1.
A cidade se mistura por dentro de todos
os seus vestígios. É noite e somos seus fogos tentaculares. Não há salvação na calmaria, ouve-se ao
longe. Ora, não há salvação em parte alguma. Nem faz sentido esperar a
tempestade passar para sentir-se salvo. Este sentimento não passa de um
estratagema para nos manter apegado à vida. É como embarcar esperançoso em um
último trem para Lost Paradise, onde quer que esteja tal destino. Aos
poucos fomos expulsando-nos de nós mesmos, varrendo o que nos resta, cinzas
para um desterro da memória. Frequentamos estranhas cidades: o emprego, o sexo,
a mecânica social em suas latitudes desconexas. É preciso um grito de
sofrimento para renovar as trevas.
2.
De que se ressente a realidade, se o
homem a alimenta tão bem? Dá-lhe uma ração diária de ilusão em cotas que
superam suas reais necessidades. É certo que demasiado cuidado em proteger a
realidade pode ocasionar-lhe distúrbios de personalidade, um tipo de bailado
instável nos traços típicos. Mas o homem não crê nisto, e nem de longe
desconfia que ela não mais se encontre à disposição. Nenhum de nós saberia
afiançar tal reviravolta, porém uns poucos percebem que algo da realidade anda
por aí em descompasso com o que se espera dela. Tal desarranjo se estimula em
cadernos de aforismos que se reproduzem em um grau tamanho de exaustão que logo
se torna patrimônio da boa ordem do caos. Em meio ao turbilhão dessas máximas
uma passou por completo despercebida: não
há nada mais insuportável para a realidade do que ser tratada como tal.
3.
Destruímos a ideia de tempo aliada à
ideia de esforço. Tornou-se mecânica toda absorção de conhecimento. Ninguém
mais fala de si mesmo. A humanidade gera um desinteresse processual. A imprensa
nos visita com palavras descascadas, que perderam o significado por excesso de
uso. Ainda vemos uma ou outra sombra vagando pelas ruas à procura de uma
máscara que se adapte a seu rosto. Apavora-me o hábito, a virtuosa varanda onde
a vertigem é jejuada e a sensualidade presumida. O homem não duvida mais de si.
Já não prepara a madeira para manter-se no inverno. Dedica sua vida a livrar-se
do que quer que tenha sido.
4.
À noite busco refúgio em teus olhos. Não
recordo se passam as horas. É sempre difícil encontrar-te, porque já não estás
ali. Por que são fugidios os abrigos? Teus olhos me protegem do mundo, mesmo
quando me vês como uma morta silenciosa. Todos os riscos dançam e não se pode
morrer senão cantando. Mas quando te procuro já não estás. Que amparo
pretendes, se te encontrar é tão delicado quanto morrer? Sinto teus dedos
decifrando a morte em meu corpo. Não protegi o refúgio como devia. Há uma nova
noite encantadora e distante de ti. Meu olhar atento ao toque de teus dedos.
Não busco mais apenas prazer no espelho. Percorro-me indefinidamente, por onde
andares. Não importa a distância: escrevemo-nos, um no outro.
5.
Há um momento em que o crime é traído
pela vítima. Não por inesperada perfídia
ou pelo crescente desejo de saber-se além.
Quando nem se cogita, a vítima desiste
de seu personagem. Trata-se de um morto
sem convicção alguma. Não posso morrer
em seu lugar, representar-lhe a trama final.
Posso dar crédito ao fato, fardo ou mito:
peço apenas um morto mais convincente.
De que vou morrer nesta morte, afinal?
Com tantas perdas espalhadas pela vida
– ilusório cenário onde atua a verdade –
por que eu me sujeitaria a uma tão débil?
Querem uma vítima da morte anunciada?
Pois me deem um bom motivo, um preço
por estarem matando com convicção, e
terei o quanto valia e castigo se confundem.
Não direi jamais: fui apenas um ator.
Todos sabemos a realidade dessa ficção.
6.
