mais remotas de si.

 

O inferno é uma casa repleta de hesitações.

 

37.

 

O verbo se retrai e olha com cuidado.

Nada aqui pertence a alguém, verme ou deus, homem ou uma estranha senhora que empoleira seus caprichos.

Ela nos toma em seus braços e nos enfileira como seus meninos.

Não sei quantas vezes marca em nossa carne um irritadiço destino.

E quantos estamos trancafiados lado a lado não fazemos ideia do que ela quer de nós.

Não temos dias felizes enquanto preparamos seu caminho.

Tudo o que somos não nos pertence e não sabemos onde recuperar a graça dos dias antigos.

Talvez o passado não deva nos valer mais do que uma pedra gasta.

Talvez o verbo se retraia por isto.

Quando o semelhante se oculta não há muito a ser feito com o crepúsculo ou o arco-íris.

Eu então a deixo onde lhe agrada estar: imaginando que me domina.

 

38.

 

Quando fomos ao mar, as tumbas sorriram como se previssem novas companhias para sua solidão cavernosa. O mundo se desprende de si e corre de um lado para outro sem saber onde aportar. A névoa se refaz e se rejubila com suas inquietudes. Água por toda parte e navegamos à deriva. A tripulação repete a mesma refeição dias e noites. O abismo se transtorna e rejeita nos engolir. Nem mesmo o horizonte sabe por que permanecemos de pé. Os fantasmas que incorporamos no mar não nos servem de guia na terra. Porém voltam conosco sequiosos por vítimas em bares. E sempre as encontram e reproduzem suas falhas de conquista. O mundo é uma avalanche de erros. Uns encobrem outros. Terra por toda parte e caminhamos à deriva. Nunca saímos de nós mesmos.

 

39.

 

Ao cair da noite os rostos mudam de expressão.

Repreendidos por suas máscaras, tornam-se irreconhecíveis.

Os corpos vagam, desencontrados, cada um abraçando a si mesmo como um cadáver.

As noites se amontoam como formas transmitidas ao vazio.

Já não há intervalos entre elas.

Os rostos entoam um lamento recolhido de cada máscara.

Seus olhos enfatizam a névoa que masca todo o cenário.

Nenhum deles sabe mais o que está vendo

ou quantas noites ainda faltam até que retornem a seus corpos.

 

40.

 

Eu vi a luz sair do fogo e percorrer uma grande distância.

Cinzas, névoas, nuvens – como uns borrões enfurecidos.

A luz desfolhando suas carnes como um matagal piedoso.

Eu lembro a nota expandida de cada grito, a nudez violentada de suas virtudes.

A iniquidade transferida de um olhar a outros.

Quando passei por aqui os mortos se alimentavam dos vivos.

A isto resumimos tantas luzes derramadas sobre nós.

Convertidos em seguidores de fantasmas, perdemos a intimidade com os elementos e suas propriedades.

Os deuses foram criados à semelhança de nossas culpas.

O homem mente deliberadamente para ser confortado por sua criação.

 

41.

 

Caímos por terra como uma pilhagem há muito esquecida.

Muitos creem que foram deixados ali para morrer.

Caminho por entre olhares assombrados, resignados, revoltos.

Anoto seus planos mais disparatados.

 

Como sangrar as estátuas de sal dispostas para nossa proteção.

Como surpreender a carnificina da semelhança.

Como confundir as reservas do mal que ainda não presenciamos.

Como afastar, como reter, como destruir.

 

Talvez os guias estejam mais perdidos do que nós.

Talvez seja a hora de livrar-se deles.

Talvez tenhamos que rebentar todo o trajeto e rascunhar um mapa menos acidentado.

 

Um mapa sem milagres ou outras metáforas.

Um mapa com as linhas indefinidas de nossa alma.

Todos os dias, todas as sombras, todas as descobertas.

Um mapa refeito na medida em que a memória se recupera de cada pilhagem.

 

42.

 

Uma ventania desfazia o cenário antes que ouvíssemos suas últimas palavras. Móveis, amuletos, a exposta fiação elétrica. Tudo decomposto como fragmentos devorados pela fome dos ventos. As luzes desfeitas no mundo inferior dos olhares. A emboscada e sua carga de relâmpagos. O homem empoleira suas quedas, para que um dia se enfastiem de tanto descanso. E ali, naquele dia intuído, no dia em que as quedas voarem, os ventos tocarão a pele do mundo de outro modo.

 

43.

 

Ando pela terra e inclino meus olhos para as colheitas do acaso.

O verbo salpicando seus peixes e outras liturgias.

Os nomes desterrados decifrando manuscritos de seus duplos.

Uma palavra perdida para cada outra jamais escrita.

Uma lenda de ossos improváveis em louvor das almas embriagadas com o destilado dos sonhos.

As oferendas são incorrigíveis.

Cada peixe contém uma serpente que abriga uma lança que se destina a converter-se na fiação de meus desejos.

O mundo não faz ideia do quanto é impossível soletrar suas quimeras.

Mesmo assim caminho pela terra como um apóstolo do acaso.

 

44.

