quarta-feira, 26 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Autobiografia de um truque

 


1.

 

A cidade se mistura por dentro de todos os seus vestígios. É noite e somos seus fogos tentaculares. Não há salvação na calmaria, ouve-se ao longe. Ora, não há salvação em parte alguma. Nem faz sentido esperar a tempestade passar para sentir-se salvo. Este sentimento não passa de um estratagema para nos manter apegado à vida. É como embarcar esperançoso em um último trem para Lost Paradise, onde quer que esteja tal destino. Aos poucos fomos expulsando-nos de nós mesmos, varrendo o que nos resta, cinzas para um desterro da memória. Frequentamos estranhas cidades: o emprego, o sexo, a mecânica social em suas latitudes desconexas. É preciso um grito de sofrimento para renovar as trevas.

 

2.

 

De que se ressente a realidade, se o homem a alimenta tão bem? Dá-lhe uma ração diária de ilusão em cotas que superam suas reais necessidades. É certo que demasiado cuidado em proteger a realidade pode ocasionar-lhe distúrbios de personalidade, um tipo de bailado instável nos traços típicos. Mas o homem não crê nisto, e nem de longe desconfia que ela não mais se encontre à disposição. Nenhum de nós saberia afiançar tal reviravolta, porém uns poucos percebem que algo da realidade anda por aí em descompasso com o que se espera dela. Tal desarranjo se estimula em cadernos de aforismos que se reproduzem em um grau tamanho de exaustão que logo se torna patrimônio da boa ordem do caos. Em meio ao turbilhão dessas máximas uma passou por completo despercebida: não há nada mais insuportável para a realidade do que ser tratada como tal.

 

3.

 

Destruímos a ideia de tempo aliada à ideia de esforço. Tornou-se mecânica toda absorção de conhecimento. Ninguém mais fala de si mesmo. A humanidade gera um desinteresse processual. A imprensa nos visita com palavras descascadas, que perderam o significado por excesso de uso. Ainda vemos uma ou outra sombra vagando pelas ruas à procura de uma máscara que se adapte a seu rosto. Apavora-me o hábito, a virtuosa varanda onde a vertigem é jejuada e a sensualidade presumida. O homem não duvida mais de si. Já não prepara a madeira para manter-se no inverno. Dedica sua vida a livrar-se do que quer que tenha sido.

 

4.

 

À noite busco refúgio em teus olhos. Não recordo se passam as horas. É sempre difícil encontrar-te, porque já não estás ali. Por que são fugidios os abrigos? Teus olhos me protegem do mundo, mesmo quando me vês como uma morta silenciosa. Todos os riscos dançam e não se pode morrer senão cantando. Mas quando te procuro já não estás. Que amparo pretendes, se te encontrar é tão delicado quanto morrer? Sinto teus dedos decifrando a morte em meu corpo. Não protegi o refúgio como devia. Há uma nova noite encantadora e distante de ti. Meu olhar atento ao toque de teus dedos. Não busco mais apenas prazer no espelho. Percorro-me indefinidamente, por onde andares. Não importa a distância: escrevemo-nos, um no outro.

 

5.

 

Há um momento em que o crime é traído

pela vítima. Não por inesperada perfídia

ou pelo crescente desejo de saber-se além.

Quando nem se cogita, a vítima desiste

de seu personagem. Trata-se de um morto

sem convicção alguma. Não posso morrer

em seu lugar, representar-lhe a trama final.

Posso dar crédito ao fato, fardo ou mito:

peço apenas um morto mais convincente.

De que vou morrer nesta morte, afinal?

Com tantas perdas espalhadas pela vida

– ilusório cenário onde atua a verdade –

por que eu me sujeitaria a uma tão débil?

Querem uma vítima da morte anunciada?

Pois me deem um bom motivo, um preço

por estarem matando com convicção, e

terei o quanto valia e castigo se confundem.

Não direi jamais: fui apenas um ator.

Todos sabemos a realidade dessa ficção.

 

6.