Há um reflexo móvel que te expõe em
ângulos diversos, sempre que te busco, como se não fosses senão uma destreza da
arte. Uma dessas síncopes da imagem chega a sugerir que somos permanentemente
recriados pelo que há de mais ordinário em nós. E outra se distrai a recordar a
infância, quando era o centro de toda a tormenta criativa. O corpo despenca por
abismos desiguais. Por mais que nos ocorram outras vidas, assusta-nos a
crueldade com que o homem se desfaz de si. A memória sangra as imagens enquanto
elas se afligem por tantos anseios. O que antes era apenas movimento agora é
uma agitação despedaçada. Num relance de olhar, amotina-se uma aluvião de
vértebras. Ao passar as páginas do mesmo espelho, já me vejo em trapos
embrionários. Serei apenas reflexo ou em algum momento tocarei a matéria do que
me desfaço? Ah mas quantos queres de mim
agora…, parece indagar o milenar fantasma manifesto. O órfão não sou eu.
Não preciso esconder-me atrás da memória. O pátio está repleto de crianças que
brincam com pedaços da arte que se julga a soma de tudo com que nos destroçamos.
Alguém venha alimentar este espelho.
7.
A luxúria da escrita reside em sua
falsificação? A memória é uma notável instrutora de falsários. Quantos sinais
trago em meu rosto daquele que realmente sou? Todos nos vemos no espelho como
um oponente. A ideia do outro está ligada à adversidade. Quem trataria de
imitar a si mesmo? Então não passo de uma falsa interpretação de tudo quanto
desejo? As emoções apontam o lápis e se deixam escrever. Ou será a razão quem
afasta de si seu verdadeiro sentido? Nem sempre é fácil saber o que é
desamparo. A escrita se debate entre o que sofre em si e o que sofre de si.
Olhando bem, espelhos não passam de afrescos. Em muitos casos não designam
senão dilemas impróprios. Que espécie de rosto alguém imagina ter antes de olhar-se
em um? Vidência ou evidência? Um ou outro? Qual dúvida dar por certa? Fazer
análise, amar o próximo, tratar a vida como um epílogo sem fim, são truques
influentes, cujo enredo alimenta a pouca distinção que fazemos de nós. Quantos
autorretratos não passam de um espelho embaçado? Quem entalha tão bem a si
mesmo a ponto de permanecer o que é? Talvez um serial killer de toda a
ilusão de ser. A vida nunca foi mesmo um lugar indicado para homens comuns. A
escrita sufoca, perverte, molesta, seu resultado é pavoroso e inconcluso. Porém
sem sua lascívia o homem jamais consegue compreender as camadas de maquiagem
que lhe tornam o rosto mais compacto. Um fantasma que dança e se pune por
amálgamas não reparados. Ninguém sabe onde está. Os espelhos olham sempre em
direção contrária. A escrita é apenas um costume.
8.
Recolher a arte abandonada, e dar-lhe
cuidados mínimos, ainda que fora do tempo. A realidade enlouquece a arte?
Diante de um crime passional – essa pérola do falso amor –, como reage um
poema, um filme, uma escultura? Com qual arte me sinto pronto para enfrentar o
passado? Aturdido, faminto, encabulado, o artista perambula por recintos de seu
espírito, onde não tem cabida a lei das proporções. Dissocia-se de si sem
compreender o que está na outra ponta do ser. Adicto do peditório, ele vegeta
sem a caridade institucional. Em busca de sua cota de esplendor. O mundo está
assim dividido: em cotas de esplendor. Quantos conhecemos: músicos, poetas,
pintores? Que oblíqua relação com a realidade eles evitam? Haverá um asilo para
os que abandonaram o mundo? Prestar assistência aos que se deixaram enlouquecer
pela realidade? Farsantes, ególatras, diluentes, serão todos recolhidos sob
amparo do Estado. Uma manobra insuspeitada? Não, um grande olho. A arte não vai
mesmo a parte alguma, sozinha.
9.
Escavar por toda a arte. Em busca das
vítimas da prestidigitação e do acaso. Dilatar a paisagem dos corpos até que se
tenha a medida mais imprópria dos desastres. Quantas são as mortes que se
repetem em cada túmulo violado? Objetos devorados pela ausência de sombras,
desfeitos em si mesmos sem reparo. Vozes encalhadas nas vísceras do tempo,
sangrando sinais que lidos por engano resultam em uma retórica de dilemas. Se o
mundo caminha a largos passos descuidados, cuidar então para que lhe falte
terra sob os pés. Afrontar o orgulho tosco do vazio e dizer-lhe no olho o
quanto a dispersão o está matando com apenas uma jarra de gritos mal escritos.
