PRÓLOGO CONVENCIDO: UM TEATRO ATRACADO NA
METAFÍSICA
FLORIANO |
Dizia o Artaud que o teatro é uma arte do espaço que caindo sobre os
quatro pontos cardeais corre o risco de tocar a vida. Em que momentos o
teatro, segundo pensas, tocou a vida e em que circunstâncias esse toque se
tornou impossível ou inviável?
ZUCA | O
Teatro, a Arte Rupestre, a Música e os Cantos, a Dança, vêm da Pré-história,
manifestações primordiais do Ser Humano, face ao Mistério do Mundo. Antes de
querer explicar, o Homem se maravilhou face à grandiosidade do Mundo, o Sol, a
Lua as Estrelas,… e… a Língua!… o que lhe abriu os caminhos do Mito e da Magia,
e finalmente criou o próprio Homem… E não vice-versa: o Homem não criou as
Artes e a Língua. Mas sim, a Língua e as Artes criaram o Homem. O Teatro faz
parte da vida, e nasceu com a Metaphysica, na Pré-história, com os ritos dos
Homens fascinados com a maravilha do Cosmos.
FLORIANO | A
Metafísica, no entanto, acabou sendo devorada pela Moral, tendo o mundo desde
então mergulhado em uma racionalidade caprichosa. Os caprichos são as cortinas
de fumaça que o Homem inventou para nublar a percepção e situar-se distanciado
do outro. Ionesco atalhou a questão aclarando que os sistemas de
expressão não servem sempre para comunicar, servem frequentemente para esconder
uma intenção. As ideologias são geralmente álibis e dissimulam,
voluntariamente, coisa bem diferente da que elas proclamam. Por um efeito
de folclorização da cultura o teatro perdeu a sua força mágica
e converteu-se em mero espetáculo.
ZUCA | Foi
justamente o que o Ionesco fez numa genial manobra de contra-vapor. Usou a
galhofa pra desmascarar a seriedade plastificada das verdades definitivas das
autoridades que queriam usar a galhofa comercializada meramente pra arrematar,
dar a última pá de cal na robotização distinta da população mais esclarecida
corretamente engajada pelas luzes da ideologia hierárquica.
FLORIANO | Como
ele próprio recorda, a sua estratégia não funcionou em grande parte porque a
crítica dramática da época herdou a mentalidade de boulevard, foi
descaracterizando a seriedade do teatro de vanguarda. Mas é fato que a
sociedade como um todo, corneada – para usar um termo caro ao
Salvador Dalí – pela beligerância arrogante do Capitalismo e do Comunismo,
derrapou em crises longe de uma essência humanística, e com isto as Artes se
bandearam – em parte como refúgio, em parte como ato dessacralizado – para os
porões das Ciências e das Religiões.
ZUCA | Deixando
as Artes nos porões, as Ciências e as Religiões iam em carruagens separadas
para os castelos das Autoridades dos Dois Mundos Rivais, que aprontavam um
teatro de Guerra Iminente, para que suas respectivas Sociedades se
embandeirassem de patriotas e aceitassem que a Ordem precisava,
a contragosto, soltar umas borrachadas suasórias nos rebeldes mais
assanhados, que não compreendiam a gravidade do momento e aprontavam
constrangedoras manifas desaforadas de protesto. Mas o bem encenado Teatro acabou
com o desabamento do Bloco de Varsóvia, e o Capitalismo transformado em Deusa
da Liberdade, criou a Globalização, para que as populações de todos os Países
se unissem até formar o Mercado Comum, e o Consumo se alastrasse do Polo Norte
ao Polo Sul.
FLORIANO |
Caídos os dois impérios, os dois túmulos foram revirados a todo vapor e fedem
até hoje, ainda dividindo o mundo em cicatrizes incuráveis, verdadeiras
fístulas. Um mundo de essências desfiguradas, onde os espelhos já não mostram a
devida máscara de ninguém. Em meio a isto, nós dois reatamos uma conjugação de
forças de tom Metafísico e Patafísico, ou seja, um teatro que soma vários
recursos das vanguardas, ligados à sátira, ao humor negro e àquela épica desmitologizada defendida
pelo poeta e dramaturgo nicaraguense Pablo Antonio Cuadra. Nossa carroça, no
entanto, percorre a floresta sem condições de montagem e nossas vozes já não
repercutem como bem poderiam.
ZUCA | Precisamos
de um megafone, e umas caboclas pra dançar… um tocador de tambor e… solta no
terreiro, uma armação com guichet de janelinha, e, do outro
lado, Leonor vende os bilhetes… logo aparece um pouco de gente… Se sair
porrada na boca do guichet, os jornais locais botam em manchete, e,
no dia seguinte, teremos um recorde de público, cadeiras e camarotes lotados,
pivetes e trombadinhas pendurados nas cortinas e candelabros…
FLORIANO |
Nossos dois protagonistas ocultos: o ponto e a cortina, eles regem a orquestra
de improvisos e tiram da manga e de fundos falsos os personagens de cada cena,
com seus paradoxos e sarcasmos, suas premonições e alucinações, transformando a
realidade no que ela menos suporta, ou seja, nela mesma.
AS FABULOSAS LAGARTAS PINTADAS
FRONTOSPÍCIO
DOUTOR PASCALHA ANUNCIA O LANÇAMENTO DE PEÇA
SADO-LIBERTINA NO MANICÔMIO DE PATAKAWA
O diretor do
manicômio de Patakawa, Dr. Pascalha, grande conhecedor da obra do Marquês de
Sade, se interessou vivamente pelo livro Oráculos profanos, de Zuca
Sardan e Floriano Martins, e decidiu montar uma de suas peças – cujo título
ainda mantém em segredo – no auditório do Manicômio, para os seus pacientes, e
tenciona inclusive convidar Martins para ser o diretor de encenação da
porno-libertina mostra de Guinhol Automático. O assessor do Pascalha, Dr.
Franela, tentará chamá-lo à razão.
FRANELA
Mas Doutor
Pascalha, isso é obra de dois loucos furiosos!… O Senhor leu o prefácio?…
PASCALHA
Li o livro
todo, de um fôlego só, Franela, é obra de gênio, uma obra digna do Marquês de
Sade!…
FRANELA
Mas Doutor
Pascalha… esse livro é uma porcalhada de psicopata, é coisa de louco… causará
um trauma em nossos pacientes…
PASCALHA
Justamente,
Franela, é obra de catarse para os nossos loucos, de que muitos sairão curados,
sobretudo os que trabalharem de atores no capolavoro.
FRANELA
É verdade,
Doutor Pascalha, o Senhor tem toda a razão… com louco não se discute… Direi
logo ao editor que cuide dos papéis…
I. E ASSIM PASSAM OS PANOS
DOC FLOYD
Vou ao
México, de onde nunca sei se volto. Quando ali estive pela primeira vez quase
boto o fígado pela boca tentando chegar ao cume da pirâmide do sol. Anos depois
consegui subir uma pirâmide menor, em Monte Albán.
ZUCA SARDAN
Da próxima,
melhor subires a Pyrâmide Xapaka tem elevador com corda na grande roda com eixo
de prata, puxada por campônios xiximecas.
DOC FLOYD
E subindo
pelo centro da pirâmide pocotó-tepek o clima é bem gostoso.
ZUCA SARDAN
Faraó Osíris
Xapok, aproveitando os avan§os da tecnologia, instalou sete possantes
ventiladores com trombetas dentro da Pyrâmide, que criam um um espantoso
torvelinho musical, que faz os visitantes entrarem em êxtase mystico, e
pronunciarem oráculos indecifráveis.
DOC FLOYD
Com uma
acústica tão refinada que na medida em que sobe (a descida é por fora da
Pyramide) o elevador gera um efeito distinto dos demais, como uma espiral de
sons, um mantra ondulado.
ZUCA SARDAN
Faraó Osiris
Xapok, e sua Faroletta Dolores, são um casal progressivo que incentiva as artes
na região das Pyrâmides. Famosas são as corridas de cavalos com tiroteios, para
furar uma bola de futebol suspensa por cordel num obelisco. Boleros de Agostín
Lara na voz soluçada de Pancho Solis, ao som de guarachas multi-seculares,
ressoam nas cálidas noites mexicanas.
DOC FLOYD
(À sombra
de um bolero sem alça)
Osiris
levava sempre o sol dentro do bolso
e com ele
mantinha sua Dolores aquecida.
Ela lambia o
sol como uma fruta tropical,
e aos
boleros de Lara entregava a sua vida.
ZUCA SARDAN
E así pasan los anhos… chaca-chaca-chaca… y yo que te pregunto, Dolores
de mis amores, y tu que me respuendes… “ay que sí, ay que nô” y me arrastras y
arrastas en ciega pasión…
DOC FLOYD
Osiris
acabou cego de tudo, porém nada lhe entornou a felicidade, passou a ver com os
olhos de seu amor, Osiris passou a estar em tudo que ela via, Dolores lhe
revelou a senha da gravidade.
ZUCA SARDAN
Osiris chega
de elevador ao último andar da Pyrâmide, tateia a porta de seu gabinete. Entra,
fecha a porta, tira o zoclos pretos, bota no cabide a bengala branca e saúda a
Secretária: “Bom dia Dona Mazzoca… como vão as coisas?…” “Sucesso absoluto, Dom
Osíris!!! A fila dá sete voltas da pyrâmide para chegar ao guichet!!!” “Muito
bem, Dona Mazzoca… Temos de continuar a manter o Mytho, com o mais absoluto
segredo. Ocultismo total…
DOC FLOYD
Dona Mazzoca
arregalou os olhos ao ouvir falar em Ocultismo Total, sorrateiramente saiu de
sua boca uma língua volumosa e inspirada. Patranzinho, não era o caso de se
criar uma escola de ocultismo aqui no alto do morro Ocultepek?
ZUCA SARDAN
Sendo o
Ocultismo uma prática oculta, talvez já exista aqui no morro Ocultek, mas
ninguém sabe disso… Porque seus praticantes jamais diriam uma palavra sobre
isso, e muitos deles, por prudência, e despistamento, adotariam outras
idologias, muitas delas, aliás, contra o Ocultismo.
DOC FLOYD
Soube agora,
isto por um sobrinho, católico fervoroso disfarçado de hare krishna, que demais
ideologias e também suas religiões filiadas, há muito utilizam igual
estratégia, de modo que já não sabemos quem é quem, qualquer que seja o fruto
de sua presença entre nós. de tal modo que o mundo, por mais que fale, já não
nos diz lé-com-cré…
ZUCA SARDAN
Talvez teu
sobrinho, ao final, tenha se tornado um hare krishna que usa o disfarce de
católico fervoroso disfarçado de hare krishna…
DOC FLOYD
Uma manada
de nuvens lhe acompanhou por todo o regresso, a janela do avião lhe sussurrando
que saltasse dali e fosse viver acabanado no coração daquela salina celeste.
Seria ele? Seria eu? Desperto dessa visão segurando o pacotinho de sal, a ponto
de colocá-lo no chá…
II. FALSO TORMENTO DA REALIDADE
DOC FLOYD
Está
concluída? Creio que sim. Tenho que reunir nossos últimos escritos, por vezes
penso que daria uma boa antologia a ser publicada, já verei, já verei…
ZUCA SARDAN
Sim, sim,
está bem concluída. Tangas e Zcrita-Cordel, melhor curtas… A curtíssima tem a
vantagem de ser mais apetecível pras novíssimas gerações. E uma Antologia
também é atrativa, justamente quando é constituída de curtíssimas, argumentadas
com cartuns.
DOC FLOYD
Navalha bem
limpinha e pronta para descascar o olho oculto do mais severo leitor de
Pompéia.
ZUCA SARDAN
O Sentinela
de Pompéia sempre alerta, usa monoklo e patins para correr quando explodir o
Vesúvio.
DOC FLOYD
O Sentinela
de Pompéia deu nome a um planfletinho que circulava pelas ruas em zombaria de
tudo quanto era lei lacrimosa e títulos de nobreza…
ZUCA SARDAN
Enquanto o
Sentinela Dirceu Vão Bestoide lia do Lenin o tabloide Vesúvio comeu Pompéia.
DOC FLOYD
Alheio à
tragédia que causara
Vesúvio
cantarolava uma trova
ao ritmo de
seu cachimbo que
dizia não
crer em choro ou vela.
ZUCA SARDAN
Não acabou a
trova, o desditoso
sentinela
trovador, cantando
arrastado em
cruel torvelinho
pelas larvas
incandescentes.
DOC FLOYD
Não acabou o
trago, o sonâmbulo
metafísico
de bengala, aos cinco
ventos
anunciou que uma vez a cada
cem anos uma
fênix seduz o fogo.
ZUCA SARDAN
Não sei se
ainda terei tempo de ver essa fênix duas vezes. O Oscar Niemeyer poderá ter
visto, mas da primeira vez ainda estava de fraldas, e não lembrava mais…
DOC FLOYD
Sem falar
naquela parcela da população que finge que não vê a Fênix, ou a confunde com a
ave negra de Hollywood.
ZUCA SARDAN
Em matéria
de não ver (com os próprios olhos) a Parcela da população é quase maior que a
população total… a Parcela não quer ver nada por conta própria, só acredita no
que os Locutores de Tevê lhes contam… Os Locutores Tevê são os Grandes
Sacerdotes da Revelação do Mundo Quadrado… os grandes desastres ecológicos, que
estamos assistindo, são devidos aos esforços tectônicos do Globo, em adquirir
uma forma de hexaedro, para melhor se adaptar aos aparelhos receptores Tevê.
DOC FLOYD
A Grande
Rebelião das Fibras Óticas começa a mostrar um mundo bem distinto do real,
embora já não caiba importância à realidade comprovada, tendo ganho o pleito
forjado a realidade condicional. Qualquer mestre de vigarices facilmente
convence sua plateia da forma que bem quiser dar ao globo e suas sombras.
III. O CASO DA BENGALA ESQUARTEJADA
Quero a
miiiinha bengala de volta!…
É do século
XIX, e tem uma formosa
sereia de
prata, esculpida no castão…
E duas
iniciais: TL, de seu antigo dono.
O branco deu
no galo
O galo deu
na luz
Requebra o
castiçal
Nenhum vento
satisfaz
A bengala do
Sardan
Deu um salto
na lagoa
Dona Sapa
desfalece
Tropeçando
no aguidar
Cai
lentamente a cortina…
A cortina
lentamente
Deu um curta
no cenário
Querubins
pra todo lado
Zonearam o
chimarrão
Toque um
fado, toque um tango
Não importa
a dor que doa
Saltimbancos
no telhado
A cortina
foi pro brejo
GERENTE
PLATÉIA
AGITADA!!! É isso que queremos!!!… MAIS!!! MAIS!! MAIS!!!
JUVENTUDE
REBELDE
MAIS!!!
MAIS!!! MAIS!!!
GERTRUDE
(sottovoce)
Vamos sair de mansinho, Gaspar, ou essa juventude ensandecida nos trucida…
GASPAR
Não te
preocupes, Gertrude, sou professor, sei como acalmar meus alunos… (trepa na
cadeira e bate palmas) PLAFF-PLAFF… Atenção meus bravos jovens, Esperança
derradeira de nosso conturbado Brasil… Ouçai lá…
Minha terra
tem palmeiras
onde canta o
sabiá…
Piripi…
Piripi… Tatá…
Zé Fininho
se abastece
De
esperanças que falseiam
De um gole
bebeu todo
O sangue da
gueixa Sabiá
Vamos sair
de mansinho
Disse a
turba ao microfone
À nossa
frente as palmeiras
Disfarçarão
a debandada
GASPAR
(triunfante)
Está vendo só, Gertrude… como minha retórica de veludo… acalmei a moçada…
GERTRUDE
Até aqui
tudo bem, Gaspar, mas e a pobrezinha da Gueisha Sabiá?…
GASPAR
Não te
preocupes… telefonarei pro Frade Feijão.
Ao sair da
cabine telefônica
De seu
poleiro confessional
Frade Feijão
coçou as partes
A batina em
grande amasso
Quem nunca
viu desconhece
Quem viu –
dizem – quer mais
Porém
ninguém ousaria falar
Da cor do
pecado filisteu
GERTRUDE
Gaspar, li
hoje no jornal, um cronista religioso… que se referia, sem mencionar qual
fosse, ao pecado filisteu. Sabes lá qual seja?…
GASPAR
Enfim,
Gertrude, nunca são convenientes, as leituras sobre pecados… Bem melhor seria
leres sobre as boas ações…
GERTRUDE
Tens razão,
Gaspar… Melhor nos voltarmos a assuntos científicos… Aliás, li hoje no jornal,
com ilustração na primeira página, de que os astrônomos conseguiram fotografar
o Black Hole!!!… Um buraco preto colossal!!!
Negra
peçonha do mundo
Estreita os
laços do pecado
Fosse uma
vestal revelaria
As suas
sombras interditas
O mundo
inteiro caberia
Na vastidão
sagrada da foto
Sentenciaria
então o big bang
A um acorde
de gazes do mistério
GERTRUDE
Que disseste
lá, Gaspar??? Estavas de olhar esgazeado, e voz cavernosa…
GASPAR
Eu não disse
nada, Gertrude… estas tuas leituras de pecados filisteus e buracos pretos estão
a te embananar os miolos… melhor será a sessão culinária.
GERTRUDE
Embalsamar?…
GASPAR
EM… BANANAR
Espólio de
bananas embalsamadas
E peixes
ruminando pérolas gastas
A noite
lustrava a prata das luas
Espelhando
as naturezas mortas
Melhor
servir na bandeja o zoo
de nossas
visões metamorfoseadas
O galo
engasgado com as manhãs
Pardais
cuspindo fora suas casas
GASPAR
Agora eu
ouvi!!! És tu mesma!!! que falas essas tenebrosas coisas com voz gutural!!!…
Estás possessa, Gertrude!!!… Ai!!! Céus!!!… a voragem do Inferno!!!
GERTRUDE
(olhos
revirados, sorriso satânico) Isso mesmo, meu gostoso enrustidão… Mas desta
vez não escapas… agora, debaixo desta árvore frondosa… vou tirar teu cabacinho,
meu amor de perdição… (dá um salto de onça)
GASPAR
(com
Gertrude grudada, por cima) Enlouqueceste, Gertrude?… Há décadas casadinhos
felizes e agora… ai!! que tu me esfolas!!! Ai!!! Vais me matar!!!
FREI FEIJÃO
(chega,
assustado)- Céus!! Dona Gertrude está possuída pelo Diabo!!! Vou
exorcizá-la!!!…
GASPAR
(voz
agônica) Chegastes tarde, oh, Frei Feijão!!!… Agora deixa ela me matar…
Vai-te embora, sacão… deixa eu morrer e… GOZZZARRRRRRRRRRRRRRR!!!
FREI FEIJÃO
(apavorado, sai correndo)- Ai, Socorro!!!…
PANO
(cai)
PLAFFFFF!!! (Ouve-se a 4ª Fuga de Bach)
Cai a anágua
do Feijão travestido
Cai o verbo
desencarnando-se
Cai a pedra
suspensa por Magritte
Cai o último
espelho enrugado
E a prece
dos vigários saltimbancos
E o culto
das megeras parideiras
E a maçã na
cabeça oca da ciência
E o moto
perpétuo impresso no pano
Mas a
cortina ah a cortina essa não cai…
GASPAR
(gemendo)
Ai… Fertrude… Ai… me mata mais um pouquinho… AAAiii…
GERTRUDE
Fertrude,
não, Gaspar… Gertrude é o meu nome!… Estás endoidecendo…
GASPAR
Endoidecendo
de gooozo, minha fera Fertrude… me esfola… me mata mais um pouco…
GERTRUDE
Não posso
fazer mais, porque a cortina está levantada, a plateia começa a reclamar…
BOAS
FAMÍLIAS
Ai, que
horror!!! Peça do Gelson Bromires!!! Telefonem pra polícia!!!
CORTINA
(discreta,
baixa um pouquinho) Fung-Fung-Fung…
GALERA
PESADA
Qualé???
Quem é o basbaque que está baixando a cortina? Pega!!!
TURMA GROSSA
Pega esse
bedel de bosta!!! Vamos quebrar-lhe a cara!!!
CORTINA
(assustada
sobe depressa) Fong-Fong-Fong…
GERTRUDE
(montada
no supliciado) Ai, Gaspar, a cortina subiu de novo!…
GASPAR
Dane-se a
cortina, Fertrude, manda brasa, me mata, me trucida, Ai.Ao.AAAUUUUUUU!!!
Um cavalo
assustado
Uma pele
azunhada
Um potinho
de mel
A vida passa
ligeiro
Quem vê lá
de cima
Logo pensa
em cair
Quem vê lá
de baixo
Quer mais
quer mais
Doramundo,
um saltério
Lhe puseram
nas mãos
Ficou cego e
azulado
Um improviso
atrás de outro
Quando veio
para casa
Recusou-se a
entrar
Até hoje o
destino
Cantarola
agachado
GASPAR
(tombado,
abre os olhos) Ai… Gertrude, que se passou.
GERTRUDE
Ai, meu bem,
você tropeçou caiu, e ciscou a roncar.
GASPAR
(desconfiado)-
Mas… porque não me acordaste?…
GERTRUDE
Você estava
com um ar tão feliz, que achei melhor deixar você dormindo.
GASPAR
Mas… e a
peça, Gertrude, já acabou…?
GERTRUDE
Esta peça
nunca jamais se acabará, Gaspar…
GASPAR
(preocupado)
Não se acabará? E por que??
GERTRUDE
Porque a
cortina cai e torna a subir, cai e torna a subir…
GASPAR
(estala
os dedos) Plec! plec! Já sei, vou telefonar pro João Batista.
GERTRUDE
O tocador de
gongo?
GASPAR
Exato,
Gertrude… Estou seguro que é ele que está escrevendo esta peça…
GERTRUDE
O…
Armagedom?…
GASPAR
Esse mesmo,
Gertrude, vou telefonar e pedir-lhe que venha com seu gongo…
GERTRUDE
E se ele
tocar o gongo?…
GASPAR
Acaba-se o
Mundo, e acabando-se o uindo…
GERTRUDE
…acaba-se a
Peça?… Duvido
GASPAR
Ouço seus
passos… Presto, Gertrude, vamos fugir antes que ele chegue e toque o gongo!… (saem
Gapar e Gertrude, entra João Batista de tanga e turbante, coloca o Gongo no
palco, alça o bastão e, solene, belíssimo gesto, gira o instrumento… e…)
GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOONNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNGGGGGGGGGG!!!
GALERA
PESADA
Parece que
agora puseram o enredo no saco…
TURMA GROSSA
E nunca se
soube o paradeiro da bengala…
IV. QUANTA LARANJA MADURA, QUANTO LIMÃO PELO CHÃO
Entra em cena o Belchior:
Não cante vitória muito cedo, não / Nem leve flores para a cova do
inimigo. / As lágrimas dos jovens são fortes como um segredo, / podem fazer
renascer um mal antigo.
PLATEIA
(de pé)
Bravoooo!!! Viva o Belchior!!! Dá-lhe Belchior!!! Senta, macacada!!! Bravooo
Melchior!!!
FÃ DE
BELCHIOR NA FILEIRA DA FRENTE
Merchior,
que sempre foi um carrancudo sem sentido algum de humor, fez cara de ainda mais
bravo e disse: a juventude é puro fogo de palha. Somente a maturidade
pode salvar o mundo… Ploft, alguém lhe deu com uma carabina no meio do
quengo.
PLATEIA
(em furor
herculeano) Bandido!, matou o Merchior!!! Pega!!! Pega Mata e Come!!!
Pandemônio
generalizado, o Gerente do Teatro entra e pede calma:
GERENTE
Podem se
esmurrar!!! Nos cornos!! Nos bagos!!!! Mata!!! Mas cuidado com as cadeiras do
Teatro, e os archotes!!! Quebrem-se ossos, mas… não quebrem o nosso Teatro Lux,
que sempre lhes traz Comédias, Rastapés, Fandangos e Rancheiras!!!..
GIVALDO, O
PONTO DESEMPREGADO
O estropício
transcende o espaço de representação que constitui o teatro. Dois palhaços
recolhem as vísceras e a sombra estraçalhada do morto. Um pouco de sátira e
humor negro é o que precisamos para suportar os panfletos lúgubres da
realidade…
GERENTE
Um pouco de
sangue sem transfusão, um Drácula velho com dentadura de aço, uma piranha no
aquário: “Dê-lhe um naco de pãozinho na boca, Dolores…”
O FÃ
Um pouco de
sal na panela, à espera da entrada em cena da galinha-de-angola. Seus dentes
nasceram há pouco, apesar da falta de fé de seus perseguidores. Parte do mundo
por vezes cai fora da cartilha, e o que se perde é sempre o ganho maior.
GIVALDO
Se cai fora
da cartilha, será a do Colégio Malek Scolares, o mais científico e
vai-pra-frente educandário, preferido pelas famílias progressistas.
O FÃ
Mas ninguém
quer ficar fora da panela. A partir daí é que as cartilhas perderam um pouco a
influência sobre os corpos terrestres. Essa gente detesta Einstein, mas vivem à
sombra da relatividade.
GERENTE
Detestam
nada… no máxmo, fingem… Quando o Einstein aparece botando a língua, todos
adoram… até quando colocam a foto de Bomba Atômica ao lado,
ex-plo-din-dooooooo… em Giroshima… ou Sakazake… Sucesso garantido… em todas as
revistas e jornais.
O FÃ
Quem lucra
com isto é João Borzeguim e sua banca de revistas plantada no coração da Praça
das Três Pistas… - Ô menina, abre logo outro pacote…
GERENTE
Pois é…
Sigamos nós pela sombra das mangueiras… e que se vire lá como possa a Gorda de
Saragossa.
Saindo de cena o Belchior:
E a nossa esperança de jovens não aconteceu…
V. ONDE FICARÁ O ACRE?
DOC FLOYD
Soube agora
que seremos convidados para gravar uma entrevista para a TV Aurora. Certamente
nos indagarão, logo de início, como passamos o dia.
ZUCA SARDAN
A Tevê
Aurora sempre tem programas instigantes pra nossa saudável Juventude… e testes
educativos, verbi gratia: Quantas estrelas tem a Bandeira do Brasil?…
DOC FLOYD
Curiosamente
a bandeira do Brasil tem 0 DF na parte de cima e 25 estados na parte de baixo,
ou melhor, são 26, porém um deles é tão minúsculo (ou apagado) que quase não se
nota. TV Autora pergunta: qual é o estado que quase não se identifica na
bandeira?
REITOR
PANDARECOS
O Acre, de
que a estrela é pretinha, em homenagem à Marina, nossa caboclinha valente.
ZUCA SARDAN
Quantos
acres de terra foram usados na invenção do Acre?
DOC FLOYD
Porém quando
lá chegaram os cearenses, graças a seus estudos naturais de miscigenação, todos
foram para a cama e então surgiram os acreanos.
ZUCA SARDAN
Uma
explicação freudiana da miscigenação racial luso-tropical no Brasil. Mas em
Portugal, só o Marquês de Pombal saberia explicar.
DOC FLOYD
Orixás e
deuses tupis se misturaram na clareira onde foi rezada a primeira missa. Oswald
de Andrade fez disto uma piada, seguido pelo cinema nacional, porém as verdades
sempre se fizeram descascando o milharal das mentiras.
ZUCA SARDAN
Sei de fonte
segura, que havia sacis também na clareira, fumando seus cachimbinhos. O quadro
do Vitor Meirelles tem sabor, mas ele não ousou pintar os espíritos da mata,
porque em seu tempo a Inquisição, discreta embora, seguia patrulhando. Cassiano
Ricardo avançou, mas se limitou aos papagaios…
DOC FLOYD
Quem avançou
foi o Bopp, em sua canoa de mil proas, ao semear ímãs na floresta e animar a
festança dos três reinos. Se a canoa não virou foi porque nunca parou de remar.
Nosso conquistador de maravilhas.
ZUCA SARDAN
Quanto mais
o tempo passa, melhor o Bopp!… O Cobra Norato vai se
destacando cada vez mais como um dos maiores capolavoros da turna de 22. E vai
ficando cada vez melhor.
DOC FLOYD
Desde as
terras de dentro do Rosa que não se via um acre poético tão ciente das origens
e do que se pode fazer com elas. A essência de nossa cultura está onde se
insiste em não buscar.
VI. O OITAVO CIRCO
A sereia trouxe Para Netuno a Gazetta Marinha, com a misteriosa notícia, em manchete de primeira
página. A notícia foi passada à redação do tabloide submarino pela própria
Parteira. Em entrevista-relâmpago, emocionada, a parteira foi logo declarando
que jamais viu criança tão inteligente, já nasceu falando e respondia a toda
pergunta que lhe fizessem os surrealistas…
JORNALISTA
A Parteira
Pirandola, pra se fazer interessante, inventou essas farofadas… A criança deu
tão só uns mugidinhos…
PIRANDOLA
O Senhor é
um jornalista meio singelo, com uma filosofiazinha indigente… certamente um
positivista?…
JORNALISTA
Sou
marxista.
PIRANDOLA
Exatamente.
Era isso mesmo que eu estava pensando, mas por delicadeza não quis dizer.
GENERAL
(entra
meditativo a cavalo e murmura, em voz plangente) Bons tempos o do Augusto…
CIVIL
(entra de
mansinho, faz rapapé, tira o chapéu) Os tempos do concretismo, General?
GENERAL
Não, meu
filho, os tempos do Po-si-ti-vismo, a sabedria, a ordem, do Augusto…
CIVIL
Pois é,
Marechal, o Concretismo…
GENERAL
Se não me
tivesses promovido a Marechal, estarias preso, meu bom rapaz… As ironias da
Sorte!… Ser promovido por um amável passante… que nada entende do Positivismo…
Até à vista, rapaz (Civil tira o chapéu, Marechal vai se afastando a cavalo)
VOZ DE FUNDO
E o Sol vai
tombando no mar…
Dois
sapinhos que estavam ali por perto, debaixo de uma frondosa touceira da
enigmática cara-de-cavalo, desataram a rir, até que um deles disse ao
outro: xingar o marxista de positivista é por uma pulga atrás de sua
orelha, pois ele nunca vai entender a extensão pouco lisonjeira da sacanagem. É
só na hora dizer bem sério: o senhor é um positivista. Os sapinhos
descoravam de tanto rir. Um deles, mal contendo o riso, disse: Eis a
outra face do mesmo espelho, dizer ao positivista que se acha marxista que ele
não passa de um concretista. O civil, que de civilizado nada tinha,
retruca: concertista? Ah viva a música! E o outro
sapinho: três vivas à vaia, como diria o músico surdo para sua plateia
vazia. Um dia a casa cai.
SOL
(enquanto
isso, o Sol, ao crepúsculo, no mar cristalino, gemia, fazendo poses de elegante
astro ferido, prestes a sucumbir, agitando a ruiva cabeleira e gemendo)
Ai!… nunca morrer assim, num dia assado, pelas chamas de minha bela cabeleira…
SAPO
ARGONAUTA
Outro sol,
desidratado, pereceu em abandonado estábulo, quem lhe ouviu o último suspiro o
comparou a um peixe na frigideira. Segundo o Lyceo Pytanga, o Sol nasce atrás
da montanha, cruza o céu durante o dia, e à tardinha vai aos poucos caindo,
afunda no mar. Cada dia o mesmo drama, uma barca o leva por um túnel submerso e
no dia seguinte, ele torna a renascer, por trás da mesma montanha. Em outra
cartilha, menos famosa, apócrifa, lemos que as montanhas, em noites de lua
nova, costumam mudar de lugar, assim que o sol, ao despertar, aquele outro
monte. Só o Poptaplek se recusa a mudar de lugar.
SAPO
TROMBETEIRO
Nada no
México muda de lugar…
SAPO
ARGONAUTA
Viva
Zapata!!! Pacacá Pacacá Bang-Bang-Bang
SAPO
TROMBETEIRO
A terra
estranha dos seres imóveis…
SAPO
ARGONAUTA
Por isso
mesmo o Zapata faz tal agitação.
SAPO
TROMBETEIRO
Em matéria
de desgraças, Brasil e México são complementares, o que falta em um o outro
esbanja.
SAPO
ARGONAUTA
É verdade…
tua assertiva fulminante… é, de certo modo, um elogio a contravapor de tudo o
que pensam, mas não dizem por amável discrição, os defensores das opiniões
politicamente… plek-plek!… digamos… crentes… e eticamente convictas, sobre todos
os maus abusos e boas ações na indústria e comércio, muito especialmente sobre
a histórica alunissagem do foguetão da Otan num sítio praieiro da Lua…
SAPO
TROMBETEIRO
O pirata
Kubrick chegou a distribuir uma cartilha ensinando a todos como fazer no fundo
do quintal uma réplica do pouso do homem na lua, com aqueles ângulos que só
poderiam ser filmados por cinegrafistas fantasmas. Quem mora em apartamento até
hoje não consegue lhe perdoar.
SAPO
ARGONAUTA
Pergunte a
qualquer estadista ou cientista europeu ou norte-americano, sobre as dúvidas
levantadas por Kubrick e outros hereges, e eles sequer respondem. Trata-se de
questão de DOGMA.
SAPO
TROMBETEIRO
Enumere
todas as falhas de caráter de Breton e indague acerca delas a qualquer
surrealista e eles sequer respondem. O dogma é um baú sem fundo de caprichos…
SAPO
ARGONAUTA
O-Ro-Roooooooooooooooooooooo…
Despacito, senão a Patrulha, cogito, vem tacar fogo no nosso Circo… O que para
ti não será la prima volta… o-ro-rooo…
SAPO
TROMBETEIRO
A patrulha
se engasga com sopa de cartilha, lancha pastéis de carne de alma e as noites
são empanturradas de pesadelos: cadê o ralo que estava aqui? A
patrulha é um prato vazio.
SAPO
ARGONAUTA
A Patrulha
Mundial?… Tomara que seja, tomara que estejam vazias… a Patrulha Moral – a
Patrulha Política – a Patrulha Científica – a Patrulha artística e cultural – a
Patrulha sobre os pequenos teimosos que cismam de discordar.
SAPO
TROMBETEIRO
Não te
esqueças que as vazias são as piores, porque sua ladainha é sempre a da proibição.
Não pode rimar café com cafuné. Ou decantar o vinagre azedo das teses sobre o
Império.
SAPO
ARGONAUTA
Como diziam
Padre Vieira e Fernando Passoa (e acho que também o Salazar)… o Quinto
Império vem aí!…
SAPO
TROMBETEIRO
Outros dizem
que será difícil passar a era do Quinto dos Infernos…
SAPO
ARGONAUTA
O Quinto
Circo ainda passa… Pior mesmo é o Oitavo.
VII. DOIS VELHOS VAMPYROS
VELHO
VAMPYRO 1
O que fazer
com a nossa idade avançada?
VELHO
VAMPYRO 2
Necessário
escolher uma árvore meia escondida, mas não muito longe do vilarejo.
VELHO
VAMPYRO 1
Sobretudo
próxima da capela, pelo cheirinho das velas de mil orações e a pia batismal,
cuja água é melhor do que a do tanque lá fora…
VELHO
VAMPYRO 2
Sim, na
capela temos boa água, e Frei Feijão nos dá um vale de indulgência, com direito
a duas refeições, no total de seis por semana.
[CHARANGA NO CORETO DA CAPELA]
Foram três
peruas tontas
tomar água
na capela.
Uma delas se
encantou
com o que
viu no espelho d'água.
teve sonhos
de cérbero
a safada da
perua,
zombeteira
como nunca
disse agora eu sou nós três
e vocês não
são ninguém.
REPÓRTER
E que achou
a Senhora do filme, Dona Janyra?
(de olhos
marejados) Achei lindo lindo-lindo, finalmente um filme sadio, embargado de
emoção, filme que acaba bem, com suave mensagem de paz… não é mesmo, Galibardo
querido?…
Sim, parece
trazer uma mensagem de Paz e Amor… Mas… melhor esperarmos até o Natal.
E saíram
todos pela rua cantando regozijados com a fita: Vejam agora eu sou nós
três / e vocês não são nenhuma. Assim a floresta se fechou e por ali não
mais se viram as formosas três peruas, a iluminada toda exultante, ao ir embora
disse às demais que seria a mais feliz, nem de longe estimando que o velho
vampyro a poria em argolas, exibindo-a nas feiras de outros condados, a mil
dobrões cada espiada. De qualquer modo, considerando que as duas outras foram direto
para a panela, o melhor destino coube a ela.
ZUCA
Florio, acho
que temos aí il magnifico finale!…
FLORIO
Claro, pois
não sobrou ninguém vivo, ah ah ah…
ZUCA
Não sobrou
ninguém… no fogão manchado de sangue.
[SOBRAS
DE ECO]
Vejam agora
eu sou nós três / e vocês não são nenhuma.
ZUCA
Agora me
bate uma dúvida: onde incluiremos este nosso auto natalino?
FLORIO
Verei se
ainda cabe incluí-lo em nosso teatro repleto.
ZUCA
Pela
quantidade de escritos de nosso teatro… talvez ainda dê espaço na contracapa.
FLORIO
Ou no dorso
secreto… (espécie de fundo falso)
ZUCA
Um dorso
secreto é uma tentação para guardar coisas muito ao contrário do que o livro
conta… zombarias contra seus autores, e vulpinas críticas aos escritos… Um
anti-livro do livro…
VIII. O MITO DESCABELADO
ZUCA SARDAN
Bengala com
asas é coisa pra Hermes-Mercúrio… o famoso caduceu, de múltipla utilidade… O
deus dos comerciantes e ladrões, está cada vez mais importante, com a
Globalização…
DOC FLOYD
Também
Netuno, envelhecido, mandou tatuar um par de asas em cada ombro. A cada noite o
mal percorria o convés, e os marujos bebiam seu chá de assombro.
ZUCA SARDAN
Também
Caronte frequenta os barcos, e vende aos marujos estampas de voluptuosas
sereias, coisa que Netuno jamais faria. Caronte traz também uma série de
artigos e quinquilharias, que lhes vende a preços razoáveis. Gostem ou não
gostem, além das estampas das sereias, compram-lhe os marujos alguns
badulaques, porque sabem que mais cedo ou mais tarde, estarão a bordo na barca
do Velho Titan, que se irrita fácil, e lasca terríveis remadas nos passageiros
mais imprudentes.
DOC FLOYD
Os barcos
foram atracados, o rio foi fechado. Caronte se curva no balcão de uma taverna,
completamente embriagado e ranzinza. Não lhe encoste ninguém a puxar conversa,
que de suas barbas saltam faíscas indóceis e um rugido que faz tremer o mundo à
sua volta.
ZUCA SARDAN
Caronte, no
fundo, é dos raros sobreviventes do Mytho Pagão, depois de superado pelo
Cristão… “Venceste, oh pálido Galileu!…” “O Grande Pan morreu!…” Só sobrou
mesmo Plutão porque, havendo Paraíso, precisamos dum Inferno… E dele,
justamente, o soberano era Plutão, que habilmente guardou seu trono… e pra
recolher as almas condenadas, já havia o velho e experiente Caronte, que guardou
assim seu posto. Mas sofre o velho Titan terríveis crises de depressão, que o
levam, nas estadias, a procurar tabernas, e cair na bebedeira…
DOC FLOYD
Hoje o pobre
titã se sente regra três de um inferno líquido, ressuscitando tangencialmente a
cada amendoim mascado. Por vezes um vago supetão, e o balcão da taverna
estremece, espantando os novos fregueses, enquanto os demais movimentam suas
moedas em novas apostas…
ZUCA SARDAN
No Inferno:
(ZERPINA)
Veja só, Plutone, as infâmias que este pérfido eletro Agulha está
soltando… está te chamando de pobre titã regra-três!
(PLUTONE)
(bocejão) Acho que o repórter está se referindo ao Caronte… E lá
então… ele tem razão… A-RA-RA-RAAAAAAAA!!!…
DOC FLOYD
Todos os
deuses são pérfidos e com seus cajados engabelam as aves do céu, os telhados da
terra e as latas de sal que cruzam os mares. A humanidade de joelhos ante
dogmas reza a mais obsoleta das orações.
ZUCA SARDAN
Os deuses
têm de ser cruéis. Se forem bonzinhos… acabam mal.
IX. ONDE COMEÇOU O CARNAVAL
Tupy, nas maracas: Chacará Rachacá Cháchá…
Macaca Chita no carrilhão: splin-tilim, plit-spit, pin-pin…
Macaca
aproveitou quo o sineiro Corcova estava dormindo… Corcova é surdo como uma
porca… Macaca lambeu a terebentina com que Corcova limpava os badalos e ficou
doidona, foi pro meio da avenida imaginária e lascou-se a sambar
entusiasticamente. Como era o Carnaval, e estava todo mundo doido, acharam
muito normal a Macaca dançar. Macaca fiou-se nisto e fez verdadeira orgia em um
bananal, saindo de lá zonza e cantando:
a lagarta bem fumada salpicou meu coração
tanta banana me come que suspiro em oração
Ganhou logo o primeiro prêmio da canção do Sambódromo, e o Prefeito lhe
ofereceu um cacho de bananas com um retrato autografado da Carmem Burana. Dizem
que o descamba-enredo que quase lhe tomou o prêmio era O galo de
Calcutá singrava os mares do sertão, composto por Jocélio das Mangas,
estreante na comarca das alegorias.
O galo de Calcutá acabou afundando na panela do Trio Taquara, que
convidou o Jocélio para o banquete. Dos ossos, secos e pilados, ele fez
pacotinhos alucinógenos e distribuiu por toda a plateia. Sucesso extraordinário
do show no banquete, o empresário Gordini contratou o Trio Taquara por uma
fortuna colossal e o Galo de Calcutá liderou a Rita Parada por
vários meses, com porrada no guichê a cada noite, o Teatro Fox lotado até às
cumeeiras. O filósofo Doutor Fritz fez pesquisas profundas para desvendar o
mistério da atração fanática das massas por tão medíocre espetáculo.
No gabinete do Dr. Fritz foi encontrada uma pasta que estampava o
título OSSOS DA ESTRELA, cujo conteúdo dava sinais de uma
investigação envolvendo suspeitos que estiveram no banquete de premiação e
fotos de todos com os olhos esbugalhados ante o flash da câmara digital… Arturo
Chimba, velho rábula, alardeava que não poderia haver assassinato sem cadáver,
o que impedia a prisão de quaisquer dos suspeitos.
Berlock Xolmes, famoso detetive escocês, soltou três baforadas de seu
cachimbo de jacarandá, e pontificou: sem cadáver não há processo de
assassinato, mas ossos mastigados indicam um ato de deglutição Para não deixar
indícios, o assassino teria devorado o cadáver esquivo, mas… cuspira os ossos
fora.