 

Há um reflexo móvel que te expõe em ângulos diversos, sempre que te busco, como se não fosses senão uma destreza da arte. Uma dessas síncopes da imagem chega a sugerir que somos permanentemente recriados pelo que há de mais ordinário em nós. E outra se distrai a recordar a infância, quando era o centro de toda a tormenta criativa. O corpo despenca por abismos desiguais. Por mais que nos ocorram outras vidas, assusta-nos a crueldade com que o homem se desfaz de si. A memória sangra as imagens enquanto elas se afligem por tantos anseios. O que antes era apenas movimento agora é uma agitação despedaçada. Num relance de olhar, amotina-se uma aluvião de vértebras. Ao passar as páginas do mesmo espelho, já me vejo em trapos embrionários. Serei apenas reflexo ou em algum momento tocarei a matéria do que me desfaço? Ah mas quantos queres de mim agora…, parece indagar o milenar fantasma manifesto. O órfão não sou eu. Não preciso esconder-me atrás da memória. O pátio está repleto de crianças que brincam com pedaços da arte que se julga a soma de tudo com que nos destroçamos. Alguém venha alimentar este espelho.

 

7.

 

A luxúria da escrita reside em sua falsificação? A memória é uma notável instrutora de falsários. Quantos sinais trago em meu rosto daquele que realmente sou? Todos nos vemos no espelho como um oponente. A ideia do outro está ligada à adversidade. Quem trataria de imitar a si mesmo? Então não passo de uma falsa interpretação de tudo quanto desejo? As emoções apontam o lápis e se deixam escrever. Ou será a razão quem afasta de si seu verdadeiro sentido? Nem sempre é fácil saber o que é desamparo. A escrita se debate entre o que sofre em si e o que sofre de si. Olhando bem, espelhos não passam de afrescos. Em muitos casos não designam senão dilemas impróprios. Que espécie de rosto alguém imagina ter antes de olhar-se em um? Vidência ou evidência? Um ou outro? Qual dúvida dar por certa? Fazer análise, amar o próximo, tratar a vida como um epílogo sem fim, são truques influentes, cujo enredo alimenta a pouca distinção que fazemos de nós. Quantos autorretratos não passam de um espelho embaçado? Quem entalha tão bem a si mesmo a ponto de permanecer o que é? Talvez um serial killer de toda a ilusão de ser. A vida nunca foi mesmo um lugar indicado para homens comuns. A escrita sufoca, perverte, molesta, seu resultado é pavoroso e inconcluso. Porém sem sua lascívia o homem jamais consegue compreender as camadas de maquiagem que lhe tornam o rosto mais compacto. Um fantasma que dança e se pune por amálgamas não reparados. Ninguém sabe onde está. Os espelhos olham sempre em direção contrária. A escrita é apenas um costume.

 

8.

 

Recolher a arte abandonada, e dar-lhe cuidados mínimos, ainda que fora do tempo. A realidade enlouquece a arte? Diante de um crime passional – essa pérola do falso amor –, como reage um poema, um filme, uma escultura? Com qual arte me sinto pronto para enfrentar o passado? Aturdido, faminto, encabulado, o artista perambula por recintos de seu espírito, onde não tem cabida a lei das proporções. Dissocia-se de si sem compreender o que está na outra ponta do ser. Adicto do peditório, ele vegeta sem a caridade institucional. Em busca de sua cota de esplendor. O mundo está assim dividido: em cotas de esplendor. Quantos conhecemos: músicos, poetas, pintores? Que oblíqua relação com a realidade eles evitam? Haverá um asilo para os que abandonaram o mundo? Prestar assistência aos que se deixaram enlouquecer pela realidade? Farsantes, ególatras, diluentes, serão todos recolhidos sob amparo do Estado. Uma manobra insuspeitada? Não, um grande olho. A arte não vai mesmo a parte alguma, sozinha.

 

9.