Buscar sentido no outro, nos demais. Planejes ou não, todo o teu ser se arrasta
dentro de ti. Evoluímos por galicismo.
10.
As escadas desmaiam avulsas como se não
dessem sinal da queda que representam, se esculpem o perfil de uma nova voragem
ou simplesmente embaraçam a memória de quem não sabe como esboçar uma falta. As
escadas são possuídas por uma inclinação natural qualquer e têm pesadelos com
tombos esfaimados. Acordam no meio da noite com o vento dilacerando suas
costelas. Não dão um passo sem confundir céu e terra. Quantas vezes não nos
desiludimos ante o mapa perdido do que supomos jamais nos encontre? Dispostas
na horizontal as escadas degustam uma entrada de bússolas. Não fazem distinção
entre fruto e furto. Somos furtivos nos mínimos detalhes. E nossa grande
invenção é a indiferença.
11.
A chave do sexo não é o que se escuta nas
brechas do desejo. A chave do sexo é um torvelinho que encrespa toda a alma. A
chave do sexo não é a fresta onde supomos caber. A chave do sexo é o que
não se abre e fecha. Nunca se sabe quando ela dirá em sussurro: eu sei o quanto teu corpo cabe na noite.
A chave do sexo não é uma partitura, nem se vislumbra em empórios. A chave do
sexo em nada se assemelha a uma queimação de hábitos. Meu coração se esgota ao
menor sinal de teu desejo. A chave do sexo não escreve bilhetes de amor. A
chave do sexo está ao alcance de qualquer um. Eis sua impossibilidade.
12.
Retoma
sem dificuldades o curso perdido, mesmo havendo uma falsa glorificação do
instante que algema os demais sinais do tempo. Somos todos gotejos do fogo,
insuspeitos em sua errância. E põe fogo agora no ermo do entendimento: lepra de
delírios, prantos regados à esquizofrenia de seus hóspedes, ópera bufa de Deus,
angústias vociferantes, revoando revoando, sempre a mesma letra assinalada,
idêntico o curso assimilado pelo presépio do êxodo, o mar se desgastando em
geometrias. Previsível sumo da árvore lançada ao espaço. Ogiva de cinzas que
torna Dante de menos. Secreto pomar de vísceras de sombras não chamuscadas –
transmuda tal acorde decomposto no milagre de tuas pálpebras refeitas. Não será
tão tarde. Tuas igrejas futuras dependem disto. O homem só julga a si mesmo
através da metáfora. Toda sua realidade é uma fantasia. Múltipla tua orfandade.
Reacende-me em teu exercício. De que morreremos? Pequeno jardim de comédias –
nos rimos. Diversas as sombras peregrinando – convocadas. Quedas por toda a
noite – ressonante espetáculo. Ainda buscamos por que morrer – espectros
fugazes. Não dá-se a sensualidade sem quebra. De comparsa do paradoxo não passa
toda a essência da convicção.
13.
Quando um penitente
investe contra ele próprio
é para livrar-se
não exatamente de uma tentação externa,
mas sim do
inferno que há em si mesmo.
O homem é fruto
do que cria em sua mente.
Na realidade, o
mundo é bem simples.
A exploração do
desejo é que dá ensejo a esses monstros tão hábeis.
E nossa ideia de
catástrofe adora ver o eixo deslocado,
de um dia para
outro, em um telejornal qualquer.
Vítimas aqui ou
acolá, mas sempre vítimas.
As vítimas não
são reais. Apenas o telejornal é real.
14.
A
tua figura me escapa,
como
um lábio assustado pelo toque,
um
varal de sonhos cuja aparência não se deixa imprimir.
De
um momento para outro a memória improvisa sua ruína,
e
a tua figura me escapa.
Não
sei aonde me leva e duvido que venha a sabê-lo.
Procuro
por ti em toda a minha pele, toco-me em lugares vacilantes e um lapso de dor me
diz que já não estás.