Armada a confusão, toda gente tirou do bolso o que ainda restava do
pacotinho de ossos e se apresentou inocentemente a Berlock na intenção de não
ser considerada cúmplice de alguma ilegalidade. O rábula se apressou a defender
a gente dizendo que todos tinham sido vítimas de um presente mal-intencionado,
e que, caso necessário, poderia guardar os ossos, antes que chegassem as
autoridades.
Telefonaram para o Delegado, que chegou acompanhado do Sargento que
trazia três rosnantes molossos. Para não serem mordidos pelos molossos, tod’a
gente passou seus ossos ao rábula, que presto os guardou nos sete bolsos. Os
três molossos saltaram-lhe em cima, rasgaram os sete bolsos, devoraram os ossos
e trucidaram o portador, por ter-lhes tentado enganar. E agora, pergunta
Jocélio ao Berlock:
– Mas qual a moral dessa tétrica fábula, Seu Berlock?
Belock pigarreou e não teve dúvida: Se a fome lhe leva ao
desespero, não deixe nada para depois.
Tupy, nas maracas: Chacará Rachacá Cháchá…
Macaca Chita no carrilhão:
splin-tilim, plit-spit, pin-pin…
X. ENCUENTRO OPORTUNO
REITOR
Bueno, el encuentro
sobre una mesa de billar,
de una máquina de coser
y una obrera paraguaya…
OBRERA PARAGUAYA
A Liana Quadrita no le gustaba el billar,
sus noches mejor las pasaba cosendo
los mejores hilos de su imaginación,
y despertaba siempre más allá del mar.
REITOR
Magnífico, Floyd!… Sugiro ponga siempre un título, que valoriza la
quadrita… La Quadrita es una dama pequeñita, aprazle portar un adorno para
empalomarse…
OBRERA
PARAGUAYA
Liana
Quadrita sonha com títulos de nobreza,
saiu de casa
bem cedo a conhecer muitas mesas,
desde então
jurou a si mesma não cair em troça
de títulos
sem elã, e sempre manter-se moça.
MÁQUINA DE
COSER
Coisinha
Difícil
OBRERA
PARAGUAYA
Nem
imaginas…
MÁQUINA DE
COSER
Poizé…
OBRERA
PARAGUAYA
Severino
Poizé aprendeu nos Solimões
a pescar um
peixe dentro de outro,
enrolava o
rio como um ouroboros,
depois da
pesca espremia uns limões.
MÁQUINA DE
COSER
Isso também,
pudera… ninguém é de ferro…
e temos
Democracia, não estamos em Macau
e no
Solimões os peixes são um colosso
um lambari
até parece um bacalhau…
OBRERA
PARAGUAYA
Omar
Bacalhau é um pescador local,
ele me
garantiu haver no Solimões
um bar de
nome Democracia que serve
a melhor
sopa de piranhas da região.
MÁQUINA DE
COSER
Bem posso
imaginar…
Mas se não
são bem assadas
as piranhas
comem a língua
dos
comensais. Melhor
então
pararmos por aqui.
OBRERA
PARAGUAYA
[ g a r g a
l h a d a s ] (ao som
do
range-dentes das meninas)
XI. NA CADÊNCIA DO PRÊMIO
ZUCA SARDAN
Já chegaste?
Ou estás falando do espaço intergaláctico, no teu jato rumo ao Brasil?…
DOC FLOYD
Estou na
terra nada santa e nada firme.
BOSQUE
No Brasil
tem um bosque
na Ilha
Marajó
o Paraíso
Perdido…
onde tudo
comezzou
DOC FLOYD
Terra de
jacuzzi & pitombeiras…
BOSQUE
No Brasil
tem samba,
tem jabuti,
tem canjerê…
faz que vai
mas não vai
olê olê
olelê
DOC FLOYD
Esse Jabuti
tá contaminado, virou prêmio de péssima reputação…
ZUCA SARDAN
Precisa dum
veterinário… Quem sabe dr. Osbaldo Cruz dá-lhe um jeito… Enquanto isso… um
Prêmio Avestruz viria a calhar…
DOC FLOYD
Este sim, o
prêmio sonhado, não para recebê-lo, mas sim para ver o premiado sem saber onde
enterrar sua cabeça.
ZUCA SARDAN
O premiado
escreveu um livro pornográfico ilustrado com fotos alusivas-explícitas e foi
condenado pelo clero, a marinha e boas famílias. Já está na Rita Parada.
DOC FLOYD
O problema
da Parada da Rita é a falta de critério, da qual todos se aproveitam. Os livros
pornográficos, que um dia desbancaram os de autoajuda, agora se curvam diante
do frisson em torno
das
biografias, não importa de quem…
ZUCA SARDAN
A chave do
sucesso total seria escrever um livro pornô com fotografias explicitando as
várias posições, o que seria uma forma de autoajuda pros trepadores singelos se
aperfeiçoarem, tudo isso incluído na biografia de um artista famoso da música
popular. Besticela!!!
DOC FLOYD
A página 127
dessa decantada centúria revelava que a biografada a toda gente levava no bico,
sem pagar seus direitos. Uma compositora mais famosa do que ela certa noite
cobrou a dívida em pleno show.
ZUCA SARDAN
Os
empresários caloteiros, sobretudo quando tratam com os inexperientes artistas,
são piranhas de luxo.
DOC FLOYD
Não apenas
os empresários, ou talvez eles aos poucos tenham aprendido com os artistas a
manipular o saldo das propinas estéticas, expondo à venda o estoque de óleo de
suas lanternas místicas. A plateia se retorce.
ZUCA SARDAN
E voam
milhões e milhões de dólares, de Tóquio a Londres, de Londres a Nova York, de
Nova York a Katar… e grandes gênios são hoje fabricantes de coelhos de ouro,
totós de flores com oitenta metros de altura, e um quadro que se evaporou
durante sua venda em leilão, na galeria de Londres. O comprador não reclamou, e
levou os pregos que sobraram para colocar na sua pinacoteca.
DOC FLOYD
O Sindicato
Internacional dos Rábulas está desnorteado, seus associados não conseguem mais
estabelecer as diferenças entre as obras falsificadas e aquelas que são frutos
de uma sincera diluição.
Deste modo o
roubo perde sentido, pois os copistas impuseram novos paradigmas, sobretudo
aqueles especializados em reproduzir assinaturas, considerando régua e compasso
desse novo terrorismo.
ZUCA SARDAN
Com as
técnicas internéticas, o roubo e a falsificação são inevitáveis. Só escapam do
assalto as obras complicadas, porque o mercado global favoriza os
pastelões-fáceis, os purgativos-sangrentos e os pornô-sentimentais.
DOC FLOYD
Porém as
obras complicadas não escaparam da sanha dos copistas, que as exibem com seus
narizes empinados afeitos à perene descoberta do fogo. Das cabeças de bois
cuspindo vitupérios às latinhas de sopa de cabeça de peixe, os copistas
distribuem suas receitas de fetiches, sempre longe das artes complexas, doadas
ao silêncio.
ZUCA SARDAN
Mas chega o
Andy Warhol, copia essas cópias talquais e… faz um sucesso estrondoso, em Nova
York, Tokyo, Londres e Europa…
DOC FLOYD
Facilmente
se comprovou o que há muito remendava a colcha da história, quão fácil era
burlar a plateia minando a imaginação.
ZUCA SARDAN
As pessoas
querem ser enganadas a sabendas… Assim se sentem mais seguras.
DOC FLOYD
Fiquem todos
sabendo: O engano está por vir.
BATUQUE
A pedra dos
males gorjeia
no tablado
das miçangas.
Quem quer
bacorinho pra janta
ronque até o
sol raiar…
XII. PERERECAS VOADORAS
BANDA DE
PRAÇA
Roca-Roca
Zaca-Traca
Firifim
Fon-Fon
DO OUTRO
LADO DA PRAÇA
O trombone
se agiganta
no ouvido
da formiga.
Toca o fole
Marrequinha
santa
O negro
pastor
quer tirar
da cartola
uma
orquestra de rãs
ZÉ ALUVIÃO
Porque não
pererecas
negro pastor
da cartola
tirar porque
não pererecas
da cartola
tirar pastor
pererecas
pererecas
JOÃOZINHO
DISPOSTO
A perereca
da vizinha
anda solta
no telhado
Basta o sol
bater no quengo
ela pula pra
todo lado
As perninhas
dela
não conhecem
fado
São do frevo
mais puro
e saltam
como pecados
ZÉ ALUVIÃO
A perereca
da vizinha
sempre pula
mais alto
JOÃOZINHO
DISPOSTO
É porque ela
sabe onde se esconde o céu.
ZÉ ALUVIÃO
O céu se
esconde atrás da porta.
Não adianta
procurar porque ele sempre se esconde… do outro lado.
JOÃOZINHO
DISPOSTO
Mas as
pererecas não procuraram o céu. Sabem onde ele se esconde e evitam desvirar as
portas, cientes do fundo falso desses espelhos tão fortuitos…
ZÉ ALUVIÃO
E o que é o
Mundo, e o Céu do Mundo, senão essa recorrente repetição de espelhos
conjugados?… O Inferno é a barra que serve de eixo de rotação dos espelhos do
Céu e da Terra, que, se colados um diante do outro, não refletem mais nada.
JOÃOZINHO
DISPOSTO
No baile das
noviças as pererecas entoavam cantos ocultos que evocavam o talento do Inferno
por fazer com que os espelhos recuperassem a visão. Em um jogo astuto de
palavras-valises, os cantos conduziam as noviças por estreitos labirintos, onde
uma estranha e altíssima figura lhes abria os olhos para o mundo e o céu do
mundo.
ZÉ ALUVIÃO
Mas Madre
Marilda, experiente, lhes deu óculos de cego, com vidro preto, pra que não
vissem as falsidades maldosas que aprontava a altíssima maléfica figura.
JOÃOZINHO DISPOSTO
O que Madre
Marilda não previu é que óculos de cego permitem olhar apenas para dentro bem
dentro, o que levou as noviças a inventarem um mundo próprio alheio à
realidade.
ZÉ ALUVIÃO
Mas enfim,
observou, Madre Marilda, se este mundo próprio é muito melhor que o mundo
exterior, melhor mesmo que as noviças fiquem por lá.
JOÃOZINHO
DISPOSTO
Com o que o
Condor não contava é que os mineiros que deram guarida às noviças há muito eram
subornados por outra legendária figura, o Leão da Metro que, com um rugido
único, desarvorou os cílios postiços e a peruca da Madre Marilda.
ZÉ ALUVIÃO
“Assim
também não é possível”, reclama Madre Marilda, “mineiros subornados por um Leão
de chanchadas…”
“Pior seria
se fosse leão do Dalí”
“Do Dalí?
Dalí só tem lagostas e rinocerontes”…
JOÃOZINHO
DISPOSTO
Leões Dalí
não tem, porém, seus elefantes repovoam a terra, ora tocando tubas, ora
levitando ou em caminhadas sedutoras em suas longas e finas patas. Há quem diga
que Marilda posou nua ante a sedução implacável de seus tigres. Arte, Ciência e
Religião afinaram em tais cenas seus rugidos.
ZÉ ALUVIÃO
Nessas
afinações, ninguém melhor que o Dalí… Papa Benito encomendou-lhe uma última
ceia, Dalí, em lembrança ao milagre da multiplicação dos peixes, empanturrou a
mesa de lagostas vivas… O quadro se encontra guardado em algum armário do porão
da Capela Sistina.
JOÃOZINHO
DISPOSTO
Nosso
correspondente no Vaticano me garantiu que, por uma falha na manutenção, as
lagostas famintas se devoraram entre si. Sobrou apenas uma, empanturrada pela
gula, que acabou por ejetar um telefone, de imediato ligando para Benito, lhe
dizendo: - As cicatrizes da fé a todo instante rebentam porque vocês
negam a ficção de sua realidade. Benito deixou cair o telefone no chão e,
antes de ser petrificado, escutamos ainda sua voz: Deus nos proteja da
versão demoníaca de todo o reino da criação. Estátua!
ZÉ ALUVIÃO
O chefe do
protocolo, vendo o Papa Benito transformado em estátua, telefonou para o genial
escultor Michelanjo, no momento ocupado na criação de uma coleção de colossais
escravos gigantes que se contorcem aprisionados em camisolões. Michel disse ao
Cardeal, Deixai comigo… e minutos após irrompe na sala papal,
e encontra Sua Santidade transformada em estátua. Rosna o Michel: Comigo
não!!! Já te dou um jeito… E avança enfurecido de martelo alçado e
brada PARLAAAAAA!!! E antes que viesse a martelada, ouve-se a
voz do Papa desencantado: Grazzie Michelino!… Dominus Vobiscum.
JOÃOZINHO
DISPOSTO
Na outra
margem do Atlântico, o poeta das gamelas vazias estala os dedos e deixa escapar
com voz roufenha: Ah esses mistérios papais, diante do martelo toda a
coragem se esvai e o cativeiro mais gentil não se arrisca em nome da verdade.
ZÉ ALUVIÃO
O dito
blasfematório do poeta das gamelas foi transmitido via e-mail por Frei Feijão
ao Vaticano, onde o serviço de segurança, leva ao conhecimento do Papa o texto
desaforado. Don Benito lê a desfeita, e lágrimas marejam-lhe os olhos… Aí
está… essas pobres ovelhas desgarradas não sabem o que dizem… Se soubessem…
iriam melhorar pelo menos a ortografia…
BANDA DE
PRAÇA
Roca-Roca
Zaca-Traca
Firifim
Fon-Fon
[POSTAGEM GRAVADA PELO PAPA PARA TODOS OS
CELULARES]
O verbo por
ser verbo não sabe fazer nada
Precisa da
fé substantiva que dá sentido a tudo
Tudo ou
nada, tudo ou nada, quem vira santo ou demônio
Sabe que um
dia terá que recolher as fronteiras do mito
Para poder
escrever uma nova oração que refaça o mundo
O MISTÉRIO
DO CACHIMBO
Não creio
que Papa Benito lerá o cachimbo que não era pássaro; mas a não responder os
graves dilemas metafísicos do Século 21, presentes nos textos que queimam na
fornalha do cachimbo… Frei Feijão entrará em implacável dilema existencial.
XIII. NAQUINHO DE NADA
ZUCA SARDAN
Saiu o
pacotão com as mulheres surrealistas. Sorrisão feliz do Floyd, cercado pelas
suas 21 musas… Cada uma mais charmosa e provocante que as outras… Elas estão
felizes de serem lembradas!… Acabou a tyrania du Bereton…
DOC FLOYD
Pois é, de
tanto surrar a canoa furada do Bretão, ainda vão dizer que meu livro é contra
ele. De certa forma, ser contra Breton é um modo de ser a favor do Surrealismo.
Nas minhas leituras não fazes ideias de quantas opiniões negativas acerca dele
eu reuni, dá para fazer um livro só com elas. Agora mesmo, ao escrever o
editorial da edição dedicada ao Leiria reproduzo uma carta do António Maria
Lisboa para o Cesariny dizendo que há a necessidade de se erguer em Portugal um
Surrealismo sem a sombra do Breton.
ZUCA SARDAN
O Papa foi,
porém, santificado. Quem não for às procissões, começa a ser visto como sendo
um perigoso herege… Dominvs Voviscvm. Zzzzzz
DOC FLOYD
Odaliscas
bem treinadas dessantificam qualquer pajem de quermesse enquanto eunucos
apetitosos
rasuram
máscaras papais e mominas nas lojinhas suburbanas e explodem as gráficas
santeiras…
ZUCA SARDAN
Justamente
por isso, as gráficas santeiras estão superando as gráficas pornográficas, sem
que estas possam compreender as razões… O-Ro-Roooooooooooooo…
DOC FLOYD
E aí está a
razão: a mania descabelada de querer uma razão para tudo. Imagine sair em busca
de uma boa razão para o rapaz que se excita mais com um santinho do que com a
madre superiora se masturbando…
ZUCA SARDAN
Para achar
uma razão, pelo menos plausível, seria preciso conhecer o rapaz, conhecer a
madre superiora, e qual o tipo de inspira3ÃO de que estaria tomada, pra seu
ato… sacrílego?… Tampouco isto poderíamos adiantar, sem conhecer pormenores do
ato… e também… saber da superiora de seus motivos… místicos?… ou profanos?… E
também ver como é a estampa do santinho…
DOC FLOYD
Além do que
o tema pertence bem mais ao fofocódromo, qualquer que seja o santinho ou as
moçoilas que se puseram a discutir o assunto na plana presumível do facebook.
ZUCA SARDAN
Mas o
facebook é a igrejinha de hoje, para as orações da juventude. Com a vantagem,
talvez, de que não tem padre, nem sacristão. E para as procissões, há hoje o
facebook e os smartphones.
DOC FLOYD
E os ovos de
páscoas derretendo na chapa quente das ilusões virtuais. Temos que aprender a
voltar pelos caminhos ainda não percorridos. Nada como ter experiência de coisa
alguma…
ZUCA SARDAN
Haverá
caminho ainda não percorrido?
DOC FLOYD
Claro que
sim, sempre há, posto que eles, os caminhos, são individuais (não vale apelar
para as toalhinhas de centro de mesa), e até mesmo os já percorridos quase
sempre têm algo um cadinho que seja diferente a mostrar.
ZUCA SARDAN
Os caminhos
mais difíceis só mostram um pedacinho.
DOC FLOYD
Um naquinho
de nada.
FIM
ASILO DE FARSAS
UMA PIRUETA FARSANTE EM 10 ACTOS
A lei não
distingue o que é certo do que é errado. O próprio fato de existir uma lei já
é, em si, um abuso. Por tais desmandos se caracteriza a espécie humana, que a
todo instante se vê compelida a criar normas para suportar a própria
existência.
PETRÔNIO CAFÉ PEQUENO
1. ACASO ATÁVICO
HERALDO (toca a trombeta)
TON-TOTOOOOOMMMMMMMM!!!
Bom dia, Senhoras e Senhores ouvintes da Rádio Trombetta!!! Saiu notícia,
no Correio Pampulha, de que a Escola Brejeira vai montar evento com
boas cabeças buscadas do lado de fora de seus muros, debates gravados sobre
idiossincrasias e anacronismos de nosso tempo.
FLOYD NIX
Ponho
dúvidas, a começar pelas dívidas da Escola Brejeira, há muito não paga sequer
seus cabeças-de-bagre formados em quinquilharias genéricas. As caboclas
austeras agora só querem saber de pecados sem guarda.
DOC FUMEX
Diga-me,
Nix: pecados sem guarda são certamente… os melhores?
FLOYD NIX
Não existem
pecados melhores, Fumex. Todos são piores. Daí que tanto interesse eles
despertem.
DOC FUMEX
Os pecados
ligeiros são menos graves, mas não tão gostosos quanto os pecados imortais.
FLOYD NIX
Porém nada
supera os pecados imorais. Aqueles que sonegam impostos e traficam pesticidas
para manter as meninas na linha.
DOC FUMEX
Pecados
phynanceiros são os mais apreciados pelo Príncipe do Mal, que guarda no Inferno
um magnífico Castelo-Cassino para hospedar os magnatas.
FLOYD NIX
Fichas de osso de cabra, cartas de pelo de ariranha, mesas com pernas de camelo… Lucrativa ideia de tornar paradisíaco o Inferno. Será imenso o impacto sobre os pecadores avulsos.
DOC FUMEX
O Inferno só
faz propaganda de seus horrores, mas não explica os paradoxos do Jardim das
Delícias… Quanto ao Castelo-Cassino, mantém segredo hermético.
FLOYD NIX
Dá-lhe uma,
dá-nos duas, toma lá a terceira… Os narizes empoeirados guardam segredo a sete
chaves de cristal, ninguém sabe o que se passa no tubo gástrico das emendas
oligárquicas. Patê D’Ambrósio cuidou bem de seus eunucos, decepados de orelhas
e língua.
DOC FUMEX
Decepados de
orelhas e língua, os eunucos de Patê d’Ambrósio não precisavam mais de ser
capados. A advertência já fora forte demais…
FLOYD NIX
De força
tamanha que valeu o abastecimento de silêncio em todo o Reino das Três
Corcovas. Até mesmo nas salas de partos os bebês já sabiam o valor
intransferível da fala muda.
DOC FUMEX
Os bebês
mais safos não soltavam um pio… Quanto aos mais parvos, Doutor Lousada
enfiava-lhes uma rolha na boca. Eram os chamados bebês-rolhas.
FLOYD NIX
Dileta
família da cruz emborcada. Cresciam por todos os lados e se ramificavam no
jornalismo, na política, nas artes. Não havia rebelião que contivesse esse
surto religioso das rolhas-falantes.
DOC FUMEX
Em boca
arrolhada não entra vinho… É preciso saca-rolhas. Os rapazes dasarrolhados
passam a falar desbragadamente. Já as mocitas se mostram discretas. Na antiga
Babilônia, a Deusa Ishtar mandava desarrolhar todo o mundo, para evitar
constrangimentos. Aprontava festas sublimes. Num banquete de Baltazar, surgiu
um anão desaforado que escreveu blasfêmias na parede: ESSADOF RAZATLAB!!!
Os Magos da Caldéia não conseguiram decifrar a tenebrosa mensagem.
FLOYD NIX
Eram três os
Magos de Plantão. Dura época em que toda a areia era destinada ao fabrico de
taças para os vinhos de Ishtar e o sangue das meninas que, por efeito de uma
mecânica quântica ainda rudimentar, mantinha afoita, como um papiro pronto para
os anátemas cavilosos do Bardo das Trevas, a pele da Condessa Devassa. Não
fosse essa escassez de areia um único espelho soprado na clandestinidade
permitiria aos magos desvendar o grafite desaforado.
DOC FUMEX
Mas não
houve tempo para maiores pesquisas, porque o Rio Eufrates enfurecido entrou
pelo janelão da sala de banquete, onde se desenrolava escabrosa orgia, e
carregou todo mundo, além dos móveis, baixelas de prata, candelabros e quitutes
escadaria abaixo… Ishtar, como sempre irresponsável, saiu voando gargalhando da
desgraça dos afogados, e foi dançar na ponta do obelisco do último andar da
Torre de Babel. Safada, mas tão gostosinha, quem condená-la ousaria?…
FLOYD NIX
Prataria
magna que espelhava a impudicícia de Ishtar, taças onde fazia repousar as
hóstias lunares, brilhantes caixetas com sua coleção de cílios e pentelhos,
bandejas manchadas com o sangue de seus convivas… Como poucas no Olimpo
paralelo, ela sabia desvencilhar pecados das garras da clandestinidade. Em rara
entrevista que deu ao Correio Pampulha, disse Ishtar que pretende
criar inúmeras escolas de pecado, com cartilhas em vulgata seladas com seu
brasão licencioso.
DOC FUMEX
Pois é,
Floyd, a bem dizer, Ishtar não sossega… Mas com a vulgaridade da baixaria no
mundo globalizado, creio que ela terá dificuldades em levar avante seu
grandioso plano de criar a cultura da licenciosidade… O Povão não vai entender…
Vai pensar que ela é uma perua louca de um programa da Tevê Lambada…
FLOYD NIX
Por isso o
Curupira tem levado jeito em confundir a todos. Graças a ele a nossa história
terá sempre os pés trocados.
2. COPA & FLERTE COM SURREALISMO
DOC FUMEX
Enquanto
vemos os jogos da Copa releio a poesia de nosso cubista tropical Vicente do
Rego Monteiro, tão injustamente esquecido como quase tudo em nosso país… Quando
nÃO esquecemos, deixamos que pegue fogo no Museu. Cobra Norato é um barato, é o
pai do Tropicalismo.
FLOYD NIX
Naqueles
tempos, se você saísse de terno sem gravata, ou saísse da igreja no meio do
sermão… era linchado. Meu pai ia de terno e gravata para o cinema. Tarsila se
torna assim a miss paraquedista da época.
DOC FUMEX
Realmente
surrealista entre os modernistas, além de Murilo Mendes, é o Raul Bopp. Acho
que poderíamos incluir no Surrealismo, ao lado do Jorge de Lima, o Nelson
Rodrigues e o… Barão de Itararé, que foi o nosso Alfred Jarry, por geração
espontânea.
FLOYD NIX
O sonho do
Oswald Lelé era ser a encarnação do Bispo Sardinha. O mais perto que chegou foi
exatamente a mordida na canela que lhe deu Tarsila. Bopp tem um bom livrinho em
que narra o caos fumegante dos bastidores da Antropofagia. Todos comiam as
canelas de todos.
DOC FUMEX
A entrada de
Tarsila pela janela deve-se provavelmente à sua fase antropofágica, quando
mordeu a perna do Oswald. A questão é saber se… ele gostou. Ela tinha o seu
charme… Se fosse eu, não a trocaria jamais pela Pagu.
FLOYD NIX
Então agora,
da antropofagia, só sobram, de autênticos, os índios Caetés… Depois do
churrasco do Bispo, os Caetés passaram a falar latim. Mas este fato foi oculto
pelas autoridades coloniais por ordem expressa do Palácio das Necessidades. Foi
um golpe cruel na nossa nascente linguística.
DOC FUMEX
Ficamos
entre o tupi e o latim. Latimos enxotando a latinidade. Com o tempo o latim
virou pó. Dissemos adiós a nosotros. Só no Lyceo Pytanga o Reitor
segue aperreando a molecada pra aprender a recitar e praguejar em latim.
FLOYD NIX
O Latim é um
cachorro teimoso… Não nos deixa assim tão fácil. Assim como as cadeiras
trancadas no pátio submerso da escola de jornalismo. Na portinhola com olhos
vendados a boca ainda sussurrava o daqui ninguém passa com que
se exigia do aluno a reza curta a rédea ostensiva…
DOC FUMEX
O latim não
nos deixa nunca. Nós é que nos abandonamos. Moramos em casas suspensas sem
quintal e não nos reconhecemos nos vizinhos. Nem temos com quem falar. O tempo
foge de nós. Mas o latim é mesmo um cão teimoso. Jogue amanhã no 5, e
amarre o cachorro pelos sete lados.
FLOYD NIX
Tenho plano
maquiavélico… Vou comprar um papagaio, batizá-lo de Plotino… e deixá-lo de
estágio num convento jesuíta com severas instruções de que só falem latim com o
plumoso… Depois de dez anos de estágio, eu o trago pro meu gabinete.
DOC FUMEX
Prof.
Plotino Currupaco pode ministrar cursos de latim relâmpago e tendo ele formação
jesuítica pode reformular a etimologia indígena herdada de nossos ancestrais
antes da Grande Gripe que os varreu da terra. O papagaio seria certamente o
primeiro a aprender o latim, e nos ensinar. Falaríamos um latim
extraordinário, com sotaque de papagaio.
FLOYD NIX
Após a
Grande Gripe, quando a população já estava completamente dizimada, inventaram o
Xarope Pylathos contra tosse, gripe e bronquite.
DOC FUMEX
Então já era
tarde e a única invenção que vingou foi a metáfora de circunstâncias que
propiciou a irradiação das colônias liliputianas. Digo, das colônias de
mosquitos, que empestaram o Rio de Janeiro com febre amarela. Só Doutor Oswaldo
Cruz, e seus indomáveis soldados mata-mosquitos, conseguiram vencer a
resistência popular, e passaram a seringa em todo mundo. Entre mortos e
feridos, os mosquitos acabaram sendo eliminados. E tudo acabou numa bela festa…
FLOYD NIX
…e um bom
discurso do Imperador elogiando o patriótico sacrifício da população.
DOC FUMEX
Contudo, a
população já se encontrava surda e o Imperador, temendo que espiões
registrassem as entrelinhas de seu discurso, o fez com a mão cobrindo os lábios
e… a parte superior das barbas, que iam até o umbigo.
FLOYD NIX
A moda do
Imperador de tapar a boca para falar pegou na tevê. Até os jogadores de
futebol, durante e até depois do jogo, tapam a boca pra conversar.
DOC FUMEX
Pura
presunção, de ambos, de acharem que suas falas despertem algum interesse. O
Craque no gramado sintético e o Imperador no torreão de seu Palácio em São
Cristóvão, alheios a tudo. Naturalmente o Marechal vai protestar, alegando que
a guerra dos Mata-Mosquitos foi depois que ele proclamou a República. Ora, o
Marechal, pouco depois de sua espalhafatosa proclamação, abdicou… E a
História não perdoa: quem vai ao vento, perde o assento.
FLOYD NIX
O Imperador
encomendou uma roupa no alfaiate mago libanês para ficar invisível. Mas só a
roupa ficou invisível. E o Rei… ficou nu. Mas, com suas barbas imensas, cobriu
os chocalhos.
DOC FUMEX
O jogador
encomendou uma torcida para gritar cada vez que ele fizesse gol, mas como o gol
não saiu a torcida resolveu gritar mesmo assim… Mamãe eu quero… Mamãe!…
Eu quero mamaaarrrrr!!! Me traz as tetas… me traz as tetas pro bebê não
chorar…
FLOYD NIX
O craque,
porém, pegou o grilo, jogou-o contra a parede e ploffftttttt!!! Sentou-lhe o
martelo. O Imperador, por sua vez real, escolado político, ainda se demora
entre variadas soluções. Enquanto não se decide, resolve viajar de Zepelim ao
Egito, pra ir consultar a Esfynge.
DOC FUMEX
Ora, há um
momento em que ambos se igualam, quando Imperador e goleador coçam atrás da
orelha e descobrem que ali mora um grilo surdo e sábio, que em morse bem
pausado aos dois transmite o irremediável carteado da solidão. O Imperador
toca três vezes a sineta, aparece o poleá, a quem o Monarca diz Almir
Bambelo, traz-me cá um martelo…
FLOYD NIX
Tamanha
distância entre as duas reações propiciou o surgimento de uma geração a mais de
grilos sábios que, a cada nascimento, punha na estreita mente do rei e do
goleador uma culpa sorrateira por serem tão iguais e ao mesmo tempo tão
distantes entre si. Ao goleador faltavam a barba majestosa, e ao Imperador
faltavam as chuteiras
DOC FUMEX
As respostas
se multiplicam sem eliminar as perguntas. Viva a pilha do gato. Jogue no 14 e
cerque bem o gato que é ligeiro de pique e mestre de pulo.
FLOYD NIX
Pilha dos
sete gatos, pra botar no meu ventilador. Ai !, se você fosse sincera, Aurora,
veja só que bom que era…
DOC FUMEX
Há uma
caixinha especial com metade de meia dúzia, que acompanha um jogo de felpudas
almofadas. Uma afoita gatinha ronrona na foto da capa. Se você disser a fórmula
certa Abra cadabra de cabra dabra… a gatinha aparece.
FLOYD NIX
Petekas
saidinhas fazem piruetas enquanto os editores cruzam palavras no tabuleiro da
Baiana Leocádia… na Praça Ferroviária. E lá vem o Marechal a cavalo,
tentar de novo proclamar a República.
DOC FUMEX
Tome Elixir
Eureka!!!… Revista Guapo Azteka… Não deixa cair a peteka.
FLOYD NIX
Os editores
em geral não querem correr riscos. Puxam o relógio do bolso do colete, e dão
corda… e dão corda…
DOC FUMEX
Editores
correm de riscos. E fazem uma risca limitando suas ações… Creio que há uma
escola onde aprendem a arte do capitalismo sem risco. Não será porventura o
Lyceo Pytanga, onde o Reitor ensina-lhes um heroismo de Espartacas.
FLOYD NIX
Certamente
num armazém portuga… com um retrato… de quem?… Será o Pessoa?…
DOC FUMEX
Lá bem no
fundo do armazém, por trás de uns caixotes velhos temos a melhor Cubunquira.
FLOYD NIX
Boa, pra
saborearmos com bolinhos de bacalhau, e lendo no Jornal dos Sports as
mazelas do Vasco.
DOC FUMEX
GOOOOOLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLL
DO VASCOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!
3. O INFERNO E SEUS PESCADORES
Floyd Nix e Doc Fumex tomavam a tradicional cerveja Caravaca e como
sempre punham em dúvida que todas as tragédias devam mesmo ser clássicas.
FLOYD NIX
Precisamos
ter um pouco de paciência com o bombástico jornalístico. O truque é ultrapassar
incólume o tom determinístico da apresentação.
DOC FUMEX
A imprensa
liquida o mundo na cepa da chamada. De um golpe só nos leva para bem longe do
fato. A imprensa sempre se veste do mais puro engano. As manchetes jamais
consideraram o vulto incontestável da realidade. São manobras, nada mais.
FLOYD NIX
Assum Preto
por ali fazia ninho, ao buscar gravetos deu nas vistas o esconderijo das
portas. Então as ensinou a cantar, até que se abriram para outros mundos.
DOC FUMEX
O Destino
costuma não abrir mão e pegar-se com o fato de que todas as linhas já estavam
bem ou mal traçadas, assim que mesmo as linhas do horizonte não eram senão um
ardil para abocanhar os tolos de qualquer parte.
FLOYD NIX
Conversa de
Camelot do Destino… Ele convence aos trouxas que as linhas já estavam marcadas,
e assim ele não pode infelizmente fazer nada… Até o Destino, e o Diabo também,
todos querem bancar bom rapaz.
DOC FUMEX
Estou
experimentando a delícia de ter os dias contados! E mergulhar nos braços de uma
monja deve ser a melhor das profanações.
FLOYD NIX
Vão os dois
juntinhos pro Inferno… onde flutuarão abraçadinhos sobre Dante e Virgílio…
DOC FUMEX
O inferno se
repete em números que já ninguém sabe contar. As horas perdidas combinam com as
sombras que irão sangrar.
FLOYD NIX
Das três
Viagens de Dante, justamente a do Inferno foi a que garantiu a sua
Imortalidade.
DOC FUMEX
Os porcos e
sua dieta severa de pérolas. Os mitos e seus vícios de pés trocados. Como exigir
que o homem se refaça se ele habita apenas um punhado de terra?
FLOYD NIX
Melhor é não
pedir nada, e deixar rolar…
DOC FUMEX
Eis o
balanço insuperável das contradições. Tudo o que somos levados a pensar de
Caim, deixa Abel constrangido. Pior ainda é quando nos deparamos com trios,
quando a confusão se instaura: o trio é o melhor ardil do caos.
FLOYD NIX
O fracasso
do Caim foi porque ele não sabia fingir… E muito menos enterrar.
DOC FUMEX
Veja a
Santíssima Trindade e a partição do tempo. A primeira busca a Unidade. A
segunda, o estigma da linearidade. Enquanto Caim tudo o que deveria ter feito
era convocar as hienas famintas para dar sumiço ao corpo do defunto. Bem se
percebe que, no fundo, Caim era um simplório, sem malícia, sem malemolência…
FLOYD NIX
A partição
do tempo se imagina linear quando, na realidade, é circular, como desconfiam os
relógios, e o Nietzsche. Tudo passa do futuro para o presente e do presente
despenca no passado que segue aumentando… aumentando, já vai quase estourando!…
Quando estourar, das duas uma: ou reverte para o presente, ou então… passa a
ser o futuro. O que, no final de contas, é quase a mesma coisa.
DOC FUMEX
O que
arruína o futuro é a falta de profetas… Com a televisão cascateando com
profundo conhecimento ético e científico de tudo, os profetas não têm mais
audiência. Só podem mesmo apostar nas corridas de cavalos ou trabalharem
na meteorologia. Antigamente, sempre foram apoiados pelos escribas do futuro, que
lhes prodigavam as melhores profecias. Mas atualmente, as televisoras querem as
notícias para já.
FLOYD NIX
Fernando
Pessoa, bebendo uma garrafa de vinho Gatão no Bar Murtinho, viu de repente o
Monstrengo que sobrevoando sua mesa em círculos concêntricos, soltou em cima do
vate uma mensagem profética. É a hora!, brada o Frunão, e garçom,
Murtinho e clientes, todos se enfiaram debaixo das mesas ou atrás das cortinas.
DOC FUMEX
Do lado de
lá da calçada outro bar abriga os brados que saíram de fininho ante o grito do
apessoado Fernão e suas gaivotas cegas. O mundo correu pela casa, espavorido,
dando sobras de provas de que a realidade havia sujado o poleiro da gangue das
aves de rapina. O mundo só não fica mudo por sua intrigante coleção de anúncios
com que se refaz de suas quedas. O mundo pode cair à vontade, porque tem a
bunda redonda. Já a Lua, volta e meia se quebra.
FLOYD NIX
O garçom
passou de bandeja tuas ideias para o Frunão, mas, entretanto, ele havia já
emborcado o resto da garrafa, e estava entretido numa conversa chuchotada com
Foffélia e o Gatto de Bottas, que se haviam entrementes escapado do rótulo do
casco.
DOC FUMEX
Se olharmos
bem numa mesa lá tão no canto que mais parece haver entrado no papel parede,
veja, veja, são Dyonélio Machado e Augusto Meyer, trocam ideias sobre ratos e
sombras, cada um convencido de que dentro do espelho um queijo refletido abriga
uma constelação de imagens e o rótulo meio rasgado confirma: Via Láctea. Era
Via Láctea o melhor vinho do Bar Murtinho. Afirma o dono do bar que o nome foi
dado por Fernandão, e o Almada desenhou o rótulo.
FLOYD NIX
A Via Láctea
continua espirrando das tetas de… plek-plek-plek!… talvez das tetas de Thétis.
DOC FUMEX
E as tetas
de Téthis, garbosas, confirmam: O leite que nos alimenta em Roma não é
o mesmo que nos alimenta em Búzios. Assim como a cascata de luz que vem do
sul não é a mesma que escondemos do norte. Mas o leite das tetas de Thétis é
monopólio do Almirante Basco da Gamba, chefe do maior clube de futebol do Brasil.
FLOYD NIX
As tetas de
Thétis são o prêmio do Vasco da Gama. Por isso ela só dá para ele no templinho
da Ilha dos Amores… onde se encontra o mapa-múndi, com o Meridiano das
Tordesilhas marcado em linha vermelha. Ela só dá no Canto Nono, porque o Décimo
é pra Apoteose d’Os Lusíadas e torna a entrar a Procissão,
desfilando em torno da Torre de Belém.
DOC FUMEX
A Torre
tombada é a que melhor se põe de pé, e reza ali em seu labirinto que melhor
seria se o nosso Tratado fosse o de Versailles. Como não é, vamos mastigando
miçangas, vesgos. O que não deixa de ser uma injustiça ao Tratado das
Tordesilhas, criado pelo santo Papa Borgia, que possibilitou justamente a
existência do Brasil. Não fosse o Papa Bórgia, e o Brasil hoje estaria reduzido
à Ilha das Flores, e seus habitantes, um bando de magarefes ladrões e safados
vagabundos.
FLOYD NIX
Melhor ainda
é a Torre da Melusina, donde aos sábados… crescia-lhe então um rabão escamado e
asas de morcego… e ela saía voando nas trevas da noite…
DOC FUMEX
Melusina foi
pescar lambaris no aquário de Mr. Crowley. Foi e não mais voltou. Tampouco do
aquário se sabe o paradeiro. Nas noites reviradas se ouve apenas a risada
lancinante de Aleister, satânico. Certamente Aleister tinha seu talento de
taroqueiro e comedor de peruas.
FLOYD NIX
O Crowley
tinha uma piranha em seu aquário e uma flor carnívora no seu pote galé (ninguém
sabe qual das duas lhe devorou um polegar).
DOC FUMEX
A piranha
cravejada de brilhante pariu mil espigas de uma fábula à prestação. A flor carnívora
disfarçada de mirante aguardava que cada vítima a ela viesse. Mas,
naturalmente, a realidade jamais supera a ficção. Só chegavam à flor umas
míseras moscas… Nem sequer jamais. sequer uma azul varejeira…
FLOYD NIX
Pesque
caranguejo com o dedão do pé. Mas para a piranha, invente outro processo.
DOC FUMEX
A piranha,
incestuosa, considerava parentes todas as vítimas de seu voraz apetite. Em seu
camarim mantinha um pequeno baú amontoado de suvenires de seus pastos.
FLOYD NIX
Será o Boto,
sempre galante, a sua próxima vítima?…
DOC FUMEX
Deixa que eu
boto, disse a
bota, em tom sapeca, defendendo que tudo não era senão figura de linguagem. É
fácil reciclar as impurezas quando aqueles que entalham na pedra as regras são
os únicos que podem infringi-las.
FLOYD NIX
A bota está
muito presumida porque ela é para a perna que está faltando ao Capitão pirata
unijambista.
DOC FUMEX
Não deixemos
faltar mais nada, do contrário os rapazes virão morder a isca dos demônios
maiores.
O prutuca do bar achou por bem bater a porta na coronha da conversa.
Passem daqui pros infernos, seus catadores de fuligem. Chispem. Aluguem outra
carroça para levá-los ao Morro do Farnel. E não voltem tão cedo, pois sim.
4. TÁBUA LASCADA
Onde andará Cassandra?
À porta bate o céu, seu menestrel,
venha depressa dizer o que foi
feito de nossa deusa inconsútil.
ANÔNIMO DA SILVA
DOC FUMEX
Primeiro o
Polo Norte se derrete. Depois os rios secam… Depois então… o mar vira sertão.
FLOYD NIX
Caule de
mandacaru na panela destampada, água fervendo olhando para o céu, mirando o
reflexo da estiagem. Caso fosse cinema, viriam logo os jagunços carregando
avoantes e quadris de jumentos para a Grande Festança da Seca…
DOC FUMEX
Também na
realidade os jagunços voltarão, pelos Sertões, de picinez, medalhas e
magníficos chapéus de Napoleão, vindo à frente Lampião e sua Joseca Fina de
pulseiras nas canelas galopando a jegue e jumento em triângulos de Euclides,
até a Colossal Pyrâmide de Brasília, onde Faraó Fó defende a Constituição
gravada em hieroglyfos na Pedra da Esmeralda.
FLOYD NIX
Joseca tem
sido a grande inspiradora do cinema nacional, que esbanja jagunços por todas as
peneiras, como prova de que a vida imita a arte. Em Estornolândia cientistas de
vários países estão desenvolvendo técnica de fusão de patas mesclando jumentos
e jegues, empenhados em que em uma cavalgada com oito patas por equino se chega
mais ligeiro ao Polo Norte. Chegando ali, o escopo será implantar imensos
blocos de queijo suíço…
DOC FUMEX
Troppo
Tarde… Não chegarão mais a tempo. Com o desaparecimento do Polo Norte todos os
interesses das Grandes Potências se concentrarão no Polo Sul. Argentina, Chile,
Uruguai e, por certo, Brasil passarão a ser paparicados pela Rússia, França,
Prússia, Memérica, China… e até o Japão vai querer meter sua colherzinha.
FLOYD NIX
Colherzinha
de olhares afunilados. Agora que o plano minou água de outra fonte, o que fazer
com o estoque de queijo furadinho importado no mercado negro escandinavo?