 

Escavar por toda a arte. Em busca das vítimas da prestidigitação e do acaso. Dilatar a paisagem dos corpos até que se tenha a medida mais imprópria dos desastres. Quantas são as mortes que se repetem em cada túmulo violado? Objetos devorados pela ausência de sombras, desfeitos em si mesmos sem reparo. Vozes encalhadas nas vísceras do tempo, sangrando sinais que lidos por engano resultam em uma retórica de dilemas. Se o mundo caminha a largos passos descuidados, cuidar então para que lhe falte terra sob os pés. Afrontar o orgulho tosco do vazio e dizer-lhe no olho o quanto a dispersão o está matando com apenas uma jarra de gritos mal escritos. Buscar sentido no outro, nos demais. Planejes ou não, todo o teu ser se arrasta dentro de ti. Evoluímos por galicismo.

 

10.

 

As escadas desmaiam avulsas como se não dessem sinal da queda que representam, se esculpem o perfil de uma nova voragem ou simplesmente embaraçam a memória de quem não sabe como esboçar uma falta. As escadas são possuídas por uma inclinação natural qualquer e têm pesadelos com tombos esfaimados. Acordam no meio da noite com o vento dilacerando suas costelas. Não dão um passo sem confundir céu e terra. Quantas vezes não nos desiludimos ante o mapa perdido do que supomos jamais nos encontre? Dispostas na horizontal as escadas degustam uma entrada de bússolas. Não fazem distinção entre fruto e furto. Somos furtivos nos mínimos detalhes. E nossa grande invenção é a indiferença.

 

11.

 

A chave do sexo não é o que se escuta nas brechas do desejo. A chave do sexo é um torvelinho que encrespa toda a alma. A chave do sexo não é a fresta onde supomos caber. A chave do sexo é o que não se abre e fecha. Nunca se sabe quando ela dirá em sussurro: eu sei o quanto teu corpo cabe na noite. A chave do sexo não é uma partitura, nem se vislumbra em empórios. A chave do sexo em nada se assemelha a uma queimação de hábitos. Meu coração se esgota ao menor sinal de teu desejo. A chave do sexo não escreve bilhetes de amor. A chave do sexo está ao alcance de qualquer um. Eis sua impossibilidade.

 

12.

 

Retoma sem dificuldades o curso perdido, mesmo havendo uma falsa glorificação do instante que algema os demais sinais do tempo. Somos todos gotejos do fogo, insuspeitos em sua errância. E põe fogo agora no ermo do entendimento: lepra de delírios, prantos regados à esquizofrenia de seus hóspedes, ópera bufa de Deus, angústias vociferantes, revoando revoando, sempre a mesma letra assinalada, idêntico o curso assimilado pelo presépio do êxodo, o mar se desgastando em geometrias. Previsível sumo da árvore lançada ao espaço. Ogiva de cinzas que torna Dante de menos. Secreto pomar de vísceras de sombras não chamuscadas – transmuda tal acorde decomposto no milagre de tuas pálpebras refeitas. Não será tão tarde. Tuas igrejas futuras dependem disto. O homem só julga a si mesmo através da metáfora. Toda sua realidade é uma fantasia. Múltipla tua orfandade. Reacende-me em teu exercício. De que morreremos? Pequeno jardim de comédias – nos rimos. Diversas as sombras peregrinando – convocadas. Quedas por toda a noite – ressonante espetáculo. Ainda buscamos por que morrer – espectros fugazes. Não dá-se a sensualidade sem quebra. De comparsa do paradoxo não passa toda a essência da convicção.

 

13.

 

Quando um penitente investe contra ele próprio

é para livrar-se não exatamente de uma tentação externa,

mas sim do inferno que há em si mesmo.

O homem é fruto do que cria em sua mente.

Na realidade, o mundo é bem simples.

A exploração do desejo é que dá ensejo a esses monstros tão hábeis.

E nossa ideia de catástrofe adora ver o eixo deslocado,

de um dia para outro, em um telejornal qualquer.

Vítimas aqui ou acolá, mas sempre vítimas.

As vítimas não são reais. Apenas o telejornal é real.

 

14.

 

A tua figura me escapa,

como um lábio assustado pelo toque,

um varal de sonhos cuja aparência não se deixa imprimir.

De um momento para outro a memória improvisa sua ruína,

e a tua figura me escapa.

Não sei aonde me leva e duvido que venha a sabê-lo.