É
uma rara maneira de perceber a ausência do amor.
Por
mais impreciso que seja o tempo, algo me diz que estavas aqui agora.
Porém
tua figura me escapa.
Há
pouco toquei teus pelos em um regozijo transbordante e rimos de tua nudez a
vagar pelos limites de nosso olhar.
Sabíamos
que o amor foi excluído,
por
toda parte,
extensos
corredores de naufrágios e desamparos.
Já
não se pode falar em amor.
E
incompatíveis com o próprio tempo ríamos dentro de uma nudez que era a própria
descoberta do salto, do abismo, do inesperado.
Porém
agora tua figura me escapa.
Sem
que mais nada em minha vida se interrompa.
Não há uma estrada vazia.
O que vemos ainda não despertou de sua
ausência.
15.
O corpo
é sempre um corpo-de-prova. Onde esteja, inerte ou atuante, evoca o encanto dos
sete véus: avareza, gula, inveja, ira, luxúria, orgulho e preguiça. Não há
pecado sem corpo. Não há sedução sem crime. A arte é um pecado da experiência
ou um crime da inocência? Anfiteatro onde vaticinam os senhores da simulação e
suas máscaras: suborno, traição, peculato, populismo, prostituição, ciúme e
tortura. A que pode ser condenada uma arte nua e atirada ao chão? Desde o
princípio mais remoto, milhares se dedicam a compor o mesmo cenário: o
corpo-de-prova à procura do semelhante. O homem jamais quis ser diferente. A
arte – quase sempre a pior arte – é o que nos iguala.
16.
Quantas noites chovem sobre tua pele?
Quantas perdas o acaso adiou para que estejas aqui uma vez mais? Tuas mãos
tingem com maciez os rumores em meu peito. Quantas noites a escrita é a chuva
pescando acordes em nosso abraço? Transpiras uma melodia de árvores em cúmulos
que são o princípio de tua entrada em meu ser. A que me conduzes, quanto mais alta
a queda de tuas águas? Quantos idiomas pernoitam na caligrafia do abismo?
Quantas vozes descrevem a noite como a vestimenta torrencial com que me despes?
Ah o esplendor de teus lábios líquidos que se misturam à fala de todos os rios.
És o rangido mais lúbrico do silêncio. Por quem falas? A quem me sobrevives? O
amor é desconcertante como uma porta destravada no meio da noite. Mas quantas
chaves levas contigo no enigma de peixes com que transitas por minha calmaria
vulcânica? Quantos de mim tua pele descerra? Quantas vezes amar o amor antes
que o amor ressurja? Isto não tem fim. Nem posso queixar-me.
17.
Escuta
os rumores da escritura, transcreve as versões do silêncio. Escuta o que dizem
os ramos da oração. Não se tece a história em súplicas. Antes em massacres.
Vozerio de sombras, ontologia de retalhos. Ama as trevas com júbilo e busca sua
face perdida. Nada alcançarás senão o cadáver obeso de tuas próprias dúvidas.
Fareja os despojos violados da memória. Odores obscuros do oráculo. Nada. Não
lerás a mesma página que o fogo. De que mais se fez teu canto, intumescido de
espelhos? Consagra-se a que agonia o homem devolvido à sua imagem primeva? Como
chegar a ser um livro? De algum ouro impreciso nascem as páginas? Gnomos
cultuam o fôlego ressequido das imagens? Por onde jorram beatrizes? Tenebrosa
será sempre a jornada do verbo? Os que nos damos ao mar, ao inferno de árvores,
ao ramo de horrores, ao mar de sarças estelares, ao batismo de selvas, ao mar
ao mar, ao sudário da estrada, os que nos damos em círculos, trememos de que
felicidade?
18.
Contorna
o rigor de tuas fúrias. Por vezes não passas de um cadáver esquisito. Em que
ilha vão dar os livros? Rangidos, suspiros, gestos trocados sob tábuas,
tremuras ocultas, crimes da virtude, virtudes do crime. Desapareces onde a
fábula retoma seu curso. Escuta que já não se trata somente de teatro. Tudo em
ti se retrai, e despenca. Escuta então os giros da existência e não somente o
respiro de máscaras. Não busca senão o aturdimento, o sustento selvagem do ser.