DOC FUMEX
Se o estoque
de queijo furadinho estiver mesmo podre, podem oferecê-lo como efetivo
preparado camungongocida.
FLOYD NIX
A torcida
canina acende velas em becos sem saída à entrada da Gatolândia ganindo de
felicidade só de pensar nos miaus de patas para cima se debatendo até a chegada
de nova encarnação. Resta, no entanto, a dúvida: entre mortos e sádicos, quem
irá repor a agulha desfalcada na Bússola dos Horizontes Estreitos?
Boa lembrança, a do reitor, ao desafiar a trupe: ELOGIOS DE CASSANDRA. A
começar por dois garis que moveriam de um lugar para outro a pedreira da moral.
Sofregamente deslocam pedra a pedra cada um dos ícones de nosso bel-canto. Dois
garis, Gardel e a trupe, começam a mover de um lado para outro a
tranqueira.
FLOYD NIX
E por que
chamas essa tranqueira de pedreira da moral? Tratam-se de apetrechos da vidente
que foi presa pela polícia. A pobrecita foi levada à força,
nem teve tempo de guardar nada, sequer sua poderosa bola de cristal…
DOC FUMEX
Que importa
o nome… A forca espera pelos amantes da discórdia, quaisquer que sejam os
papéis que esses sonsos infiéis representem. Dói-me nas costas ficar a levar de
um canto a outro o falso júbilo dessa hierarquia de pedras.
FLOYD NIX
Deves
imaginar, Colega, que estas pedras são esponjas, levíssimas… Usa a Imaginação,
e hás de transformar a dura Realidade em fofa Fantasia… As asas da Realidade
são de pedra… Mas as asas da Fantasia são de colossal Condor Imperial dos
Andes, esse Gigante do Anil, que zomba das tempestades e sobrevoa a majestosa
Cordilheira!…
DOC FUMEX
Eu já lhe
havia dito que os arcanjos gargalham ao bimbalhar das tragédias suadas. Mas
temos outra fantasia em concorrência, aquela que me faz tropeçar em sua cabeça
oca, a mesma com que ele se recusa a me desvirar. Também a Realidade tem uma
função a cumprir, Carneirinho, carneirão, pedra dura, pedra fofa.
A trupe vai se chegando, com cadeiras e painéis, prateleiras e cordas,
penduricalhos e uma mesa de madeira única, e um carrinho de boa mão, ouve-se do
anão que nova tranqueira se anuncia.
FLOYD NIX
Ora, quem
sou eu, um simples gari de pontes e calçadas… Olhai pra cima, olhai
pro chão, pro chão pro chão… Em minha ação de limpeza da rua de
Cassandra Flores, dou graças por tudo que ela fez por mim, sete vezes
mais do que nunca podido houvera imaginar, das maravilhas que me revelou
para assombrar-me, com sua maravilhosa bola, para manter-me à altura da
opulência que se apresenta em seus cristalinos reflexos…Nesta rua, nesta rua
mora um anjo…
DOC FUMEX
Agora o
diabo quer secar o pistão de lágrimas de nosso lagamar florido. Primeiro a
notícia de que a bola desvirou reclame, todo mundo se esqueceu, ninguém soletra
na carne os requebros da alma, as leis do umbigo espancaram o improviso,
ninguém sabe mais apenas ser, o que for, agora toda a gente quer proteção de
fraseados.
As cadeiras vão amontoando o livre arbítrio, acentos multicores,
encostos derreados, um lencinho com fios dourados identificam o nome de cada
escolha e suas consequências.
FLOYD NIX
Bola
reverberante, que Circe por sua ávida redondeza teria clamado, pelo menos, oh,
Bola!, Não te afastes de mim!… Com ávidas chuteiras, nem pra vitória de meu
time Arranca-Toco, eu jamais, jamais, jamais te chutaria!…
DOC FUMEX
Os monges
empalhados aturam a alma burlesca do taxidermista da roça. As manhãs chegam
primeiro, a bola ainda dormida no alpendre da fazenda. Como vamos enfiar tudo
isto, diz lá, Nix, em palco tão mixuruca sob um toldo esburacado?
Muito tempo depois é que se encontrou em meios aos escombros do teatro
imaginário um par de tabuletas em cujos rabiscos ainda se podia vislumbrar a
possível verdade da memória.
DOC FUMEX
Lyceo
Pytanga avisa que o Reitor ztará viajando por uns dias de Zeplin… Quando
regressar, responderá aos teletros recebidos.
FLOYD NIX
Bem vinda a
viagem que nos leva de um galo a outro da alegria.
DOC FUMEX
Sempre
bordejando o Meridiano das Tordesilhas…
FLOYD NIX
O Meridiano
casou-se com a Diana do Meio. Ela o ensinou a caçar tordesilhas para o lanche.
DOC FUMEX
Bem
aventurado Meridiano, ora se refestelando com a Diana do Meio… O Papa Bórgia
fez-lhe o casamento em suntuosa cerimônia na Catedral de Madrid.
FLOYD NIX
Madrid e
Padrid compareceram à festança panteísta. Nuvens de algodão temperaram o céu
por todos os poros do casório filtrado.
DOC FUMEX
O Conde
resfolega no cangote da Condessa, Mocinha de Abanos se encrespa atrás da
coluna, risos elétricos percorrem o ar seco de Orgaz. Quando as palavras se
completam o mundo renasce.
FLOYD NIX
Enterre a
mão na fonte dos desejos. Cumule fugas nas dobras da clarineta. Venere o fole
que entoca ar no pulmão. Não deixe nunca a dor para depois.
DOC FUMEX
O dilema da
esperança, seja boa ou ruim, é que ela amofina de corpo & alma o crente em
suas soluções miraculosas. Melhor esquecer o miado e tratar de dar aos gatos
lição de bel-canto caso voltem as chanchadas.
FLOYD NIX
Balas de
cá-te-espero no organdi malemolente das dançarinas da corte. Sustentam o mundo
em seus requebros e o corte transversal em suas anáguas.
DOC FUMEX
Um instante
de silêncio, palco e plateia se entreolham – existirá mesmo uma
Cassandra? –, a cortina ergue a cabeça desconfiada, dando pela falta
de algo no roteiro ou querendo nova sessão.
O mapa da mina despencou em meio a uma sinfonia de cacarecos e as
sílabas gastas faziam um estrondo tremendo, como se contasse outra história, da
qual não se pudesse entender nada.
5. UNHAS DE CLOTINHA
As unhas de Maltilde Clotinha já nascem roídas.
ANASTÁCIO CALOTE
DOC FUMEX
Nem tanto… é
que antes que apareçam… e já as roeu o rato … Mais a mais… Clotinha de busto
altivo em par com Tio Meroles na entrada da majestosa Gare Ferroviária
Labyrintho… mais que das unhas… precisa das tetinhas meio encobertas pelo
decote distraído.
FLOYD NIX
As
coberturas vazam entrando as noites mal saídas da galeria e Clotinha rói o rato
em represália a seus abusos. A impertinência no olhar do famélico roedor
distrai os seios que não param de crescer, buscando afago por todo o volume de
suas ânsias montanhosas.
DOC FUMEX
Para os
afagos… caberia ao Meroles se decidir… mas ele demorou muito… devo ou não devo…
posso ou não posso… O tempo passou, e os dois se atrasaram. A vida é um trem
apressado… na estação esteja de malas a postos… na beira do cais. Não há tempo
pra ler a placa da direção. Pule dentro do trem. Depois então…
FLOYD NIX
…depois
então a direção encontra seus passageiros. E no vagão-bar expõe os bustos
robustos daqueles que perderam o trem. Meroles cavou um poço na toalha da mesa
do canto. Saltavam dali as paisagens que ele ia colando uma a uma por todas as
janelas em movimento. Na medida em que a viagem se declarava bem alimentada
Clotinha exibia as unhas refeitas por um instante.
DOC FUMEX
O trem era
um luxo só… tinha rodas pneu-balão… banda branca… e uma música difusa corria
pelos vagões… Elvis Presley?… Parece que sim… mas o chapéu cowboy cobria-lhe o
rosto…
FLOYD NIX
As máscaras
sempre se ocupam dos santos, menosprezando o milagre. Um pedregulho no trilho
fez o trem dar um salto súbito e por uma das janelas entrou rasgando um facho
de luz crepuscular. Clotinha foi logo gritando: Cuidado ao cruzar o
semáforo que me vão borrar as unhas. O barman, que não tirava os olhos dum
cantinho rendado de seu decote, deu dois passos para trás, como costumam fazer
os acólitos, e desfizeram-se os laços de sedução da cena.
DOC FUMEX
Aproxima-se
meio cambaleante ao sacolejo do trem, Elvys Presley, sempre com o chapelão
acobertando parcialmente o rosto.
DÓRIS NIGHT
Diga-me,
forasteiro, és mesmo o Elvis?...
ELVYS
Sim, Boneca,
justamente porque duvidas… sou o Elvis. Sempre guardo um pouco de mystério, pra
fascinar minhas fãs.
FLOYD NIX
Novo
sacolejo e Elvis retira da capa uma viola branquinha:
ELVYS
CAPOTÃO
Sentimental
eu sou, eu sou demais… Um dia
ainda concluo essa versão.
DÓRIS NIGHT
Ai meus
sais, que voz, mesmo morto ele é tão lindo…! Imagina ressuscitando em minha
cabina…
FISCAL-MOR (Entra, preocupado)
Olá, Dona
Dóris, perdoe-me a interrupção, mas como vedes por meu uniforme com três
estrelas, sou o fiscal-mor da fiel equipe de funcionários de nosso fulminante
trem Paralax. Desejaria participar-lhe, Dona Dóris, vós que sois uma cantora
dramática extraordinária, de quem desejaria, mas não ouso pedir, vosso retrato
paramentado com autógrafo… que temos a bordo um pseudo-Elvis vil caçador de
peruas distraídas…
DÓRIS NIGHT
Ah logo vi
que o roteirista tinha exagerado no tempero de minha moqueca… O barman também
me disse, enquanto me espremia num cantinho ventilado entre vagões, que se
tratava de Elvys Capotão, um salafra que leva na lábia as mulheres avulsas que
cruzam o mundo no Paralax.
FLOYD NIX
Paralax é o
nosso transglobal, dele não há palmo de terra que escape. Clotinha faceira
debruçada no recorte de uma janela soprava as unhas recém-roídas e se deixava
beijar na face posterior de suas coxas pelo anão Fraseado Solto, que entre uma
beijoca e outra deixava escapar o mantra: dura lex, sed lex…
FISCAL-MOR
Preciso
manter o clima romântico do Paralax, pra que não caia numa pornochanchada dum
trem treme trêmulo qualquer… Minha missão romântica agudinha vai se tornando
cada dia mais difícil com a vulgar licenciosidade grosseirona de nossos dias…
Queremos um ambiente em tecnicolor original de cinema panorâmico dos anos
cinquenta, do século passado… com Clark Garbo, Verônika Lago, e a colossal
banda de jazz de Bill Summer… Todos de smoking e uma bateria de dez
saxofonistas…
DÉCIO CUBATA (o barman)
Vou preparar
meu ponche de groselha com saquê e folhinhas de malvarisco na borda das taças,
que deixa o coração acelerado e a garganta prontinha para as falésias guturais
de um longo trajeto de canto e luxúria.
FLOYD NIX
Não te
esqueças dos canapés com pimenta doce que Clotinha adora ofertar na catedral de
seus acidentes anatômicos.
FRASEADO
SOLTO
Numa noite a
mil a eternidade eu desfio.
DOC FUMEX
Parece que o
romantismo liberô do novo Milênio vai muito além do
novecentismo do Fiscal-Mor… que se deixou ficar no café duma longínqua estação…
E o Expresso Paralax segue sua viagem pelas novas Galáxias…
FLOYD NIX
Pois é
justamente aí que reside a passagem do tempo em meio a seu eterno dilema de
querer ocupar dois espaços simultaneamente. O anão debulhava seus axiomas que
aos poucos iam irritando a todos na folia mecânica do Paralax. Numa dessas
noites abocanhadas pelo acaso, numa série de curvas que se repetiam como uma
elipse, Padre Anselmo olhou para o céu e vislumbrou um palito de luz. Elvys
Capotão e Verônika Lago ensaiavam uma marcha-rancho em meio a uma breve
melancolia que se instalava no vagão. O que seria tal luz? Anselmo apontou para
o alto e os olhares todos o seguiram. O azul-prata brilhante parecia mergulhar
nos olhos de cada um. E logo a luz era a única paisagem possível, nela sumindo
o próprio vagão. Clotinha foi a primeira a identificar os ruídos fortuitos e o
vazio silencioso e avassalador que os devoravam.
CLOTINHA
Afinal,
aonde diabos nós viemos parar? Décio, parecemos firmes no chão, mas não há
chão. Tudo é vazio, porém não estamos flutuando. Podemos andar, mesmo não
havendo piso. Minha gente, o que está se passando conosco?
Deixa rolar
o Paralax… Lex Dura Lex, pro meu cabelo só Gumex.
FLOYD NIX
Ai, meu caro
Fumex, eu vejo agora que no sacolejo em que se embaralharam tempo e espaço algo
se perdeu… Fritz Banzo já dizia que nessa vida não há ninguém que não se perca,
um cadinho que seja. Talvez a vida seja o sumo dos fragmentos desencontrados ou
esbagaçados no balanço das viradas. Se Clotinha não roesse tanto as unhas já
teria percebido que fomos abduzidos para um tubão de tudo-nada. Agora somos
essencialmente as partes que faltam. Cenário assim tão de todo nu… sem chão ou
teto… sem paredes… parece ser a grande solução para o Theatro
Automático, ao reduzir a quase zero os cifrões da produção.
6. DRAMA DO NÃO-ESPAÇO
Volta e meia o cacimbão regurgita deuses.
KLEP MUNIZ
FLOYD NIX
Se houve um
dia Paralax já não o sabemos. As incertezas constituem o núcleo melhor
sedimentado da história. A descoberta do não-espaço propiciou redimensionar
antigos enredos, dando à criação um novo motivo para seus delírios e folguedos.
Estrada infinita pela frente, qualquer que seja a direção, qualquer o ângulo.
Assim como sapos saltando da cartola escangotada do Mago Cremix, do mais pleno
vazio saltam cenas e personagens… Experimente sacar algum enredo, Fumex.
DOC FUMEX
Quem sou
eu?… Um novecentista romântico, ante essas mirambolâncias eletrônicas do 21… E
quem descobriu o não-espaço? O Mago Cremix? É tão só um farsante mago de mafuá…
O não-espaço certamente está dentro de sua cartola, tão repleta de ratos,
coelhos e bagulhos, que não sobrou espaço para mais nada…
FLOYD NIX
O não-espaço
é o cenário do intangível, o escoamento da forma, nele apenas o fraseado se põe
de pé e mesmo assim apenas no instante em que se fala. É bom para viajar,
porque não requer sair de onde se está, até porque no não-espaço caem por terra
os conceitos de ser e estar. Dizem que o Mago Cremix encontrou uns papelotes no
fundo falso da cartola de outro ilusionista, André Brejeiro, com quem chegou a
dividir banco de tenda no Pavilhão das Liberdades Frustradas.
DOC FUMEX
O não-espaço
me assusta!… Ztou roendo as zuuuuunhas… Ainda bem que o Vesúvio não está no
bairro… Ou se tivéssemos um Titicaca… um Aconcágua, ou um Ximborazo, um
Popocatepel… Uma morte no fogo!… Cruel, mas humana… Ao passo que esse
Não-Espaço é coisa de morto-vivo… de Allan Kardume!…
FLOYD NIX
Ora, Fumex,
ninguém rói melhor as unhas do que a Clotinha, e ela está aqui conosco
justamente para ensinar aos povos de outras dimensões essa prática que, em todo
o Universo, é domínio apenas dos terráqueos. Até mesmo no reino animal somente
os homens roem as unhas. Nem mesmo os tamanduás ou os demônios da Tasmânia.
Todos nós estamos aqui para cumprir tal missão. Como fazê-lo? Através das artes
dramáticas…
CATÃO
BALUARTE
Tlém, tlém,
tlém… Toco o meu badalo imaginário e convoco a todos para o centro do
não-palco! Venham, venham, hora de começar a soletrar os primeiros improvisos…
DOC FUMEX
Tragam taças
de porcelana da Bélgica, copos de cristal da Bohêmia, uma chaleira com Café
Fonema, uma ânfora de vinho Falerno e bananas pra Macaca Pinola… A Poesia
é a filha maluca de Dona Razão. Dai-vos pressa, oh Filhos da Arte!… A chaleira
já está chiando um fado de Maria Tamanco, duma tristeza de rachar.
FLOYD NIX
Dai-vos
pressa, ecoa Catão BaluArte!… E introduz em cena Madame Putinheska que acentua
nossas mazelas físicas e, frenética, descortina que aqueles que caminham como
se de algo fugissem serão descarnados como uma matéria putrefata. Ela fareja o
vazio e defende que somente a libertinagem cria.
FRASEADO
SOLTO
Se um
castelo se isola do mundo no alto derreado de um penhasco, por mais que grasne
jamais será seguido sequer pelo fogo. Também os amores que se mantém isolados
em suas camas de cristal não expressarão jamais a grande fome de viver.
MADAME
PUTINHESKA
As leis da
física enterram o homem vivo. É preciso criar um salto de imaginação. Por isto
saio das páginas de Prepúcio Boreal e venho me misturar com todos de modo
arrebatado e assim mesmo nuazinha como vim ao mundo.
NELSON
ROMILDES (jornalista)
A plateia,
face ao discurso passional de Madame Putinheska, se divide entre a Esquerda
Libertária e a Direita Ultrajada. E Doc Fumex, em que bloco se coloca? Não
o encontramos!… Onde andará o Fumex? Lá está, enrolado na cortina, para não se
comprometer. Ora, Fumex, não vou achacá-lo, exigindo que tome posição nesta
tediosa pendenga… Somos colegas da imprensa… Gostaríamos apenas que nos
passasse algumas fofocas ilibadas, mas objetivas, sobre alguns personagens.
Quem é, afinal, essa perua louca ninfomaníaca, que quer comer todo mundo no
sarau?…
DOC FUMEX
Pois é…
Marinela foi educada no Sacré Coeur, onde lhe completaram os bons ensinamentos
para a cultura e o espírito. Tinha invejável tino literário, apreciando as
obras de Marquês de Sade e do Conde de Lautréamont. Quando sua mãe lhe
perguntou qual presentinho ansiava para os seus quinze anos, ela, de olhos
baixos, pediu-lhe um chicotinho… de pelica, pequenino, mas de três braços, com
preguinho na ponta. Seria pra servir-lhe de cilício.
NELSON
ROMILDES
Estou
anotando tudo de memória, mas me surge uma dúvida. Acaso ela não é o anjo
aterrador do romance de Prepúcio Boreal? Lembro bem umas páginas em que se
dizia que o império estava feito por rufiões e mercadores, e que os dois se
confundiam em uma mesma cafajestice…
FLOYD NIX
É possível,
porque houve um momento em que a humanidade se viciou em aforismos e os
apelidos eram uma lambança metafísica a surrupiar as identidades… Boreal era um
reflexo dessa travessura humilhante.
MADAME
PUTINHESKA
Ah esses
pobres moços machucados pelo passado! Tragam para mim seus cabos de guerra, nós
precisamos refundar o horizonte. Os acidentes dão à vida um relicário menos
servil. Venham, meninos, Mamá espera a todos no abominável teatro de minhas
coxas ensopadas…
DOC FUMEX (de pé no peitoril da janela)
Prezado
Floyd, está na hora de meu embarque… O táxi lá embaixo já me está esperando.
Pulo agora da janela, deste quinto andar, utilizando o meu
magnífico guarda-chuvas inventado pelo Leopardo Davint, extraordinário
inventor de asas mecânicas e paraquedas. Divirtam-se! Zaaaftttt!…
NELSON
ROMILDES
Doc Fumegas
pulou presto, bem sei por quê. Olhem para o público!… Cavalheiros e Damas dos
camarotes, e os velhotes e damas de boininha da galeria intelectual, numa
revolta vociferante se transformaram na Tromba Humana!… É uma espécie de versão
terrestre da Tromba d’Água dos Lusíadas!... Vai crescendo em espirais e vem se
aproximando de nosso palco!… Passei por perigo parecido no lançamento de minha
peça Tanguinha de Núpcias…
MADAME
PUTINHESKA
Esse
chupa-brumas é um menino levado. Em minhas mãos eu lhe daria remendo…
FLOYD NIX
O público
sempre foi a velha ferida na alma de Doc Fumex. Cheguei a pensar que em um
Teatro do Nada, em pleno não-espaço, pela impossibilidade de existir público,
ele recauchutasse seus velhos traumas. Mas ele inventa um público ulterior que
acaba por castrar sua imaginação. Acho até que foi péssima a ideia de abdução.
O homem ainda não está pronto para descobrir seu duplo em outra galáxia.
FRASEADO
SOLTO
O sovina
come requentado. O mascarado leva uma vida de bailes. A poça d’água é o espelho
da imensidão…
MADAME
PUTINHESKA
Alguém
desligue essa coisa!
CATÃO
BALUARTE
Tlém, tlém,
tlém… Finis terrae
7. ANTES QUE HOUVESSE TEMPO DE MENTIR
Um dia puseram as cortinas para lavar. Falas e cenários, que por vezes
até se atropelavam, em face da barafunda de improvisos, não deram por conta das
poltronas na plateia que, embora vazias, não desgrudavam o olhar dos
argumentos, sobretudo quando os mesmos fugiam do contexto.
FLOYD NIX
Olha, acho que
eu deveria dedicar este livro à Bruxa Rosana, graças a ela fui sempre muito bem
recebido em todos os ciclos do Inferno.
DOC FUMEX
Seria muito
merecido. A Rosana faz tudo o que lhe peças. Ela é pra ti tal qual a Sibila de
Cumes pro… Enéias.
FLOYD NIX
Além do que
criará uma aura de mistério, imagina, logo no frontispício: Dedico este
livro à Bruxa Rosana… Amanhã ponho em ordem o material que recebi
hoje, da pena de Aderbal Quaresma, outro expurgado pelo Faraó das Três Limas.
DOC FUMEX
Além do
mistério pra ouriçar a plateia… Rosana agradecida vai aprontar pro livro um
feitiço!! Fará um feroz furor no guichê de Leonor.
FLOYD NIX
Um furor
para Leonor Fini, onde nada se finda, onde tudo começa ou recomeça. O recomeço,
por sinal, é uma pérola da retórica, pois tudo é sempre começo. Chamarei os
carpinteiros canastrões do reino para que ampliem o balcão.
DOC FUMEX
Leonor Fini
vale um apertão no guichê!… A multidão aumenta cada vez mais.
FLOYD NIX
Em casos
assim sempre aparece alguém do Comitê Central a trazer à tona a velha discussão
de quem veio primeiro: o guichê ou a multidão. O mundo e seu remake.
DOC FUMEX
O problema é
que a multidão sempre vai para o teatro errado… Em vez de vir para o nosso, com
Leonor Fini no guichê, vão todos ao Cine Metrox, ver o Ben Hur… ou
ao Cine Fox, ver o Victor Mature… de Sansão.
FLOYD NIX
Por isto que
o remake é a Grande Obra. Base dos best-sellers, receita
infalível da Sétima Arte. Nada se cria. Tudo se reproduz, com pequenos
retoques, em nome de uma vanguarda cristalizada.
DOC FUMEX
Por isso
mesmo acho que nosso único recurso é fazer uma paródia de besticela… fingindo
que é mesmô… besticela… O povão comprará milhõõõõõessss d’exemplares!!!… No
Aeroporto de Orly, quando descobrirem nossa fraude, haverá uma revolta popular,
a multidão enfurecida cercará o prédio da editora e… tacará fooooogo!!! Morrerá
de vítima o inocente samaritano, o pobre Salim abraçado a suas panelas no Bazar
Baltazar.
FLOYD NIX
O povão já
se acostumou tanto a aplaudir o dobrado de pistões falsos que vez que outra
quando a música acerta o passo sempre se escuta o ribombo de um tomate podre na
caixa de retorno. Alguém na plateia sempre se mantém o mais atento a todas as
correções eventuais do que é falso notório. Não importa se os cravos nas mãos
do Nazareno ou se o pouso fajuto da Nasa na lua. Ninguém ouse corrigir os
falsetes da história.
DOC FUMEX
Se jamais os
astronautas conseguirem pousar na Lua e voltar… Será que vão confessar que
aquele mal encenado primeiro pouso foi… Balão de ensaio?… JAMAIS!!!
JAMAIS CONFESSARÃO!!! E a Opinião Pública JAMAIS ousará pôr em questão este
DOGMA da Civilização Contemporânea…
FLOYD NIX
Nem este nem
aquele do gatuno sementeiro a quem primeiro a Tereza deu a mão, não importa o
quanto a estrada estivesse repleta de laranja tão madura. A história ama o
soslaio e a vela manufaturada nos fundos da quitanda de Sor Inês. O resto da
festa sempre a garantem os copistas de Caravaggio e Chico da Silva. Amém.
DOC FUMEX
As garras de
Floyd Nix cada vez mais afiadas… como diria o Padre Jardim: Assim, meu
filho, ninguém escapa…
FLOYD NIX
Padre Jardim
ainda guarda às vistas de todos, pendurada em seu pescoço, a chave do maior de
todos os mistérios: o cristal que nos faz ver tão longe quanto perto, tão
íntimo como ausente. E a quem lhe indague as razões de tamanha ousadia, ele
reafirma que o oculto por excelência é o que vemos a cada instante em qualquer
parte.
DOC FUMEX
Padre Jardim
está avançadíssimo… Deve ter lido a Pedra da Esmeralda.
FLOYD NIX
Em plena
cumplicidade com o Acaso ele descobriu que cada pedra luminosa ao ser refletida
no calcário e, dado incerto ângulo, reproduz a estrutura íntima de outra pedra
igualmente luminosa, e foi assim que compreendeu que todos os reinos são um só,
bem como os deuses.
DOC FUMEX
O acaso da
intenção? ou… a intenção do acaso?
FLOYD NIX
A intenção é
o pior de todos os acasos, assim como o acaso é a mais destemperada de todas as
intenções. De que lado por a asa da xícara antes que o voo embriague?
DOC FUMEX
O voo só te poderá
embriagar quando a xícara tiver duas asas.
FLOYD NIX
Um artista
português, após muito refletir, resolveu por a asa no lado interno da xícara.
Assim o voo se daria de outro modo, por efeito de infusão. Não sem antes o
sermão.
DOC FUMEX
O artista português
inventou, assim, o disco voador.
FLOYD NIX
E tão
rasante foi o voo experimental que voltou a ser xícara, desta vez desossada.
DOC FUMEX
Bota-lhe uns
pelos da Meret, que ela vai gostar… Toda xícara é mulher, e toda mulher gosta
de ser gostosa… Sorve-lhe um café nos pentelhos que ela vai gostar. Ai ai ai,
agora… querer ser poeta num mundo em que despreza ou ignora a poesia é uma
insensatez. Melhor a música, o romance, a tevê, o cinema. Ninguém, dotado de
bom senso, JAMAIS escolherá ser poeta… Então… porque e para que vamos nós ficar
de semente?… E não somos burros… Mas porque cismamos de ser poetas? E…
in-sis-ti-mos? Acho, Nix, que a única explicação é que foi a Poesia quem nos
escolheu, e não nós a ela. Somos os mosquitos… e a poesia… é a nossa Aranha…
que nos fascina, e nos vai devorando… pedacinho por pedacinho… E nós… gostamos…
O-Ro-Ro-Rooooo
FLOYD NIX
A ferida faz
de tudo para não estancar. A fístula do bem viver. O cadáver delicioso atado ao
pé do abismo. O inferno pajeando a melancolia e outros destemperos do ser. Quem
cria sabe que afia a própria lâmina que um dia lhe dará o golpe fatal. No
entanto o verbo flerta com todas as flexões do destino. Acho que pregamos
tantas coisas no céu com a clara intenção de impedir o voo. Nuvens e antenas,
estrelas e arranha-céus. Quase não sobra espaço para um rasante bem dado.
Troquei as crinas do alazão pelos pentelhos da Meret, agora meu cavaquinho não
desafina mais não.
DOC FUMEX
Aproveite
enquanto possa antes que chegue a carroça. Agora então com o Feliz Final cai a
cortina: BOM REBELHÃO. BONG PLOFT BANG!!!
Mas não havia cortina alguma, era apenas o efeito fantasma do membro
extirpado. As cortinas ainda não haviam retornado da lavanderia. No entanto a
plateia, igualmente inexistente aplaudiu de pé o encontro entre os dois
corifeus que tão bem maturaram, de manga solta, sobre as inúmeras traquinagens
pueris e até mesmo sádicas de nosso tempo.
8. QUIMERA É ESSA?
FLOYD NIX
A mais
farisaica de todas as quimeras se chama Inocência. A mais tormentosa de todas
as incongruências místicas. O Chapelão da Corte, que passa a vassoura nos
pecados da terra, jamais aprendeu a lidar com a heterogênea Inocência. Há
poucos dias uma híbrida Lolita veio morar comigo. Resfolego sem saber a que
duras penas me submete a implacável imponderabilidade da existência. Dá-me uma
lanterna, Doc…
DOC FUMEX
Passo-te uma
lanterna semiapagada… (canto:) – E tudo a media luz…
trali-trali-tatá… o pecado passa de contrabando na mochila do camelo.
FLOYD NIX
Passa o
rebanho das pilhas gastas, para que os temas que assolam o presente se
mantenham sempre carentes da presumível clareza que exigem. Um pouco de tudo ao
passo de mil saguis que tamborilam na pele da surdina. Mas o que se pode fazer
com a Inocência afastada dos espelhos?
DOC FUMEX
Todos os
espelhos da casa de Tio Carol estão encobertos por espessas cortinas, para que
Lilica não os atravesse, e a Maioria Silenciosa não veja a própria cara de
basbaque. O Polo Norte se derrete, mas no Polo Sul os Pinguins Imperiais seguem
de fraque em solene Congresso.
FLOYD NIX
Congressistas
debatem aos berros sobre a teoria dos exílios fiscais, cada um com uma mão no
bolso, certamente segurando o botão de controle da próxima bomba ecumênica.
Lilica vive com as unhas a namorar as paredes buscando uma imagem perdida.
DOC FUMEX
Talvez seja
a imagem do Coelho Branco. Ele era o xodó da Rainha Ruiva… Xodó tocava a
cornetinha pra cá, tocava a cornetinha pra lá, desenrolava um pergaminho,
e recitava o cardápio de bolos do dia, no chá da rainha… Cada bolo do chá
simbolizava um bolo político no logro da população…
FLOYD NIX
…até que um
bolo no estômago fez as ideias saírem por uma tubulação indesejável. Sem a
linha labial que lhe indicasse a origem, ouve-se risada grotesca de quem se
supõe seja o gato desbotado. De um modo ou de outro, o mundo se perde em
trilhas abandonadas.
DOC FUMEX
Mas o sábio
Ling Fó, acompanhado de seu fiel gato sem botas, em seu laboratório alchímico,
por encomenda real, está descobrindo uma pastilha mágica, que transformará no
estômago da comensal suas boas ideias em pipi de ouro!... As más ideias, porém,
seguirão sendo mesmo de bosta.
FLOYD NIX
Não metam a
mão em cumbucas vazadas. A vazante da seda resultou em rota que escorria para
dentro, até a foz do pavio do circuito imperial. Uma modesta falange crescia no
paralelo, pintando de lilás o lodo de suas células. Na Biblioteca das Sete
Tábuas há um papiro que registra aí o nascedouro do terrorismo.
DOC FUMEX
Justamente
na Biblioteca das Sete Tábuas, um fanático lascou a tábua nos cornos do
Bibliotecário, e se tornou assim Ali Babu, o primeiro terrorista da História. O
Bibliotecário Jorge Bagre teve um enterro concorridíssimo, centenas de milhares
de manifestantes, com cartazes de protesto. O Juiz, severo, condenou Ali
Babu. Como ainda tinha folha corrida, salvo pequenos assaltos, foi
condenado a dois anos, de liberdade condicional, assistido por um psicólogo pra
preparar sua reinserção social.
FLOYD NIX
Como uma
catinga abafa outra, durante algum tempo não se falava em terrorismo, sendo a
voz da vez um estrondo das falhas interpretativas da Lei da Camurça Tingida,
pois a reinserção de Ali Babu foi o leite entornado sobre o óleo das ilusões
refrescantes. Ao deixar o complexo das grades tratou de mudar de rosto e nome,
passando a se chamar Leocádio Trancinha, vindo a comandar uma das falanges
criminosas mais violentas.
DOC FUMEX
Leocádio
Trancinha não sossega, nem se corrige. O Juiz Hades Roboaldo, porém, é duma
dedicação inflexível no resgate dos desajustados sociais. Trancinha terá
de se corrigir à força, porque Hades Roboaldo é um incansável iluminista
defensor dos Direitos Humanos. Após seu oitavo assassinato, de que a vítima foi
o Padre Procópio, as manifestações de protesto, contra a inanidade da Justiça,
foram contrarrestadas pelas borrachadas suasórias, e o ácido Juiz condenou
Trancinha ao exílio na ilha de Paquetá, aos cuidados do psicólogo Levi Damásio,
que criou um sistema progressista de portas e janelas abertas… (e um baseado de
maconha por dia, pro Trança)…
FLOYD NIX
As
reticências da lei, exaltadas, até com os olhos dobravam os fuminhos bem
plantados e colhidos. A jovem Inocência fazia cara de Volúpia, sua irmã mais
despudorada. Levi Damásio defendia que os vegetais ainda foras da lei eram a
tabula rasa das resoluções psíquicas. Tratamento com ele não podia deixar de
lado a sessão fumacê e a boa regressão hipnótica. Se o penitente tem o mundo
dentro de si não há motivo para querer sair de seu recolhimento. Famoso ficou
seu livro: Ermos & Ervas – O lugar do homem no mundo. Leocádio
Trancinha não tardou a rezar por sua cartilha, em especial porque Damásio lhe
dava sempre, como prêmio, como sardinha na boca da foca amestrada, uma noite
bem lavada e passada com uma das meninas que cuidavam do roçado.
DOC FUMEX
Assim, tudo
como antes no governo de Doutor Abranches. Os jornais de amanhã já são
distribuídos hoje, pelo jornaleiro Bocarra, que amanhã vai tirar o
dia para pescar no Rio Pirajá, onde a maré entra quase até a nascente, de
modo que neste rio podes pescar peixes fluviais e marinhos. Tanto que um
tubarão, numa de suas pescarias, arrancou uma perna do Bocarra!… Felizmente era
a perna-de-pau, e Doutor Abranches deu-lhe outra, em jacarandá, lavrada por
Bernini.
FLOYD NIX
Este sempre
foi o xeque-mate da imprensa: como inventar a diário um sem número de
novidades, se o mundo progride por repetição? Bocarra dá risadas tremendas ao
anunciar dia após dia uma nova edição. Dizem que certo dia a venda esgotou tão
rapidamente que ele buscou em seus guardados umas edições anteriores e saiu a
gritar: Extra! Extra!, vendendo tudo ligeirinho, sem que o leitor
percebesse.
DOC FUMEX
Tendo
sangue, porrada, pivete, carnaval, starlette de bumbum de
fora, futebol, senador preso pela polícia no salão durante a sessão no
Congresso, tudo bem, ninguém nota a diferença do jornal de hoje e o do mês
passado. O único problema é que Bocarra sempre procura vender uma edição em que
o Vasco venceu.
FLOYD NIX
Assim como a
notícia caminha também o mundo, engessado de cima abaixo, e o grande regente
dessa turnê será Praxedes, o taxidermista volante, que percorre a Corte dos
Terçóis e o Magistério das Palafitas. Votemos nele para líder de banda, quem
sabe assim a Inocência saia de vez de cena. Caro Doc, deixe a porta entreaberta
ao sair, por favor.
DOC FUMEX
Muito bem,
Floyd, deixo a porta entreaberta e desapareço. Ciao…
9. TUMBA LACRIMOSA
Um dia o inferno olhou para dentro de si e desabou
em choro verborrágico.
TUPÃZINHO DE ALGIBEIRA
FLOYD NIX
Caro Fumex,
li em uma daquelas páginas confinadas ao fundo de gaveta, que houve uma época
em que se fez moda o método de forçar os enfermos da cuca a malharem em ferro
frio. A seu lado era pregada em sofá uma orelha e criada a ilusão de que tudo o
que ele depositasse em seu interior seria decisivo na faxina de sua pobre alma
combalida. Trouxe comigo uma cópia do sofá orelhado, quem sabe assim
livraríamos algumas botas do Inferno.
DOC FUMEX
O sofá,
segundo a Encyclopédia Labrosse, tinha orelhas de burro, ouvia
muito, mas entendia pouco, boca e dentes de cavalo, relinchava e comia o
tapete, mas com pernas e pés de porco, não sabia galopar nem pular pela
janela, pra fugir dos loucos. No soalho havia o bueiro de um profundo poço que
dava direto para o Inferno, mas permanecia trancado a sete chaves. O Inferno
estaria superlotado. Em todo caso, conforme diz Nelson Romildes na Rádio
Lambada, Lugar de Louco é no Céu.
FLOYD NIX
E para lá
iam hordas infladas, crentes que a parvoíce era prima-irmã da loucura. Muitos
entravam pela orelha do burro e se perdiam no trajeto. De volta ao sofá nunca
se soube de um caso. Porém em um papelote na 116ª edição da Labrosse, a título
de fé de erratas, qualquer um podia ler que a ilusão em muitas páginas onde era
citada não passava de um grau mais alto de entropia. A verdade, que sempre
preferiu estar do lado de fora, jamais foi tão irreversível quanto se imaginou.
Daí que o sofá orelhado durante décadas funcionou como um colete salva-vidas.
DOC FUMEX
A Verdade e
a Justizza sempre estão do lado dos grandes batalhões. Por isso o Lening, indo
pro Kremlin em sua limusine Rolls-Royce de seis rodas e cremalheiras, trazia
sempre um ás de espadas forrado no boné, e… intitulou seu jornal de… A
Verdade (Pravda). E… era mesmo… não convém discutir.
FLOYD NIX
Desde então
a verdade oscila entre privação e depravação. A partir daí o mundo foi se
ramificando em cárceres privados do desejo. A indústria da moda abana seu
rabinho e as meninas percorrem as galerias da Ratoeira Central. Os meninos se
entopem de loção barata e acendem a lamparina de seus pequenos vícios. Logo o
sofá orelhado passa a ser vendido nas melhores casas do ramo a preço de
ocasião.
DOC FUMEX
Aproveite,
freguês, esta oferta im-per-dí-vel!!!… O sofá-de-orelhas vem com um alicate de
médio alcance para quebrar galhos de quintal, que podem rasgar fantasias
carnavalescas de… de… Had Hoc!… ou talvez de… Had Dad?… Eis a questão… a ver se
bem me lembro… plec-plec-plec… estalo os dedos.
FLOYD NIX
Fato é que
já não se sabe de que lado fica a realidade. Talvez o freguês mais astuto fosse
aquele que comprasse dois sofás e os dispusesse em sua sala um de frente para o
outro, enlaçados por tripas comunicantes, preparando fuminhos de vidas
paralelas. Quem sabe assim, tendo de um lado Had Hoc e de outro Had Dad, a
cozinha do inferno voltasse a bater suas panelas e uma multidão de grilos
falantes saísse em passeata pelos guetos mais recentes da história.
DOC FUMEX
Justamente
Manuel Fontana, famoso artista conceitual, comprou dois sofás-de-orelhas e
colocou-os um diante do outro, bordejou-os de tubos neon, alguns mapas de
Palermo, colocou uns tufos de algodão, garrafas e esparadrapos, e ganhou o
Primeiro Prêmio da Bienal de Ravenna.
FLOYD NIX
No chão
havia uma placa de metal que fazia menção às partículas entrelaçadas, sugerindo
ao público que poderiam ser manipuladas com o olhar, assim os orelhudos acentos
ganhariam vida e toda a cena se converteria em um ninho de preás do reino.
Ascendino, o vigilante daquela parte da Bienal, anotava em mil papelotes tudo o
que via, dos passantes às variações de humor dos sofás. Ao voltar para casa
tentou montar o quebra-cabeça e dormiu com a cabeça sobre os joelhos na cópia
bege de um daqueles sofás que havia comprado em uma venda de garagem. Ao
acordar não se reconheceu diante do espelho.
DOC FUMEX
Aí está,
Floyd!… A Missão Supina da Arte!… Transformar seus filhos em Homens Novos!…
Abertos para a Cultura, a Sabedoria, a Democracia e os Direitos
Humanos!!! Ascendino não se reconheceu no espelho, porque tinha ascendido
ao estado de graça de… Artista!… Com sua instalação de papelotes, ora sonha em
participar na próxima Bienal de Ravenna, o que anunciou ao Professore Podrecca,
Diretore della Biennale, que o parabenizou. Quando Ascendino deixou seu
gabinete, Professore Podrecca telefonou súbito para o asilo de alienados
Castelo Nunkamaz, e falou com seu diretor, o filantropo visionário, Doktor
Frankenstein, que, pelo conjunto de sua prática e seus tratados sociológicos,
seriamente ameaça ganhar o Prêmio Nobélio!…
FLOYD NIX
Anarquino
Trapiche foi o terceiro dos artistas premiados, com uma surpreendente cabina
telefônica de puro látex, maleável a qualquer um que lhe adentrasse, de onde se
ouvia, oriunda de pontos distintos e permutáveis, vozes distintas que
repetiam Eu preciso falar, Eu prefiro falar, Eu consigo falar. O
júri se confessou confuso ante o embaralhar de promessas e profecias,
característica da Política e da Arte Conceitual. Do lado de fora da Bienal uma
multidão empilhava sofás orelhudos de todas as cores, como prova de que a Arte
deve ser feita por todos.
DOC FUMEX
Sim, a Arte
deve ser feita por todos, a começar no aconchego do lar, os cônjuges devem
fazer arte bilu-bilu, as crianças fazer arte infantil, o papagaio deve fazer
arte oratória, a cozinheira arte culinária, a arrumadeira deve cantar sambas e
marchinhas carnavalescas. E os bombeiros devem praticar acrobacias hidráulicas,
para salvarem nossos museus e seus acervos multi-seculares dos repetidos
incêndios, que se propagam de preferência aos domingos e feriados, devorando
vorazmente a uma velocidade espantosa quadros e mobiliário, incentivados pela
falta de material de prevenção, e talvez também falta d’água, e falta de
catálogo telefônico, pra alguém encontrar o número de telefone do posto de
bombeiros. Teme-se que a Primeira Missa do Brasil, flagrada por Vitor
Meirelles, também tenha sido incendiada, o que põe em cheque a catequização do
Brasil.