Procuro por ti em toda a minha pele, toco-me em lugares vacilantes e um lapso de dor me diz que já não estás.

É uma rara maneira de perceber a ausência do amor.

Por mais impreciso que seja o tempo, algo me diz que estavas aqui agora.

Porém tua figura me escapa.

Há pouco toquei teus pelos em um regozijo transbordante e rimos de tua nudez a vagar pelos limites de nosso olhar.

Sabíamos que o amor foi excluído,

por toda parte,

extensos corredores de naufrágios e desamparos.

Já não se pode falar em amor.

E incompatíveis com o próprio tempo ríamos dentro de uma nudez que era a própria descoberta do salto, do abismo, do inesperado.

Porém agora tua figura me escapa.

Sem que mais nada em minha vida se interrompa.

Não há uma estrada vazia.

O que vemos ainda não despertou de sua ausência.

 

15.

 

O corpo é sempre um corpo-de-prova. Onde esteja, inerte ou atuante, evoca o encanto dos sete véus: avareza, gula, inveja, ira, luxúria, orgulho e preguiça. Não há pecado sem corpo. Não há sedução sem crime. A arte é um pecado da experiência ou um crime da inocência? Anfiteatro onde vaticinam os senhores da simulação e suas máscaras: suborno, traição, peculato, populismo, prostituição, ciúme e tortura. A que pode ser condenada uma arte nua e atirada ao chão? Desde o princípio mais remoto, milhares se dedicam a compor o mesmo cenário: o corpo-de-prova à procura do semelhante. O homem jamais quis ser diferente. A arte – quase sempre a pior arte – é o que nos iguala.

 

16.

 

Quantas noites chovem sobre tua pele? Quantas perdas o acaso adiou para que estejas aqui uma vez mais? Tuas mãos tingem com maciez os rumores em meu peito. Quantas noites a escrita é a chuva pescando acordes em nosso abraço? Transpiras uma melodia de árvores em cúmulos que são o princípio de tua entrada em meu ser. A que me conduzes, quanto mais alta a queda de tuas águas? Quantos idiomas pernoitam na caligrafia do abismo? Quantas vozes descrevem a noite como a vestimenta torrencial com que me despes? Ah o esplendor de teus lábios líquidos que se misturam à fala de todos os rios. És o rangido mais lúbrico do silêncio. Por quem falas? A quem me sobrevives? O amor é desconcertante como uma porta destravada no meio da noite. Mas quantas chaves levas contigo no enigma de peixes com que transitas por minha calmaria vulcânica? Quantos de mim tua pele descerra? Quantas vezes amar o amor antes que o amor ressurja? Isto não tem fim. Nem posso queixar-me.

 

17.

 

Escuta os rumores da escritura, transcreve as versões do silêncio. Escuta o que dizem os ramos da oração. Não se tece a história em súplicas. Antes em massacres. Vozerio de sombras, ontologia de retalhos. Ama as trevas com júbilo e busca sua face perdida. Nada alcançarás senão o cadáver obeso de tuas próprias dúvidas. Fareja os despojos violados da memória. Odores obscuros do oráculo. Nada. Não lerás a mesma página que o fogo. De que mais se fez teu canto, intumescido de espelhos? Consagra-se a que agonia o homem devolvido à sua imagem primeva? Como chegar a ser um livro? De algum ouro impreciso nascem as páginas? Gnomos cultuam o fôlego ressequido das imagens? Por onde jorram beatrizes? Tenebrosa será sempre a jornada do verbo? Os que nos damos ao mar, ao inferno de árvores, ao ramo de horrores, ao mar de sarças estelares, ao batismo de selvas, ao mar ao mar, ao sudário da estrada, os que nos damos em círculos, trememos de que felicidade?

 

18.