De que nasce a épica? Já estão ao mar todos os heróis, vendados ou entregues à
rumba de sílfides? Símbolo o símbolo implacável do homem em suas derrotas.
Funda o mundo com suas dores. Diviniza as pobres formas corroídas. Tudo no
homem é mito, inflexível em sua queda. Dias serão os dias com suas trevas e as
noites concebidas estreladas, estrofes consoladas por uma poética vulgar. Verbo
é o símbolo da agonia: quanto custa ao homem converter-se em evidência. Imensa
a dor e sua ressonância, venha do grito ou de seu revés. Dias de queda,
barrocos, exaustivos, adegas que não ressuscitam a alegria do vinho. Suportará
berenices, mas nunca um espelho sem imagem. Refeito um dia de quantas gotas,
todas de melancolia? Tudo em si é pesar, a refletir a névoa de seu próprio entendimento.
Já não percebe os sussurros do silêncio. Queda a queda disfarçada em poema. Que
epifania buscas ainda na ruína de teu esplendor?
19.
Não sei onde guardo teu corpo. A mímica
turbulenta de seus conflitos me chama a atenção com a recusa de permanecer onde
está. Estranhas figuras irrompem de seus bolsos, espelhos transfigurados que
soletram meu espanto. Inclino-me a buscar um disfarce, para que não percebam as
palavras que induzo a procurarem outro refúgio para teu corpo. Mas tudo se dá
muito lentamente. E mesmo espelhos tão jovens sabem captar dúvidas e
ansiedades. Fazem-me prisioneiro de uma pantomima, e releem meus reflexos na
penumbra da tarde. Salientam obsessões e alguns compreendem que tudo não passa
de secreta afinidade minha com o teu corpo. Discutem entre si, enquanto me
sinto aviltado pela trégua. Ao que parece o mundo é um estranho lugar para
espelhos indecisos.
20.
Fui apanhado por teus fulgores. A noite
lapidava seus ossos para a grande estreia. Fetiches descarnados anunciavam a entrada
no delírio. Estavas vestida com uma pele inesgotável em suas quedas. Um clímax
de ruínas que faziam de ti o despojo mais cobiçado do ritual. E tua voz na
celebração das imagens, gravitação de enigmas vorazes, o olhar concentrado de
todos em tuas palavras, cenário convertido em sombras dos sentidos que buscavas
reproduzir em tua leitura. Ouvir-te assim, meu amor, tornou-me um trota-mundos
de ti, o teatro repleto de tua voz, taça esvaziada do silêncio à tua espera.
Porém o palco repleto de vícios, os crimes litúrgicos, as vítimas ressequidas,
o explícito canibalismo… Como pude amar-te tanto, em um segundo apenas, e logo
ser devorado pelo terror de tua presença? A transgressão é fascinante também
para aqueles que têm por profissão evitá-la. Quem ousa separar na arte o que é
clemência ou bestialidade? Distinguir doçura e selvageria em tua voz, de que
serve? Cuido de tudo com discrição. Espero que todos esvaziem o camarim e rogo
ao policial por sua confiança, que me dispense as algemas. Porém a caminho da delegacia
ainda me indago – não a ti, não a ti – o que diabos fizemos para tornar isto
possível. E parece que a ninguém mais no mundo isto importa.
21.
Como expressar o que se pensa em meio a um
desânimo tão bem organizado? Não é o que se passa agora, em uma ou outra parte.
Mas a maneira como criamos falsas ilusões. Por onde detê-las? Como se afeiçoar
a elas? O que querem nos dizer? Por mais que se negue, a realidade é mesmo
baseada em fatos reais. Não é a humanidade que dói em mim, mas a sua circunstância.
Um fato isolado é toda a vida, porém não cremos em fatos isolados. Uma
chacina, sim, já começa a despertar interesse. Mas dura muito até que a vida se
confunda com a humanidade. Estamos sempre à espera de uma prova, por maior que
seja a indignação.
22.