FLOYD NIX
O sapo na
lagoa brejeiramente lavava o pé. Preparava-se para ir ver os restos do
incêndio, informado que havia sido que em meio aos destroços escapara incólume
a ossada de Mama Sapa, o mais antigo batráquio escavado pela Companhia Pás de
Antanho. O que o sapo tinha dúvida é se a Arte pode ser refeita por todos ou ao
menos por um. Muitos desastres sociais são querelas incendiárias. Vitimados
pelo lamento excessivo o mundo pouco a pouso se desfaz. De nada adianta salvar
os catálogos telefônicos, porque as linhas de emergência há muito foram
rompidas. O sapo viu fugindo pelo matagal um homem nu, peludo como um bosque
abandonado, gritando olha que lá vem de novo o mesmo varal de escritos
escatológicos de sempre. Quem sabe alguém ainda sonhe com Pasárgada ou a
Terra Santa, porém o sapo sabe bem que não se coaxa no dilúvio.
DOC FUMEX
Sapo
Brejeiro se foi, subindo em dez horas a encosta do Pão de Açúcar, um dos mais
altos do Rio de Janeiro, e justo em cima do Cassino da Urca. Era quase ora
do xou… Brejeiro assestou sua velha luneta, pra escrutar a
janelinha do camarim de Carmen Guirlanda, a saracoteante vedette do samba…
Afinal, Brejeiro era o Senhor do Brejo Fundo, e recebia em casa própria a elite
da saparia, respondendo familiarmente às perguntas mais indiscretas, e
relatando anedotas picantes e aventuras de caçadas às moscas varejeiras… Mas… a
todas essas… Carmen Guirlanda não apareceu na janela.
FLOYD NIX
O que poucos
sabem é que as janelas se tornaram as orelhas preferidas da psicanálise. Assim
mudamos de túmulo, embora a morte permaneça a mesma. Mesmo que se entupa de
monturos o Pajeú de ontem jamais será o Tietê de hoje. Sapo Brejeiro, em sua
última conferência, provou que detritos não fazem autocrítica. Nova falange de
desastres começa a por suas mangas e nabos de fora. A Encyclopédia
Labrosse anuncia que em próxima edição se incluirá um verbete destinado
a explicar a analogia entre sofás e orelhas que levou a pique as ciências da
cuca. Até lá, como dantes, como dantes, todas as revelações são quiméricas,
todas as compilações são originais.
10. A ÚLTIMA QUENTINHA
Um fã
ardoroso e galhofeiro grita do lado de fora do teatro e lá de dentro se ouve a
resposta sem que se saiba o dono:
– Dona
Clotilde, onde estás?
– O oráculo
comeu!
CORDEL VERTIGINOSO
ANTES QUE O BOI DURMA
1. PRESCRIÇÕES DO ACASO
FM | Wilson Fisk, personagem criado em 1967 por
Stan Lee (hoje um verdadeiro Midas da indústria dos super-heróis: gibis,
televisão, cinema) e John Romita Sr., é uma das figuras criminais mais temidas
de todo o universo Marvel. Arqui-inimigo de heróis como Demolidor, Justiceiro e
Homem Aranha. A série Demolidor, para a televisão, teve uma belíssima performance de
Vincent D'Onofrio como Wilson Fisk. Revendo sua biografia, encontramos que à
pedido da esposa, Vanessa, Fisk se desfez de seu império criminoso, as
Indústrias Fisk, tentando porém matar o Homem-Aranha pela última vez antes de
se aposentar. Tornando-se depois, gerente e diretor da HIDRA de Las Vegas. Na
edição da graphic novel Daredevil out (no Brasil ganhou o
título de Demolidor revelado), de Brian Michael Bendis e Alex
Maleev, publicada em 2015, há uma curiosa afirmação da esposa de Fisk, em
jantar com Matt Murdock (Demolidor). Ela confirma haver vendido o prédio da
Torre Fisk para nada menos que Donald Trump, e observa: “Creio que ele mudará o
nome para Trump alguma coisa, mas, seja como for, esta propriedade não terá nem
o nome e nem os negócios dos Fisks”. Como o mundo perdeu a completa noção do
que é realidade ou não, será que esta é a verdadeira origem da Trump
Organization?
ZS | Talvez a Fisk Power seja mesmo a atual Trump
Tower. A realidade virtual está se tornando mais forte que a realidade factual.
Uma se torna, cada vez um espetáculo da outra, em vice-versa simultâneo.
Um fenômeno de espelhismo totêmico coletivo, que explode no século 21, e vai se
adensando cada vez mais…
FM | Ao abrir uma lata de conserva, não importa que dali
saia uma feijoada completa, um caldo de pupilas de ostras ou a coleção
inusitada dos cascos de todos os unicórnios fabulares. Tudo ali está
rigorosamente preparado para manter a data original de sua clausura. E naturalmente
se registra igualmente inconfundível uma data de vencimento da magia. A lata de
conserva foi algo que no passado repugnava a criação artística e hoje se
converteu em seu método preciso de sobrevivência. Trocamos a eternidade pelas
técnicas de durabilidade, cada vez com mais curto prazo de validade. A fraude
totêmica é uma evidência criminal de nosso tempo. Quantos deuses caíram em
desuso simplesmente por não caberem na lata de conserva?
ZS | Caíram pelo menos 783 deuses, dos quais 334
da Grécia. Em nosso livro, verdadeira encyclopédia totêmico-rupestre,
apresentamos, conforme o ladino leitor já terá percebido, bela coleção de
estampas-duplas, levando assim o comprador trinta estampas pelo preço de
quinze!… E quanto mais estampas adquirir, maior será o abatimento que
abiscoitará. Elevando-se indefinidamente este aumento de desconto pela
quantidade de estampas compradas, o colecionador poderá, se quiser, se tornar
um milionário e abrir um museu de estampas na Rua Augusta em São Paulo, ou na
Quinta Avenida em Nova York. Prometemos comparecer à inaugura$ão do Museu,
quando ofereceremos nossos autógrafos aos melhores fregueses. A leitora adepta
de arte fotográfica certamente já terá percebido, entre nossas estampas, uma
substanciosa série de instantâneos em raio x, onde se podem apreciar, além de
inúmeros monumentos, curiosos flagrantes do que se passa no interior, cenas de
cama e mesa, algumas de íntima beatitude, e outras quiçá mais ousadas. Os
mistérios da alma humana postos a nu pela surrealidade totêmico-rupestre…
FM | Este foi o primeiro tratado recolhido por
falta de assinaturas. Na verdade, eram estudos. Fomos vendo de que modo deuses
de distintas cosmogonias suportavam a concorrência. Quantas madres dolorosas
possuíam passaportes falsos quando cruzavam as fronteiras invisíveis do mito.
Ninguém compareceu ao funeral de Salomão. Aos poucos foram rodeando o abismo de
seitas perigosas. Novo horizonte foi forjado para que olhássemos pela janela o
dia começando sempre forçado a apresentar uma oferta nova. Quando enferrujamos
de tal modo os ferrolhos epopeicos, já não cabe a ninguém preservar o próprio
nome. Tornamos inúteis as flautas mágicas e desprezamos o poder do cálice de
lágrimas. As prateleiras do Mercadinho Consagrado passam a ser a nossa referência
existencial.
ZS | Vamos então abrir nossa lata de… conversa,
e jogar na mesa as cartas que estão lá dentro: Castelo, Coroa e Rainha de Copa
e Cozinha. Trata-se de um Tarot Moderno. Num Tarot dos séculos anteriores,
haveria uma Rainha de Ouros, mas jamais uma Rainha de Copa e Cozinha. Porque
antigamente havia o Valete de Copas e a Dama de Cozinha. Por encomenda do Barão
João Batista Drummond, o jogo-do-bicho foi inventado em 1893 pelo mexicano
Manuel Cevada. Tinha de ser Cevada, pra alimentação dos bichos do Jardim
zoológico do Barão e preparação de cerveja pros jogadores. O jogo era pra
levantar verba com uma loteriazinha montada no Zoo, os bilhetes levavam uma
figura cada, da coleção de 25 bichos, e no fim da tarde aparecia no mastro a
bandeirola com a figura do bicho vencedor. Os insondáveis mistérios totêmicos
foram violentamente agitados pelo joguinho, multidões acorreram subitamente ao
Zoo e em 1905 já tinha se alastrado por todo o Brasil com força irresistível, e
jamais pôde ser refreado pela Polícia. Era duma honestidade extraordinária. O
freguês apostava na mesa do boteco uns três tostões com o moleque do bicho, que
vinha de bicicleta recolher as apostas. O recibo, um papelzinho rabiscado. E o
freguês poderia ganhar uma fortuna colossal. No dia seguinte, infalivelmente,
aparecia o moleque do bicho, e dava um embrulho de jornal que continha a
fabulosa fortuna. Não precisava contar. Estava correta e completa até ao último
tostão… A honestidade infalível do Jogo tinha um caráter sagrado que fortalecia
o caráter da população. Infelizmente o jogo-do-bicho foi destruído pelo tráfico
da droga. E a Honestidade, que se abrigava no Jogo-do-Bicho… hoje em dia anda
meio sumida.
FM | O dilema é que passamos do Estado Novo para o
Estado Nada de Novo, e nessa ponte pênsil ao menos um dilema se manteve: o que
fazer com a Rainha de Copa e Cozinha? Até hoje não conta o que ficou para trás,
porque nisto radica um de nossos fracassos vorazes. Nunca soubemos quanto custa
o tempo, pois sempre despertamos ao fim da manhã diante de uma sacolinha com as
moedas de um futuro próximo. O futuro garantido sem limites com o tempo se
desgastou de tal modo que o presente começou a ser tratado como um novo tratado
a ser adequado às conveniências de momento. As massas se liquefizeram por muito
menos, assim como o romantismo e o cérebro infantil. Os mensageiros que dessem
um jeito para que ninguém os pegasse enquanto grafitavam nossa real
descendência nos muros da pátria. A noite repousava em suas pálpebras gastas.
Os talismãs reescreviam o oratório das crenças em todas as esfinges. Quando o
silêncio ousava sussurrar, quem se dignava a ser honesto? Soube que quando
morreu Deus ninguém entrava em acordo acerca do destino de seu cadáver. Eu
então indaguei se alguém chegou a ver o defunto. A morte de Deus é uma
metáfora de nossa desolação, apressou-se a garantir alguém. Ora, pois se é
metafórico o velório, nosso sofrimento não passa de uma noite naufragada em
maus lençóis. O céu que nos proteja, reza a multidão em busca de
reconciliação.
ZS | A Rainha de Copa e Cozinha recebeu de
bandeja a Coroa do Estado Velho e nomeou pra Chefia do Governo o Ministro
Fenecido de que o Gabinete caiu na fossa da orquestra, onde se encontrava
Daniel com seus leões que comem capim pra ver se conseguem dar um futuro melhor
ao passado imperfeito, já que o Daniel é Profeta e nas suas Profecias faz a
História do Futuro, começando seu livro no último capítulo e avançando pra
trás faz a Profecia retrospectiva até chegar ao presente do indicativo (que ele
mostra na folha com o dedo indicador), enquanto nosso Governo do presente… Qual
deles?… O Governo que caiu da jaqueira?… Ou o Governo que subiu, mas… está
sendo posto em dúvida por nosso Tribunal que ora conta com probos Juízes
dispostos a botar todos os Parlamentares no tintureiro. De modo que o presente
da Nação está indo cada vez mais para o futuro do condicional imperfeito do
subjuntivo. Isso quanto ao presente… Mas no passado as coisas não vão melhores,
pro Estado Velho: a Rainha de Copa e Cozinha descobriu algas tubulares e
filamentosas nas barbas do Ministro Fenecido… Algas velhas, todavia de pelo
menos 477 anos, e que oferecem novos índices do valor da inflação, de modo a
melhor avaliar as péssimas condições do Mercado, seja à vista, seja a
prestações.
FM | E o Passado eventualmente delira dizendo a boca
pequena e trêmula que um dia já foi um simulacro de Futuro. Farelos mofados de
pastéis de Belém contam uma história similar, simulada nas melhores provas de
caráter de um povo tão alinhado pelas cartilhas da devassidão maquiada. Os
tratados secretos tiveram reescritos seus títulos, capa, lombada e folha de
rosto, onde antes líamos: Todos são deuses, agora a estratégia é
garantir que Todos são inocentes. Rábulas foram contratados para
argumentar que houve trapaça, ludíbrio e ingratidão. Porém no centro da praça,
os olhos vendados, ocupando o cargo de Dama da Justiça, a Esfinge garante que
houve apenas indesejada revelação. Houve até quem atribuísse à falação
excessiva, por mais que escorreita, a água da moringa servida no Palácio da Voz
Franca, certamente adicionada de grãos de chocalho. Ao claustro também
compareceram condignos representantes dos que nunca souberam de nada e daqueles
estranhos tipos que se recusam a reconhecer sua assinatura nos anais da República.
O que se lamenta é o exílio espontâneo e às pressas de todos os valetes do
baralho das Profecias, rompendo-se assim o acesso do povo à realeza. O
argumento da fuga delata toda a trapaça: nada entre nós é mais imprevisível.
ZS | Segundo cascateia O Blogo,
estaria a notória assecla de Charles Nacerda, Viúva Arruda de Ubatuba,
mesmerizando os Valetes de todos os baralhos e Tarots, a aprontarem greves e
manifas, exigindo melhores salários e ascensão hierárquica. Isto porque os Ases
e Coringas tendem a subrepticiamente se colocarem em posição acima dos Valetes.
Segundo as damas nevropatas do Clube da Brotoeja, os ases são uns vis
sindicalistas mesmerizados pelo presidente Betúlio Bargas, que faz fofocas e
discursinhos chochos por toda parte, até de seu balcão no Teatro das Folias
Brejeiras, de que é assíduo frequentador, para dar decidido apoio à arte
dramática nacional. “Revista de Rebolado não é Arte Teatral!!!”, vocifera
Charles Nacerda na Tevê Brotoeja, e rosna espumando de raiva, rasgando o jornal Última
Zorra, arrotativo comuna melancia disfarçado de progressista, que está
levando o país pirambeira abaixo para implantação do Bolchevismo na América
Latina… Até o famoso escritor existencialista debochadão Janpol Sastre, pra ir
a Cuba incensar o Frinel, passará pelo Rio pra ouriçar a moçada da Força
Festiva (por sinal com belas mocitas) e os estivadores subversivos do Cais do
Porto. “Não estamos à beira do abismo… Já caiiiiimos!!”, brada o Nacerda, e
rola babando pelo chão, de língua de fora e olhos revirados… Entra a Viúva de
Ubatuba e traz-lhe um copo do Vinho Bromato de Sódio.
FM | O caso foi parar na 13ª Delegacia de Maus Hábitos.
Nacerda levou consigo seu fiel escudeiro, Alaúde Chaves, que tomou a algazarra
ao pé da letra e a transformou em um martelo agalopado. A caminho de lá, no
vuco-vuco da boleia, os valetes que não fugiram a tempo reclamaram dos maus
tratos e urravam pela presença de algum representante do Sindicato da Canastra.
Não se sabe como, pelo cair da tarde apareceram umas meninas com certos ângulos
avantajados e uma economia bizarra de roupas. Cantarolavam o Hino Nacional em
ritmo de pagode e não faltaram dois cabos a improvisar tamborim e agogô. “Não é
verdade que o douto Nacerda ocupe seu tempo a decantar as cartas vazadas de
nosso baralho secreto.” – Bradava como se soletrasse uma petição o rábula
Chaves, logo acompanhado pelo coro das meninas: “Chamem o Procastinador, chamem
o Procastinador”. E ele: “Este folguedo deve ser reescrito, pois sua letra está
ficando maior do que as margens da melodia”. O jogo parecia de todo contaminado
e já se podia confiar em nenhuma de suas cartas. Nacerda, como último apelo,
defendeu que a única coisa que não se podia mais acatar era a sinceridade.
Segundo ele, todos se valem desse afamado clichê e assim se introduz em cena um
excesso de confusão que pouco a pouco descaracteriza a própria tragédia.
“Fujamos dos truques explosivos da arte. Aqueles que teimam em ser sinceros,
que busquem novas formas empíricas de denúncia.” Ao dizer a última fala levantou-se
dali e saiu seguido por Alaúde Chaves que cantarolava o refrão de uma modinha
que havia acabado de compor.
ZS | Nacerda na certa teve esta acerba
revelação, da inanidade da sinceridade, ao perceber o triunfo esmagador do
Presidente Trumpo, que muda de ideologia e troca súbito de gravata, de
modo a desconcertar seus parceiros e rivais da Europa, Arábia, China e Lapônia.
O único que o enfrenta é o Kim Jon Tex, chefe hereditário da Xoréia do Norte,
que modestamente declinou a coroa que seus súditos fanáticos ora insistiam em
oferecê-lo, como presente de páscoa. Embora modesto, Kim Jon Tex é duma
ferocidade de tigre de bengala!… Aliás, ele usa uma, de jacarandá. E ora se
prepara, este Tirano Iluminado, a lançar um foguetão atrômbico contra o
Alaska!… Onde a população está atônita!… Mas não creio haja perigo pras
famílias numerosas, que possam sem problemas dispensar um tio velho despótico,
desmiolado e pobretão, ou uma sogra de poleiro que não para de aporrinhar a
família. Nem na missa ela sossega, e o padre passa para o sacristão batina
sacerdotal e crucifixo, e o incentiva a ser um bravo. Certamente, face à
ignorância satisfeita que ostenta a atual juventude, esse padre paradigmático
quer educar o sacristão com disciplina de severidade espartana. Enquanto isso,
no Alaska, as mães não levaram, esta semana, seus filhos à escola maternal.
Outra medida prudencial foi o fechamento das tratorias: o fogo dos churrascos
poderia fazer o foguetão explodir, com consequências incalculáveis. Todos estão
de prontidão, três apitos, motoristas a postos. A prontidão durará enquanto
pender a ameaça do foguetão xoreano. Mas breve se acabará tal situação
desconfortável. Seja que o Kim Jon Tex mude de ideia, ganhe talvez uma gravata
de presente do Presidente Trumpo… Seja então que o foguetão caia no Mar de
Béringue. Se tal acontecer, não haverá, contudo, perigo pros pinguins.
FM | Foi fácil. Mandei buscar na casa de Bravejão Xiita
seu tabuleiro de guerra naval. Agora vamos fazer dele uma tábua Ouija e anotar
os quadrantes onde devemos disparar os traques atômicos. Bravejão é um
mentiroso, espírito salafrário, falsificador de quaresmas, mandou por na caixa
uma Tábua de Esmeralda confeccionada na Esplanada do Samba. Graças a ela todos
os disparos bateriam o catolé. Soube que houvera presentado Kim Jon Tex com uma
tábua dessas. Mas sei reconhecer uma boa madeira, aqui temos a melhor Ouija para
as amarrações necessárias. Água do tabuleiro e que se reconheçam a firma do
alfabeto convocado. Deixemos de lado o Baralho Atormentado. Quero aquelas
cartas de veludo, com as bordas levemente chamuscadas. 40 anos se foram até a
chegada de um novo eclipse. Amanhã cedo o mundo inteiro empretecerá por um
daqueles segundos que desorienta a eternidade. A cada décimo de segundo
corresponderá um porta-aviões. O Trapo Obscuro insiste na brincadeira do copo,
mas não vamos uma vez mais repetir o truque barato da Caneca Divina. Desta vez
temos que implodir a sala de métodos do Departamento Quimérico. Ideal seria
matar dois coelhos afogados na mesma cartola. Chamem o capitão Nemo. Se
deixarmos passar este eclipse só daqui a mais 40 anos. E ninguém merece essa
reprise.
ZS | Um tabuleiro de xadrez de batalha naval!…
Precisamos adaptar as peças: o Rei das abobras Dom Manuel; a Rainha das
abobras, Dona Tareja; o Rei das roxas, Sultão Oberdan; Rainha das roxas,
Odalisca Soraya; bispos das abobras, Nóbrega e Anchieta; bispos das roxas, o
muezim de Istambul e o de Alexandria; cavalos das abobras, Camões e Ruy
Barbosa; camelos das roxas, Saladino Astuto e Rodolfo Valentino; torres das
abobras: de Belém e do Tombo; torres das Roxas: Catedral de Santa Sofia e
Serralho do Sultão; peões das abobras, Ruy Barbosa, Maurício de Nassau, Vasco
da Gama, Cabral, Carmem Miranda, Vanja Orico, Inês de Castro, Tágide. Haverá
ainda um segundo tabuleiro que se coloca na gaveta da mesa onde se joga a
partida. Sendo dois quadrados do tabuleiro de cima furados para que as peças do
tabuleiro da gaveta possam subir e entrar no jogo a qualquer hora; das peças do
tabuleiro inferior constam o submarino do Capitão Nemo, o tesouro dos
Nibelungos, sereia Dolores, nereida Téthis, Netuno, baleia Moby Dick, Lord Jim,
e várias carcaças de galeões espanhóis afundados pelos corsários britânicos.
FM | Vamos explicar bem direito essa questão. Pensemos
em Xianggi. Ah sim, o tradicional jogo conhecido por Xadrez Chinês. O que era
simples passatempo ao chegar a trote moroso nos cercados da dinastia Jurema
tornou-se um mapa de guerra. A dupla de adivinhos Cage & Schoenberg montou
um quiosque de consulta grátis no Battery Park em Noviorqui, cabana favorecida
pelo cenário enevoado que permitia aos eleitos concordarem com quase tudo. Ali
tanto se recuperava os amores perdidos quanto se amealhava uma impensada fortuna.
A devoção democrática produz verdadeiros sacerdotes inacabados, que vendem um
pouco de tudo como precedentes do melhor futuro a que temos direito. Há quem
diga que arte e dinheiro foram finalmente concebidos como siameses bem diante
do Jardim Esperança, erguido como memorial solidário com as vítimas da Aids.
ZS | No fundo, um esbulho dos políticos, o
de nos prometer precedentes dum melhor futuro, que, bem ou mal, virá por si
próprio quer o queiramos ou não. Melhor fariam as Cassandras de nos
conseguir um melhor Passado. Mas os Políticos se esquivam de promessas para o
Passado, porque lá eles não poderiam mais nos enganar. Este Passado esburacado
e sempre faltando pedaços, nós já o conhecemos, e continuamos sem saber se foi
melhor como foi, ou se, ao concertá-lo, não estaremos preparando um presente
bem mais desastroso do que ora temos. Passado e Futuro são duas abobras do
Presente que desaparecem no Nunca Mais.
FM | O mistério das abobras desaparecidas não se
desvendará tão facilmente.
ZS | As Duas Abobras são um mystério
totêmico-teológico: são as duas torres da fachada das grandes Cathedrais
medievais, elas querem ostentar as suas Duas Abobras… São as Duas Tetas da
Fé, possantes… que a Notre Dame de Paris ostenta com a confiança de imponente Dama
que conhece o seu Poder. E porque, pras duas Tetas, um só Sineiro… um gigante
corcunda?… Victor Hugo, gênio tocado pela surrealidade… tinha acesso ao Oculto.
Os Russos, dada sua herança cultural alexandrina, adoram as tetas douradas… As
Tetas da Dama Presente, que desaparecem no Passado e no Futuro, pra nunca mais…
FM | Duas abobras foram dadas como sumidas e logo se
descobriu cruzando as ruas de Roma um poeta calçado nelas. O pastor Clemente
Reique dele se aproximou, como se o reconhecesse, e disse: – Ah o senhor
é o poeta dos amores submarinos… E ele, disfarçando a voz, retorquiu:
– Desde que cruzei o Riachão do Atlântico devo minha humanidade ao
Conde, de maneira que aqui eu sou apenas uma Brecha Enorme que presta atenção
em tudo. E trouxe comigo meu tabuleiro com fundo falso. Querendo jogar comigo
temos ali um lugar apropriado. Tomaram a rota em silêncio, Clemente e Conde
Murilo. Um silêncio repleto de estratégias, incendiado por jogadas planejadas e
restos de truques desolados. A verdade veio a pique ao se descobrir o inferno
que era a convivência de muitas daquelas peças. Como arejar o espinhaço das
damas e convencer as torres a se deixarem escalar? Como disfarçar em bosque o
lodaçal por onde trotavam os Nibelungos? Gut Gotten! Ouviu-se na praça o espatifar-se
de uma voz que vinha de uma das torres do Forte dos Juízos Tombados. – A
todo galope, a todo galope, mudemos a posição de algumas peças, antes que o
destino releve suas convicções. O Conde deixou abater um de seus peões, o
já desfigurado Nassau, antes que Clemente percebesse o que pretendia fazer com
a carcaça do Pérola Negra.
2. A CORTINA CARECA
ZUCA SARDAN
No
blog Megafone, de Raul Milliet, saíram hoje dois artigos, A
dança dos deuses, sobre Maradona, com a foto de um enorme painel do Zuca
Sardan para a Capela Sixtina, O milagre do gol… Papa Ponchito,
torcedor argentino, é favorável à sua colocação na Capela, mas conta com maciça
oposição do Conselho dos Cardeais. Raul Milliet ora pediu-me para ajudar a
epalhar a notícia… no que aliás Fidel Castro e Lenine se adiantaram, por
escolas e hospitais, inclusive no Lyceo Pytanga, onde contaram com o apoio do
Reitor Finel.
DOC FLOYD
Certamente o
grande mequetrefe do futebol mundial havia descolado um tablete prensado de bom
pó com um dos coroinhas da Lapela Sixtina. Sempre te vi mais a fim do Milagre
do Goliardo Borges, de quem o Papa Ponchito deveria estar mais enrabichado,
graças à tecelagem familiar onde são tecidas as tramas mais rocambólicas da
sociedade argentina.
ZUCA SARDAN
Exato…
Buenos Aires, Roma e Firenze têm as mesmas maquiavélicas obsessões…
DOC FLOYD
Em meio a
isso tudo, só nós dois seguimos fazendo gols de placa, sem comprar as placas de
gol.
ZUCA SARDAN
Pois é… Já
furamos as redes das traves dos mais variados estádios… Mas… os juízes anulam,
e os cartolas fingem que não viram. E nosso clube então… Lanterna de Sokrates,
segue esquecido na 3ª divisão… competindo com times de loucos, drogados e
psycopathas…
DOC FLOYD
Não
dividimos mais nada, é a solução (de bicarbonato com raspa da pedra pomo) para
a reconfiguração do mundo, conosco somente escaparão as aves do céu e os
umbigos cristalinos do mico coração de leão…
ZUCA SARDAN
O Monopólio
da Revolução pra Lanterna de Sokrates! Protestos de Bilula, e dos Esquerdistas
Rebulicionários.
DOC FLOYD
Nas feiras
do tipo TudoTem chove bugigangas rebulicionárias de toda cor e forma, inclusive
um sem-número de versões falsas das lanternas socráticas. Dizem que em uma
delas foi inserido um feto do Trilula, daí que as vendas tenham disparado.
ZUCA SARDAN
Marquês de
Sade engrossou o caldo.
DOC FLOYD
Este há
muito engrossa o caldo de caridade com o próprio esperma e come bastante
beterraba para escrever com a urina vermelha.
ZUCA SARDAN
Baixou o
santo…
DOC FLOYD
Outro dia
ele mesmo me disse que se baixasse alguma santa daria uns traços nela, o que no
dizer sadiano vai dar direto na rua do estupro…
ZUCA SARDAN
Realmente o
Marquês não sossega… Está… solto!…
DOC FLOYD
Bretão
Solúvel nem de longe imaginava a tolice de filiar o Marquês de Saldão ao clube
do amor, da poesia e da liberdade. Já pensou na refestança no Bar de Vênus?
ZUCA SARDAN
Ninguém sabe
porque o Bretão resolveu colocar o psicopata no ápice do Surrealismo… a não ser
para sacanear o burguês… Só Buñuel e Salvador souberam tirar humor do sucedido…
no L’age d’or…
DOC FLOYD
Os dois
espanhóis fizeram das tripas de Bretão o coração de seu humor lancinante e
Buñuel com Lorca vestidos de freiras escrachando dentro de um ônibus em Madri
eram tudo o que Bretão jamais conseguiu ser…
ZUCA SARDAN
Na tela,
retângulo preto, com letras em arabescos - - - FIN
DOC FLOYD
Depois a
fita ficava correndo na maquininha até o fim, despregava do carretel, o filme caía
no chão, e se perdia por entre as pernas da multidão…
MULTIDÃO
BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!
DOC FLOYD
Manhã
seguinte, cedinho, a turma da limpeza acha brincos, camisinhas e amendoins no
carpete…
ZUCA SARDAN
Acho que
agora, definitivamente, acabou.
DOC FLOYD
Por um
instante, nada acaba. O próprio fim antecede o princípio. Tenho remoído sobre
essas peripécias do tempo por conta do romance que rascunho…
Exato!!! O
próprio fim antecede o princípio!… A Serpente Ouroboros…
DOC FLOYD
O princípio
da tecnologia de reversão. O futuro dando pistas ao presente.
ZUCA SARDAN
Bravoooooo…
bela tirada!…
DOC FLOYD
O que tira
atira na tira atirada do tiro.
O gato
engoliu a língua três vezes.
A torta de
morango não tarda a esfriar.
ZUCA SARDAN
O gato tem
sete línguas … Mas só mostra uma cada dia.
DOC FLOYD
Quando a
gata Fabiana pariu surrupiou as sapatilhas de Noé e nelas aninhou seus 7
gatinhos.
ZUCA SARDAN
Passas do
Marquês de Sade pro Walt Disney com a maior facilidade!…
DOC FLOYD
Qual nada!
Esses 7 bichanos são do espólio do Nelson Quaresma, que certa noite invadiu o
Canil Central para roubar passas.
ZUCA SARDAN
Nelson
Quaresma morreu das mordidas dos molossos do Canil. A Morte às vezes se
apressa, só pega a foice e chega pelada pra ceifar o freguês.
DOC FLOYD
Daqui não
passarás, disse a
ceifeira. Mas o escarcéu já estava no ar. A bicharada vinha de todo lado.
Quaresma
logo pensou em nova peça: O vestido de noiva de dona abelha.
ZUCA SARDAN
Dona Abelha
vai casar com um rapaz distinto, mas muito zangão, com asas de brim não
encolhe.
DOC FLOYD
Zangão
Zangadão não pensou duas vezes, ia por dona abelha nos eixos e vender mel a
valer, uma Vale do Mel Doce ele montaria…
ZUCA SARDAN
Nenhuma
espécie de atividade insetífera é mais alimentícia do que o mel, e nada
sobrevive de tão valioso dum passado desjejum como uma chave para a
reconstituição da História culinária de uma Nação.
DOC FLOYD
O mel e a
seda foram os dois rios caudalosos da riqueza humana, até a chegada da prata,
seguida pelo silício. Hoje o planeta violentamente se satisfaz com soja e boi.
No Grande Mercado não há menor cotação que a das almas injuriadas…
ZUCA SARDAN
BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!!
Palmas ensandecidas da platéia em delírio, cai com estrondoso baque a…
CORTINA
KATAPLAAAAFFFFFFFFFFFFFF
!!!
DOC FLOYD
Essa cortina
está uma molengona, a toda hora caindo de madura, dura nada, mal dura, a mais
pura fantasia… Cai a nuvem repleta de chuva, cai a pena do falcão peregrino, já
se sabe, tudo cai, porém nada como a cortina que de tanto cair agora é a prima
dona.
ZUCA SARDAN
O rádio
possante de mogno ressoa na voz do Licenciado Astrogildo, perdigotoso e
apocalíptico:
Prezadas
Cenouras y Cabalheros de nossa dialética plateia!…
PLATEIA
(dança de
cossacos) Racatraca - Racatraca-Traca-Traca!!! …
ASTROGILDO
Bravooooo!!!
Belíssima quadrilha libanesa!!! Com vossa estrepitosa expansão de explosivo
entusiasmo comovestes nossa sensível Cortina que caiu de frêmita emoção!… os
autores do capolavoro e o diretor de nossa equipe internacional, emotivos, com
mal contidas lágrimas borborejando aos olhos, vos agradecemos… oh, Filhos da
Pátria, Pai dos Heróis e Mães dos Necessitados!… Gratíssimos pelo exorbitante
desagravo, a apoio à nossa equipe!
Sossega,
bode fanho!!! Nós aplaudimos foi a comovente queda de nossa seduzida e
abandonada Cortina…
Pela enésima
vez cai a cortina careca, decidida a por fim naquela conversa mole sem beira ou
esteira… Ao que tudo indica, dessa vez ela não mais se deixa erguer, grudou no
chão com todas as suas forças. O fim agora remarca seu princípio. As chances
são mínimas de que o tempo faça a nossa prima-dona recuperar sua aveludada
imponência.
PLATEIA
Fúu, fora!
Queremos a volta da cortina!
3. JOGRAIS DO PURGATÓRIO
DOC FLOYD
As carapuças
eram ajustadas a pedido do Marquês e delas cuidava Esmeralda, a moçoila
dourada, cedida ao Purgatório por Frei Feijão após a morte do Corcunda da
Lapela Sixtina. Além de boa costura Esmeralda as deixava com um laço hábil de
onde cabeça alguma poderia arrepender-se e escapar...
FREI FEIJÃO
O Marquês de
Sales é um vil sálico-porquista. Fez das piores num Fabulário
Porquinhol, quando escapei por pouco de ser aprisionado no seu sinistro
castelo, em que organizava satânicas orgias… Acabou, por fim, após 777
infâmias, aprisionado na Bastilha.
DOC FLOYD
Em velhos
papiros e rolos nada higiênicos foi lavrada a obra que é o espelho antecipado
de nosso mundo de prevaricações. Como a época rangia limitada pelos cartéis da
nobreza, não deram por conta que as suas infâmias eram uma certeira previsão do
século XX, tão escanchado no próprio ego que não atinou para o caudal de
reiterações de suas novenas profanas. E agora este XXI que é o próprio
renascimento da Bastilha a céu aberto.
FREI FEIJÃO
As atuais
porcalhadas desenfreadas não diminuem a importância dos pioneiros esbodeamentos
do Marquês de Sales, que ele legou em bela coleção encadernada, de herança
espiritual pra pornocracia industrializada do Século XXI, diligentemente
atuante na televisão, já na programação vespertina, sabiamente misturada com
números esportivos, culinários, infantis, sociais, políticos e culturais, e
noticiário pormenorizado de crimes variados, de que as cenas sangrentas são
apreciado quitute para atrair a atração do programa de permeio a filmes de
pornografia mais primária, destinada às classes mais desfavorecidas.
SAPO CANAL
Uma noite as
quatro Cassandras fizeram seguidas funções na pracinha do Majestic. Quadro
cadeiras a toda prova e o mundaréu se coçando com os relatos de toda sorte de
luxúria. Uma noite de martírios, açoites e banhos dourados. Uma das Cassandras,
mais afoita, foi buscar na plateia a brilhosa pataca de seus gozos. Com a sua
bundona de quermesse engolia todos os varões e gargalhava como uma possessa. A
Cassandra mais jovem dava lições de como o prazer pode ser constante. Enquanto
as duas outras recolhiam as roupas do público e improvisavam um coral.
DUENHA
DOLORES
Ay!… que
belhessa…
ASTROGILDO
Es berdad,
Duenha Dolores…
SAPO CANAL
E choravam
de rir enquanto regiam a cantoria.
CORAL
Se atreva
seu bacurau a comer no meu cercado
Logo um
chute na pança o fará perder a fome
Não venha
cantar de galo nas dobras de meu terreiro
Ou seus
bagos no jantar servirei a qualquer um
ASTROGILDO
[para Duenha Dolores]
Bagos, que lo sepa, son los del toro muerto en arena, que se los comen
después…
DUENHA DOLORES
¿Después… de qué, Don Astrogildo?…
ASTROGILDO
Después de muerto, por supuesto, Duenha Dolores…
DUENHA DOLORES
Pero ahora me ha dado ganas de probar sus huevones, aunque sean fuera
del cuerpo…
ASTROGILDO
No me venga con eso, que la Muerte anda por ahí, en su caballo pateando
la tierra.
SAPO CANAL
A terra
arada pela Morte tem um gosto sofismático, parece ser um pasto cozinhado e
temperado com sutilezas de espíritos decaídos. Dizem que os defensores da terra
plana são o melhor adubo para as fanfarras dessa assombrosa senhora.
MARQUÊS
[finalmente,
porém apenas a silhueta desenhada em uma parede do canto] Ah mas quanto
espero um dia enrabar essa donzela, morta ou viva, não me importa, desde que
seja a dona Morte.
ASTROGILDO
Por piedade,
Doc Floyd, este guinhol está sem cabo nem rabo, nem mais sequer cortina, já
despedaçada no guinhol anterior… sem pé, nem cabeça, nem chifres, só lhe
sobraram quiçá, os bagos, se não forem os do touro de Madrid... morto na arena,
como um bravo…
DUENHA
DOLORES
Nem os
bagos, Dom Astrogildo, do touro sobraram, que foram comidos no banquete do
Alcaide Bermudez de Madrid.
DOC FLOYD
As coisas no
Purgatório costumam ser assim, a eternidade a banho-maria, volte um século
depois e ainda não está no ponto, há sempre alguém cozinhando o pato da
memória. Tampouco no Purgatório não tem cortina, pois as coisas não possuem
princípio ou fim, só esse esqueleto do abismo, sustentado em uma moral
esfarinhada que amolece o tutano de qualquer um. Por isto a Morte passa ao
largo, vez que outra observa se alguma alma veio parar aqui por engano. Talvez
por isto o Marquês tenha escolhido como palco de ensaio de suas firulas
dramáticas. Outra coisa que no Purgatório não acontece nunca: a desistência da
morada, a entrega do cargo, o arrependimento. Quem vem dar aqui fica como um
peru em círculo de giz. Ninguém se livra do Purgatório.
FREI FEIJÃO
Marquês de
Sade só melhorou ao fim da vida, confinado ao Hospício de Charenton, onde o
Diretor, gentilíssimo, insistia a que fizesse teatro pros seus inquilinos
dementes… num palquinho improvisado do fundo do salão de refeições. O Marquês,
malgrado já estar meio gagá e alquebrado por sua vida quase toda passada em
variadas masmorras… tocado pela gentileza do Diretor, aceitou comovido… e fez
umas pecinhas alegres e piedosas, que foram rejeitadas pela Posteridade, sempre
ávida de suas porcalhadas, elevadas à categoria de Obras Primas da Humanidade.
O DIRETOR
Mesmo com a
morte do Marquês nossos hóspedes seguem compondo seus jograis, algumas
picarescas histórias do baú de seus desejos reprimidos. Anselmo Lacarte chegou
aqui imerso em grande crise mental, lacrado em seu universo íntimo, mal abria a
boca para alimento e medicação. O Marquês lhe deu um papel de destaque como a
cortina de suas pecinhas. Anselmo então subia e baixava com esmero, marcando o
princípio e o fim das porcalhadas.
4. JUREMA E O TESÃO AMALDIÇOADO
A noite já tinha entrado nos estratos mais bem forrados da goiabeira
divina quando de lá do quintal saltaram dois mancos presumindo que a escuridão
e uma velha lamparina da chama gasta poderiam dar ao mundo a miragem de novas
divindades.
MANCO TONEL
Ando colando
em cartas vulcânicas as figuras que darão pelo fim, eventual, do encadeamento
lógico da espécie humana.
SÁBIO DETÔKA
O
encadeamento lógico é o que levará a espécie humana à sua extinção. Sua única
chance é enrolar o encadeamento no pé-de-manga, e ir saindo de mansinho…
MANCO TONEL
Mas aí tem
um dilema eterno: o pé-de-manga insiste em não sair do lugar, argumenta que
ficou imenso, e cresce cada vez mais a devorar a sombra da planície das ilusões
inteira…
SÁBIO DETÔKA
Trata-se de
um Pé-de-Manga-Sagrado… Mais uma vez, o Concerto das Nações tira o chapéu para
o Brasil.
MANCO TONEL
Isto se deve
em grande parte porque abriram a caixa de consertos das nações e deram de cara
com a imensidão de um vazio silencioso.
SÁBIO DETÔKA
A caixa de
consertos estava quebrada.
MANCO TONEL
Tão quebrada
e ao parecer irremediável que logo organizaram um concerto com instrumentos
dispersos, a ver se era possível reunir uns tostões para o conserto.
SÁBIO DETÔKA
Apitos e
reco-recos…
MANCO TONEL
Mas nada,
público esvaziado, instrumentos desafinados, mais parecia a orquestra do
Fellini, não juntamos um trocado que seja.
SÁBIO DETÔKA
É que esse
público é acadêmico, só quer Guerra-Peixe, o Guarany, e… o Wagner…
MANCO TONEL
Já tratei de
reenviar o vídeo para o Xu-Manfú, que não apôs a menor declaração de recibo ou
desgosto. Nem conserto ou concerto, os peixes estão em guerra na panela e os
guaranis traçaram o Wagner no almoço, com pirão de valquírias e a velha e boa
água de fogo.
SÁBIO DETÔKA
Agora então…
Só resta embarcar no trenzinho caipira e subir a Serra da Boa Esperança.
MANCO TONEL
Dizem que
Dona Esperanza perdeu a serra na bocarra de uma Boa no pantanal. Sequer foi à
festança em Currais Novos do Céu.
SÁBIO DETÔKA
Isso
acontece com as melhores famílias
MANCO TONEL
As melhores
famílias são hoje um outdoor na entrada do Grande Shopping Barnabé, mas ah como
doem…
SÁBIO DETÔKA
Quando abre
a porta do Saldo Global Começa a Grande Porrada Familiar.
MANCO TONEL
Tailandeses
e filipinos no saldão da semana, porcos e pérolas embaralhando as tábuas da
lei.
SÁBIO DETÔKA
E o turco
vendendo tapetes gombra ké baratinho, freguês…
MANCO TONEL
O turco
faria melhor do que insistir em ser videomaker. Mas a quem deleita chá de pó de
osso, que trate de raspar o seu bem raspadinho.
SÁBIO DETÔKA
O Selim
insiste em querer fazer um zuper-8 do Homem Vapor… não precisa contratar ator
nenhum. É só filmar a chaleira.