 

Contorna o rigor de tuas fúrias. Por vezes não passas de um cadáver esquisito. Em que ilha vão dar os livros? Rangidos, suspiros, gestos trocados sob tábuas, tremuras ocultas, crimes da virtude, virtudes do crime. Desapareces onde a fábula retoma seu curso. Escuta que já não se trata somente de teatro. Tudo em ti se retrai, e despenca. Escuta então os giros da existência e não somente o respiro de máscaras. Não busca senão o aturdimento, o sustento selvagem do ser. De que nasce a épica? Já estão ao mar todos os heróis, vendados ou entregues à rumba de sílfides? Símbolo o símbolo implacável do homem em suas derrotas. Funda o mundo com suas dores. Diviniza as pobres formas corroídas. Tudo no homem é mito, inflexível em sua queda. Dias serão os dias com suas trevas e as noites concebidas estreladas, estrofes consoladas por uma poética vulgar. Verbo é o símbolo da agonia: quanto custa ao homem converter-se em evidência. Imensa a dor e sua ressonância, venha do grito ou de seu revés. Dias de queda, barrocos, exaustivos, adegas que não ressuscitam a alegria do vinho. Suportará berenices, mas nunca um espelho sem imagem. Refeito um dia de quantas gotas, todas de melancolia? Tudo em si é pesar, a refletir a névoa de seu próprio entendimento. Já não percebe os sussurros do silêncio. Queda a queda disfarçada em poema. Que epifania buscas ainda na ruína de teu esplendor?

 

19.

 

Não sei onde guardo teu corpo. A mímica turbulenta de seus conflitos me chama a atenção com a recusa de permanecer onde está. Estranhas figuras irrompem de seus bolsos, espelhos transfigurados que soletram meu espanto. Inclino-me a buscar um disfarce, para que não percebam as palavras que induzo a procurarem outro refúgio para teu corpo. Mas tudo se dá muito lentamente. E mesmo espelhos tão jovens sabem captar dúvidas e ansiedades. Fazem-me prisioneiro de uma pantomima, e releem meus reflexos na penumbra da tarde. Salientam obsessões e alguns compreendem que tudo não passa de secreta afinidade minha com o teu corpo. Discutem entre si, enquanto me sinto aviltado pela trégua. Ao que parece o mundo é um estranho lugar para espelhos indecisos.

 

20.

 

Fui apanhado por teus fulgores. A noite lapidava seus ossos para a grande estreia. Fetiches descarnados anunciavam a entrada no delírio. Estavas vestida com uma pele inesgotável em suas quedas. Um clímax de ruínas que faziam de ti o despojo mais cobiçado do ritual. E tua voz na celebração das imagens, gravitação de enigmas vorazes, o olhar concentrado de todos em tuas palavras, cenário convertido em sombras dos sentidos que buscavas reproduzir em tua leitura. Ouvir-te assim, meu amor, tornou-me um trota-mundos de ti, o teatro repleto de tua voz, taça esvaziada do silêncio à tua espera. Porém o palco repleto de vícios, os crimes litúrgicos, as vítimas ressequidas, o explícito canibalismo… Como pude amar-te tanto, em um segundo apenas, e logo ser devorado pelo terror de tua presença? A transgressão é fascinante também para aqueles que têm por profissão evitá-la. Quem ousa separar na arte o que é clemência ou bestialidade? Distinguir doçura e selvageria em tua voz, de que serve? Cuido de tudo com discrição. Espero que todos esvaziem o camarim e rogo ao policial por sua confiança, que me dispense as algemas. Porém a caminho da delegacia ainda me indago – não a ti, não a ti – o que diabos fizemos para tornar isto possível. E parece que a ninguém mais no mundo isto importa.

 

21.

 

Como expressar o que se pensa em meio a um desânimo tão bem organizado? Não é o que se passa agora, em uma ou outra parte. Mas a maneira como criamos falsas ilusões. Por onde detê-las? Como se afeiçoar a elas? O que querem nos dizer? Por mais que se negue, a realidade é mesmo baseada em fatos reais. Não é a humanidade que dói em mim, mas a sua circunstância. Um fato isolado é toda a vida, porém não cremos em fatos isolados. Uma chacina, sim, já começa a despertar interesse. Mas dura muito até que a vida se confunda com a humanidade. Estamos sempre à espera de uma prova, por maior que seja a indignação.

 

22.