Despertou bem cedo a realidade, decidida
a mover-se para alguma parte. Ainda por vestir-se, desamparada como matéria
viva, buscava um espelho onde se reconhecer após uma noite de golpes
ocasionais. Os reflexos se embaralhavam todos e uma súbita vacuidade tomou
conta de si. Toda a criação girava a seu redor, com as sombras felpudas, as
perdas irreparáveis, o acaso abandonado, amores traídos, lacres de ganância,
homenagens fortuitas, parecia que nada havia dado certo em seus planos. Teria
sido um truque? Sim, meu reflexo não passa de um truque, uma esfregação de
truques. Não te sentes bem assim? Como preferes?
23.
Rumores de teu corpo: um labirinto de
santos que recebo enquanto me beijas. Naipe de espantos na luxúria com que me
visitam: a devoção de teus seios. O mistério se debruça como flores anônimas ou
confidências sitiadas? Uma voz me diz que os vícios carecem de mapas: anjo
fingindo me amar em teus lábios. Simulas outras entidades ao compasso de meus
dedos em tua pele: todo um teatro de provérbios. Um poema que arranque os olhos
do tempo [me pedes]. Do outro lado do êxtase a miséria da palavra. O fogo se
alastra, violado por lugares-comuns. A desordem dos santos nos surpreende em
pleno gozo: embrenho-me em ti, não nos importa quem somos. De costas para o
mundo, não ligamos a mínima para o brinquedo que somos.
24.
Uma lâmpada acende teus seios dentro da
noite. Nunca sabemos a que horas uma alma desconhecida se deixa iluminar. Tocar
a noite inteira pode nos levar de volta para casa sem pássaro, fogo-fátuo ou
abuso do acaso. Mas quero morder estes seios enquanto a música me acaricia por
sabê-la tocar e me diz: não é a música, é
a noite que me despertas em cada acorde. Haverá uma identidade que não seja
arbitrária? A noite toma conta de todas as imagens do desejo. Não há carícia
sob a luz do sol. Ainda que mergulhes tua nudez em líquidos papiros eles serão
sempre noturnos. Em pleno apogeu solar o amor será sempre noturno. Ponho a tua
mão em meu sexo e me indagas do que quero me convencer? Teus sonhos não se
refletem tão bem. Talvez devas me tocar com melhor aspiração. As falas são
irreconhecíveis. Tanto solfejei esta música que ela já não existe. Tropeçamos
em destinos os mais errantes. Talvez tenhamos a mesma imagem amorosa em
suspenso: a música que tocamos no corpo de nossos amores. Porém já não estás
comigo. Teus fantasmas sabem de ti melhor do que eu. É bom que as vozes se
confundam, que a noite se deixe congestionar por sombras. De outra maneira não
me buscarias em uma lâmpada, na reminiscência de um poema, na ponta de tua
língua em meu ânus.
25.
Por que o inesperado sempre chega pelo
outro lado? Cresce em nós a floração do visível. Um vício de números como o
anúncio de um parto. Dirás agora o estímulo planejado. A espera aos poucos
desagrega tua equação existencial. A custo reparas que a circulação de
ansiedade já não decifra o simples efeito físico da sombra. Já não sentes mais
nada íntimo em ti. Apenas um dardo do acaso explora o cansaço em tuas veias.
Refluis para onde não há mais escrita, talvez movida pela crença de que o mundo
é uma coisa mental. Esta metafísica de fácil combustão emperrou o desejo, que
agora se recusa a corporificar qualquer ideia. Grafites se espalham pelas ruas:
infinito é o que não pode ser escrito. Já não chegas em ti por lado
algum.
26.
Parte do que somos somente nos recorda
se um acidente lhe importa: entrada
redecorada por cupins ou sátira do acaso
a reinscrever o homem em seu trajeto.
Parte do que somos somente o desgaste
reaviva: proeza concreta de carcomidos
ciclos da humanidade encravada em nós.
Nós da memória, rasgos, erosões da alma:
longa jornada da decomposição, até que
reescreva seu nome destinado a apodrecer.
27.
Onde vão dar as pernas caídas de uma
velha mesa? Haverá um outono para as flores de plástico? Onde hibernam os
animais empalhados? Em quantos tropeços o homem explica o que pretende de si?