MANCO TONEL
Pois de
tanto falarmos nele o Homem-Vapor acaba de chiar na panela de pressão, e me
escreveu dizendo haver perdido o vídeo turco
SÁBIO DETÔKA
O
Homem-Vapor é de uma astúcia oriental, e de uma periculosidade de Xu-Manfú … Há
sempre um 2° pensamento oculto em suas amáveis crípticas declarações… Xu-Manfú
certamente está fumando seu ópio… e quer que tudo o mais vá pro Inferno… Tenha
Confúcius seus ancestrais, Buda seu Nirvana… Lao-Tse seu Tao, e Mao-Tse-Tung
seu trator… Que lá importa?… Contem eles suas marolas pros parvos… Tenha o Bebê
suas Tetas… Xu-Manfú tem o seu Ópio…
MANCO TONEL
E fuma como
um jargão caído do pé. Tombando nas raias da impunidade, atravessa os séculos
com a mesma pá, cavando o que se agigante contra ele.
SÁBIO DETÔKA
O segredo do
Xu-Manfú é que a força do tráfico tem o apoio místico da galera do fubá.
O meu fubá ao sol
eu deixei para secar.
A Jurema chegou cedo
e lavou toda a varanda.
O fubá que estava seco
aprendeu logo a nadar.
A Jurema encabulada
saltou bem na minha cama.
Embevecidos com a melancólica voz do prado, os dois troca-leros nem
deram por conta, o Homem-Vapor se disfarçou em Surco Talim, pirateou uma
nave-mãe nos porões da área 51 e dizem que foi repaginar a Ursa-Maioral…
SÁBIO DETÔKA
Homem-Vapor
fala muito, mas o que gosta é de estar juntinho da jornalista do Braz-Ximbum,
uma bonequinha de molas…
MANCO TONEL
Telma
Suspíria é o nome dela, e pula e pula, como se as verdadeiras molas as levasse
em seu íntimo, eu a conheci no México há mais de uma década, e se riu quando
indaguei se ela havia engolido um canguru. Com seu olhar magnético me disse: "Eu
sou uma rã".
SÁBIO DETÔKA
Cuidado com
a Kiki Moleng… se facilitas… te dá um nó-cego nos cordões do sapato, e te passa
um coquetel do Rei Coreano…
MANCO TONEL
Pois foi em
outra festa, bem pra lá do ChiBungai, que conheci o então famoso coquetel do Rei
Coreano, apontado por três revistas especializadas como o mais atrativo dos
alucinógenos líquidos… Lembro que as paredes da festança pareciam os biscoitos
Fraterno, e dei de saboreá-las como a última quimera.
SÁBIO DETÔKA
Xu-Manfú e
Rei Jonjonga da Coréia cada um tem seu Dadá: Xu-Manfú o seu ópio e Rei Jonjonga
os seus foguetões
MANCO TONEL
Decerto os
dois se matariam mil vezes seguidas, empanturrando a barriga da Grande Baleia
devorada por Jonas, o Pacífico. Primeiro exercício de levitação: tornar o
desejo mais pesado que o objeto.
SÁBIO DETÔKA
Perdemos o
salpico na esteira das ilusões, onde os pesos excessivos tinham a última chance
de levitarem e as cordas que nos prendem ao mundo poderiam esticar até o
desenlace entre sonho e vigília. Os querubins sopravam as flautas uns dos
outros. As luzes coruscantes cobriam de efeitos as células que sucessivamente
germinavam no umbigo de todas as divas. Quem dera um pomar para reciclar os
desejos. Quem dera uma torta onde hibernar as abelhas. Perdemos tudo – ainda
grita o Padre Ezequiel, e o tesão amaldiçoado completa o ciclo das tensões.
MANCO TONEL
De tesão
amaldiçoado, melhor dar uma pausa no andor, e ir pedir uma benção do Padre, e
outra da Mãe de Santo.
Padre Ezequiel me disse que atualmente a fé não anda movendo nem
montinho de areia e que no sótão da capela tem uma caixa de milagres que deve
estar comida de bolor. Jararuna, a mãe de todos, lá em seu terreiro, me
tranquilizou afirmando que de maldição ela entende e que dará um jeito no
tesão.
EZEQUIEL
Aí está, o
mundo de hoje… a continuar assim, presto virá o Armagedão…
MANCO TONEL
E as tropas
de Arcanjos, depois de destroçar os pilantras de Belzebú, voarão pra Terra do
Fogo, pra comer as Gigantas Patagonas nas escarpas dos Andes…
Para onde quer que se mande o cachimbo o tempo fumará seus bigodes, não
importam os calos do Tinhoso ou as alpargatas do mocreia, a selva será sempre
selvagem dentro dos olhos do lince, e o guerreiro mantém a guarda mesmo em
repouso. Credo, assim o cajado se parte e a conversa destripa a língua. Dali…
Jurema foi se confessar com Padre Ezequiel. Manco Tonel nunca mais se viu.
JUREMA
Ai, meu
santo Padre Ezequiel, que faço eu pra obter o perdão divino?…
EZEQUIEL
Pois,
Jurema, só com umas lambadas…
JUREMA
Lambadas
vossas, meu Padre?…
EZEQUIEL
Mais
eficazes serão as lambadas do Sineiro Corcunda, com a corda do sino.
JUREMA
Mas as
vizinhas vão ouvir…
EZEQUIEL
Já estão
acostumadas…
Jurema ainda indagou se não lhe cabiam melhor umas lambidas, assim os pecados
tomavam gosto, se empanturravam e quem sabe até naufragariam na barca dos
degredos, ah Padre, deixa…
EZEQUIEL
Lambidas só
no Purga, quando Catão de Utica está distraído…
JUREMA
Ai que eu
beijo a pulga dele toda…
O PÚBLICO
Beija,
beija, beija…
CORTINA
O que eu
faço agora? Caio?
Bem poderia ser o fim do psicodrama, não fosse a dúvida corroer a alma
acetinada da cortina. Um lapso e os Manuscritos de Tália soltam a sinopse de
sua próxima comédia: Brancaleone
e as vicissitudes do Dynamo Astral, sempre um patrocínio das Casas Prometeu
e a benção do Papa Ponchito. E à dica culinária desta noite, atenção: Mistura o
pó da inquietude em um cálice do talo da fina flor de lótus da pradaria...
Ajuda o destino a tomar as mais sábias decisões.
MANCO TONEL
Como já
disse o homem Fuzed das brasileiras noites: “Os dias que passam, estes
passarão, mas, as noites, as noites que passam, ah elas também passarão.” Mas
quem passou foi ele.
SÁBIO DETÔKA
O Ibralim se
foi?… Uma celebridade dos 50s, surpreendeu-me a qualidade desta tirada!… A sua
Coluna, agora fiquei desconfiado… talvez tivesse uma graça oculta… que na
mocidade eu não saquei. Mas se ele escrevesse um livrinho inteligente, sua
Coluna seria cancelada. Se escreveu, ficou em manuscrito, enterrado no quintal.
MANCO TONEL
Pois é, o
Ibrahim não teria o sucesso que teve, na época, se não tivesse se decidido a
ser o bobo da corte, resta a dúvida, agora que ele passou, como as suas noites,
se ele era bobo mesmo ou se sagazmente criou o notável personagem…
SÁBIO DETÔKA
O Ibralim
Fuzed é um curioso caso, meio inspirado no Frunando Fussoa. Todavia, enquanto o
Frunando criou seus heterônimos, o Ibralim escolheu ser o seu próprio
heteronômio. Um processo singularíssimo, que escapou à argúcia lacaniana do
Jório Borbes.
MANCO TONEL
Fuzed,
também conhecido como Ibr-Fuzarca, recortava fotos suas em cena e as colava em
paisagens de vários países, ruas, praças, na velha Enciclopédia Conhecer.
Assim o conheci.
SÁBIO DETÔKA
Fuzed
tentava promover seu irmão Zefud, porém Zefud não ia pra frente nem pra trás.
Zefud era irmão, mas não tinha o jeitinho do Fuzed, de empacotar dondocas finas
com grazzolas velhas frouxas, mas ora, se as dondocas
gostavam, tudo bem…
MANCO TONEL
Pois logo
dali deu a entender Ibr-Fuzarka que se mudara, por algum tempo… quando a rigor
se tornou invisível e visitava as peruas chiques com seu colar de contas e elas
em suas mãos suavam o perfume de suas ânsias.
SÁBIO DETÔKA
Assim, pois,
desvendado o mistério: Fuzed é o Homem-Vapor que apavora os cinemas dos
subúrbios da cidade!… O pavor do Homem-Vapor é contagiante e a inquietação
ganhou as manchetes dos jornais, de sucesso em sucesso, foi avançando o filme
irresistivelmente em direção ao centro da Metrópole. E Zefud foi erroneamente
identificado com o Homem-Vapor. O Destino já estava escrito em seu próprio
nome!… Recônditas são as sendas da Fatalidade…
MANCO TONEL
Não resta
dúvida. Recônditas são as sendas da Fatalidade…
O PÚBLICO
Ohh-oooooh-oh
A CORTINA
Agora é o
jeito. Caí, em definitivo. Este foi meu último suspiro.
5. O LENDÁRIO COSMONAUTA FRECHE GORDO
Freche Gordo me disse certa vez ter tomado todas
as precauções para que a última viagem se desse
sem conflitos, pregando no leme um piloto automático
que encontrou perambulando pela Sucataria Pajeú.
Agora sim, poderia tomar todas as cervejas do boteco.
De tão sábio, Freche Gordo é o melhor piloto do mundo,
conversando e bebendo no barzinho da cabine.
Nesse giramundo florido de espumas douradas
Nosso ébrio cosmonauta chegou a pilotar quatro naus
ao mesmo tempo, confirmando a teoria
de Plasmo Alencart da irrefutável existência
de vidas paralelas, além do mar Caribe…
Freche decerto tem vidas paralelas dele mesmo.
Uma mulher em cada continente, e um apetite
voraz para o drama conjugal com cada uma.
E tais cenas se desdobram por afinidades em outras
tantas ocorridas em cada porto, em especial quando
essas vidas paralelas se encontram pelas tavernas.
Para cada uma das esposas Fercho confessa:
És tu, minha rainha, meu presunto, meu pé de
manacá,
a única mulher que desencarde a razão de minha
vida…
E em uma nuvem sorrateira se dissipam as ilusões
da coitada, quando pelos corredores de seu castelo
de sonhos vê passar outras tantas que embora
com ela se pareçam são mais do que suas sombras vãs.
E o que diz então Freche Gordo para a desditosa?
Só tu, querida, existes para mim, pois essas
outras tantas… são meras sombras que passam…
E tantas outras passam que por mais que a jovem
plebeia queira entregar-se à crença de um amor sem fim
algo em seu espírito titubeia e o desencanto brada:
Oh Freche, não me enganes, não suporto mais esta
vida!
E logo rebate o amante contumaz: Não te tortures, Manon,
por umas borboletas efêmeras que se esvaem na brisa
da tarde e no dia seguinte são apenas pó ao vento…
E Beltrana Farnica, agora sabemos seu nome, insiste:
Oh Freche, a tua borboleta azul já não sabe o que
fazer
com tantas espigas falseando o meu desejo, tantos
ventos
levando o cardume de meus ardores por escuras
lagoas.
E de seus lábios salpicados de encantos Fercho desfere:
Mi mosca azul… ¡Eres tú, mi
amor, de alas de oro y granada!
E assim tão desfeita em aflições nossa bailarina conjugal
pela manhã cedo arruma a cama desfeita por outras damas.
CODA AUTOMÁTICA
FLOYD
Sugestão: O
Zuca apronta um desenho, eu aqui lhe inspiro um fundo e uns badulaques…
ZUCA
Muy bien, Floyd, Grazzzzie pelo convite!… Vou já começar a aprontar. Abbrazzzzzi / zzzzzzZuca
FLOYD
Magnífico.
Aí eu mando tudo para a Meg Triplóvica.
ZUCA
Wunderbar…
Já apontei o lápis e afiei o bico da pena de gralha… agora só falta achar o
pincenez… E que mais?… plek-plek-plek!… Ah!, sim … … o papel.
FLOYD
Experimenta
sem papel, ah ah ah…
ZUCA
Sem papel é
mais fácil de fazer, caso você aceite um desenho falado. Talvez uma novidade,
um livro com ilustrações faladas. Apenas, não poderíamos deixar o Doutor Xarkor
saber, senão, o prox. n° da Pharol… será inteiramente zpholado…
mais difícil de despachar pelo apparat.
FLOYD
Do retrato
falhado ao desenho falado, que belo percurso… E deixamos Doutor Xarkot no
Museu. Ele jamais ousaria mexer conosco, sempre foi um grande barbaças
solene e trapalhão
ZUCA
Hoje espero
sem falta te passar o desenho desemoldurado. Para mim é mais difícil tirar a
moldura do que fazer o desenho. A moldura para sair, arranca metade do desenho.
Então o desenho desemoldurado tem de ser falado, um curto texto explicando o
que ficou faltando. Ou seja, um novo tipo de recensão: a… RECENSÃO RECOSTITUINTE.
FLOYD
Por vezes
acontece, se tiras a moldura do desenho, tudo o mais cai por terra, e a terra
não costuma ser breve nem leve. Dizem que a história tem um peso insustentável,
e que o passado se agarra a cada um de nós como certos alimentos no céu da boca.
Dito isto, que venha também a moldura, pois aqui eu posso sempre fazer uma bela
festa.
ZUCA
Poizé… Tive
um trabalho danado pra tirar a moldura, e agora dizes que posso mandar com a
moldura… Já não sei se vou ou se fico, já não si se fico ou se vou…
FLOYD
Ao final da
louça, o importante é o desenho e não o atelier. A obra recomeça sempre do
ponto em que a deixamos.
ZUCA
Agora… é
troppo tarde. Entrei numa fúria louca contra a moldura, passei-lhe o serrote,
mesmo que o desenho tenha sido serrado junto. Passo-te a seguir uma primeira
metade, se não conseguir recolar as outras duas metades, terei de me contentar
com dois desenhos rasgados sem moldura. Talvez aí, uma nova fórmula, para a
arte: o desenho reconstituído. Já comecei a tentar fazer, mas não me lembro
bem, qual a parte de cima, ou qual a de baixo. Talvez então te mande em pedaços
e tu os reconstituirás o melhor que possas, porque não me lembro mais
exatamente o que fosse, mas sei que havia dois desenhos ocupando verso e
reverso do papel. Há um naco da Queda da Bastilha, e outro da Jangada da
Medusa. Mas num naquinho extra, aparece o Napoleão discretamente se coçando com
a mão por dentro da camisa.
FLOYD
A esta
altura o papel acabou revelando um diálogo secreto seu com a pluma, quando ele
lhe pediu que levantasse a perninha e o deixasse fazer o melhor desenho. A
moldura de olho na cena, comprimiu o peito e disse que por ali a imagem só se
estabelecia se ela o permitisse.
TODO FIM É UM PRINCÍPIO
6. NADA NO MUNDO É DE TODO IMPERFEITO
ARAUTO
Manhosamente
incrustada no majestoso palacete luso-tropical em estilo dinâmico, a sede
provisória do Triplov sonda a possibilidade de receber para
uma boa conversa um dos mais prestigiados ilusionistas de nossa época, Florium
Blavesko. Ele acaba de criar um palácio de papelão, arquitetura que alcança um
perfeito equilíbrio entre o invisível e o transparente. Como bem sabem nossos
leitores, O papelão é um dom dos papeleiros do Nilo, para enganar o Destino. O
mortal se escapa daqui; o Destino o escorava dali… Vamos ver no que isto pode
dar. Mas eis, vejo aproximar-se uma dama e… ora!, vou bater o bastão presto
PAF-PAF-PAFFF!!! E agora com vocês…
ZUCA SARDAN
Dama, Arauto
de bosta, é o cu da pata preta!… Ponha um pincenez na bicanca, Seu Admeto de
Bosta… Haja saco de cossaco!… Pois é, Florio, que tal se acaso
encetássemos uma entrevista, contando com a participação inopinada de Anita
Borgia, sobrinha-neta do genial Papa Borgia, um santo, que por sua sábia bula,
mudando um pouco mais a Oeste o Meridiano das Tordesilhas, garantiu a
existência do Brasil… e de nossa atual entrevista. Ou os prutucas ficariam
acampados na ilha Fernão de Noronha. Sua sobrinha-neta, ora já talvez, com sua
manha florentina, escondida atrás de uma das colunas gregas magistralmente imitadas
em papelão-mastigado do pataphysico palco do Auditório, uma joia architectônica
psychodélica do architecto Orgaz Maya.
FLORIUM
BLAVESKO
O papelão é
a casa dos desvalidos. Os precavidos colecionam papelões desde os seringais da
infância. Ao invés de ode, celulose…
ZUCA SARDAN
O papelão é
como a música… já vem da infância, tal como o Mozart menino de violino…
FLORIUM
BLAVESKO
Amanhã
coruja vai fazer ninho em casinha de papelão,
deitei
pedacinhos do santo de gesso, São José que se
partiu,
hospitalizado em bom papelão, amanhã o refaço.
Papelão,
papelão, que escola boa de recomeçar…
De remendo
em remendo, a cada dia um novo repente.
ZUCA SARDAN
Magnífico,
Florium!
FLORIUM
BLAVESKO
Este poema,
escrito ontem mesmo, talvez faça parte de uma série que ando escrevendo pelas
mãos de uma diaba que ainda não quer se revelar, heterônimo com o qual
publicarei um livro.
ZUCA SARDAN
Meus
augúrios do maior sucesso.
Prepara-te…
porque se o sucesso for grande… terás de te travestiçar pras photos!…
FLORIUM BLAVESKO
Sim, já me
anteciparei e cuidarei de uma breve série fotográfica; pedirei a Woman Reina
que cuide dos cliques mágicos, por certo, por certo.
ARAUTO
[Olha
súbito, nervoso, o relógio] Ai!, cáspite!!! Eu estava meio cochilando e o
espetáculo já começou!… Mas enfim, vamos fingir que só agora a peça vai
começar, após eu bater o bastão, e saudar o… DISTINTO PÚBLICO!!! PAFF-PAFF!!!
PAFFF!!!
[silêncio
indefinido, capeado pelo acrílico da incredulidade. Arauto olha para Zuca
Sardan em sinal de inquietação. O que estará havendo? Onde está a dama
entrevistadora, cujos passos já se ouvia aproximando-se do centro da redação?]
CORTINISTA
GODOFREDO
[sottovoce,
por trás do pano] E agora, Arauto, se a plateia se impacienta?…
ARAUTO
Pois é,
Godô, agora sentamos na coxia à espera de Anita, a prometida dos deuses…
CORTINISTA
GODOFREDO
Tudo bem,
mas se ela seguir não chegando, o povão vai começar a s’amotinar… e aí então?…
VESPINA
Meu senhor,
isto é um absurdo. O senhor quer ser entrevistado ou prefere se entrevistar
sozinho? Por que?
ARAUTO
Ah
finalmente alguém chegou. Talvez fosse outra a dama esperada, mas agora pelo
menos temos como acalmar o povão…
VESPINA
Ah, era por
isso? Estava esperando pela Anita? Pela Papisa também? [Vespina ri até
chorar e finalmente gargalha. Depois seca as lágrimas e fica muito séria de
novo.] Anita está viajando, só volta daqui a três anos e a Papisa está em
retiro espiritual com um pajé amazônico. E nenhuma das duas é jornalista, meu
senhor, como iam entrevistá-lo, o que o senhor tem na cabeça?
CORTINISTA
GODOFREDO
A cabeça
custa a crer o que tenha, de quem herdou, pra quem vai dar.
VESPINA
Tudo bem,
vamos começar de novo. [Estendendo a mão, cada vez mais séria.] Boa
tarde, meu senhor. Como vai o senhor? E a sua esposa? Soube que o senhor agora
é transformista. Verdade? Fake news?
FLORIUM
BLAVESKO
Jamais fui
tão destratado por qualquer canal de notícias! Como vou querer ser
entrevistado, se estou metido nessa ousadia arquitetônica de criar gigantescas
urbes de papelão! Ora, que destino mais incerto o da roda da fortuna! A mocinha
achou de se pegar com o espectro escandaloso da trama, me azucrinando com essa
de transformismo. De qualquer jeito, estou disposto a começar de novo o que
sequer havia começado. Aqui estou. Façam de mim a sua próxima notícia!
DYRCEO
[Entra,
de microfone na mão.] Bom-diiiiiiiiiiaaaaaaaaaaaaaaaaaa, para todas no
palco e na plateeeeiiiaaaaaa!!!
PLATEEEIA
DYRCEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEU!!!!
DYRCEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEU!!!!
ARAUTO
[Entra,
indignado, e interpela Dyrceo.] E quem é o senhor, para entrar assim no
palco??? Fora!!!!!
PLATEEEIA
Fora você,
Arauto Buuurrroooooo!!! Fora, Panacaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!
DYRCEO
Sentiste,
rapaz, a minha importância?… Eu sou Dyrceu, o Locutor favorito das Ouvintes da
Rádio Tupy!…
FANZOCAS
[Em
delírio] DYYYRRRRRRCEEEEEUUUUUUUUU!!!!
DYYYYYRRRRCEEEEEEEEEEEUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!!!
DYRCEO
Não se
preocupe com Dona Vespina, Doutor Blavesko! Faça a entrevista comigo. A Rádio
Tupy tem alcance em todo o Globo Terrestre!!!
FLORIUM
BLAVESKO
Como fazer a
entrevista contigo! Eu sou a notícia! O esplendor do fato inspirado e
insubstituível! O primeiro heterônimo feminino criado por um homem e o autor de
uma expansiva obra arquitetônica feita no mais legítimo papelão egípcio!
DYRCEU
[De
microfone.] A Senhora não quer que eu a entreviste, Dona Vespina? Seria
magnífico, imagine só, na Rádio Tupy: A Entrevistadora Entrevista…
VESPINA
Ótima ideia,
Dyrceu! Eu entrevisto o transformista e você entrevista a entrevistadora. Será
a primeira entrevista simultânea da História.
DYRCEU
Mas claro,
Dom Florium, que o Senhor é a própria Notícia!!! Por isso estou aqui… para…
captar a Notícia!!! E lançá-la pela Rádio Tupy em todo o Globo Terráqueo… e
pelos satélites interplanetários russos, americanos e chineses para o
Cooosssssssmmmoooooooooooooooooo!!! Temos acordo com a TV Medéia, para
distribuição televisiva apoiando a nossa irradiação no Brasil e toda a América
Latina!!! Tudo isso sob o alto patrocínio do Café Cometa!!!
FLORIUM
BLAVESKO
[Estala
uma gargalhada excepcional.] É bem possível que agora nos entendamos.
Alguém me sirva uma batida de saquê com tangerina, enquanto aguardo as
perguntas. Três pedras de gelo…
ARAUTO
Que está
esperando, Godô?… Traga uma bandeja de drinks e aperitivos pro ilustre elenco!…
e… a batida de saquê com tangerina, pro Doutor Blavesko!…
CORTINISTA
GODOFREDO
Pra já,
Admeto, parto feito flecha e logo-logo chegarei.
DYRCEO
Pois então,
Doutor Blavesko, como se sente, agora que se precipita nesta metamorfose de
autoduplicação?
FLORIUM
BLAVESKO
Agora que as
pitangas já reconhecem as pradarias de onde vieram, sim, eu diria que me sinto
em casa, casa dupla, bem pensado, pois se souberem o que perguntar certamente
teremos a melhor explanação sobre heterônimos e aproveitamento papelônico em
conjuntos residenciais. Por onde começamos, então?
DYRCEO
Precisamos
de um pequeno aproche histórico, pra que nossas queridas
ouvintas e estudiosos ouvintos… pois, Doutor Blavesko, já podeis perceber
minhas preocupações com o sexo das palavras… o vocábulo Ouvinte é
visivelmente um transexual, algumas vezes é O ouvinte, outras
vezes A ouvinte… meu professor de gramática, o impoluto
letradíssimo Frei Feijão, ensinou-me que a luta contra o transexualismo deve
começar com o combate à subversão idiomática… o vocábulo Ouvinte é
um transexual descarado que precisa ser enquadrado. Todo o cuidado é pouco,
Doutor Blavesko, contra a orgia de transgressão sexual que estamos vivendo
neste século 21, perverso, subversivo, safado… Que acha o senhor, Doutor
Blavesko?…
FLORIUM
BLAVESKO
Nossa
primeira atenção deve ser em relação à retórica. Ela é a verdadeira caixa de
marimbondos que imprime perigo à espécie humana. E é justamente uma invenção
humana. Distorção semântica em nome de um preconceito desvalido. Já vivemos
este ciclo pastelônico com uma presidenta da coisa pública. O
substantivo de dois gêneros, que hoje é de mil gêneros, é um modo bastante útil
de aceitação da diversidade, e não o contrário. Para mim soa patética a fórmula
de inclusão encontrada pela bipolaridade senhores e senhoras,
brasileiros e brasileiras, prezados e prezadas… O acento no politicamente
correto não reflete senão uma pobreza de espírito. E geralmente quem o pratica,
nos bastidores é um verme. Já em relação à transgressão sexual, até onde ela
existe, há que separar a busca de escolhas do modismo e sua consequente orgia
de classificações. Sempre penso naquele alfinete no dorso das borboletas em uma
coleção.
DYRCEO
Magnificamente
lembrado, Doutor Blavesko, o dramático caso da nossa Presidenta!… Tratou-se do
primeiro exemplo de luta gramatical contra o manhoso ardil dos substantivos
transexuais de saírem impunemente passeando pelos textos, sem que as
autoridades percebessem e pusessem um freio ao perigoso precedente. Nossa
indômita Presidenta, possivelmente inspirada pelos sermões do alerta Frei
Feijão, foi a primeira personalidade a se levantar contra este conformismo
gramatical que seria a preparação da Queda da Bastilha Familiar face a onda
colossal de Suname que afundou os alicerces morais da Família Iluminista. Se
estiverem vendo, pela lucarna com telescópio do Paraíso, a que se refere Dante,
a esbodeação globalizada deste Século 21 Pós-Moderno, imagino o espanto e
revolta de nossos mais ilustres pensadores, o Águia de Haia, e nosso Imperador,
o segundo, por suposto. Felizmente ainda há moscas virtuosas… Aliás, achei os
versos de Aurora Leonardos inspirados por uma sadia espiritualidade, voltada ao
lar, e aos bons ensinamentos de Frei Feijão.
FLORIUM
BLAVESKO
Suponho que
estás aplicando o Taco Disparato em tudo o que digo. O Taco Disparado era um
mecanismo de embrulho na lógica utilizado pelo ministério da defesa russo ao
transmitir notícias radiofônicas sobre a invasão extraterrestre nos porões
do Hermitage. Consta que ali haviam trancafiados os corpos de três
alienígenas que foram brutalmente assassinados no interior de Minas e depois
surrupiados pelo governo dos Estados Unidos. Com a indefinição nas eleições presidenciais,
que já duram três anos de suspense, um acordo secreto entre os dois governos
garantiu a transferência dos restos mortais para o museu russo. Contudo, o
assunto não se manteve muito tempo em sigilo e logo a mídia começou a divulgar
suas suspeitas. Foi quando se passou a aplicar o Taco Disparato, assim a
população ouvia uma coisa, mas entendia outra. Como o Brasil é mestre em se
apossar de coisas que não sabe usar, vejo agora que estás desconjuntando minha
fala. Insisto que as travessuras sempre anacrônicas de nossos governos
sucatearam de tal modo a linguagem que o que chamas de conformismo
gramatical não passa de um vício barato acobertado pela moda e o
estado falimentar de nossa moral.
ARAUTO
[Sottovoce
para Florium] Oh Ilibado Mestre, esperança dos aflitos pescadores dos rios
da Amazônia, e das viúvas chorosas de Piracicaba: Não seria melhor baixarmos a
cortina? Ou este politicamente correto locutor vai seguir a vos agoniar com sua
cascata de disparates…
FLORIUM
BLAVESKO
Esta não é
uma decisão minha, pois ainda aguardo as perguntas de Sra. Vespina. De qualquer
modo, e isto se passa sempre que a mídia visita uma notícia, dá-me a impressão
de que viemos para uma coisa e fizemos outra.
ZUCA SARDAN
Aguardemos,
pois, a chegada de Vespina, com seu anel renascentista de ouro finamente
cinzelado por Brunelesco, com micro cofre porta-veneno embutido.
VESPINA
Meninos,
esta é a última versão? Tem já cinco páginas e falta a entrevista.
FLORIUM
BLAVESKO
Meu caro
Zuca, tens que parar de tanto lero e começar logo a entrevista. Pelo andor do
pasto essa Vespina vai furar o bolo e melar o fubá.
ARAUTO &
CORTINISTA GODOFREDO
[coro no
gargalo]
Ao timão, o
timoneiro.
O esfregão
ao escrivão.
Gira, gira,
girafa anã,
Ao pecador,
a devoção.
ZUCA SARDAN
Pois então,
Dyrceo, ouviste o que disse nosso entrevistado, ele quer que acabes com tanto
lero-lero de que tu és o grande culpado, com este teu papo furado de novelas da
Rádio Capivara. Faça perguntas objetivas!!!
DYRCEO
Doutor
Florium, chega de enrolações, não tente se desviar do assunto, vou a perguntas
perguntantes: Dona Aurora é boreal?… É virago romântico bossa Saphô?… ou
machona só de pose… tal George Sand que fumava seu charutinho e se vestia de
homem? Quem o senhor acha que comia quem? George Sand comia Chopin? Ou Chopin
comia George Sand? Quem ensaboava quem, com o Sabonete Molek? Que tal o Senhor
acha Lina Ivanova, poeta de Recife e editora da revista
anarquista-feminista Mais Pornô, que vive entre Koln e Berlin?
Quais as revistas porno-feministas brasileiras que o Senhor mais aprecia? Qual
a situação da poesia porno-feminista no Brasil? Em que linha se situa Aurora
Barcelos? Quais poetas viragos são as mais importantes do Brasil?
FLORIUM
BLAVESKO
O senso de
objetividade desse radialista tem a leveza de uma pata de elefante ferido. E
sua verborragia é trôpega como um cancro desenfreado. Tens o fôlego retrô de um
jornalista marrom. Uma obsessão frasista pelo escândalo de primeira página. E
uma intencional confusão entre o grelo e o clero, ainda que por vezes haja
tanto de um no outro. Pensar em Goerge Sand como pornógrafa é uma dessas farsas
machistas, e ainda essa perversão em torno da menina Ivanova, levantando a
suspeita de que ela é um menino. Ora, ora, Dyrceo, o que há de teu nessa
máscara que grudaste no rosto? Se queres mergulhar nos bastidores do
transformismo, sugiro que visites o Museu Lamarck, há uma página web
disponível. Quanto à Aurora – seja Boreal ou Barcelos –, que, a rigor, é Leonardos,
trata-se de um caso único de heterônimo feminino, de modos que se queres
conversar a seu respeito, aqui me tens.
DYRCEO
Muito bem,
Doutor Florium, vejo que sacaste bem meu estilo iconoclasta e subversivo. Mas…
temos uma surpresa!!! A Rádio Cambuquira vai agora mesmo fazer um
espetacular Anúncio do livro de Aurora!!!… Deixe-me ligar este velho aparelho
Felix, de oito válvulas e… plek -plek-plek…
RÁDIO
CAMBUQUIRA
Preza…
dá-dôs ouvintos e vivintas da vossa insuperável Rádio Cambuquira!…Apresentamos
agora vosso programa predileto!!! As sensacionais Novas Profecias de
Nostradamus!!! Hoje trataremos de um manuscrito posterior às Centúrias, e
se referindo ao Século XXI e ao Armagedom…. com o Arcanjo Wenceslau tocando a
Trombeta de uma nuvem rente ao campanário da Cathedral Notre-Dame de Paris. Nas
suas considerações preliminares, atendendo ao interesse da Rainha Catarina de
Médicis por assuntos mais picantes, Nostradamus escreveu sobre o grande surto
da praga do vírus micropata Coroca, e do aumento vertiginoso do transexualismo,
sobretudo com o tumulto provocado por um livro que se chamaria… Aurora
sim, é que era Travesti de verdade… ou algo similar… com pressões sobre o
Vaticano e Moscou, para se definirem, sim ou não, com referência à procedência
dos matrimônios transexuais. Na noite de lançamento do livro o Palacete de
Papelão Mascado do Triplov será invadido por batalhões em
encarniçada luta entre travestis, machistas, bissexuais, polysexuais, grupos
religiosos rivais, kardecistas e bolcheviques.
FLORIUM BLAVESKO
Quanto mais
se espalha a bomba de luxúria do radialista Dyrceo mais as fábulas da delegação
de autoridade das classes obstruídas se dissolvem nos latões cítricos da
propaganda. Tudo isto porque as artes creditaram a si uma moral de chiclete. As
pastilhas bíblicas hoje não curam mal algum, e o rugido dos escândalos
enlatados sequer alimentam os seguidores de Donald Warrol. A esta altura de
nada adianta bradar que Aurora é lésbica e não traveco, pois o mal da mídia já
lhe garantiu um lugar na comarca das disforias de gênero. Quem mais se
interessaria pela tragédia de uma jovem vida acidentada que se foi e deixou um
livro com uma das poéticas mais audazes dos últimos tempos…!
ARAUTO
Pois então,
baixamos a cortina ou não, Godofredo, que achas?…
CORTINISTA
GODOFREDO
Tenho uma
ideia… vou baixando o pano bem devagarzinho… e se o Doc Florium, ou o Dyrceo,
um dos dois, reclamar… comezzo a tornar ir subindo devagarzinho…
ARAUTO
Godô, és
espertíssimo!… Vai baixando então, a flanela, bem, bem devagarzinho… pra
ninguém perceber…
CORTINA
[Vai
começando, imperceptivelmente, a cair.] Ronnng… roonng… rong
...ron… nnng… ng… g…
FLORIUM
BLAVESKO
E a
genialidade arquitetônica de meu Palácio de Papelão também foi pelo ralo.
ARAUTO
E agora,
Godô?
CORTINISTA GODOFREDO
Nem dou pelo
resmungo. Segue, cortina…
CORTINA
Ronnng…
roonng… rong ...ron… nnng… ng… g…
AS SETE TRAGÉDIAS DE SARDANELO & MARTINICO
A vida é difícil, mas não tenho paciência de ficar
morto.
ZUCA SARDAN
Tarimbô, taram, três vezes soprar nos olhos de
Butifá, até que a realidade ponha a cabeça de fora, e… paulada nela!
(em off) PANDA KARMAL
Ninguém herdará a terra.
FLORIANO MARTINS
AS BECAS DA TORRE LOUCA
(Aguardando a chegada de Sardanelo &
Martinico)
Zuca Sardan e Floriano Martins, após o sucesso internacional da trilogia
de teatro automático intitulada O iluminismo é uma baleia, concederam um tempo de sua apertada agenda
para um encontro com estudantes no auditório da Escola das Marrecas. Não
quiseram, no entanto, seguir o hábito da apresentação com um mediador, e
propuseram um diálogo improvisado entre ambos. Zuca Sardan foi o primeiro a
disparar a provocação:
ZUCA SARDAN
Uma das
questões clássicas dos exames do Colégio Prutuca: Para que lado estava virado o
bico do pelicano no portal da capa da 1ª edição dos Lusíadas?
FLORIANO
MARTINS
Há nisto uma
sinuosa provocação, pois se sabe da existência de uma edição príncipe, a
primeira com uma costura usando linha feita com lã de cabra montanhesa, em que
o pelicano tem seu bico apontado para direção inversa à da edição que até então
se supunha a primeira. O famoso gravador Gustavo Dourado durante algum tempo
reclamou a autoria da capa dessa rara tiragem. Sabe-se que na biblioteca do
Colégio Prutuca havia exemplares das duas edições, o que acabava gerando imensa
confusão entre os alunos. Para uns, o pelicano mirava a direita; para outros, a
esquerda. Assim é que todos eles passavam no exame, não importando a resposta
dada.
ZUCA SARDAN
Belíssima
resposta, Florianooo!!! Levas de prêmio uma caixa da Cerveja Pelicano, a
preferida do Rei Manoel, com um autógrafo autêntico, numa das garrafas, quatro
com o bico virado para a esquerda e cinco de bico virado para a direita, com o
autógrafo de quatro marujos da caravela do Vasco da Gama.
FLORIANO
MARTINS
Enquanto eu
desfrutava uma das garrafas da cerveja a minha neta se aproximou e com os olhos
bem-postos sobre as caixas me disse que todas assinaturas eram iguais, menos
uma. Fui averiguar em meus alfarrábios e descobri que Vasco da Gama havia
fundado a primeira escola de produção em série de autógrafos autênticos. A
assinatura divergente depois se soube que era de Eufrasino Maneta, sobrinho
preferido do Rei Manoel que impôs sua presença na escola. Vasco da Gama logo
descobriu um jeito de livrar-se do problema, instituindo um prêmio especial a
quem descobrisse a garrafa com a assinatura discordante. Até hoje o fato é
celebrado como a primeira conversão de erro em acerto.
ZUCA SARDAN
A erudição
do Marquês vai aumentado em passos de Gigante. Sua fama começa a crescer entre
os alunos do Colégio Prutuca.
FLORIANO
MARTINS
O gigante
Gaspar Líbero mantinha em segredo sua erudição, em parte porque era lá no
Colégio Prutuca onde ele frequentava às escondidas o porão para treinar a sua
voz de barítono. Tinha plena convicção de que um dia seria reconhecido por seu
canto aveludado. Mas ele também gostava de se gabar, entre as meninas em saias
soltas, fazendo-as suspirar com seu repertório de verdades em falsete. Os
tempos se foram sem dar pela presença daquela lírica criaturinha de Deus, nem
mesmo o infortúnio que se abateu sobre o ventre das jovens letradas foi capaz
de dar a Gaspar o palco com que sempre sonhara. Amargurado no ostracismo, um
dia simplesmente desapareceu, sem jamais conhecer sua prole.
ZUCA SARDAN
A prole do
Gigante Erudito, deu origem às colossais Gigantas Patagonas, que, com suas
formas monumentais, atraíram os Gigantes Arcanjos… Após a vitória sobre os
Anjos Safados Subversivos, na terrível batalha sobre os Andes, e soterrados os
Safados Subversivos nas profundezas do Globo Terráqueo… puderam os Bons
Arcanjos usufruir do merecido Repouso do Guerreiro, nos braços e coxas
monumentais das lindas Gigantas Patagonas… Começaram assim a História Santa e a
História Profana, na nossa América Latina.
FLORIANO
MARTINS
Uma história
que sempre se diz que não cabe nos sapatos dos anjos. Um dia acesa a centelha
da curiosidade os alunos do Colégio Prutuca começaram a indagar do Marquês com
quantas palhas de coqueiro se faz uma aldeia de pecadores. O Marquês, não entendo
a pergunta, foi logo exigindo respeito, que a estrada pia longe quando o
ermitão perde o caminho de casa. Ora, mas era justamente o que esperavam os
alunos, que mal contiveram o riso e declararam que as amarras da ponte muitas
vezes impedem que o exílio floresça na outra margem.
ZUCA SARDAN
O Marquês é
um excelente professor, usa (sem saber, naturalmente) o inconsciente didático
que age diretamente no inconsciente dos alunos, provocando uma euforia geral.
FLORIANO
MARTINS
A euforia é
um estado de permanente fervor e não se deve considerar seus efeitos senão como
os favores da persuasão. Os alunos de algum modo acabam aprendendo que a vida
só se realiza na colagem de emoções, no uso contínuo de tesoura e cola em cada
um de seus fatores existenciais. Menos Jacinto Pudente, que evoluía por
reprovações e se recusava a recorrer ao alheio em sua trágica ilusão de
autoria.
ZUCA SARDAN
É preciso o
aluno aprender a colar o rabo de uma frase do Kant no corpo dum conceito do
Comte. E colar a cabeça da Medusa no busto decapitado de Confucius.
FLORIANO
MARTINS
Há mesmo
certas coisas no mundo acadêmico que são insustentáveis. Se embaralharmos em um
Atlas as inúmeras cavernas onde foram encontradas caixas e mais caixas de ouro,
veríamos que os saques desconheciam fronteiras e que certos púlpitos e
monumentos poderiam ser apenas a ponta dos icebergs das religiões. Como não
deixar os alunos mais curiosos aplicarem o aparelho Lenoir na leitura de
antigos manuscritos? E se um deles gritasse: Eu vi o roubo, eu vi o roubo!,
deixá-lo então desfrutar a ilusão de que a civilização evolui. Desaconselhar a
colagem é como tirar a confiança no acaso. Ninguém pode ir tão longe se não
acredita em sua capacidade de errar.
ZUCA SARDAN
Desfrutar a
ilusão de que a civilização evolui, foi o que fizemos a partir da segunda
metade do Século 19, e durante todo o Século 20, depredando o Planeta, para
aumentar os lucros comerciais e industriais. Quando no 21 começam os
cataclismos da Natureza, procuramos disfarçar o quanto se possa para não
assustar a freguesia. Já começamos a espalhar a ideia de emigrarmos para outros
planetas que ainda estão novinhos.
FLORIANO
MARTINS
A todo instante a vida imitando a arte, por absoluta falta de imaginação. E cinicamente o homem achando que ambas podem ser uma só coisa, como queriam as vanguardas resfolegantes do 20. Com a desfaçatez com que passamos da maconha para o crack bem se pode imaginar que um cartão de crédito nos garanta uma caixa-morada de silício em alguma lua de distante planeta. Os alunos do Colégio Prutuca mal desconfiam que o sistema solar já se encontra todo loteado.
ZUCA SARDAN
Como a Arte
não consegue mais imitar a Vida, como o fazia na Renascença em plena Capela
Sixtina, onde Adão pendurado no teto todo nu avança o indicador para tocar o
dedo de Jeová, e este vem voando feito uma flecha com seu indicador avançado em
direção ao dedo de Adão, para transmitir-lhe uma carga de Vida, Saúde e
Eletricidade, ademais de Inteligência e Juízo, desde então a Vida começou a
imitar a Arte.
FLORIANO
MARTINS
Tudo ardil
maroto, para provar que os evangelhos tinham razão. Daí criaram a ideia de um
juízo final, com essa palidez arbitrária pregada na tez dos anjos. Quando o
grude secou a tatuagem de algumas frontes foi ao chão da capela, formando aquele
piso irregular batizado de calvário. Novamente era preciso entender que somente
a cola e a tesoura fixam a diferença entre arte e vida.
ZUCA SARDAN
O Juízo
Final só virá depois da prorrogação de nossa loucura lógica. Havendo Lógica,
acredita-se que não há Loucura. Mas muito pelo contrário: quanto mais louca,
mais perigosa é a Lógica. Já tivemos fartos exemplos na História recente. Para
não relembrarmos casos de feridas ainda não cicatrizadas, melhor nos determos
em caso mais antigo, e mais ameno, por exemplo, Nero cantando e tangendo a lira
ao balcão, durante o incêndio de Roma.