 

Despertou bem cedo a realidade, decidida a mover-se para alguma parte. Ainda por vestir-se, desamparada como matéria viva, buscava um espelho onde se reconhecer após uma noite de golpes ocasionais. Os reflexos se embaralhavam todos e uma súbita vacuidade tomou conta de si. Toda a criação girava a seu redor, com as sombras felpudas, as perdas irreparáveis, o acaso abandonado, amores traídos, lacres de ganância, homenagens fortuitas, parecia que nada havia dado certo em seus planos. Teria sido um truque? Sim, meu reflexo não passa de um truque, uma esfregação de truques. Não te sentes bem assim? Como preferes?

 

23.

 

Rumores de teu corpo: um labirinto de santos que recebo enquanto me beijas. Naipe de espantos na luxúria com que me visitam: a devoção de teus seios. O mistério se debruça como flores anônimas ou confidências sitiadas? Uma voz me diz que os vícios carecem de mapas: anjo fingindo me amar em teus lábios. Simulas outras entidades ao compasso de meus dedos em tua pele: todo um teatro de provérbios. Um poema que arranque os olhos do tempo [me pedes]. Do outro lado do êxtase a miséria da palavra. O fogo se alastra, violado por lugares-comuns. A desordem dos santos nos surpreende em pleno gozo: embrenho-me em ti, não nos importa quem somos. De costas para o mundo, não ligamos a mínima para o brinquedo que somos.

 

24.

 

Uma lâmpada acende teus seios dentro da noite. Nunca sabemos a que horas uma alma desconhecida se deixa iluminar. Tocar a noite inteira pode nos levar de volta para casa sem pássaro, fogo-fátuo ou abuso do acaso. Mas quero morder estes seios enquanto a música me acaricia por sabê-la tocar e me diz: não é a música, é a noite que me despertas em cada acorde. Haverá uma identidade que não seja arbitrária? A noite toma conta de todas as imagens do desejo. Não há carícia sob a luz do sol. Ainda que mergulhes tua nudez em líquidos papiros eles serão sempre noturnos. Em pleno apogeu solar o amor será sempre noturno. Ponho a tua mão em meu sexo e me indagas do que quero me convencer? Teus sonhos não se refletem tão bem. Talvez devas me tocar com melhor aspiração. As falas são irreconhecíveis. Tanto solfejei esta música que ela já não existe. Tropeçamos em destinos os mais errantes. Talvez tenhamos a mesma imagem amorosa em suspenso: a música que tocamos no corpo de nossos amores. Porém já não estás comigo. Teus fantasmas sabem de ti melhor do que eu. É bom que as vozes se confundam, que a noite se deixe congestionar por sombras. De outra maneira não me buscarias em uma lâmpada, na reminiscência de um poema, na ponta de tua língua em meu ânus.

 

25.

 

Por que o inesperado sempre chega pelo outro lado? Cresce em nós a floração do visível. Um vício de números como o anúncio de um parto. Dirás agora o estímulo planejado. A espera aos poucos desagrega tua equação existencial. A custo reparas que a circulação de ansiedade já não decifra o simples efeito físico da sombra. Já não sentes mais nada íntimo em ti. Apenas um dardo do acaso explora o cansaço em tuas veias. Refluis para onde não há mais escrita, talvez movida pela crença de que o mundo é uma coisa mental. Esta metafísica de fácil combustão emperrou o desejo, que agora se recusa a corporificar qualquer ideia. Grafites se espalham pelas ruas: infinito é o que não pode ser escrito. Já não chegas em ti por lado algum.

 

26.

 

Parte do que somos somente nos recorda

se um acidente lhe importa: entrada

redecorada por cupins ou sátira do acaso

a reinscrever o homem em seu trajeto.

Parte do que somos somente o desgaste

reaviva: proeza concreta de carcomidos

ciclos da humanidade encravada em nós.

Nós da memória, rasgos, erosões da alma:

longa jornada da decomposição, até que

reescreva seu nome destinado a apodrecer.

 

27.