 

Eu encontrei a tua casa em pleno rangido da tempestade.

O teu olhar abundava à porta e o reconheci como um selo.

Trouxe comigo um patuá de inquietudes e frascos com poções suficientes para esquecermos quem seremos.

A escuridão jamais nos disse seu nome e nem nos preocupamos com suas tramas abertas.

Sentamos para pronunciar os conselhos secretos de nosso encontro.

E ali ficamos, por mais tempo do que o próprio tempo pudesse predizer.

Até que um dia o tempo se desfez e não nos lembrávamos de quantas almas devíamos um ao outro.

 

45.

 

Em volta da lagoa nos reunimos à espera de que ressurjas de seu centro borbulhante. Os que estão recostados em nuvens nos veem como um grande olho cuja pupila se dilata ao ritmo de nossa litania. Mobiliamos a visão com árvores buscadas por toda a terra. Árvores que entrelaçadas traduzem um santuário onde podes acalentar melhor o abismo. Não voltaremos a morrer. Os verbos repousam em tua boca e nossas mãos dadas formam o teu colar de assombros. Todas as formas visíveis e invisíveis te saúdam. Nós somos a tua natureza errante e aqui regressamos uma vez mais. Deixa o teu nome arrepiar o caminho e a tua luz despejar sua água até que não nos falte nada.

 

46.

 

Nunca se sabe a quem pertence o vazio.

Por vezes ele se reconhece entre escombros de sombras projetadas no fogo.

Há os que se orientam pela convulsão de seus amuletos.

Os que sonham com a proteção de sua estrela fúnebre.

E aqueles que se acotovelam em busca de seu portal obscuro.

O vazio é feito de súditos, como qualquer outra arapuca.

Enquanto eu te vejo reunindo os bagaços de tua vida, o vazio retoca os desvãos de teu rosto.

Ao final te escondes em ninhos inencontráveis.

Uma multidão de rostos parece desconhecer quem és.

O vazio é um fabricante de espelhos e jamais foi identificado.

Eu sou os corvos que inutilizaram a cena do crime em todas as cruzes.

Eu sou o polônio que tornou impossível a tua autópsia.

Eu sou o cardume de piranhas que devorou a tua sombra morta.

Em cada um de nós o vazio rasurou um símbolo, e nos reportamos diariamente à angústia que nos impede de ser quem somos.

 

47.

 

Todos os livros coincidem em que não escaparás de teus feitos.

As oferendas rastejam com seus punhos dilacerados.

Não importa em que acredites, logo estarás cercado pelas criaturas favoráveis à tua dor.

Este é o teu mundo.

O celeiro de tua justiça aviltada.

O séquito de teus truques.

Não há como afugentar os espelhos entrelaçados.

Graças a ti o dia perdeu o propósito e já não sabe onde descansar.

Lemos o teu nome em todas as tabuletas cerzidas no cós das estradas, como um aviso ou petição.

A quem reconheça um livro novo, que nos faça brotar de seu manancial.

Nós somos os guardiães da lembrança de homens que não existiam.

 

48.

 

Podem ir todos.

Eu escolhi ficar aqui.

Rascunhei um calendário cujas tarefas diárias serão convertidas em súplicas.

A dor não se eleva em face dos sofrimentos que produz.

Os ferimentos nos tornam unicamente feridos.

É terrível basear uma vida em seu infortúnio.

É desumano exigir do homem que sofra para remendar alguns trapos de seu espírito.

Que os deuses se matem entre si para nos merecer.

Eu não me atenho aos seus conselhos secretos.

Há muito abandonei o covil dos deuses.

Eu escolhi ficar aqui.

Não há triunfo, arrependimento ou castigo.

Uma vida não substitui outra.

O mundo se esgota em si mesmo.

Tenho viajado por todos os sítios da terra, conhecido lugares onde somente as boas almas não prosperam.

Por isto escolhi ficar aqui.

Podem ir todos.

Já.

 

49.

 

A dor é a ilusão perfeita.

O esplendor da agonia, a praça do exaltado, o banho turco da tirania.

As trevas se alimentam dessa iguaria quase divina.

Masca os atormentados que não sabem viver sem ela.

Aqueles que estão de acordo que o sofrimento salva.

Os desgraçados que cantam seus louvores sem saber ao certo o que significam.

Tudo o que amas é uma farsa, se não compreendes o quanto a dor desmata tua alegria de viver.

Trouxe até aqui o meu último olhar.

Estamos contigo, nos convertemos em tua humanidade.

A água que bebemos é a tua – contaminada.

A terra que elegemos é a tua – aviltada.

O ar que recebemos é o teu – asfixiado.

O fogo que levemente nos açoita é nossa lição, a metáfora extraviada, o horizonte mais próximo que temos de nosso desencanto.

Ao queimar o passado não esquecer, no entanto, que a ação do fogo deve ser sobre seus equívocos e não sobre sua razão de ser.

A dor é um labirinto cego.

Guiamos teus elementos por seu interior.

Ao final da travessia, decidimos ficar.

Daqui não partiremos jamais.




 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

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