FLORIANO
MARTINS
Questão
inserida em uma prova polêmica, onde muitos alunos responderam que a cena era
uma espécie de metáfora da recriação do mundo, sob o argumento de que não se
pode criar do nada, de modo que para haver uma nova história é imperativo
destruir a atual. Por mais que os Irmãos Raristas do Colégio Prutuca de tudo
fizessem para evitar o escândalo escoar, a prova vazou, logo saiu na primeira
página do Diário do Tombo, uma agência de notícias traduziu o texto
para mais de 50 idiomas, pode-se dizer que o mundo nunca mais foi o mesmo.
Estava justificada a catástrofe como mal reparador de mazelas.
ZUCA SARDAN
Enquanto
isso… o Arcanjo já lustrou a Trombeta do Juízo Final. Dá umas esfregadinhas
finais na Trombeta e se levanta na Nuvem Preta. O Sineiro, de binóculo do alto
do campanário, achou que já é hora de avisar o Arauto. Pega o telefone, disca o
número do Arauto.
TELEFONE
BRING…
BRING… BRRIIIINNNNNNGGGGGGG!!!
ARAUTO
[Ouve o
trinado do telefone, boceja e atende] Alô, aqui o Arauto. Quem fala?
SINEIRO
Alô, aqui o
Sineiro. Arauto olha só as cumeeiras… O Arcanjo está se preparando para tocar a
trombeta. Baixa rápido a cortina, antes que ele toque, rapaz, ou começa o
Fim do Mundo!…
FLORIANO
MARTINS
O que se
deu, por instantes, foi a confirmação de que o vazamento de provas pode alterar
a realidade. Alguns diriam, como o Arauto: – Não pode ser o fim do
mundo um mundo sem fim. A simples ideia de uma coisa ter fim já é uma
ladainha perniciosa. Como alguém pode viver em função do fim. As aves pernaltas
aprendem cedo a voar. O homem teria aprendido a rir com a hiena ou o macaco?
Aqui estamos no auditório do Colégio Prutuca sem escapatória. Nenhum sineiro ou
cortino virá nos salvar. Quem sabe não é a hora de recordarmos as vadiagens de
Vasco da Gama!
ZUCA SARDAN
Vasco de
Gama partiu para a descoberta do Caminho Marítimo para as Índias indo para lá
mesmo. O tradicional senso prático dos Portugas, bem ao contrário das loucuras
do Colombo, que queria descobrir as Índias tomando a direção oposta à das
Índias, porque cismou que a Terra é redonda… Resultado: em vez de
chegar às Índias foi bater nas até então desconhecidas Américas, que ele
cismou que eram as Índias!… E até hoje nossos amerabas são denominados índios.
E o Colombo, comprovado seu engano colossal, procurou esconder a batata
declinando a oferta da Rainha Isabel, de que as terras descobertas se chamassem
Colômbia, e, bancando o modestinho, sugeriu à Rainha que oferecesse o nome
do novo Continente ao… Américo Vespúcio!… um modesto cartógrafo que lhe
aprontara uns mapas maneiros de umas terras que poderiam ser descobertas a
oeste da Europa… A Rainha hesitou, mas o Rei Fernando, que achava Colombo um
vão carcamano falastrão, topou logo a ideia, e o novo Mundo foi assim batizado
de América!… Colombo, magoado e dispensado, não pode assim descobrir o Polo
Norte… Passou o fim da vida nos bares, exibindo sua galinha acrobata, que sabia
botar um ovo em pé nos gargalos de uma garrafa vazia…
FLORIANO
MARTINS
Ameríndios,
o que é pior, índios da América (risos)… Para que se veja o risco que a
história é forçada a engolir com essas peraltices dos nossos grandes
navegadores. A América foi toda descoberta de um modo quando menos
extravagante. Os astrolábios não podem ser culpados de tanto disparate. Pior
ainda se passou com os efeitos de outra descoberta, a rigor uma tomada de
posse, uma negociata envolvendo as coroas britânica e espanhola, quando Walter Raleigh
finca em uma parte do continente a bandeira e decreta: – Aqui está
a América! Na verdade, um pedaço da cuja, que acabou decepada em sua
amplitude. Gatunice que encontrou eco por toda parte, considerando que há
sempre um folião aculturado que sopra velinhas para o 4 de julho em todas as
partes do Novo Mundo. Seguiu-se à usurpação a matança dos índios da região,
acabando com as vastas pradarias de Tatanka Iyotake, mais conhecido como Touro
Sentado e acabou se tornando astro de cinema. Foi aí que a vida teve sua
primeira crise de identidade e se tornou arte.
ZUCA SARDAN
Sim,
lembro-me do Tatanka, tinha pernas tão curtas que parecia estar sempre sentado.
Usava uma escadinha de corda para montar no cavalo. Uma vez montado, puxava a
escadinha de corda e a colocava debaixo da sela. Em vez de arco e flecha, usava
uma espingarda de dois canos, e tinha exímia pontaria. Depois da
batalha, quando se iam contar os mortos, os que apresentavam dois furos na
testa eram a maioria absoluta, e todos… vítimas do Tatanka. Os norte-americanos
assinaram um tratado de paz que estabelecia que era doravante proibido aos
meliantes levarem escadinha de corda em seus cavalos para as batalhas. Irritado
com o esbulho dos caras-pálidas, Tatanka passou a usar uma escadinha desmontável
de madeira, inventada por um carpinteiro pele-vermelha. Os caras-pálidas, após
uma boa mortandade, com pilhas de defuntos com dois furinhos na testa, urdiram
uma cilada: uma corda estirada entre duas árvores, no caminho habitual do
Tatanka ao voltar de sua pesca vespertina. O cavalo tropeçou e caiu, os
caras-pálidas imobilizaram o Tatanka, e roubaram a escada. Tatanka
ameaçou-lhes: – Aprontarei outra. Os gringos se riram e se foram
com o engenhoso artefato. Pouco lhes importava que Tatanka encomendasse outra
escada. O que eles queriam era exatamente esta escada, que a General Motors
comprou e patenteou o modelo. A escadinha fez um sucesso estrondoso, vendeu
mais de um milhão em dois anos, e segue vendendo até hoje.
FLORIANO
MARTINS
Do outro
lado do mundo, tal sorte não teve outro guerreiro de baixa estatura, o Kublai
Kahn, pois, ao invés dos puros-sangues que vieram da Europa para a América,
seus miúdos pôneis tornaram desnecessária a invenção da famosa escadinha. Mas
deu sorte o mongol por contar com a presença do pai espiritual do Leonardo da
Vinci, o jovem Marco Polo, que para ele inventou a primeira catapulta da
história, permitindo que Kublai conquistasse a China após a derrubada de uma
parte da Grande Muralha, por onde passou com mil guerreiros. Na América as
conquistas do território nativo chegaram a ter participação de associados
alienígenas, pois até hoje não se sabe o que ocorreu com o império
guatemalteco. Até hoje o fantasma de um condor dourado esquadrinha os céus e lá
do alto procura o destino de Atlântida, um mistério mais bem guardado do que os
segredos do Vaticano. Quanto ao império do Tananka, em Hollywood já ninguém
quer tocar no assunto.
ZUCA SARDAN
O império
guatemalteco foi rapidamente devorado pela floresta tropical centro-americana, inclusive
a capital do reino de Galtek-Aspik foi totalmente submersa, enquanto o rei
Galtek seguia fingindo que estava tudo normal. A floresta devorou toda a
cidade, das salas às cozinhas, as fortalezas, os templos e o Palácio imperial.
Não há a menor explicação. Os sobreviventes, que só se sabe que são
sobreviventes porque têm exatamente a mesmíssima fisionomia
dos extraordinários baixos-relevos de cenas de estripamentos de vítimas
para um ritual, estes nada sabem de seus antepassados. Não têm a menor ideia do
que se teria passado, e fingem que nada tenha acontecido.
FLORIANO
MARTINS
A floresta
também devorou Chernobyl, e nos arredores todos também fingem que não sabem o
que houve. Parece que a floresta causa esse efeito sempre que mata a sua fome.
No Reino de Paul’Afonso as luzes se escondiam da escuridão. Um prefeito
folgazão mandou construir uma réplica da Torre do Combo, onde até hoje se
acumulam as miçangas com que nossos amerabas foram levados na troça. Aos
visitantes continuam presenteando miniaturas de urubu empalhado, ave que foi
nosso primeiro totem, antes mesmo da chegada do Zé Carioca. Os colonizadores
espirraram em terras brasileiras a primeira pandemia seletiva do continente.
ZUCA SARDAN
[Em
silêncio.]
FLORIANO
MARTINS
Eu também
por momentos me calo, ressoa em meu íntimo um silêncio que é pura indignação.
ZUCA SARDAN
[Em
silêncio.]
FLORIANO
MARTINS
…mas logo me
recupero e me ponho a recordar essas atrocidades todas.
ZUCA SARDAN
[Em
silêncio.]
FLORIANO
MARTINS
Já chega,
meu velho. Vamos continuar.
SINEIRO
O velho
dormiu. Acendam as bênçãos dos intrépidos cajados. Ouçam com atenção, o velho
está ressonando. Se alguém não fizer nada, logo ouviremos o estardalhaço de uma
sinfonia de roncos. Chamem o médico!
DOUTOR
PASTILHA
E não só o
velho, mas… todos os alunos e alunas do Colégio Prutuca exalam ronquinhos
variados. A diretora Dona Randyra entra sorrateira na sala, na ponta das
sandálias mexicanas, senta-se ao piano, suspira fundo… agita as pulseiras, e…
toca em surdina um bolero.
ZUCA SARDAN
[Voltando
a falar, como se nada tivesse ocorrido, acumulando as falas perdidas.] O
império guatemalteco foi rapidamente devorado pela floresta tropical
centro-americana, inclusive a capital do reino de Galtek-Aspik foi totalmente
submersa, enquanto o rei Galtek seguia fingindo que estava tudo normal. A
floresta devorou toda a cidade, das salas às cozinhas, as fortalezas, os
templos e o Palácio imperial. Não há a menor explicação. Os sobreviventes, que
só se sabe que são sobreviventes porque têm exatamente a mesmíssima fisionomia
dos extraordinários baixos-relevos de cenas de estripamentos de vítimas para um
ritual, estes nada sabem de seus antepassados. Não têm a menor ideia do que se
teria passado, e fingem que nada tenha acontecido. Outras pandemias
viriam, no Novo e Velho Mundo, tal a Peste Negra e a Gripe Espanhola. Mas a que
conosco ora convive em pleno século 21, justamente quando iniciamos a projetada
conquista e colonização do Cosmos, a partir de nossos Planetas Hermanos do
Sistema Solar… esta Epidemia Global no Conho Terrestre (globalização do Conho
Sur)… de que podemos flagrar os seus propagadores… através de nossos
moderníssimos microscópios, esses micropatas vírus Covidis Corocas… que alegres
convidam seus primos para compartir a matança globalizada do Homo Sapiens… Só a
Pharmácia Sysipho, do Doutor Galeno poderá contê-los. A enfermeira loura
Walkyria, da Pharmácia Sisypho, aplica pessoalmente a vacina nos pacientes
embevecidos… A fila já dá cinco voltas concêntricas do quarteirão onde se
encontra a pequena bodega, com sua magnífica coleção de múmias egypcias
autênticas, envoltas em suas faixas colantes, que valorizam as formas
voluptuosas de algumas múmias femininas mais robustas. As atrocidades
começam no micro-mundo dos insetos… as formigas castigando suas lagartas
escravas cegas… a Aranha Negra devorando seu maridinho durante a cópula de
núpcias… e de manhã… a Noiva já acorda Viúva… Negra.
FLORIANO
MARTINS
Assim eram
as lendas com seus lampadários elétricos e os tesouros emparedados. Alguns
informes chegavam através de cartas enviadas aos cuidados do Doutor Galeno.
Certa vez Walkyria abriu uma das missivas e o envelope continha um pó que logo
a fez espirrar, espalhando seu conteúdo por todo o balcão da bodega. O pai veio
correndo ver do que se tratava, mas já era tarde e a curiosa Walkyria pagou
alto preço por sua bisbilhotice. Estatelada no chão, dura como um rio
congelado, não restou a Doutor Galeno senão enfaixá-la para que fizesse
companhia às múmias. O velho acabou fechando seu comércio farmacológico por um
tempo, de posse de sua Enciclopédia dos Mundos Esquecidos e
escolheu ao acaso um lugar no mapa onde esperava passar o próximo semestre.
ZUCA SARDAN
Com a
partida em férias do Doutor Galeno… há um sério perigo de que os safados
micropatas Covide-Corocas voltem à carga… O que logo se verá. O que será,
será…
FLORIANO
MARTINS
Férias
reparadores, segundo me disse, para curar algumas de suas obsessões mais
alopradas. As obsessões são como pulgas que se escondem nas frestas do
assoalho. Há aquelas que querem atear fogo no circo, e outras que não trocam o
picadeiro por nada neste mundo. Umas escapam com vida até mesmo do alcatrão
derretido, enquanto outras se fingem de mortas para atormentar o outro mundo.
As obsessões furam o bolo antes da festa ou reabrem as cicatrizes veteranas.
Dizei-me, Zuca, dentre as tuas obsessões, quais aquelas inegociáveis?
ZUCA SARDAN
São tantas,
que já perdi a conta. Felizmente tenho um martelo totêmico que as massacra
ininterruptamente, sem sequer me avisar. Minha única precaução é evitar
psicanalistas, sobretudo os de boa vontade, que iriam querer desmontar o
martelo totêmico… e seriam massacrados… sem que ninguém me avisasse. E os
psicanalistas de má vontade iriam, pelo contrário, procurar a todo custo
preservar o martelo totêmico, de modo a ter um cliente por décadas a fio, e…
poderiam escrever um tratado que botaria os do Freud no chinelo.
FLORIANO
MARTINS
Fui a um
desses, certa vez. Queria a todo custo a senha de acesso ao fundo falso de meus
devaneios. Na segunda sessão lhe fiz crer que meu inconsciente era uma
espelunca bagunçada irredutível a qualquer intento de arrumação. Ao final do
encontro me disse que estava certo de que eu não retornaria ao consultório.
Assim foi. Há um ditado árabe que garante que bússola remendada não dá boa
viagem. Deste modo, acomodo bem em meu Zeppelin todas as obsessões, de fio a
pavio, o que me permite um pulsante equilíbrio entre perdas & planos. E
como costumas viajar, de chinelo ou lamparina?
ZUCA SARDAN
Embora os
chinelos sejam mais confortáveis… por prudência, viajo de lamparina.
FLORIANO
MARTINS
As meias
também são de grande fortuna quando as almeias sabem improvisar seus passos.
Toda grande viagem será sempre lasciva, de modo que os barbantes do acaso
permitem girar, girar, vendo o mundo lá embaixo de vários ângulos. Uma meada de
horizonte e mesmo estáticos temos a impressão de vento em popa. O Colégio
Prutuca, ao contrário, ensina a seus alunos a não desgrudarem do mastro central
de seus movimentos. O ensino assim evitar comer pelas beiradas e o resultado já
se sabe: um micro-mundo projetado para manter a lógica sempre atarraxada.
ZUCA SARDAN
Mercê de tal
espartana disciplina os alunos e lunacas que lograram descolar um diploma do
Colágio Prutuca… são os preferidos pelas firmas transnacionais.
FLORIANO
MARTINS
Descolam
férias nas luas de Saturno e recebem as senhas das roletas em todos os cassinos
da região em que trabalham. O que prova que, por mais que se disfarcem em
truques da diplomacia, os burgos continuam em pleno funcionamento.
ZUCA SARDAN
Com a
revolução tecno-informático-pestilenta do novo Milênio… a Diplomacia e a Igreja
precisam inventar novos truques e maravilhas com seus ases-de-colete.
FLORIANO
MARTINS
Mas o que se
vê é justo o contrário, essas duas sopas do enforcado nos afogam a alma, somos
puxados pelos pés para o fundo do prato. Dos púlpitos televisivos ao
malote-suborninho, das passeatas pela fé aos jatinhos fretados para os paraísos
fiscais, os truques, se em algo mudaram, foi na desfaçatez à mostra.
ZUCA SARDAN
Pois é, se
agitam e agitam em louca paixão. Mas o Colégio Prututa é a Glória Supina da
América Latina…
FLORIANO
MARTINS
…e os
terninhos dourados tocam suas maracas no embalo das luzes psicodélicas: quem
vem, quem vai, ainda ontem eu fui atrás do jabá na terra santa, Sulamita piscou
alto, me pedindo uma guarida, dei pra ela um bom repasto, na janela do
trem-bala, chaca-chaca, cam-cam, quero ver quem vai levar maraquinhas pro
velório, quando o deus bater as botas, só o diabo vai dançar…
ZUCA SARDAN
Não creio
que o Diabo dance se acaso Deus morrer… Porque se tal acontecer ele terá
trabalho acumulado… terá de seguir na sua faina noturna de organizar sabbaths e
propiciar alguns estripamentos e presidir missas de seus fiéis demoníacos, mas…
teria doravante de se ocupar também dos fiéis cristãos, e se fingir de Deus em
suas missas… para perdê-los. Afinal… o Diabo é preguiçoso, e já reclama de seus
pesadíssimos encargos. Telefonaria para Deus para convencê-lo a não morrer. E
diria:
DIABO
Sigai vivo,
Santo Padre!… Não vos deixe morrer. Nós todos, eu sobretudo, mais do que
qualquer outro Arcanjo, ou Demônio, preciso de Vós!…
DEUS
Deve estar
havendo algum engano, por aqui chegaram notícias da dança macabra improvisada
por alguém que desconheço, mas quando vi do que se trata até ri. Todos sabem da
impossibilidade da morte se abater apenas sobre um de nós. Fosse assim, cá
entre nós, tu mesmo já terias providenciado a minha morte, confesse. Ou mesmo
eu, porque há momentos em que me causas um desconforto atroz.
FLORIANO
MARTINS
Um antigo
bedel do Colégio Prutuca me disse certa vez que a peleja entre Deus e o Diabo
sempre foi superestimada, como modo de identificar as posições tomadas por
alunos e professores. As duas figuras totêmicas, segundo Fragismundo, o bedel,
sempre viveram em boa harmonia, quando muito Deus se irritando com o excesso de
humor do Diabo.
ZUCA SARDAN
Acho que o
humor do Diabo é mais escancarado… Deus se irrita é com a bulha e escarcéu que
o Diabo faz de suas piadas… ri às gargalhadas, rola no chão de rir, se
acha um grande humorista e ri por ele próprio e para seu assustado auditório.
SINEIRO
(Imitando
a gargalhada do Diabo.) Ahhhhhrrhhsaahhhasshhaaaahhhhh
Talvez seja hora de um breve intervalo, nossos convidados, bem como os
alunos e mestres, merecem beber a água Cambuquira e fazer um pipi. Fidelia
Santos, nossa fidedigna maquiadora, também deve retocar a maquiagem de Zuca
Sardan e Floriano Martins, que logo retornarão ao convívio de todos, para a
etapa seguinte de seu improviso patafísico.
[…]
Tomem seus lugares, que recomeçaremos. Nossos convidados já estão
prontos (na verdade, eles sempre estão prontos) para a segunda parte, luzes,
testando o som, silêncio, vamos lá:
ZUCA SARDAN
Prezado
Público, que bom ver-vos todos de novo!… Como sois fiééééisss… sniff-sniff… (Puxo
discreto do bolso um lenço e assoo e fungo o nariz.) FOOOONNNNGGG!!!
PÚBLICO
(Em
delírio.) BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!! paff-paff!!! plac!!!
Ziiiffft BANNNGGG!!!!!! BOOONNNGGG!!! (Aplausos frenéticos, bate-pés,
foguetes.)
ZUCA SARDAN
(Em
lááágrimas.) Aaaai, que emoção… nunca fui tão bem recebido assim!!… Em
meus oitenta e tais anos de carreira, nunca recebi uma recepção tão entusiasta…
mercy mercy…. (Procuro disfarçar a fungada inicial.)… Pois é… eu sabia
que vocês iam gostar da minha música concreta… Antes, costumava fazer com pente
e naco de papel…
DONA EDMÉIA
(Da
primeira fila…) Bravos, Zappa, sua assoada foi comovente, música concreta
sentimental!… Nós adoramos você!!!
PÚBLICO
(Em
delírio.) Zappa!!! Zappa!!!
Zaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaappaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaazaaaaappppaaaaaaaaa!!!
ZUCA SARDAN
(Surpreso.)
Mas há um enganinho… não sou exatamente o Zappa… mas enfim… quase… eu sou o
Zuuuuuuuuuca!!! com UUU do Cassino da UUUURCAAAA!!!
DONA EDMÉIA
(Surpresa.)
Zuca?… Que Zuca?… Ora Zappa, você sempre aprontando esses truques!… Pensa que
me engana?… Ah, Zappa!… você é danado!…
ZUCA SARDAN
A Senhora
não se lembra de mim?, em tantos e tantos espetáculos!, no Theatro Cyclame, no
Cine Azteka, na Tevê Medéia, programa de calouros …
HORÁCIO
(Irritado,
para Edméia.) Está vendo só, Edméia???… Eu lhe disse, esse velho coroca não
é o Zappa!!!
DONA EDMÉIA
Ele
envelheceu, Horácio, nós todos sniff-sniff… todos en-ve-lhe-cemos, Horácio… que
tristeza… mas é preciso sabermos envelhecer…
HORÁCIO
Envelhecer
um Naaabooo!!! Este Teatro cometeu um Esbulhooooooo!!! Botou em cena este velho
coroca, com o nome do Zappa!!!…
PÚBLICO
(Súbito
enfurecido.) Peeegaaa!!! Maaataaa!!! Esfoooollaaaaaaaaaaaa!!!
Fooooogooooo!!!
BEDEL
(Surdina,
pro Arauto.) Está vendo só, Arnaldo?… O truquezinho do erro de ortografia
que o Gerente inventou, deu cagada!!!… Anuncia presto a entrada do Floriano, ou
esses psicopatas vão nos esfolar…
ARAUTO
(Pálido.)
Prezado Público!… E agora com vocês o fantástico, fenomenal…
Floriaaaannnnnoooooo!!!…
FLORIANO
MARTINS
Pelo visto
não há outro modo dessa Torre Louca ser permanentemente reerguida, senão
provocando suas múltiplas quedas e seus estardalhaços. Por vezes algumas dessas
quedas nos jogam bem longe do lugar de seu impulso. Veja o que aconteceu agora,
e não me refiro à confusão entre os nomes de Zappa e Zuca, mas sim às reações
do pasto escolar, na verdade, uma deformação de identidade do que deveria ser o
auditório da Escola das Marrecas e vejo agora que por instantes caímos em outra
fatia espacial, um teatrinho com seu público histérico, naturalmente se
sentindo enganado pela confusão entre gato e lebre. Creio que foi justamente ao
assoar o nariz que Zuca Sardan desmoronou uma realidade e outra se pôs em seu
lugar. Talvez agora o Arauto tenha refeito a ordem destrambelhada. Isto nos
leva a crer que a lógica está sempre por um fio, que os alunos do Colégio
Prutuca devem aprender que a verdade, ao contrário da mentira, é o que se
deseja ouvir, e não o que de fato ocorre. O mesmo se passa com a ordem ou
qualquer outro sistema tubular de apreensão de bens e costumes.
ZUCA SARDAN
A Lógica é
uma velha Governanta severíssima, que nos quer fazer todos rezarem por sua
cartilha, e está sempre do lado dos grandes batalhões. Seu filho Progresso
já nos pregou boas peças. Subconscientemente, Dona Randyra e Doutor
Pastilha conseguem manter Dona Lógica fora do Colégio Prutuca. Se fossem
defender-se conscientemente, Dona Lógica já teria tomado o comando do
Prutuca. Navegando nas suas Caravelas, os Prutucas deixavam a Lógica no porto.
FLORIANO
MARTINS
O porto não
via nisso grande negócio, por meses a fio tinha que acomodar entre suas cordas
e barris os retalhos encardidos da Lógica, que atazanava a vida das tripulações
em terra. O oceano é um canto de sereia, uma terra prometida que se enrola toda
na linha do horizonte. Os fios do crepúsculo atiçam as veias dessa senhora que
adora se prostituir quando alguém dá por sua falta. As caravelas deixaram para
trás suas réplicas em tamanho original, onde os marujos se escondem pelas
noites disputadas entre cartas e rum. O Colégio Prutuca possui duas rotas de
navegação: uma que se estende pelas bordas do planeta e avança com a fúria das
corredeiras, e uma outra que se infiltra nas torres e corredores, zombando com
o inconsciente seletivo sempre que este se atreve a corrigir as rondas do
conhecimento.
ZUCA SARDAN
El Rey Dom
Joaquim teve então a genial a ideia de mandar a Lógica empacotada para França e
Alemanha, onde ela fez um sucesso absoluto na Sorbonne e na Universidade de
Berlim, consultada e adulada pelos maiores filósofos e cientistas daqueles
tempos, e até hoje segue na Rita Parada. Desde então ela nunca mais voltou para
Portugal ou para o Brasil.
BEDEL
(Surdina
para o Arauto.) E agora, Arauto, começamos a baixar a cortina?…
ARAUTO
Precisamos
achar um disco com uma música triunfal para tocar enquanto a cortina estiver
caindo. Veja se acha por aí um com a 9ª Sinfonia do Beethoven…
FLORIANO
MARTINS
Desde quando
entramos aqui na Escola das Marrecas, para esta conferência-automática, que
soubemos que experimentaríamos um loop temporal do qual só teríamos uma única
chance de escapar. Uma senha disfarçada em algo que até aqui desconhecemos
seria a forma possível de desativar seu mecanismo. Como quem soletra alguns
pequenos vícios, trouxemos na algibeira invisível esses dois cabrestos e suas
palhaçadas: Bedel e Arauto. O primeiro deles possui uma fixação por cortinas, e
só lhe interessa fechar as portas, por vezes até mesmo antes de se desvendar o
interior dos vislumbres. Já o Arauto, este só se realiza ao inventar cenários
incompatíveis com os mistérios investigados. Um falsifica rótulos; o outro,
tramelas. E nisto tanto se assemelham com a realidade que nós dois corremos o
risco de ser devorados pelo joguete teórico de seus ardis. Mas Zuca, antes de
nossa chegada, veja que sorte, o diretor geral do Colégio Putruca mandou para a
lavanderia todas as cortinas do auditório. Graças a ele soubemos que outra das
questões clássicas dos exames anuais era: as cortinas encerram o que viram ou
descerram o que não viram?
ZUCA SARDAN
Questão
dificílima… o Arauto, distinto e discreto, diz que as cortinas dos melhores
teatros encerram o que viram. E o Bedel, falastrão irresponsável, acha que
elas descerram o que não viram, para gáudio dos bons safados e alertas
malandros.
FLORIANO
MARTINS
No entanto,
o que se vê nem sempre é o que de fato está no lugar da visão. A miragem é um
truque barato da verdade que se quer descoberta. Basta que o Bedel se passe por
Arauto ou vice-versa, e logo confirmamos que a ilusão é uma cimitarra cega,
esquecida em um baú dos templários, que protege uma história que certamente se
passou de outro modo. Quem terá mesmo descoberto a América? Quantos barris de
rum ainda hoje estão enterrados em terras caribenhas?
ZUCA SARDAN
Quem
descobriu a América foi um mascate sírio-libanês, que veio vender espanadores e
rádios-de-pilha para os amerabas, a preços de liquidação.
FLORIANO
MARTINS
Interpelado
sobre o assunto o adivinho Rubaiatinho Vega não pestanejou ao afirmar que os
espanadores eram feitos com penas do abutre-barbudo dos Açores que, renascidos
como a gloriosa Fênix, da poeira mítica de nosso solo, abriram as suas asas
sobre o monte Pascoal, espalhando fome e miséria pelo infinito das gerações,
garantindo assim a sobrevida de seus sucessores, os urubus-de-cabeça-preta.
ZUCA SARDAN
Belíssima
parábola, engajada, em louvor das espécies ameaçadas que sabem se defender. Os
urubus-de-cabeça-preta mostraram que tudo é possível, havendo perseverança.
Doutor Roskoff escreveu um longo tratado de 27 volumes, para provar que os
urubus-de-cabeça preta são descendentes da gloriosa Fênix.
FLORIANO
MARTINS
No volume
dedicado às singularidades peçonhentas que tinham como principais predadores
justamente os urubus-de-cabeça-preta, Wols Roskoff recolhe depoimentos de
figuras negroides que viram como eram preparados os ninhos de centopeias em
cavidades abertas em lombos de animais, um truque das aves de rapina que assim
preparavam um alimento dentro de outro. Essa teoria ajudou a desvendar os
mistérios da dupla identidade de muitas espécies.
ZUCA SARDAN
Arauto e
Bedel fumam cigarro e bebem cerveja por trás da cortina, e de vez em quando dão
uma espiada pela fresta...
BEDEL
E agora,
Arauto, achas que o Wols Roskoff aparecerá, para explicar ao público sua teoria
da dupla identidade de muitas espécies?
ARAUTO
Se avisarem
ao Doutor Roskoff que sua teoria está sendo objeto de tão grande atenção…
seguramente aparecerá aqui em poucos minutos com um malão de rodas repleto de
seus tratados… e nunca mais sairemos daqui… a não ser… que haja uma revolta
comandada pelo Doutor Pastilha.
BEDEL
A Revolta do
Pastilha?… Creio que no Colégio me ensinaram isso, mas não me lembro direito
como foi…
FLORIANO
MARTINS
Nem de longe
a direção do Colégio deixaria voltar a seu território o desordeiro Roskoff que,
apesar da disciplina invejável em seu método de pesquisa e organização de uma
extensa obra reflexiva, tem verdadeiro frisson pela bagunça, desavenças
intelectuais e incitação às revoltas estudantis. Dentre elas, claro, a mais
famosa é a do Pastilha, que dizem ter sido influência de Wols no currículo
manchado do Douto Pastilha. O Colégio desde então destituiu por completo a
doutrina do livre pensamento que tantos desassossegos trouxe para sua rotina
eclesiástica. Na época dessa célebre revolta, Zuca, eras do quadro docente da
escola ou não? Conta-nos um pouco o que se passou e logo falarei da teoria da
dupla identidade.
ZUCA SARDAN
A revolta,
na realidade, foi uma briga dos alunos do Colégio Prutuca contra os ginasiais
do Lyceo Pytanga. Uma espécie de réplica da batalha final da famosa guerra
da roceira e ignara Sparta, no caso o Colégio Prutuca, contra a erudita e
refinada Athenas, no caso, logicamente, o Lyceo Pytanga. Reytor Finel, eminente
pacifista, que foi consagrado na Conferência da Paz de Amsterdam, quando foi
intitulado pelo Príncipe de Nassau de O Papagaio de Amsterdam, em razão de sua
loquaz erudição, teve foto publicada no famoso vespertino Telegraaaph –
com três a, para diferençá-lo do Telegraaph, um
periódico rival, após batalha jurídica sobre direitos autorais do título até
então idêntico, dos dois afamados vespertinos. O artigo era de primeira página,
com vários pontos de exclamação. Reitor Finel, embora sagaz conhecedor do grego
e do latim, escorrega um pouco no batavo, de que os erres carregadíssimos lhe
dão dor de garganta. Assim, embora certamente fosse artigo de merecido elogio,
estava praticamente ilegível para nosso articulado Papagaio de Amsterdam. Dona
Randyra, porém, insiste em que o Colégio Prutuca é mais moderno do que o
esclerosado Lyceo Pytanga, porque o Reytor ficou atrasado na História
Contemporânea, e nada sabe, por exemplo, da gloriosa alunissagem do foguete
estadunidense, quando eles, alunos do Colégio Prutuca, plantaram a bandeira
nacional no solo da Lua. Isso é coisa que todos alunos do Colégio Prutuca
sabem, mas não se gabam, com sua discrição espartana. Mas, e os frajolas
escolares do Lyceo Pytanga? Ainda estão estudando a História de Napoleão… Os
estudos, no entanto, param quando Napoleão se prepara para entrar em Moscou.
FLORIANO
MARTINS
Quando a
Torre Louca foi erguida, o mundo já dava por bastante evidente o atraso
humanístico do Lyceo Pytanga, que não só havia repudiado as teorias de Wols
Roskoff, como dois de seus eminentes professores havia movido uma sórdida
campanha sobre a bombástica conferência deste intitulada “Como a história chega
ao fim”, em que prova que a queda dos contextos sociais se deu por não
aceitarem que no íntimo seriam sensuais seus mais relevantes contextos. Roskoff
defendia ardentemente que a felicidade só encontra caminho na escuridão através
das relações sexuais. A grande revolução social buscada de todas as partes só
alcançaria êxito com a imprecisão provocativa dos festejos anatômicos. Os mais
atrevidos saiam pelas ruas exibindo cartazes onde se lia Tudo no mundo
é sexo ou A vida é uma festa. Uma parte dessa quermesse de
ousadias foi apropriada pelo Colégio Prutuca, mais progressista, mesmo assim
com alguns estribilhos invertidos. Somente as partes devem ser copiadas tornou-se
o apotegma preferido dessa nova ordem do conhecimento. De modo que a escola
orgiástica foi acusada de estupidez orquestral, e teve decretada sua expulsão
da grade curricular. Foi nessa mesma época que Wols Roskoff ampliou a sua
teoria da dupla identidade, em que descrevia o modo como os corpos de distintas
famílias animais se sobrepunham – priorizando o encontro entre predadores e
vítimas, e não os concertos amorosos – mesclando as identidades, sem que uma
ocupasse lugar da outra, antes criando um híbrido em que as mais perigosas e
incompletas rotas eram traçadas. Roskoff também fora acusado de não apresentar
sustentação para seus disparates, porém ele argumentava que ao dar exemplos
estaria regulando o assunto, livrando-o de seu repertório amplo de
experimentos. A situação piorou quando ele deu nova conferência, “Sobre os
microfones remendados”, onde fazia a plateia entender que estava sendo
conduzida ao abismo, por efeito de indução, onde a história a todo instante era
retorcida e viciada em duas ou três frases torpes.
ZUCA SARDAN
Doutor Wols
Roskoff é um personagem polêmico. Foi visitar Doutor Zig Froyd, e o sábio
austríaco, após breve conversa, pigarreou discretamente…
ZIG FROYD
Prezado
Doutor Roskoff, vossa Libido pirou, e vossa Esfinge quer trepar com todo mundo.
Deveis vos submeter a uma psicanálise intensiva, com a máxima urgência. Estais
em avançado estado de alienação mental. Sendo vós um brilhante colega,
proponho-me a psicanalisá-lo gratuitamente. Não há tempo a perder.
WOLS ROSKOFF
(Levanta-se
digno, bota chapéu, empunha a bengala.) Prezado Doutor Froyd, malgrado
vossa genialidade, o Tempo passa… vossa Psicanálise vai-se tornando demodê e
ultrapassada. A Revolução da Liberação da Libido já está em avançado processo.
Vossa Psicanálise não conseguiu se libertar da repressão moral burguesa. E a
revolução marxista-leninista tampouco. Não contam, mas acreditam que a Religião
e Bons Costumes servem para conter a população numa certa disciplina, até que
se imponha a moral operária. Agora, preciso partir. Tenho outros importantes
compromissos marcados. Até mais ver.
ZIG FREUD
(Apertando
o botão da campainha.) Meu mordomo virá acompanhá-lo. Meus melhores
augúrios para uma frutífera e agradável estada em Viena. (Entra o Mordomo
chinês Fong Pó, faz respeitosa carambola, e conduz Doutor Roskoff. Saem os rumo
ao elevador. Sete minutos depois, Zig Froyd aperta o botão da campainha,
aparece o chinês, e perfaz nova e original carambola.) Pois então, Fong Pó,
e Doutor Roskoff?
FONG PÓ
Muito amave
e convessadô. Deu-me de presente, autoglafado, seu livlo de sakanage.
FLORIANO
MARTINS
A verdade é
que a perfumaria libidinosa de Zig Freud não contava com a prescrição, os
frasquinhos sequer referiam a data de validade, assim que a clientela foi
dando, com o tempo, pela perda de efeito daquelas essências, xiringavam mais e
mais o conteúdo das garrafinhas e a tal revolução sexual mais parecia haver
chegado ao fim.
FONG PÓ
Sô Dotô,
queu faz com esse estoque de frasquinhos de libido que ainda estão encaixotados
na despensa?
ZIG FREUD
Não tenho
mais idade para atender aos ditames do tempo e suas charadas de pé-quebrado.
Consulte o Lô Pradinho, peça a ele que refaça rótulos e embalagens, nosso spray
agora será utilizado para remover furúnculos. Vamos batizá-lo de Flor de
Abcessos, que tal? E diga ao Pradinho que não me cobre nada, pois ainda me
deves portentosos favores, por haver guardado segredo dos crimes de sua irmã e
das vezes que ele mesmo estuprou a criada tailandesa.
FLORIANO
MARTINS
A decisão
coincidiu com a invasão no mercado dos antidepressivos que deram o tiro de
misericórdia na libido. De um modo ou outro, Zig Freud saiu vitorioso, como
sempre acontece com os mais astutos patifes da história. Hoje o desejo foi
completamente canalizado para o consumo de marcas de ocasião. O Colégio Prutuca
até agradece, uma vez que o sexo voltou a ser mecânica de reprodução.
ZUCA SARDAN
A mecânica
da reprodução, como diz Doutor Gambetta, deve ser mantida, para garantirmos a
renovação do proletariado. Quanto à renovação da classe empresarial, se os
próprios empresários não a garantirem, jovens proletários, alugando ternos
chiques na loja do Rolhas, se infiltrarão discretamente na Elite, e começarão a
assumir postos cada vez mais elevados.
FLORIANO
MARTINS
As casas
lotéricas, as escolas de teledramaturgia e as regras eletivas definidas pelo
Tribunal das Cadeiras Vazias têm sido associados intrépidos das jornadas
evangélicas e sua estratégia de desmoralização da classe intelectual e
infiltração do dogma da sacolinha.
ZUCA SARDAN
FLORIANO
MARTINS
Em meio a
esse vendaval de descalabros, ninguém poderia suspeitar que viéssemos ao menos
a refletir um pouco sobre a condição macaqueada de nossa cultura graças a um
livro ditado por alguém que jamais soube ler ou escrever. Quando as línguas já
haviam se convertido em guetos de impossível inter-relação, e o planeta se via
devorado por um esperanto de uma centena de palavras que se repetiam
descaradamente variando significados ao vento da ocasião, justo neste
periclitante momento, Astor Quemedera reúne três amigos que aceitaram escrever
seus relatos autobiográfico e surge assim O frasco das veleidades,
suas observações da decadência de uma época onde os idiomas perderam o viço e a
cultura – agora de missas & massas – tornou-se uma emboscada para fritar o
cérebro daqueles que ainda insistiam no valor sagrado do indivíduo.
ZUCA SARDAN
Descoberta a
esparrela da Serpente, e expulsos Adão e Eva do Paraíso, que se encontrava em
Pindorama, como demonstrou o Doutor Pastilha, os bichos foram rapidamente
abandonando o Paraíso, e só ficou o Papagaio, puxando papo com o Arcanjo
Sentinela, que, isolado naquele matagal amazônico, prazerosamente conversava
com o Papagaio… E assim o Papagaio foi o único bicho, que até hoje, ainda sabe
falar.
FLORIANO
MARTINS
E hoje fala
um melhor português do que todos os ilustres afivelados do Colégio Prutuca.
Levaria uma vida folgada, entre suas incontáveis conquistas com as galinhas das
feiras e velórios, não fosse um destempero que lhe acometeu a alma ao deixar
cair no chão a caixinha onde guardava em arranjo cronológico as plumas de todas
elas, troféu invejável de seus amores galináceos. Com o objeto despencando no
chão as peninhas se espalharam por toda parte e é como se, de súbito, toda a
sua biografia embaralhasse as páginas manuscritas. O pobre Papagaio ainda fala,
porém não mais lhe apetece sequer olhar para um poleiro.
ZUCA SARDAN
Como parou
de falar o Papagaio… seu dono, um Chofer de caminhão que o levava em suas
viagens para ter com quem conversar, vendeu-o por uns reles cobres, a um
trapeiro, durante uma parada, num posto de gasolina.
FLORIANO
MARTINS
Esta súbita
mudança de cenário ocasionou uma verdadeira alteração de significado da própria
vida, Salazar, o Papagaio, reconheceu no trapeiro o seu guia espiritual. Passou
a acreditar em coisas do fim do mundo e mesmo que tenha emudecido descobriu um
modo de eletrizar as pessoas convencendo-as de que algo se aproximava e levaria
consigo toda a vida no planeta. Alê Justino foi o nome de batismo que Salazar
deu ao boneco de ventríloquo com que lhe presenteara Salazar. Algo inusitado um
mudo e seu boneco falante, mas a vida a essa altura tornara a fé um imperativo,
por mais disfarçada de loucura ela se apresentasse. No que se desentendiam os
dois, Salazar e Justino, era justamente no que diz respeito ao aclamado fim do
mundo.
JUSTINO
Não pode
haver um fim do mundo generalizado, pois o fim das coisas é um conceito
individual, e até mesmo em cada pessoa ele sofre alteração. Deste modo, há
infinitos fins de mundo, e o próprio mundo difere de um para outro de seus
habitantes.
SALAZAR
Mas que
raios de confusão estás fazendo, seu pasto de cupins, é de uma metáfora que se
trata, uma alegoria que aponta na direção de um término de sentido, as coisas
deixam de ser como pensamos, e nós mesmos deixamos de ser o que acreditávamos
ser.
FLORIANO
MARTINS
O Chofer de
caminhão talvez tenha dado a Salazar uma nova razão de ser, um boneco de
ventríloquo que possuía livre-arbítrio costurado em sua cabeça. Alê Justino
parece ter sido uma vingança daquelas galinhas todas que caíram no bico de
Salazar.
ZUCA SARDAN
Papagaio
Salazar tem sua imagem projetada para a Posteridade, aparecendo ao ombro do
Almirante Vasco da Gama, vendo-se ao fundo, no lusco-fusco, as belíssimas tetas
de Thétis, a deliciosa Nereida do Gama. O afresco, na parede dos fundos do Bar
Caravela, tem autoria contestada, uns dizem que seria do Victor Hugo;
outros, mais patrióticos, afirmam que é do Victor Meirelles, o genial pintor da
Primeira Missa do Brasil.
FLORIANO
MARTINS
As pequenas
mechas de uma civilização à deriva radicam nessas dúvidas de quem pintou a
Bartira, quem surrupiou a bandeira, quem escondeu em um dos baús de miçangas o
sextante imperial. Para muitos, essas proezas eram nosso dote de alta molecagem
indígena; para outros, os primeiros granulados das prevaricações que se
alastrariam por toda a terra pátria.