 

Onde vão dar as pernas caídas de uma velha mesa? Haverá um outono para as flores de plástico? Onde hibernam os animais empalhados? Em quantos tropeços o homem explica o que pretende de si? Por uma única razão estamos cada vez mais distantes dessas respostas: não temos que respondê-las. Trata-se de uma subversão na mecânica da dúvida. E uma obsessão por esquadrinhar o mistério. Sim, porém sempre muito confuso: por que indagamos sobre tudo? Veríamos então que não, que somos viciados em meia dúzia de inquietações. Qual a natureza do monstro que nos vigia? Quais os recursos estilísticos da sentinela? Como faço para recuperar minha vida imprópria? As aflições aumentam na medida em que a esperança nos distancia do que somos. O que pergunto? O que respondo? A loucura diverte-se com essas confidências aturdidas. A moral e a justiça se baseiam em tal jogo. Nada mais irrestrito no homem do que a ignorância.

 

28.

 

A casa rua abaixo em seu tráfego de esquinas, imagem adentro da queda. Por onde a rua a conduza, em sua leveza de espanto caído, a casa me leva consigo ou me confunde em seu levitar. Mas também ali bem dentro de mim a tenho, no entrepernas da morada sonhada, engodo de buscas que não se desprendem de si. A casa em seu montão de caprichos apenas persegue o itinerário dentro de nós que o traçamos como um plano de fuga. Nômade sufocado pela revelação da terra perdida ou aventureiro a saltar de casa em casa sem perceber que é sempre a mesma? Quem habita essa translação? Quem é o transporte, quem o vitimado? Haverá um lado de fora?

 

29.

 

Há um jeito de cair que o abismo recrimina: quando a queda se inscreve em torneio. Como se o infortúnio cobrasse ágio pelo desalento assistido. O homem já não suporta nenhuma espécie de padecimento próprio. Que toda a agonia seja alheia e as senhas facilitadas para evitar filas e o constrangimento de alguma infelicidade fora de curso. Quem mais se importa se a verdade lhe falta, se há um preço de ocasião para tudo? O abismo que se adapte ao nosso novo meio de vida, com altíssimas promoções no negócio das quedas.

 

30.

 

A imagem presa no banheiro. A porta travada de uma residência solitária. O acaso não deixa testemunhas. Houvesse uma janela alguma demência poderia lidar com o atirador à espera. Há ocorrências em que a paranoia não sabe como agir. Simplesmente não havia janela. Como inventar uma vítima em tais casos? A aflição tem seus rastilhos a postos. Por onde a imagem escapar? O pânico suspende todos os artifícios da imaginação. Melhor fechar os olhos antes que o fôlego perca o pavio. No escuro não há banheiro, muito menos porta travada. Sair então por aí, pela convicção da escuridão que – será tarde quando se percebe? – não dará em parte alguma. Toda a casa vazia a concentrar-se na imagem entalada no banheiro. Não há razão para grito ou lágrimas. O desespero sequer soluça quando se percebe inútil. Acalmar-se. Pensar. Quem visitaria a imagem? De imediato, nada lhe ocorre. Dias ali enrascada, sussurra a mínima previsão nos sentidos todos já desalentados da imagem. O tempo esgotado de si. Nada em curso. Nada.

 

31.

 

Teu corpo flutua como uma lâmpada, dentro da qual um roseiral desperta tintas para as imagens mais suspeitas. Juntos descerramos as pálpebras de fogos-fátuos que pareciam bailar enlouquecidos dentro do sonho. Somos ventríloquos um do outro, simulando confidências desaparecidas. Tudo em teu corpo me diz já estive aqui, nos confins da matéria, onde seios de pedra imersos em lágrimas gorjeiam novos rumores de um amor louco. Já estive aqui, me dizem tuas coxas no úmido batuque das lavas polvilhando a descoberta de novos versos. Que não se saiba quem fala, isto já não tem importância. A divindade está no verbo e não no protagonista. Um ruído súbito: a lâmpada acende sozinha. O atormentado sempre tateia no escuro, por mais que lhe açoite a claridade exterior. Sussurramos um gesto improvável. Rimos em seguida. Vândalos fogos-fátuos entoam em zombaria: a verdade está perdida. Como? se não param de desenterrar velhas confidências…

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 


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