Por uma única razão estamos cada vez mais distantes dessas respostas: não temos
que respondê-las. Trata-se de uma subversão na mecânica da dúvida. E uma
obsessão por esquadrinhar o mistério. Sim, porém sempre muito confuso: por que
indagamos sobre tudo? Veríamos então que não, que somos viciados em meia dúzia
de inquietações. Qual a natureza do monstro que nos vigia? Quais os recursos
estilísticos da sentinela? Como faço para recuperar minha vida imprópria? As
aflições aumentam na medida em que a esperança nos distancia do que somos. O
que pergunto? O que respondo? A loucura diverte-se com essas confidências
aturdidas. A moral e a justiça se baseiam em tal jogo. Nada mais irrestrito no
homem do que a ignorância.
28.
A casa rua abaixo em seu tráfego de
esquinas, imagem adentro da queda. Por onde a rua a conduza, em sua leveza de
espanto caído, a casa me leva consigo ou me confunde em seu levitar. Mas também
ali bem dentro de mim a tenho, no entrepernas da morada sonhada, engodo de
buscas que não se desprendem de si. A casa em seu montão de caprichos apenas
persegue o itinerário dentro de nós que o traçamos como um plano de fuga.
Nômade sufocado pela revelação da terra perdida ou aventureiro a saltar de casa
em casa sem perceber que é sempre a mesma? Quem habita essa translação? Quem é
o transporte, quem o vitimado? Haverá um lado de fora?
29.
Há um jeito de cair que o abismo
recrimina: quando a queda se inscreve em torneio. Como se o infortúnio cobrasse
ágio pelo desalento assistido. O homem já não suporta nenhuma espécie de
padecimento próprio. Que toda a agonia seja alheia e as senhas facilitadas para
evitar filas e o constrangimento de alguma infelicidade fora de curso. Quem
mais se importa se a verdade lhe falta, se há um preço de ocasião para tudo? O
abismo que se adapte ao nosso novo meio de vida, com altíssimas promoções no
negócio das quedas.
30.
A imagem presa no banheiro. A porta
travada de uma residência solitária. O acaso não deixa testemunhas. Houvesse
uma janela alguma demência poderia lidar com o atirador à espera. Há
ocorrências em que a paranoia não sabe como agir. Simplesmente não havia
janela. Como inventar uma vítima em tais casos? A aflição tem seus rastilhos a
postos. Por onde a imagem escapar? O pânico suspende todos os artifícios da
imaginação. Melhor fechar os olhos antes que o fôlego perca o pavio. No escuro
não há banheiro, muito menos porta travada. Sair então por aí, pela convicção
da escuridão que – será tarde quando se percebe? – não dará em parte alguma.
Toda a casa vazia a concentrar-se na imagem entalada no banheiro. Não há razão
para grito ou lágrimas. O desespero sequer soluça quando se percebe inútil.
Acalmar-se. Pensar. Quem visitaria a imagem? De imediato, nada lhe ocorre. Dias
ali enrascada, sussurra a mínima previsão nos sentidos todos já desalentados da
imagem. O tempo esgotado de si. Nada em curso. Nada.
31.
Teu corpo flutua como uma lâmpada, dentro
da qual um roseiral desperta tintas para as imagens mais suspeitas. Juntos
descerramos as pálpebras de fogos-fátuos que pareciam bailar enlouquecidos
dentro do sonho. Somos ventríloquos um do outro, simulando confidências
desaparecidas. Tudo em teu corpo me diz já
estive aqui, nos confins da matéria, onde seios de pedra imersos em
lágrimas gorjeiam novos rumores de um amor louco. Já estive aqui, me dizem tuas coxas no úmido batuque das lavas
polvilhando a descoberta de novos versos. Que não se saiba quem fala, isto já
não tem importância. A divindade está no verbo e não no protagonista. Um ruído
súbito: a lâmpada acende sozinha. O atormentado sempre tateia no escuro, por
mais que lhe açoite a claridade exterior. Sussurramos um gesto improvável.
Rimos em seguida. Vândalos fogos-fátuos entoam em zombaria: a verdade está perdida. Como? se não
param de desenterrar velhas confidências…
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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