ZUCA SARDAN
Acho que o
Brasil nasceu de uma mistura originalíssima de três raças com mitos milenares
completamente diferentes, e que criaram esse misterioso e imprevisto poço sem
fundo, onde esses três mythos coletivos são obrigados a conviver numas
parcerias e arrumações que nós, na superfície, sabemos que existem, e que até
inconscientemente utilizamos, mas não sabemos como se entendem, e ajeitam suas
contradições, e nem os Três Mythos querem que saibamos, para que não comecemos
a querer ordená-los e… progredirmos, segundo as ideias iluministas agnósticas
em que o Doutor Pastilha se esmera.
FLORIANO
MARTINS
Os três
mitos efêmeros consagrados ao Lugar Nenhum, por onde as terras se alongam e se
contorcem, com suas espeluncas e vapores descarnados. O grande Vazio de raças
envelhecidas na poeira dos pecados e estações. Tanto esses mitos se misturaram
que já não se reconhecem do outro lado do labirinto. À sombra do fim dos tempos
sempre enlaçamos novas arrumações que nos fazem retornar ao catecismo original.
Desenterramos um aparelhinho capaz de acidentar os polos. No centro do país
construímos uma caixa onde amontoamos todos os fardos da história. Olhando do
alto podemos ver a quilha emborcada das caravelas, estatuetas do candomblé, os
requebros de Jandira, ossuário de pequenos martírios, os olhos desterrados da
graúna. Tudo ali amolece e se embrulha e quando metemos a mão colhemos ao acaso
o símbolo de uma nova gestação. Sempre a mesma praga ilusória, o mesmo quinhão
de desculpas, a mesma cama onde nos enfiamos todos para uma última oração
carnal antes da caixa ser fechada e reaberta.
SINEIRO
Será que
desafinamos por todos os poros e jogamos ao mar as nossas ilusões de um povo
que jamais caiu em si?
ZUCA SARDAN
Se o Povo
não cair jamais em si… segue tudo como dantes, o que é mais provável. E tanto
melhor. Sobretudo se não caírem em cima de nós. Até agora escapamos porque não
somos subversivos, mas somente um poucochito desbocados. O
Marechal Ferrolho nada tem contra nós. Mas imagine se a Revolução
Marxista Popular ganhasse!… O que faríamos nós?… Ler Marx?… Que suplício
de Sisypho!… Ao chegar às últimas páginas, já teríamos esquecido o começo!… E o
Lênin? Poderíamos ler as páginas esportivas da Pravda… Mas isso não
satisfaria ao Conselho de Reeducação Popular. Teríamos de ler todos os tratados
de Lênin e fazer um teste de Conhecimentos Básicos do Materialismo Dialético. E
só poderíamos sair do Internato de Reeducação quando passássemos no exame.
Parece que Confúcio, após ter vários de seus bustos quebrados, finalmente
conseguiu… Mas nós, o que faríamos no Internato?… Talvez tocar umas rumbas!…
Rumbas Cubanas!… Nas maracas!… e um pouquito de rum… com uns
pasteizinhos da China… Chaca-Chaca-Chaca…
SINEIRO
Pior do que
antes de finalizar a leitura de um livro haver esquecido como ele começa é ir
aos poucos descobrindo que não se encontram o passado da leitura com a leitura
do passado.
FLORIANO
MARTINS
A ideia de
um livro que vai perdendo propósito na medida em que é lido, porém mesmo assim
nos sentimos forçados a ir até a última página, onde se supõe esteja guardada a
chave para um novo mundo. O protagonista de nossa epopeia é filho de Jeová e
Iemanjá, e escondeu seus santinhos no interior do busto sobrevivente de
Confúcio e um retratinho da Cobra Norato.
SINEIRO
Depois foram
todos chorar na fonte dos três poderes…
FLORIANO
MARTINS
Na prova de
religião, o desafio maior estava na decisão a ser tomada, se a primeira missa
teria sido rezada em favor da cama ou do mosquetão. Uns tiros para o alto e os
lençóis ao chão.
ZUCA SARDAN
(Voltando
ao palco, de pasta, chapéu e bengala, que coloca ao lado e ao espaldar da
cadeira, e distribui sobre a mesa umas tantas folhas garatujadas, pluma de asa
da graúna, tinteiro, rádio-galena, e ajeita o pincenez.) Pois é, minhas
cenouras e barões achinelados, cá tendes o vosso fiel conselheiro de volta,
para alertar-vos dos perigos meteorológicos e geológicos, furacões e incêndios
vorazes destruindo metrópoles e florestas, além de chuvas diluviais que
carregam casas e caminhões de cambulhada, enquanto o furo polar não pára de se
alagar e aprofundar… tudo isso numa aceleração vertiginosa, enquanto os
micropatas seguem festivamente matando milhões de pessoas em todas as cidades
do Globo. Isso no Mundo Physico. No Mundo Metaphysico, Frei Feijão telefonou
pra São Belarmindo, um santinho modesto, que não aparece em nenhuma folhinha de
calendário, mas que é bem esperto e sabe das coisas profanas e divinas.
Ouçamo-los falar no meu rádio-galena, que ora ligo aos gramofones do auditório.
FREI FEIJÃO
(Discando
o telefo, tric-tric-tra-truc… BRINNNGGG!!!) Alô, SÃO Belarmindo, como vai,
meu Santinho?…
SÃO
BELARMINO
Alô, meu bom
afilhado Feijão!… Por melhor que seja o Arroz, sem Feijão não há Feijoada!…
FREI FEIJÃO
Mas comé
cossenhor adivinhou quera eu ao telefon?… Fez um pequeno milagre?…
SÃO
BELARMINO
Não foi
preciso, Jãozinho, tua voz roufenha é inconfundível… As beatas para os teus
sermões devem usar rolhas…
FREI FEIJÃO
Realmente,
São Belarmino, elas não soltam um pio… Como o Senhor sacou que elas botam rolha
na boca?…
SÃO
BELARMINO
Elas as
botam nos ouvidos, Janjão… Até a próxima, rapaz. Preciso sair. Xaaau!… (Plofft!!)
FLORIANO
MARTINS
Mas era só
isso? Os alardes patafísicos que intrigaram Cama & Mosquetão continuam
sendo desprezados pelo Clero, sequer tocam no assunto. Enquanto isto as rádios
alardeiam que o mundo pode acabar a qualquer instante, e que os fiéis devem
ficar em casa desenhando cenas apocalípticas, segundo o evangelho de Frei Feijão.
Desse modo, o mundo acaba antes do fim.
ZUCA SARDAN
O Mundo não
acaba antes do fim, porque o FIM também será comercializado no Comércio Global,
atingindo preços faraônicos nos mais famosos Leilões Internacionais.
FLORIANO
MARTINS
Evidente que
a ideia de um loop temporal clássico motivado por preceitos metafísicos não
vingou e o mesmo acabou sendo absorvido pelo Grande Capital. Claro, claro, o
que esperar de uma gente que comercializa santinhos e seringas descartáveis!
Assim é que nem mesmo precisamos fechar os olhos para cair naquela espécie de
circular dos infernos, moviola dos presságios magnéticos, e zoom: de volta aos
exames do Colégio Prutuca, cuja intrigante questão de hoje é saber como
eliminar a água nadada na medida em que damos braçadas na lagoa.
ZUCA SARDAN
Difícil
pergunta… Não creio que nenhum dos alunos saberá responder. Doutor Pastilha
está exagerando na severidade. Enquanto isso o Arcanjo Arnoldo pousa
no teto do Colégio Prutuca, com uma Trombeta!... Virá certamente anunciar
o Juízo Final. Dona Cremilda, professora de Theologia viu o comportamento
suspeito Arcanjo, e resolveu avisar Doutor Pastilha.
DOUTOR
PASTILHA
Um Arcanjo
no telhado, Dona Cremilda? Melhor avisar nosso Bedel, para que suba lá em cima
e pergunte-lhe o que está afinal querendo aprontar…
FLORIANO
MARTINS
Não creio
que os arcanjos revelem seus segredos. As mais inconvenientes trapaças que eles
costumam fazer escorrer pelas calhas ou quando aguardam de soslaio para
provocar topadas nos passantes, nada disto teria efeito se revelado
antecipadamente.
BEDEL
Seu Arcanjo,
desce daí oh moleque sorrateiro. Entre lá pela cozinha que vou te dar um suco e
os bolinhos de Madame Gervásia.
ARCANJO
Já me
falaram tão mal desses bolinhos que prefiro comer os matinhos que nasceram aqui
entre as telhas. Porém se queres algo fazer por mim, agradeceria um emprego de
jardineiro.
FLORIANO
MARTINS
Não disse. E
mesmo o que o teria levado a sair do jardim celeste, é algo que jamais
saberemos. Mas acho que ele poderia cuidar bem das flores terrenais, incluindo
as meninas da lavanderia. E ainda podemos fazer com que nos prepare um novo
carteado de arcanos maiores, pois aquele que Frei Dalí doou ao Colégio já está
se desmanchando todo de velho.
ZUCA SARDAN
Aí está a
chave do Mystério!!! O Arcanjo no telhado é o mesmo que expulsou Adão e Eva do
Paraíso, e lá passou um tempo para não deixar malandros e
vagabundos entrarem!… Mas… durante sua estada no Jardim edênico, aprendeu
e se encantou com a arte da jardinagem!…
FLORIANO
MARTINS
A chave do Mystério
costuma abrir as mais inesperadas portas. Em uma dessas vezes, em um quartinho
de fundos na lavanderia do Colégio Protuca demos de cara com nosso bom Sineiro
festejando sandices com duas belas morenas.
SINEIRO
A culpa foi
dos pacotinhos de amendoim que encontramos em uma das prateleiras do velho
armário.
FLORIANO
MARTINS
As morenas
riam por toda a pele e nem uma gota de vergonha pingou de seu olhar levado. Mas
havia algo de verdade naquela desculpa esfarrapada: o chão estava tomado de
saquinhos secos de amendoim. Em todas as dependências do Colégio Prutuca sempre
se podia encontrar o propósito original que tão bem definia aquela casa do
saber: não se pode desperdiçar um grão de curiosidade, sob pena das ervas
daninhas ocuparem os cérebros estudantis.
Madame Gervásia entrou no palco com uma bandejinha com chá verde e seus
famosos bolinhos de gengibre. Os palestrantes se entreolharam sem saber como
evitar aqueles petiscos. A velhota pesava tanto que mais se arrastava, em seu
excesso de roupa, do que propriamente andava. Algum parentesco com crocodilo
ela devia ter. Doutor Pastilha disfarçou uma descuidada traquinagem com uma
bengala que levou ao chão a bandeja. Entraram em cena as duas morenas que o
Sineiro havia batizado de Dalila e Denira, postas de quatro no chão limpando a
bagunça aprontada pelo Doutor Pastilha que afanara a bengala zuquiana, e agora
distraidamente vasculhava o interior da saia de Denira. A conferência estava
interrompida por alguns momentos.
ZUCA SARDAN
Muito bem,
Doutor Pastilha, agora passa-me de volta a bengala… e completa o exame do
recheio da saia de Denira com a mão direita, enquanto seguras com a mão
sinistra a borda da saia… E volta depois para a mesa para que assim prossigamos
a Conferência já tantas vezes interrompida.
FLORIANO
MARTINS
O mundo é
refeito incansavelmente. As bananas depois de comidas retornam aos cachos nos
bananais. O sangue retorna ao rio interior dos assassinados. O clima sobe e
desce por todas as entranhas do planeta como sinal de uma gangorra cósmica que
nem mesmo o homem consegue inutilizar. As luzes feridas pela escuridão acendem
um secreto pavio e voltam a brilhar. Loop, reencarnação, magia, estes são os
diapasões que permitem a humanidade saltar de uma catástrofe a outra. Nos
exames do Colégio Prutuca continuam firmes as questões metafísicas como prova
de que Deus e o Diabo seguem se intercalando nos papéis de Sancho & Quixote
por toda a eternidade. Uma delas exige distinguir o miolo do pudor do pão seco
do temor.
ZUCA SARDAN
A Balança do
eterno Equilíbrio deve ser mantida sempre, mesmo com pesos de um quilo de
oitocentas gramas. Da luta dos contrários nasce a grande harmonia. Nunca
se banha duas vezes no mesmo rio, nem com o mesmo sabão. A Lua emagrece, fica
preta, depois torna a engordar, fica branca. E o Sol gosta das quatro. E
mais ainda da ruiva, que não entra no Calendário.
FLORIANO
MARTINS
Os
calendários, até mesmo as folhinhas das oficinas mecânicas na periferia da
galáxia, vivem escondendo luas e pedaços de queijo, talvez dos ratos que mesmo
abandonando as caravelas a elas retornam para desbravar novas ilhas. Só o
pastel de Belém é que não consegue um lugar para garantir o eterno retorno.
Quando se despedaçam na boca das cabrochas jamais suas partículas destroçadas
voltam a se juntar para perpetuar a espécie. Deve ser a tal exceção sem a qual
não há regra que se ponha de pé.
ZUCA SARDAN
Uma regra,
para ser boa, precisa ter exceções. O número ideal de exceções é o sete. O
grande defeito das línguas artificiais é que elas não têm exceção. São
como autômatos, com gestos bem sincopados, mas desajeitados, sem graça.
Precisávamos de um gênio que inventasse um dado de sete lados. O sétimo lado
poderia ser menor, e diferente dos tradicionais seis lados quadrados. Já andei
tentando inventar esse dado de sete lados, mas ainda não consegui. Tem de ser
um dado de uma maneira especial, que não interfira no bom funcionamento desta
pequena maravilha multimilenar. Talvez cortando uma de suas arestas? Teríamos
então a face de um pequeno triângulo equilátero, cortando três das faces
quadradas (por ex. as faces 1, 2, e 4), e equilibrando todas as seis faces
quadradas.
FLORIANO
MARTINS
Este é um
problema quase sem solução, e digo que é quase porque, de outro modo não
haveria solução, ou melhor, sem exceção a solução é impossível e um dado
impossível é uma exceção sem solução. É preciso inventar um ângulo para onde
direcionar o sétimo lado. Curiosa a predileção de João, o evangelista, pelo
número sete, e, no entanto, ele jamais pensou em um dado de sete lado, o que
faz com que falte melhor perspectiva em sua visão do caos. João imaginou um
mundo em que todas as catástrofes corressem para um centro e este centro era
Deus. E o desastre era movido pelo Arrependimento, um árduo defensor do dado de
seis lados. Por absoluta falta de desprendimento, o Apocalipse se tornou a mais
enfadonha das catástrofes, junto ela, a catástrofe-mãe.
ZUCA SARDAN
O sétimo
lado do Apocalipse é oculto. O poema não pode ser considerado uma epopeia,
porque não se trata de uma História do Passado, mas sim do Futuro. Todas as
outras Profecias são referentes de um passado… do presente de quando foram
realmente escritas, tais as profecias de Daniel, que são referentes a um tempo
do futuro, mas este tempo do futuro é de um passado recente, escrito após o
suposto tempo futuro, agora também passado e profetizado. No Apocalipse há uma
técnica de flashback, em que passado (real) e futuro (profetizado)
se revezam, num estilo cinematográfico, de modo a levar a ação de um passado
real a um futuro profetizado, que jamais poderá ser comprovado e negado, visto
tratar-se do Fim dos Tempos.
FLORIANO
MARTINS
Viciado em
selos, castiçais e serpentes, é também, como dizes, a negação da exceção, pois
nada ali pode ser comprovadamente excedido ou tergiversado. Seus símbolos são o
universo do impensável. Ninguém se atreve a vive-los senão como maldição. Será
sempre uma profecia indesejável. Por isto o Chanceler Prutuca baniu tal livro
da biblioteca do Colégio. Segundo ele, o que sempre pretendeu dar a seus alunos
foi uma perspectiva múltipla dos tempos, e não a abominação da existência que,
escavando, é o que resulta das páginas do livro de João. Aliás, as dúvidas são
imensas de que teria sido o evangelista a escrever tais páginas.
ZUCA SARDAN
Pois é… melhor
escrever Profecias do Passado, tais as do Pseudo Daniel. São mais seguras do
que as que se arriscam a dar palpites sobre um futuro que nunca se sabe o que
vai afinal aprontar… Assim agora, por exemplo, parece que a Natureza finalmente
perdeu a paciência com nossa Civilização. Vírus Covid Micropata Coroca,
microscópico, mas espertíssimo, matando milhões, tanto entre os países
subdesenvolvidos, quanto entre as grandes Potências. E Furacões e tempestades
de uma fúria inaudita arrasando tudo que esteja em sua passagem. Enquanto
isso... festivos multimilionários fazem turismo sideral, se divertindo no
espaço colossal.
FLORIANO
MARTINS
Uma das
últimas boutades do Cego Borges previa justamente que chegaria
um dia em que os historiadores não conseguiriam mais prever o passado.
SINEIRO
Olhem bem, a
plateia se inquieta, vidas futuras não movem moinho, o ingresso que cobramos
tem prazo de validade, mais alguns minutos e teremos que encerrar nosso
encontro. Por que não voltamos aos exames de final de ano do nosso Colégio? Os
alunos gostam de saber a opinião de nossos doutos convidados acerca das
questões encrenqueiras que lhe foram ministradas, do tipo: tanto evoluiu a
biociência que já se perdeu a conta dos cães criados em laboratórios. Curioso
paradoxo: a identidade insubornável do ser humano foi transferida para os
animais.
ZUCA SARDAN
Prezadas e
Cavaqueiros da nossa Fiel Galera, passo a palavra ao eminente Doutor Pastilha,
Lente de Grau do Colégio Prutuca.
DOUTOR
PASTILHA
Para obviar
a trabalheira das correções de prova, no dia do exame chamo um a uma toda a
molecada, cada um se levanta, quando chamado, e procura fazer cara inteligente;
e concedo então a nota segundo a aparência e pose de cada aluno. E digo, ao
final, à turma: Na sociedade mais vale parecer inteligente e dinâmico,
do que ter conhecimento com cara de palerma.
FLORIANO
MARTINS
Foram esses
os dias de glória dessa já tão célebre casa do saber. A descoberta de que o
ensino não é o dogma do conhecimento, porém a distração eficaz que permita a
verdade nos surpreender. Chanceler Prutuca foi um precursor das lições de
ostracismo, livrando seus alunos de uma cultura mesolítica de mês e mesa bem
passados. As mudanças climáticas do prazer pelas descobertas não devem mais se
dar em face das temperaturas ou das cartilhas de bom comportamento. Segundo ele
o conhecimento deve ser produtivo e a disciplina é o segredo do avanço
civilizacional.
ARCANJO
Já vi um céu
inteiro despencar desse palanque.
ZUCA SARDAN
O
rádio-sucupira acende seu olho mágico, solta uns estalos e agora começa a
falar…
RÁDIO
Aproveitando
um curto-circuito que escureceu o auditório, o jacaré da Quinta do Ouvidor,
entra sorrateiramente no Auditório, se enfia embaixo da mesa, e mete uma botina
do Doutor Pastilha.
JACARÉ
PASTILHA
Se há algum
problema de comunicação em nosso tempo é que os isolantes se atrapalham com as
vozes que devem anular. Fica aquela história de alguém clamar por um santo e o
diabo pousar no terreiro. Quando Madame Gervásia abre sua cozinha para a
chegada quinzenal dos fornecedores, o capim já tem florido, a macieira já havia
enganado Adão, os potes de geleia se esconderam nas caixas de doce de marmelo.
Com tudo fora de lugar, ninguém se entendia com alguém e vice-versa. Nosso
plano foi bem feito e o mundo agora terá que cavar seu próprio fim, pois os
manuais evangélicos foram reimpressos como receitas de tortas de alfenim e
bolos de amendoim.
ARCANJO
Já vi uma
cama bem grande receber todas as raças.
JACARÉ
PASTILHA
Na sua Arca,
Seu Noé também recebeu todas as raças. Todos se comportaram bem, do Avestruz à
Zebra… Seu Noé dava comida e bebida a todos e também a todas, umas aves de
Portugal, que não levam acento circunflexo. Infelizmente, o casal de
Dinossauros era gigantesco, qualquer um do casal era maior que a Arca. Não
houve meio de enfiá-los a bordo. Tiveram de vir do lado de fora. Seu Noé
aprontou uma coleira com corda para o Dinossauro e outra para a Dinossaura, e o
casal vinha nadando, acompanhando a Arca. Mas o Temporal em vez de diminuir,
aumentou, e os pobres Dinossauros acabaram morrendo enforcados nas respectivas
coleiras. Seu Noé ficou desesperado, sentindo-se culpado do acidente fatal ao
amável casal. Passou então a beber… Havia trazido para a viagem uma arca
gigantesca empanturrada de garrafas de rum. Assim que, aos poucos foi
esquecendo do triste acidente… Não obstante, seguiu bebendo cada vez mais… o
Rum Pandora era o preferido na Babilônia.
SINEIRO
Talvez seja
hora de pedir aos notáveis convidados que se inspirem na boa memória que têm de
nosso Colégio e exponham suas últimas palavras, fechando essa nossa
conferência-automática, pois segundo percebi no banheiro feminino, algumas
damas estão ansiosas por um convívio maior com o Jacaré Pastilha, por mais que
estejam cientes de que se trata de pastiche.
ZUCA SARDAN
Minhas
Cenouras e Penhores, antes de encerrarmos esta Conferência, aproveito a
oportunidade para agradecer-vos o contínuo apoio que nos ofereceis décadas a
fora…
PLATEIA
Fora!!!
Foooooora!!!! Velho faraó reacionááárioooo!!! Volta pro sarkophago!!!
Foooooooooooooooooooooraaa!!!
ZUCA SARDAN
Muito grato
por vossos entusiásticos aplausos!!! As raríssimas vaias de alguns abestados
vêm testemunhar a sinceridade de vosso tradicional apoio!… Sois, bem o sabeis,
a elite das plateias mais chiques, conforme atesta a presença do
temporariamente deposto Rei Rigoberto, e Rainha Birgolina, do antigo Reino das
Galochas… (vívidos aplausos da plateia) Rei Rigoberto, do camarote-mor,
sempre acompanha, com um binóculo de hipódromo, as correrias de nosso
Camelódromo. Muito grato. E agora, passo a palavra ao Doutor Florio, nosso
alerta empresário, diretor e teatrólogo surrepataphysico.
FLORIANO
MARTINS
Há muito as
estrelas já despencaram todas do firmamento e se riem de nós com nossos sapatos
eletrificados. Aqueles que contam as distâncias nos dedos mal desconfiam que
estão por um fio no cardápio das catástrofes. O tempo soletra suas alegorias
gastas e não sabe mais imitar sequer velhas hienas com seus risos desbotados e
a palmilha gasta de tanto percorrer uma paisagem de folhetins. A plateia engole
a seco o chafariz de areia dos melhores prantos derramados sobre os restos de
tantas fábulas encardidas. As histórias contadas são um consolo de cínicos, um
regozijo de viúvas de desdentadas raposas.
PLATEIA
Salve grande
mestre das sabedorias hipocondríacas!!! Ave negra de olhos infinitos!
FLORIANO
MARTINS
Viu só,
Doutor Pastilha, como a glória pode ser um conjuro. (Novamente se dirigindo
à plateia.) Que todos se levantem que é preciso tornar inesquecível a nossa
saída.
A plateia inteira fica de pé com as mãos em uma aleluia inacreditável.
Os dois convidados se despedem e deixam o recinto. Lá fora mal se escuta quando
um dizia ao outro: – Por um
momento pensei que isso não fosse acabar nunca!
CODA IMPACIENTE
(Sardanelo & Martinico já se encontram no
camarim)
A noite perdurava lá fora e uns gatos pardos insultavam a escuridão,
zombeteiros como se trocadilhassem um dos muitos jograis do purgatório:
DOC FLOYD
As carapuças
eram ajustadas a pedido do Marquês e delas cuidava Esmeralda, a moçoila
dourada, cedida ao Purgatório por Frei Feijão após a morte do Corcunda da
Lapela Sixtina. Além de boa costura Esmeralda as deixava com um laço hábil de
onde cabeça alguma poderia arrepender-se e escapar...
FREI FEIJÃO
O Marquês de
Sales é um vil sálico-porquista. Fez das piores num Fabulário
Porquinhol, quando escapei por pouco de ser aprisionado no seu sinistro
castelo, em que organizava satânicas orgias… Acabou, por fim, após 777
infâmias, aprisionado na Bastilha.
DOC FLOYD
Em velhos
papiros e rolos nada higiênicos foi lavrada a obra que é o espelho antecipado
de nosso mundo de prevaricações. Como a época rangia limitada pelos cartéis da
nobreza, não deram por conta que as suas infâmias eram uma certeira previsão do
século XX, tão escanchado no próprio ego que não atinou para o caudal de
reiterações de suas novenas profanas. E agora este XXI que é o próprio
renascimento da Bastilha a céu aberto.
FREI FEIJÃO
As atuais
porcalhadas desenfreadas não diminuem a importância dos pioneiros esbodeamentos
do Marquês de Sales, que ele legou em bela coleção encadernada, de herança
espiritual pra pornocracia industrializada do Século XXI, diligentemente
atuante na televisão, já na programação vespertina, sabiamente misturada com
números esportivos, culinários, infantis, sociais, políticos e culturais, e
noticiário pormenorizado de crimes variados, de que as cenas sangrentas são
apreciado quitute para atrair a atração do programa de permeio a filmes de
pornografia mais primária, destinada às classes mais desfavorecidas.
SAPO CANAL
Uma noite as
quatro Cassandras fizeram seguidas funções na pracinha do Majestic. Quadro
cadeiras a toda prova e o mundaréu se coçando com os relatos de toda sorte de
luxúria. Uma noite de martírios, açoites e banhos dourados. Uma das Cassandras,
mais afoita, foi buscar na plateia a brilhosa pataca de seus gozos. Com a sua
bundona de quermesse engolia todos os varões e gargalhava como uma possessa. A
Cassandra mais jovem dava lições de como o prazer pode ser constante. Enquanto
as duas outras recolhiam as roupas do público e improvisavam um coral.
DUENHA
DOLORES
Ay!… que
belhessa…
ASTROGILDO
Es berdad,
Duenha Dolores…
SAPO CANAL
E choravam
de rir enquanto regiam a cantoria.
CORAL
Se atreva
seu bacurau a comer no meu cercado
Logo um
chute na pança o fará perder a fome
Não venha
cantar de galo nas dobras de meu terreiro
Ou seus
bagos no jantar servirei a qualquer um
ASTROGILDO
[para Duenha Dolores]
Bagos, que lo sepa, son los del toro muerto en arena, que se los comen
después…
DUENHA DOLORES
¿Después… de qué, Don Astrogildo?…
ASTROGILDO
Después de muerto, por supuesto, Duenha Dolores…
DUENHA DOLORES
Pero ahora me ha dado ganas de probar sus huevones, aunque sean fuera
del cuerpo…
ASTROGILDO
No me venga con eso, que la Muerte anda por ahí, en su caballo pateando
la tierra.
SAPO CANAL
A terra
arada pela Morte tem um gosto sofismático, parece ser um pasto cozinhado e
temperado com sutilezas de espíritos decaídos. Dizem que os defensores da terra
plana são o melhor adubo para as fanfarras dessa assombrosa senhora.
MARQUÊS
[finalmente,
porém apenas a silhueta desenhada em uma parede do canto] Ah mas quanto
espero um dia enrabar essa donzela, morta ou viva, não me importa, desde que
seja a dona Morte.
ASTROGILDO
Por piedade,
Doc Floyd, este guinhol está sem cabo nem rabo, nem mais sequer cortina, já
despedaçada no guinhol anterior… sem pé, nem cabeça, nem chifres, só lhe
sobraram quiçá, os bagos, se não forem os do touro de Madrid... morto na arena,
como um bravo…
DUENHA
DOLORES
Nem os
bagos, Dom Astrogildo, do touro sobraram, que foram comidos no banquete do
Alcaide Bermudez de Madrid.
DOC FLOYD
As coisas no
Purgatório costumam ser assim, a eternidade a banho-maria, volte um século
depois e ainda não está no ponto, há sempre alguém cozinhando o pato da
memória. Tampouco no Purgatório não tem cortina, pois as coisas não possuem
princípio ou fim, só esse esqueleto do abismo, sustentado em uma moral
esfarinhada que amolece o tutano de qualquer um. Por isto a Morte passa ao
largo, vez que outra observa se alguma alma veio parar aqui por engano. Talvez
por isto o Marquês tenha escolhido como palco de ensaio de suas firulas
dramáticas. Outra coisa que no Purgatório não acontece nunca: a desistência da
morada, a entrega do cargo, o arrependimento. Quem vem dar aqui fica como um
peru em círculo de giz. Ninguém se livra do Purgatório.
FREI FEIJÃO
Marquês de
Sade só melhorou ao fim da vida, confinado ao Hospício de Charenton, onde o
Diretor, gentilíssimo, insistia que fizesse teatro para os seus inquilinos
dementes… num palquinho improvisado do fundo do salão de refeições. O Marquês,
malgrado já estar meio gagá e alquebrado por sua vida quase toda passada em
variadas masmorras… tocado pela gentileza do Diretor, aceitou comovido… e fez
umas pecinhas alegres e piedosas, que foram rejeitadas pela Posteridade, sempre
ávida de suas porcalhadas, elevadas à categoria de Obras Primas da Humanidade.
O DIRETOR
Mesmo com a
morte do Marquês nossos hóspedes seguem compondo seus jograis, algumas
picarescas histórias do baú de seus desejos reprimidos. Anselmo Lacarte chegou
aqui imerso em grande crise mental, lacrado em seu universo íntimo, mal abria a
boca para alimento e medicação. O Marquês lhe deu um papel de destaque como a
cortina de suas pecinhas. Anselmo então subia e baixava com esmero, marcando o
princípio e o fim das porcalhadas.
AS SETE TRAGÉDIAS DE SARDANELO & MARTINICO
1 TRAGÉDIA DO ANÃO GIGANTE, NO THEATRO PORKOFF
SARDANELO
Realmente um
inexplicável fenômeno… Vou telefonar pro Doutor Galeno…
MARTINICO
Sim,
telefona, pede a ele intervenção urgente, preciso ser internado…
RÁDIO
MECULATRA
(em mais
um de seus furos imprecisos)
DIÁLOGO
TELEPHONICO DE PLATÃO COM DOUTOR GALENO
RÁDIO
Sardanelo
convenceu Platão, mestre supino dos diálogos, a convencer o Doutor Galeno.
PLATÃO
Alô, Doutor
Galeno, falei com Florivaldo, ele está de acordo em ser internado.
GALENO
Poizé,
Sardanelo, mas se eu o internar no Sanatório Grinalda, ele vai enlouquecer
todos os que já estão remediados, após décadas de penoso tratamento…
SARDANELO
Mas se eles
já estão remediados, o Senhor poderá soltá-los…
GALENO
Neste mundo
de dementes globalizados?? Serão trucidados.
Rapidamente um cenário é improvisado, a quartinha no centro da mesa,
dois copos de alumínio, a bodega de Clepto Cabroso está preparada para tudo:
MARTINICO
Não há como
retornar à realidade, reino dos ditames, flagelo dos diálogos, o próprio Pratão
só não se encontra internado no Grinalda graças a Galeno que o contratou como
assessor de mazelas do espírito. Sardanelo, melhor não insistir, assim acabam
te internando e ficaremos sem os nossos diálogos…
SARDANELO
Se me
internarem, escreverei minhas Memórias do Cárcere.
MARTINICO
Enquanto
planejas tuas memórias eu sigo escrevendo meu romance, a casa ardilosa das sete
malucas…
SARDANELO
Falta o
Anão.
O Anão e as
Sete Malucas.
MARTINICO
É um anão
gigante e tem no lugar do rosto uma mancha confusa.
SARDANELO
Foi esse
horrível Anão Gigante que enlouqueceu as Sete Damas.
MARTINICO
Cada uma
delas foi isolada em uma sala de interrogatório onde o anão gigante perambula
pela fragilizada consciência das sete damas.
SARDANELO
Um drama
psico-policial. O anão-gigante diz que foi aluno do Doutor Sigismindo Froyd.
MARTINICO
Ao abrir a
porta da sala surge um olho do anão gigante e com ele o imperativo de que elas
contem seus segredos…
SARDANELO
O terrível
nitzsxeniano Imperrativus Kategorrikus… No Collàgio Prutuca, Doutor Pastilha
oferece, a partir da semana que vem, um curso intensivo sobre o Imperrativus
Kategorrikus do Doktor Nitzxe, com substancial abatimento de preço para
sacerdotes, e militares que venham em grupo, que serão considerados como família
numerosa.
MARTINICO
A verdade é
que as corças jamais se livraram da maldição que lhes impôs suas patas de
bronze. Hércules vagou pela terra um ano inteiro, esperando encontrar ao final
desse tempo, a pomada de louro prometida pelo doutor Pastilha…
SARDANELO
Doutor
Pastilha, no seu curso de Mythologia no Collàgio Prutuca, distribui a pomada de
louro para os grandes heróis de Grécia e de Roma… E, certamente, Hércules
receberá sua merecida latinha da miraculosa pomada, mercê de mui meritórios
esfor3os em cumprir à risca seus Doze Trabalhos estafantes e perigosos… Já era
pra tê-la recebido, mas se embrenhou pelo mato atrás do centauro Neso, que
tentava seduzir a esposa do Herói, raptando-a em sua garupa, sob o pretexto de
mostrar-lhe os recantos mais propícios do frondoso bosque.
MARTINICO
A esposa do
herói, segundo narra um folheto de cordel, foi resgatada da garupa do centauro
por um bando de faunos que afiavam seus cascos no solo pedregoso do Bosque de
Frondas. Chegando lá Hércules, que do outro lado da história era conhecido por
Héracles -, a amada já estava a salvo e Neso havia sido enxotado do bosque.
Famoso por suas realizações mitológicas, Hércules não podia revelar que não
fora ele a salvar Samíramis, seu amor quase único, de modo que os faunos concederam
ao corpulento semideus a lenda daquele resgate heroico.
Aí está!… Os
faunos também tinham seus dias de aprontarem suas belas ações. Poderíamos
concluir dizendo, como moral desta fábula: Nunca se sabe de que moita o coelho
vai sair. E os Faunos, tampouco, nunca se sabe o que vão aprontar.
MARTINICO
As moitas
agradecem os aplausos…
SARDANELO
A cortina
plaaaaaaaafffffttttt
MARTINICO
O diabo
dessa cortina é que não merece mais a menor confiança, outra noite se trancou
com duas mantas em um armário e ali dentro fez a festa.
SARDANELO
São
justamente os temores de Doutor Pastilha. Ele tem a impressão de que as peças
por trás da cortina são bem mais empestadas que as porcalhadas do Marquês de
Sade.
MARTINICO
Volta-e-mexe
a confusão se instala e o decrépito desse marquês engole a maçã da fábula que
não lhe causa o menor efeito. Rapunzel o recolhe em sua cabana suspensa e os
dois ali se contorcem de glosas e motes.
SARDANELO
Doutor
Pastilha, preocupado, desconfia que o pérfido marquês tenha surrupiado sua
latinha das famosas Pastilhas do Doutor Galeno, de um poder assombroso, mata os
micropatas Coroca, lombrigas e piolhos, levanta até defunto, como foi o caso do
Faraó Micherinos, que tomando três pastilhas antes de morrer, depois de enfaixado
e colocado no sarkófago, conseguiu, durante o velório, ficar ereto, bradou
palavrões no sarkófago, furou a tampa e voltou a reinar por várias décadas. O
assunto foi abafado pelas autoridades civis e militares.
MARTINICO
Algumas
bolorentas pastilhas foram encontradas atrás das pernas de um armário
desarrumado onde as meninas de Micherinos guardavam seus paninhos quentes. As
noites no velório eram uma fantasia lúbrica onde os defuntos eretos se deixavam
cavalgar pelas lavadeiras do império que logo se descobriam eram uns travecos
bem arrumadinhos. A realeza era mestre em comprar o silêncio dos congressistas,
de modo que o marquês seguia desfiando seu rosário libidinoso e faturando nas
vendas dos livrinhos por toda parte…
SARDANELO
O Anão
Gigante é um flagelo digno de Ghengis Khan. Seu criador, Dok Frakastel, é um
gênio louco, queria criar a raça de Humanoides a serviço da Humanidade e
inventou este colossal psicopata Anão Gigante!… Doutor Frakastel, um herético
iluminista, insistiu em criar essa raça de autômatos de inteligência racional,
para o que, em seu laboratório, capta a força dos relâmpagos para utilizá-la na
Criação da Vida!!!… um louco herético que, por incompetência, poderá destruir a
Humanidade. Foi ele, aliás, o desastrado criador do Vírus Coroca, um vírus que,
ele próprio inofensivo, iria destruir todos os vírus fatais das diversas
moléstias transmissíveis que martirizam quem possam infectar. E agora... que
adianta prender Doutor Frakastel?…
MARTINICO
Talvez o
melhor a fazer com esse farrapo seria infectá-lo com o Coroca e deixá-lo à
míngua sem direito a hospital, vagando pelas ruas onde as pessoas até poderiam
lhe apedrejar, mas certamente não fariam. Este é mais um daqueles casos em que
a criatura pode vir a livrar-se de seu criador e refazer o seu mundo.
Improvável qualquer cópia de presságio, mas a vontade popular é mesmo que todos
os padecimentos devem cair sobre os costados desse doutor do caos.
SARDANELO
Sempre tem
gente para adorar os mentecaptos genocidas. Trata-se de um ataque de
sardo-mazorquismo coletivo que pode englobar toda uma nação. Ou todo o planeta.
Quem não aderir, será massacrado pelos fiéis sardo-mazorquistas, galvanizados
pelo Louco Destrutor. Falta agora ver se Doutor Frakastel tem o mesmo tipo de
poder hipnótico, para empulhar toda uma Nação… e aí então, começará tudo de
novo…
MARTINICO
Até
começaríamos tudo de novo, desde que não fosse por aquele famigerado bolero. Ou
talvez não começássemos para não correr o risco de ter de ouvi-lo como trilha
sonora da resistência de Pindorama. O Clube de Caça aos Corvos adotaria uma
versão cabaré da música e gravaria um vídeo pastelão usando todas as cores de
pele à disposição no estoque da Granja Raposão. O Renascimento por vezes não
passa de uma nova versão do Inferno.
SARDANELO
Só haverá
democracia racial quando as galinhas pretas botarem ovos brancos, e as galinhas
brancas botarem ovos pretos. Y así pasan los dias… chaca-chaca-chaca…
MARTINICO
Acho que se
poderia fazer uma boa publicidade com esse troca-troca. Mas dá uma olhada, lá
vem de novo aquela cortina desmiolada. Do jeito como vem aos frangalhos, levou
uma surra das mantas no armário. Aposto que ela vai nos pedir um trocado.
SARDANELO
Cortina que
pertenceu ao French-Cancan onde La Goulue dançava e o Lautrec tomava seu
absyntho… Uma preciosidade histórica… Vale uma fortuna!… Nosso theatro é coisa
fina…
A mesma com
que embalamos a réplica do Trem Carthago, famoso por seu trajeto impossível, de
Fracaleza a Pequinho. Isto muito antes da saga serial do Trem das Neves. Agora
ela será o Fiat Breu dessa nossa pequena evocação das misérias humanas
assoladas pela Anão Gigante do Collàgio Prutuca.
MARTINICO
Sonho
deposto, pois acabou enfurnado com dieta de pá e carvão, alimentando as
fornalhas da Boca Grande. Dizem que foi punido ao ser pego com a mão na botija,
ou melhor, com o pinto no melaço, violentando as aldeãs mais jovens. Teve um
olho arrancado e mancava de uma perna. Seu breve romance com Esmeralda findou
quando ela descobriu no major Temístocles um modo de eliminar suas sentenças
por falar com uma cabra em praça pública e ludibriar a todos oferecendo um
lugar ao céu em troca de algumas patacas. Quando Esmeralda se foi o Anão
Gigante ficou tão completamente desolado que até mesmo o papel que lhe deram de
interrogador das sete damas em uma narrativa folhetinesca foi um completo
fracasso, e fez com que ele desaparecesse antes de concluir a tarefa.
SARDANELO
Aí está,
parece que agora a cortina pode ir caindo, lentamente, ao som de uma fuga de
Baco, ao piano, tocada por Frei Feijão.
MARTINICO
Bem
caidinha…
2 TRAGÉDIA DE MELENA BADROSKA, FORA DO PALCO
SARDANELO
Segundo
alguns pensadores esotéricos, os construtores das Pyrâmides, Atântidas,
possuidores de grande sabedoria, eram habitantes duma ilha-continente que
sofreu um súbito terremoto e sumiu. A esta teoria se refere o Platão. Melena
Badroska acreditava na Atlântida, mas a colocava em Mato Grosso. O arqueólogo
Fawcett então famoso por várias descobertas na África, tinha crença total na tese
de Dona Melena, e conseguiu apoio financeiro pruma colossal expedição que
acabou se perdendo na floresta e só poucos lograram sobreviver milagrosamente,
entre eles o próprio Fawcet que não desistiu de seu plano de descobrir a
Atlântida em Mato Grosso. Mas face ao desastre da primeira expedição, que
custou uma fortuna fabulosa aos patrocinadores, não encontrou mais apoio
nenhum. Então… resolveu fazer a expedição, sem recursos, na companhia de seu
filho adolescente e de um também adolescente amigo do filho. Sumiram os três na
floresta e nunca mais foram vistos. A ilha estaria a meio-caminho entre a
Euroáfrica e a América do Sul.
MARTINICO
Isto causou
imensa inveja aos pelasgos, bem como aos fenícios e os caraíbas. A terra teria
hoje outra feição não fosse o custo excessivo da primeira expedição que
impossibilitou seu desdobramento, uma vez descoberto onde ficava o norte das
bússolas arrematadas em leilões na Cananéia. Dona Melena colecionava picos de
montanhas e brumas caluniadas. Era danada e recebia a todos com taças
presenteadas por Baal. Dizem que no quintal de sua casa mantinha um bezerro de
ouro cujo leite era usado na iniciação do verdadeiro druidismo. Mas não se
sabe, pois dela se dizia muita coisa. O poeta André Breton quando ali esteve a
confundiu com a condessa de Diam Diam e, botando os pés pelas mãos, bradou a
vinho pequeno que fora Asterix quem colonizou a terra.
SARDANELO
Melena
Badroska tem o seu charme russo. Ela e o Coronel Orson na moto-com-barqueta,
ela ia na barqueta, ele pilotando, ela teosofista, ele budista, tinham um
charme misterioso.
MARTINICO
Um coronel
budista é das coisas mais díspares que pode existir no mundo, pois a lâmina de
sua espada atinge o plexo solar de toda e qualquer meditação. Mas Melena via
ali outros motivos, curiosa por alguém que a levasse rio acima, pelas
recônditas tribos dos pentateucos e dos druidas esquecidos. A caminho ela fazia
cócegas em seu coronel que, perdendo o comando da moto-com-barqueta, a fazia
serpentear dentro do rio. Ela ria e o chamava de meu querubim.
SARDANELO
Duas
extraordinárias figuras. Mas havia ainda o pequeno hindu, um rapazinho tipo
Sabbuh, adotado pela Melena, para cumprir extraordinárias façanhas, tais
subtrair mandalas de pagodes milenares, ou vender elixires do Coronel, e sempre
pronto a cumprir as mais extravagantes missões…
MARTINICO
Sabbuz, como
era chamado, era capaz de passar uma noite inteira ao relento contando quantas
vezes os grilos faziam amor no outono, enquanto caíam até mesmo as folhas do
calendário, e mais depressa ainda o tempo parecia passar. Um dia, enquanto
remexia em seu dedão expurgando um ninho de bicho-de-pé, Sabbuz levantou a
cabeça e viu passar pela varanda uma pequena e saltitante sombra, atrás da qual
saiu correndo e (até onde se sabe) nunca mais voltou…
SARDANELO
Melena
chorou borbotões. E o Coronel virou duas garrafas de Rhum Moleca.
MARTINICO
O espírito
de Sabbuz sempre veio visitar o intrépido casal: seja nas mesas brancas de dona
Melena ou nas garrafas do Coronel.
SARDANELO
É verdade… e
sempre Melena afirmava que ela era virgem… Havia casado antes, mas só porque
recebera mensagem astral que se deveria casar com determinado cavalheiro. E na
noite de núpcias ele tentou violá-la, mas ela se defendeu com uma cimitarra.
Desde então, nunca mais se viram. E ela manteve seu sagrado voto de virgindade
que fizera à Deusa Ísis. Mas, e com o Coronel Orson? Uma amizade budística… e
olhava para ele, que, impávido, suspirava, alisava as grisalhas barbas e
emborcava seu copo de Rhum Moleca, o melhor do Caribe… (Encomende-o pela
Internet ao Bazar Beirute, de Zeus Zalim)
MARTINICO
Quando as
noites pulavam
de um lado
para outro
tentando
escapar dos dias,
Melena
bebericava seu licor
de malva com
berinjela.
O coronel
pensava: quem sabe
dessa vez
Lenica me dá
seu maior
segredo! Ela,
No entanto,
lhe diz com olhar
misterioso:
Diga um verso bem
bonito, diga
adeus e vá embora.
SARDANELO
Coronel
Orson pensativo soltou densa fumaceira de seu cachimbo, mas não disse verso
algum. Saiu em silêncio, montou na sua moto, arrancou, e se foi, ao luar,
estrada afora.
MARTINICO
A estrada
serpenteava
pelo luar de
estribilho.
Aproveitando
a ausência
de seu
talentoso amante,
Melena comeu
num instante
um naco de
paçoca e milho.
Depois seus
olhos revirava
em busca de
nova ciência.
Seu coronel
estrada afora
só quis
saber de ir embora.
SARDANELO
Melena, diz
para sua gata: O Coronel Orson pensa que me escapa… há mais de dez anos
que nos conhecemos, e ele nem desconfia… Com tanta inocência… vai entrar direto
no Nirvana…
MARTINICO
E o júbilo
ficou de fora da cena, assim como a pimenta não entrou na panqueca. Melena
sabia que as melhores receitas são aquelas que improvisam a falta de um de seus
componentes. Porém o velho Orson subia e descia os morros em sua motoca,
extraditando o calor que nascia em suas virilhas. Quantas dessas flores do
desperdício nasceram no pomar daquela parelha! Quanto sangue derramado dentro
de cada coração!
3 SUBMARINO MARELO, A TRAGÉDIA NO FUNDO DO MAR
PAPAGAIO
PIRALDO
(sottovoce)
Estamos a bordo do Submarino Marelo do Capitão Pirelli. Entra na cabine-mor o
marujo Grilo Seco, e procura reanimar o Chefe, que está em grave crise de
depressão, ameaçando se suicidar explodindo o Submarino dum tiro hara-kiri …
com torpedo virado às avessas.
GRILO SECO
Curta as
carpas do dia, Capitão Pirelli… Por boas que sejam as entrevistas, não podem
ser comparadas com nossas sereias. Curta as carpas do dia…
CAPITÃO
Pois vamos
às carpas do dia, com fritas e vinho.
PAPAGAIO
(sottovoce)
Saiu o Grilo Seco… esse mal fedido puxa-saco … a mim não me engana. Fui
papagaio do Doutor Xalaxar, conheço as manhas de chancelaria.
CAPITÃO
Vou ligar o
rádio para saber se já há notícias sobre meu suicídio. A imprensa, neste século
21, sabe de tudo na véspera. Giro o botão e… PLAFF!!! PREK!!! KAPUT!!! Fooong …
RADIO
A rádio
Cacimba da Glória abre seus microfones para o tão esperado encontro entre
Sardanelo e Martinico, em especial porque não sabem exatamente sobre o que vão
conversar. Por outro lado, ainda não temos notícias frescas do iminente
suicídio do Capitão Pimenta no seu submarino. Já expedimos para o local o
repórter-escafandrista Gastone para ir colher os últimos bafos do tresloucado
Capitão antes que ele cumpra o seu fatal destino. Gastone tem grande
experiência em entrevistar proto-suicidas poucos minutos antes de seu gesto
treslocado e fatal. Gastone leva um microfone dentro de seu capacete. Nosso
genial repórter-escafandrista já entrevistou o Sargeant Pepper e todos os
Beatles a bordo do famoso Yellow Submarine. Era uma nave super-psicodélica, a
mais espetacular do Planeta, nada a ver com essa fedida lata velha do Capitão
Pirelli.
GASTONE
Alô ouvintas
e ouvintos da vossa fiel Rádio Cacimba, da ilha Brocoió, a melhor emissora do
País, ora transmitindo do fundo do mar para todo o litoral, da Lagoa dos Patos
até o Aracaju… Eis que o marujo Grilo me abriu a porta e já estou dentro do
submarino. Tenho o prazer de entrevistar, o renomado oceanografista Giuseppe
Cascavelli, despedido da Sarbonne, e hoje trabalhando de contramestre do
Capitão Pirelli. Diga-me lá, Doutor Cascavelli qualquer coisa sobre o iminente
hara-kiri naval do heroico Capitão Pimenta, em prol do aprimoramento da nossa
sociedade de elite …
CASCAVELLI
Ou a elite
da nossa sociedade?…
GASTONE
Qual é a
diferença, Doutor Cascavelli?…
CASCAVELLI
Entre o ovo
da galinha e a galinha do ovo?…
GASTONE
Ora, pare lá
de ensebar, homem! Está bem que as diferenças definem melhor o mundo do que as
igualdades, estas sim, um rolo mais indecifrável do que aqueles do mar Mortinho
da Silva. Mas minha questão é sobre o iminente suicídio do Capitão Pirelli.
CAPITÃO
PIRELLI
(entra,
com sua bela voz cantante de tenor dramático) O cravo brigou com a rosa …
debaixo da … da?… plec! plec!… enfim, continue, Cascavelli!…
GASTONE
Capitão
Pirelli, oh, Bravo dos Bravos!!! Para quando, afinal, o vosso heroico suicídio?
Já vamos atrasados com o programa …
PIRELLI
A
vaca-marinha não deixou sobrar um bigode de camarão. Há muito nossos marujos me
acusam de girar manivelas que nos levam cada vez mais fundos, ficamos no fundo
do oceano, roçando a barriga do submarino na areia do fundo, girando-girando.
Dois marujos já foram beber o vinho salgado de Netuno no cemitério submarinho,
lançados pelo tubo de escape. Dia desses teremos que fazer rifa de nossos
aparelhos de som. Tudo porque não conseguimos mais acertar com as preferências
da Rita Parada. Esse, Gastone, espero que seja nosso último vexame. Grilo Seco,
meu assistente, já vem trazendo minha cicuta e notícias de que Sardanelo e
Martinico poderão estar conosco ainda nesta última viagem. Virão por batiscafo.
GRILO SECO
(entra,
rodopiando na ponta do dedo a bandeja) Cá está sua cicuta, meu Capitão, e
seu cálice do Xerez Era una Vez.
CAPITÃO
Meu xerez
impagável sempre me pede uma sereia em cuja cauda sedosa eu possa deixar correr
o meu palpite contra os males do infortúnio. Grilo, cadê ela, aquela Justine
que me atendeu outra noite. Vem correndo, vem ligeiro, meu canapé
florido… Ah como aquela noite teve seu dia de boa prosa. Tenho pensado em
me aposentar, Grilo. Já puxei a caneta, mas desanimei com o que ela me mostrou.
Aqui ao menos a gente ainda tem essas sereias, o xerez e umas viagens pelas
profundezas marinhas, para fazer aquelas entrevistas horrendas…
GRILO SECO
Curta as
carpas do dia, Capitão Pirelli… Por boas que sejam as entrevistas, não se podem
comparar com essas sereias. Curta as carpas do dia…
CAPITÃO
Eu bem as
curtia, porém agora me sinto um pouco funesto. Cadê o meu chá de algas? Ou
talvez eu deva consultar o oráculo da perna quebrada, quem sabe ele me diz qual
a menos dolorida forma de suicídio. Não quero sofrer mais essa dor ao me
desapegar dessa carcaça combalida. Por precaução ponho no bolso uma fotinha de
meu submarino, para os dias de saudade…
GASTONE
Mas acaso já
não tens tudo premeditado, Capitão?
CAPITÃO
A vida pode
até gostar de uma arrumação de espantos, mas com a morte é diferente. Ela
prefere que tudo seja um atolado de surpresas.
GASTONE
Mas afinal,
o senhor vai ou não vai se matar?
CAPITÃO
Ah as
notícias hoje em dia, querem logo saber como o inesperado se sente e invadem o
jogo de cartas do acaso para inquerir sobre o momento preciso em que ele
atenderá o chamado de suas vítimas! Graças às notícias o mundo perdeu o impacto
de seus gestos impensados.
GASTONE
A rádio
Cacimba da Glória sempre se orgulha de manter a sua fiel audiência informada de
tudo antes mesmo que ocorra.
CAPITÃO
Pois essa
tal falcatrua de acidentes tornou a realidade o menos aprazível dos estados da
alma.
CASCAVELLI
(precipita-se
ao órgão espremido nos fundilhos do submarino) Sebastian Bach!… Para um
final grandioso da… Tragédia Submarina!… E agora… sento-me solene na banqueta
diante do painel de comando do órgão milenar, com teclas, alavancas e botões… e
após esbater as abas da casaca, ergo os braços, e agito as mãos magras e agito
os dedos aduncos tentaculares… lançando sombras de aranhas e morcegos e … FROOOOMMMMMM
FONNNN FONNNNNNNNNNN!… Ah, diga-me se não está digno de um gran
finale? FANN NON FROOOOMMMMMM FONNNN FONNNNNNNNNNN!… As teclas
começam a despetalar de alegria, aquela alegria trágica que põe o mundo de
ponta-cabeça. Gira-gira, carrapeta azul! (a cortina em seu aveludado púrpura
solta-se de seus cordames e envolve Cascevelli.) A realidade naufraga nas
mãos da melodia…
4 DAS EIRAS E BEIRAS, UMA TRAGÉDIA DOS MUNDOS
ESQUECIDOS
João Texugo, especialista em buracos, por vezes se deslocava de uma
reserva indígena para outra fazendo as vezes de tropeiro, guia de armeiros
empenhados em fazer fortuna à custa de tacapes e flechas de ponta de sílex. Em
uma área de pastos de kambiwás, na serra negra pernambucana, João Texugo
amotinava mistérios que muitos diziam não passar de pura invenção, um trote,
farsa endiabrada, recurso que ele percebeu causar polvorosa suficiente, como
uma cortina de fumaça, enquanto ele roubava as cuias lenhosas com que
atravessava o país, indo vendê-las nos pampas como relíquias de uma tribo
inexistente e dizimada. O Chefe do bando de tropeiros, Capitão Furabuxo, reúne
seus cangaceiros para apresentar o novo Plano de Ação. Carbuxim, seu fiel
escudeiro, é o mais atento.
FURABUXO
Vamos
aproveitar das velhacarias e badulaques de Texugo e vende-las a turistas e
mascates… Ele tem um baú colossal empilhado de arrobas de badulaques que ele
não consegue vender. Então, para escaparmos dos jagunços da polícia, que se nos
pegam vão querer fuçar nosso precioso paiol de drogas, santos ocos e relíquias…
O plano é escondermos todo nosso botim debaixo das tralhas do Texugo, que não
vai perceber nada, e, sempre que precisarmos vamos lá durante sua ausência, e
trazemos apenas poucas coisas para vendermos, e quando acabar o estoque que
guardávamos, tornamos a ir buscar novo material nos fundos do baú do Texugo, e
o paspalho nada vai perceber.
CARBUXIM
(se
coçando de tanto rir) Esse Texugo não sabe o que lhe espera. Ele tem mesmo
cara de paspalho, embora por aí o mundo esteja repleto de salafras com cara de
virgens arrependidas. Talvez por sermos daqui, mas como alguém pode se deixar
engabelar por essas cuias mofadas que ele vende lá nos pampas. Não será nos
pântanos? Talvez a tribo das palafitas ou mesmo a hoje rara gente das monções,
as velhas ratazanas da lagoa dos gamburás, não seja essa a clientela do diabo
jocoso. Seja como for, eu vi em seu esconderijo uns baús cujos fundos falsos
podem ser o lugar ideal para nosso botim.
FORABUXO
Vá lá,
Carbuxim, e enfie nesses fundos uma primeira soma de latas de sardinha e pentes
de osso de tartaruga, as peças menos valiosas de nosso estoque, para um
primeiro teste.
[Mudança de
cena]
ARAUTO
ABELARDO
(bate o
bastão) PAFF-PAFF-PAFF!!! Siii-lênnn-cio!!! Estamos agora… onde mesmo???
Ah!!! Sim, estamos de volta à palhoça do… do… como se chama mesmo? Esqueci o
nome do trambiqueiro… Enfim, diga lá, Bedel …
Mudança de cena: de volta à palhoça do Texugo. Ele arruma umas pequenas
caixas velhas com alguns tacapes, lacra tudo e mete a mão numa cumbuca repleta
de pontas de flechas, revolve tudo com satisfação criminal.
JOÃO TEXUGO
Desta vez consegui
reunir uma boa feira. Se eu pego a barca Bacião e com ela cruzo o Atlântico
farei um bolso farto em terras portugas… [Falava sozinho quando alguém bate à
porta de sua caverna. Ao abrir, sem que reconheça quem ali está, indaga:] Quem
vem dar em minhas terras?
CARBUXIM
Sou
discípulo de kambiwás, em meu assentamento muito se fala de seus feitos
arqueológicos, que ninguém no mundo fareja melhor um tesouro – dizem – do que o
grande Texugo.
JOÃO TEXUGO
Que isto
seja verdade, é coisa que não me importuna. Posso encontrar lagartixas
congeladas sob a casca de árvores e decifrar em seu buxo papelotes com pistas
para botins milenares.
CARBUXIM
Não carece
de se gabar, pois sua fama corre ligeira. O que procuro pode ser de boa monta
suficiente para nós dois. Certa vez um Caçarola, que vivia da venda de pequenos
delitos, me trouxe uma caixeta em cujo interior encontrei, coladas ao fundo,
umas folhas enxovalhadas contendo uns escritos que nada me dizem, mas que devem
certamente conter informações sobre algum tesouro. Se o mestre Texugo decifrar
essas folhas, não precisará mais ludibriar os pampeiros.
JOÃO TEXUGO
Não faço
nada por precisão, mas sim por diversão. Vamos ver o que me dizem essas folhas.
[Passa a vista num rasante.] Cá escrito está: a pátria chora seu
besta seu bosta seu busto …
CARBUXIM
Seu besta,
seu bosta é o rosquel da tua velha, velho safado, já te passo a peixeira…
JOÃO TEXUGO
Tenha calma,
Carbuxim!, eu só estava lendo o que estava escrito!!! Quem sabe poderá nos
dizer se as galinhas do vizinho botam mais ovos que as minhas?
Tão só uma
velha d’angola, bota ovo preto e um só por semana, na sexta-feira. E gosta de
sentar num pinico de alguidar, que eu trouxe das terras do muito além.
[Mudança de cena]
ARAUTO ABELARDO
(risca o
chão com o bastão) SHINNN-SHHHI-ZÁSS!!! Não é que o diabo do trapeiro está
tomando conversa com o Carbuxim! Acho que assim ele acaba ganhando confiança e
de uma hora para outra enfia as peças do Furabuxo no fundo falso das sacolas…
Mudança de cena: Furabuxo conta seus dobrões, lustrando alguns com uma
boa cuspida e uma passada de mangas de seu camisão. Sabrina Leitosa ajoelhada a
seu lado conta outros mistérios dentro da roupa do amante.
FURABUXO
Sabrina,
assim um dia vamos ter umas posses tão crescidas que a ilha toda virá nos ver,
ai minha ratazana de salão.
SABRINA
LEITOSA
Diz assim
não, meu buxo, que eu me arrepio todinha, e boto meus talismãs por toda a casa,
para que não saias mais de mim.
PRODUTOR
SABUGO
(olhando
por trás da cortina) Está uma be-le-za!!! Romântico-porno-sentimental!!!
Vamos pra Rita Parada!!! Vamos ganhar o Moscardo do ano!!! Se ela deixar ele
regar as plantinhas na varanda, aí o arraso é total.
Foi dizer isto e o Bedel entrou no salão, coxeando apressado,
resfolegante:
BEDEL
Olha só,
Carbuxim acaba de passar um cabogra do alto mar de sua aventura de espião
atrapalhado. Tem uma frase direta que diz (soletra): amanhã a
mina na mala. Logo abaixo há uns rabiscos que não sei do que se trata. (entrega
a missiva a Furabuxo)
FURABUXO
Esses
rabiscos são os códigos da mensagem, seu apalermado. A frase está bem clara.
Carbuxim chega amanhã e vem me trazendo os mapas do tesouro.
RÁDIO GAMBÁ
Essas são as
últimas notícias que temos, minhas queridas ouvintes… usem óleo de timbira
Moema, para manter seus móveis brilhantes e faceiros … e vocês, meus caros
ouvintes, prefiram Cerveja Cabrocha, espuma e gostosura… goze bebendo e
contemplando os rótulos, na frente a Cabrocha se requebra faceira, e te mostra
o linguão… e no rótulo da traseira … rodopie a garrafa, que você vai ver
qualquer coisa!… Progresso, Saúde e… Carnaval!!! …
Graças à intromissão dessa emissão radiofônica, os milagres da radiestesia voltaram aos circuitos e centenas de cartas foram se apinhando à porta da estação, sem falar nas ligações e teletros que chegavam de toda sorte de lugar. Dizem que isto acontece quando se está no caminho certo. Furabuxo fez de tudo para ludibriar João Texugo, porém deste só conseguiu que tornasse invisível diante de seus olhos.
JOÃO TEXUGO
Eu criaria
toda a desordem necessária para que a vida se fizesse indispensável, para que a
grande obra respirasse um universo inteiro a cada página revirada. Tudo isto
sem necessitar caminhar sobre as águas ou por a cozinhar o ovo primordial. Os
mistérios da terra não seriam os mesmos sem a cerveja Cabrocha e menos ainda
sem os arrebitados jogos das ancas de Luzia Trigueira, que me ensinou a ler as
iluminuras de meu próprio corpo quando me banhava a pele no óleo de
timbira Moema. Eu me tornei o seu móvel predileto e ia com ela a toda parte.
Ela me tinha como o sapo preferido de suas brochuras de magia. Um sapo iniciado
na fotossíntese de seus gemidos. Até o dia em que o impiedoso Furabuxo, a quem
confiei o segredo de meus tesouros com furos, escondeu em minha caverna umas
embiricicas de pedras falsas e relatos falaciosos atribuídos a Pitágoras.
Quando lhe procurei me disse que tudo não passava de uma brincadeira de Platão,
que queria ver até que ponto uma joia se mantinha dentro de outra, que uma
história sobreviveria contada como parte de outra, pedindo-me que não o
julgasse como sofista ou salafrário, que tudo o que ele pretendia é ver passar
um corpo por dentro de outro.
Ai, meu
Ouvinte, este vosso velho e fiel aparelho Rádio, feito de sucupira autêntica, e
olho mágico verde, que te sempre ajudou a bem sintonizar a estação da Rádio
Gambá, que tanto aprecias, mercê de suas novelas engajadas nos Direitos
Humanos, a Democracia Liberal e o Comércio Internacional, e a novelinha das
oito, safada, sem eiras nem beiras, que te trazia um pouco de sacanagem
libertária para os Direitos Humanos de todos os sexos… Ai!… estou esbofado…
minhas válvulas estão gastas de ouvir e de ouvir falar este jeca João Texugo e
os outros jecas que falam sem parar, e tu que os ouves embevecido, oh Leitor,
ou Leitora?… Já estou quase cego, meu olho mágico já cansou de tanto s’alumiar
para que procures teus programas, Ai! que já me compraste velho, embora
cumpridor, no Bazar do Baltazar, este mascate sírio-libanês que só vende
porcaria, salvo eu, uma preciosidade esquecida … mas assim é o Destino
implacável, e sinto que esta noite me acabo… paff-poff-poff… baixe a cortina,
meu Ouvinte, não quero que me vejam … Poff… traquejando… PAFF … nos mo… ment …
RACATRAPAFF-CAPONGAAAAAAAAAAAAAAAA!!! …
CARBUXIM
(do lado
de fora do prédio alugado onde funcionava a Rádio Gambá, conversando com
Furabuxo) Eu bem disse que não deveríamos exagerar nas falas do Texugo.
Agora pronto, ficamos sem ter como transmitir nossas ideias.
FURABUXO
Mas era tão
simples, embutir os apetrechos de nossa revolução nos teréns de Texugo e pegar
carona de sua distribuição… Com isto teríamos mais e mais simpatizantes de
nossa causa.
CARBUXIM
Sim, mas
exageramos na dose, e deixamos o gatuno cavernoso ganhar o microfone que de
outro modo jamais teria. Já não se pode confiar em ninguém nessa porca vida. E
agora, o que fazemos?
FURABUXO
Nada. Não
fazemos nada. Ficamos aqui, torcendo pela chegada de um próximo inquilino. Quem
sabe não alugue o ponto uma boa senhora com suas prateleiras de
hortifrutigranjeiros onde possamos embutir novos truques…
CARBUXIM
Assim? Sem
cortina?
FURABUXO
Sem nada. É
só aguardar.
5 FURTIVA LÁGRIMA, A TRAGÉDIA DA CORTINA CARMEZIM
MARTINICO
Nunca mais
eu tinha ouvido falar do Thomaz Fraska.
SARDANELO
Acho que o
Thomaz Fraska é o único de seu grupo que os vizinhos conheciam. Os demais foram
morrendo sem que ninguém percebesse… Há umas cortinas de invisibilidade que
envolvem algumas pessoas … Elas vão se evaporando e sumindo sem que ninguém dê
conta.
MARTINICO
As cortinas
de invisibilidade são uma invenção nacional que foram exportadas para alguns
lugares tão ou mais terríveis do que as terras d'Além Mar, por sinal terras que
jamais quiseram saber dos mares além da vista curta…
ARAUTO
É pra baixar
a cortina?… Muito bem: Um-Dois- e…
CORTINA
Espere um
pouco, Arauto, não muito depressa …
BEDEL
Estou
trazendo a bandeja com o champanhe envenenado.
MARTINICO
As trombetas
anunciavam a noite inteira onde os corpos foram desovados, mas a rádio patrulha
chegando lá encontrava a cena devidamente limpa, invisível mesmo.
SARDANELO
A Quadrilha
do Pavão é de nível internacional. O serviço de limpeza é de uma eficácia
extraordinária.
MARTINICO
Com o tempo
passaram a se superar, limpando cenas que ainda não haviam sido comprometidas.
Sumiam com os presuntos antes mesmo do crime. Isto acabou irritando o sindicato
do crime, pois se tornou patente que as mortes eram dispensáveis, o importante
era que a cena sempre estivesse imaculada, como se nada…
ARAUTO
O pior é que
com o sumiço dos cadáveres das vítimas, não poderemos fazer nosso projetado
guinhol-policial. Não há crime sem cadáver, e muito menos romance policial sem
crime nem cadáver, e nem sequer detetive. Já vamos no 5° ato e não houve nenhum
crime, não apareceu nenhum cadáver, e nenhum detetive sequer telefonou. Só papo
furado …
PÚBLICO
[Enfurecido.]
FOOOOOORAAAA!!! Guinhol de BOOOOOSTAAAA!!! Arauto de Meeerrrdaaaaa!!!
FOOOOOOOOOOORAAAAAAAAAA!!!
BEDEL
[Sottovoce,
pro Arauto.] E que faço eu com o garrafão de cerveja envenenada?…
ARAUTO
[Furtiva
lágrima.) Passa… sniff-sniff… pra esse público ignaro e cruel … sniff…
sniff …
CORTINA
Um guinhol
policial sem crime, é muito mais imprevisto e sofisticado … que tal chamá-lo
de… Cortina Carmezim?…
PÚBLICO
[Possesso.]
Cai, Cortina de Bosta!!! Cai, Fresca Carmezim!!! Cai, seu Filó do Salim!!!
MARTINICO
Já não é a
primeira vez que essa exaltação carnavalesca se instala em nosso teatro. O
público inocente entra em cena extrapolando sua indignação sem perceber que
está sendo ludibriado. Este é o verdadeiro eixo nervoso do drama, causar esse
frisson ilusório em que todas as partes se consideram integradas à fábula. Xô,
realidade! O recado está dado. Ninguém te quer em nosso palco…
BEDEL
Aí está,
Arauto … Martinico disse bem. Pensavas que o mundo fosse de groselha… e agora
?…
Agora… dá-me
desse champanhe envenenado … numa taça de cristal… neste mundo abestado e
grosseirão, não me interessa mais viver.
BEDEL
Com
Biscoitos Madalena?…
PÚBLICO
Muito bem!!!
Boa ideia!!! Bebe o champanhe envenenado, paspalho!!! MOOOOOORRREEEEE!!!
ARAUTO
Ah! É assim
?… pois este prazer não vos dou. Não beberei o Champanhe envenenado. Viverei
pra vos irritarrr, ignaros paspalhos!!!
BEDEL
Mas come ao
menos as bolachas, Arauto, e o que trago não é Champanhe envenenado, mas
Cerveja Preta, bem geladinha…
ARAUTO
Agora bebo a
Cerveja, e a seguir darei uma mijada na plateia …. Glu-Glu-Glu … Mas que gosto
esquisito, Bedel !…
BEDEL
É da cicuta,
Arauto!…
ARAUTO
Mas…
disseste que era o Champanhe que estava envenenado…
BEDEL
O Champanhe,
certamente… Mas… a Cerveja também.
Cai o Arauto em estertores, e o Bedel o arrasta pros bastidores… Retorna
rápido pro palco, e diz ao público:
BEDEL
Pronto,
respeitável público. Tivestes o assassinato, no último ato. E agora, licencinha
…
Sai o Bedel cabriolando, e puxa a corda, geme a Cortina… e de repente:
[Cai.)
PLAFFFFFFFFTTTTTTTTTTTT!!! Desate jeito não dá, o maldito me pegou desprevenida
outra vez. Quem diria que fosse este o meu fim!
BEDEL
Olha a
presunção, Cortina de brechó. O fim é de nosso Guignol. E vê se te cala. É o
fim, mesmo. Pronto.
CORTINA
Arre!
6 CAI-NÃO-CAI – UMA TRAGÉDIA NA PRATELEIRA
O pacotinho inquieto parecia querer saltar da mesa da sala, quando dele
se aproxima Sardanelo e indaga a sua cabrocha bamba Martinoka:
SARDANELO
O que diabos
é isto em minha mesa, ‘tinoka?
MARTINOKA
Parece ser
um livro, mas o bicho está vivo! Foi um tal de Katapiolho, contramestre de seu
amigo, aquele barbudo amalucado, o Martinico.
SARDANELO
[Abrindo
o pacote relutante em aquietar-se em suas mãos.] Pega ali a minha bengala,
talvez eu tenha que bater nesse pacote.
MARTINOKA
[Correndo
busca a bengala com cabeça de rinoceronte de dr. Sardanelo, quando de dentro do
pacote salta um livro fininho com capa dura e letras parecendo em chamas no
título curioso: Diário da Sapa Sulamita, uma compilação de textos apócrifos
preparada por Martinico Faruco.] Eita que o danado só falta agora
falar… O Senhor falou que é uma copulação de textos?
RÁDIO
BAKELITA
PAFF
-KRAK-POOOOOFFF – E agora, vossa Rádio Bakelita, transmitindo diretamente de
sua sede na ilha Fernão de Noronha … Com a palavra vosso repórter
predileto, o sensacional Dyrceo!!!! Ele vai entrevistar para nossas
assanhadas ouvintas e eruditos e sábios ouvintos… por telefone ligado ao cabo
submarino, o famoso pianista Francisco Liszt!!! que está arrasando Paris!!!
Superou os Bitles e os Rolestones na Rita Parada da Semana!!! Entra no ar,
Dyrceo!!!
LIZST
[Desajeitado
com o aparelho no ouvido.] Ouço com zzt-tzz-zzt interferências agudas, um
pinicado em meu ouvido, isto vai acabar com a minha genialidade auditiva, diga
lá quem quer que seja, diga logo o que deseja…
DYRCEO
Tudo bem,
Seu Francisco, não se preocupe com a audição … e repita cada manhã: Estou
bem… cada dia ouço melhor… e o Beethoven só virou gênio da música… quando ficou
mais surdo que uma porca.
LIZST
Isto prova
que não retiramos a música daquilo que ouvimos e sim de uma fornada interior de
mistérios. Tudo no mundo corre ao revés do que dele pensamos. A razão é uma
placa de ferro à entrada de um salão abandonado, tudo em ruínas. O que se salva
na vida é o que dela imaginamos.
DYRCEO
Ao que
parece estás a compor a tua melhor sonata. E logo será a tua vez de também ser
compreendido como um gênio da música…
LIZST
Pouco me
importa que a vaca tussa, eu quero mesmo é rosetar… A galope na pedrinha mágica
que nos leva a toda parte. Zump-zez-tchaco…
LIZST
Pois é. A
ideia voa bem, nem precisa de asas. Mas desde que tiraram o dó da escala, a
música ficou saltando acordes, variando entre o engasgo e o soluço. Talvez se
eu começasse a tocar pendurado eu me tornasse up-to-date, essa supimpa
veneração pelo instante. E ao piano eu poderia acrescentar um coral assustado,
de vozes penduradas.
ARAUTO
[Surdina.]
Vou baixar a cortina em cima desse falastrão…
CORTINA
[Toda
enroscada em um canto do palco.] Ainda não, ainda não. Tenho o script,
Martinico Faruco ainda vai ler um trechinho do Diário da Sapa Sulamita,
acompanhado pelo piano pendurado de Francisco Lizst. E vejo agora o detalhe da
ousadia: eles vão se apresentar simulando voz e música. Nunca tivemos disso por
aqui, nosso teatrinho vai ser o mais falado em toda a redondeza, uma nova
dimensão do drama. Sossega o facho, Arauto, não vamos perder isso de modo
algum.
BEDEL
[Entra.)
Dyrceo, estás ficando muito pirado … Agora queres te entrevistar a ti próprio …
aquelas tuas pastilhas de groselha estão carregadas de haxixe …
DYRCEO
Haxixe é bom
pra tosse… Receita do Doutor Jatobá. Se existem autos da fé, por que não
podem existir auto-entrevistas? … O Hamlet já fazia. É verdade que eu
terei que encarnar a Dama das Orquídeas…
BEDEL
[Bruscamente
interrompendo.) Mas não era das Camélias essa tal Dama?
DYRCEO
Nada como
lidar com um Bedel retardado. A notável dama mudava sempre de sobrenome a
depender do jardim onde se instalava. Foi na verdade uma grande biscateira de
pólen, que sintetizava no fabrico de um simulacro do procurado pó de
pirlimpimpim. Isto lhe trouxe grande fortuna e renome, porém quando descobriram
o roubo dos componentes do pó ela teve que levar uma vida de fugas, e com isto
veio a ideia de mudar o sobrenome a todo instante.
BEDEL
Está bem,
acho que alguém já me havia contado essa bravata. Mas, e a auto-entrevista?
DYRCEO
A
auto-entrevista, Bedel, é uma invenção de ... plec! plec!... um príncipe da
Dinamarca!... elegantíssimo, que se chamava... plec! plec!...
BEDEL
Seria o...
Sócrates?... Mas ele não era dinamarquês, Dyrceo ... Estás fazendo confusão ...
Ele tomou cicuta pensando que fosse sopa de feijão.
DYRCEO
Não, este
foi um grande erro na história do futebol, eu falo do príncipe Nico o Grande.
De todos modos, eu posso fingir que me faço intrépidas perguntas, ao mesmo
tempo em que movimento os lábios como se dera na jugular com as minhas
respostas. A plateia, que não quer engolir esse trapo de sarjeta, esse bugalho
de papo, faz cara de quem entendeu muito bem e até nos (me) surpreende com seus
inesperados aplausos.
BEDEL
É boa. Mas
mesmo assim ainda acho que falta algo.
RÁDIO
BAKELITA
Tudo
devidamente documentado por nossas frequências moduladas, com a vantagem de não
ter imagem, como forma de estímulo para que nossos ouvintes desenvolvam sua
imaginação. Vai lá, Cortina, faz de conta que estás ouvindo a música…
7 O BOCADO ESQUECIDO – TRAGÉDIA NA BEIRA DO PRATO
MARTINICO
[Lendo o
matutino Notícia Improvável.] Acabam de descobrir uma sereia com sete
caudas.
SARDANELO
[Preparando sua salsicha matutina.] Por isso é que os marujos do Gama, no Canto IX, se
atrapalharam…
MARTINICO
Era natural,
pois uma cauda por vezes não dá mais do que um caldo, e essas sereias de nossa
fábula se desfazem em múltiplos sumos que tardiamente os marujos do Gama
descobriram ser alucinógenos.
SARDANELO
Mas
descobriram tarde demais… A Caravela do Gama, com todos a bordo, já tinha
partido da Ilha dos Amores, e se dirigia pressurosa para Lisboa, onde se daria
enfim o X e último Canto da Epopeia. Vasco levando Thétis a bordo. Ela só
desceu, enfim, na ilha da Madeira …
MARTINICO
A princípio
toda gente pensava que essa Epopeia começava pelo final, até que um leitor mais
sagaz descobriu que aquele X com se abria o livro não era a marca de um
capítulo, mas sim o único sinal em um mapa invisível, logo na primeira página,
que apontava um tesouro escondido em alguma inóspita ilha.
MARTINICO
Pois foi
assim, sem encontrar lugar seguro a que chamar fim ou princípio que a Caravela
do Gama singrou os mares de sua curiosidade, paginando aventuras que poderiam
ser lidas em qualquer direção, pois nelas o tempo não contaminava o percurso.
Aliás, até mesmo o espaço era uma barafunda sem direito a remendo.
SARDANELO
Daí o
sucesso do Camões e do Vasco até hoje… tragédia e comédia rolam embrulhadas sem
começo nem fim, aliás o livro começa no Canto 1 pelo fim, quando o Camões o
apresenta prontinho ao Rei Sebastião e de repente, sem explicação, caímos
dentro da caravela do Vasco, em pleno oceano. Camões usa uma técnica de corte
e playback revolucionária.
MARTINICO
A realidade
se desmantela toda tentando ser atual, porém ela mal consegue ser uma soma de
retalhos do que se passou. Veja o gigantão do Rabelais expurgado dos
entendimentos do humor negro do Surrealismo… A história sempre se engalfinha
nas mesmas pernas. As pernas que Camões e Rabelais apresentaram ao mundo jamais
foram empregadas para desbravar novos caminhos.
SARDANELO
Com a demora de empregá-los, os caminhos novos vão ficando cada vez mais
velhos.
MARTINICO
Não era para ser assim, até que as estradas se desgovernaram de tal
forma que nenhuma delas mais sabia onde ia dar.
Entra por um lado do palco os três sineiros do frade, fingindo galopar
em invisíveis alazões. O primeiro deles é conhecido como Rato, e negocia com os
mais preciosos artefatos, embora todos falsificados. O segundo atende por
Bigurrilho, dizem que há muito esqueceu como fazia para tirar cavaco do pau.
Coladinho atrás deles vinha Ateneu, que em tudo encontrava um jeito de
dissociar as coisas entre si. O trio para no centro do palco e desce de suas
montarias. Sardanelo e Martinico se entreolham como se duvidassem da cena.
RATO
[Tirando
um pinico de ouro do meio dos penduricalhos brilhantes que tinha em seu corpo.]
Ah com essa estrada cigana me deu uma vontade de fazer um pipizinho. Olhem para
lá, bons pastores.
SARDANELO
[A
Martinico.] Bons pastores? Nós?!!
BIGURRILHO
Vejam só
essas árvores de papel, a paisagem parece toda de araque. Ou descobrimos onde
está o tesouro da aldeia ou toco fogo em tudo.
ATENEU
Ainda não,
Bigurrilho. Primeiro vamos nos divertir montando um teatrinho…
ARAUTO
[Irritado]
Mas Bedel, cadê o Bocado Esquecido?
BEDEL
Que bocado
esquecido, Arauto? Esqueces as coisas, e sou eu acaso que as vou
relembrar?… Como era esse bocado esquecido?
ARAUTO
Se me
lembrasse não te iria perguntar.
BEDEL
Se te
esqueceste, Arnaldo… eu tampouco me lembro. Por que não baixas a cortina?
ARAUTO
Se a cortina
cair, o Povão vai reclamar.
BEDEL
Vai reclamar
de quê?, se do Bocado Esquecido ninguém pode se lembrar?
ARAUTO
Talvez
tenhas razão, Bocácio… agora vai… puxo a manivela com força e…
BEDEL
…e o que? Já
não me lembro o que era.
ARAUTO
A cortina,
ora de derrubar a cortina no chão…
BEDEL
Nada disto.
Aqui no script diz que ainda falta meia hora.
ARAUTO
Falta nada.
Esse Bocado Esquecido começou a ficar esquisito, melhor esquecê-lo.
BEDEL
Mas podemos
remendar. Corta o pedaço dos três reis magros e vamos em frente. Afinal, o
público já pagou… e cá pra nós, pagou bem caro!
PÚBLICO
Acaba esse
bate-boca, queremos o espetáculo!!!
[Airoso
se levanta.] Coisa do Augusto Comte não, mas sim do Manuel Kant. As órbitas
planetárias são elípticas.
BEDEL
Era
exatamente o que eu ia dizer!…
[Querendo
maneirar.] Ora, é quase a mesma coisa… O Kant é um beque do Vasco, que
sempre chuta a bola pra eskanteio. E o Comte… é um busto augusto da
Pátria.
Quem sabe
desse Bocado Esquecido é o Arauto. Perguntem a ele. Enquanto
isso, peço licença para fazer pipi. [Sai às pressas.]
BALCÃO NOBRE
Pois então,
Arauto, que venha agora o Bocado Esquecido!!!
POLEIRO
FEROZ
O Bocado
Esquecido!!! Queremos o Bocado Esquecido!!! Ou tacamos fogo no teatro!!!
ARAUTO
O Bocado
Esquecido jamais foi cortado para ser lembrado. Desde o princípio a ideia era
de escolher uma fatia desse estrupício de realidade para que ninguém se
lembrasse dela. O que não é possível esquecer é justamente isto: que há coisas
que não devem ser lembradas. O Bedel tem razão ao lembrar o Comte.
POLEIRO
FEROZ
Ei rato de
armário, não me vem de novo com essa de Kant lá que eu Comte cá. Foi tanta água
que o Bedel tomou que deve estar se afogando na própria urina… Nós queremos o
drama e não a trama.
ARAUTO
Pois é
justamente o que nós vamos apresentar: A aldrava emperrada da filosofia de
boteco. Grande espetáculo de costumes, merecedor das melhores vaias da corte.
BEDEL
[Voltando
da mijada ajeitando a braguilha.] Não entrega ainda o ouro, Arauto. Vamos
raspar o barro do andor e soprar o pó da ralé resmungona…
[Surdina.] Dito
e feito. Eu e Bedel raspamos o barro do andor e jogamos o pó nas fuças do
poleiro.
BEDEL
[Surdina.] Muito
bem, Arnaldo!… Mas agora deixemos a cortina ir baixando de mansinho… e nos
evaporamos na ponta dos pés, antes que o Poleiro, passada a surpresa, resolva
reagir e nos venha louca urrando … num pega-pra-capar!…
POLEIRO
Parasitas!!!
Carrapatos!!! Pega Arauto e Bedel!!! Pega pra
capaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarrrrrrrrrrrrrrrrr!!!
BALCÃO NOBRE
BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!
BELÍSSIMO FINAAAAAALLLLLL!!! Finalmente uma peça desengonçada que já traz
moralzinha engajadola que podemos aprovar para receber votos favoráveis da
esquerda. BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!
POLEIRO
À esquerda
da plateia ficam os parasitas… Essa é boa! E à direita? Ah sim, os carrapatos.
Parasitas comunistas, carrapatos fascistas… Vamos jogar pedras nessa carniça…
Depois capamos Bedel e Arauto… Zé do Poste, acende as luzes do teatro, vamos
acabar com esse auto de inclemências, essa tragédia repicada de restos de
comida. Toca fogo na cortina. Daqui ninguém sai. O teatro está com seus minutos
contados. Tracatraca, prumz-crang, crapt-crapt-vazzt…
RÁDIO REX
Notícias de
última hora: o fogo feroz envolveu o Theatro… Segundo o Chefe do pelotão de
Bombeiros, Seu Genorr Netuno, com a falta d’água o melhor agora é rezar…
Caboclinhas românticas da assistência viram o Nero nu de lira e
grinalda, tocando e recitando no topo do telhado em chamas … Sim, é verdade,
agora o vemos…
NERO
[Nu, gordo e
pálido, tangendo e lira e recitando.] Besameee… Besame
muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuucho …
Os boleros são ainda melhores do que as valsas para despertar as
furtivas lágrimas nas mocinhas da plateia que sonham com seus amores sorteados
pelo acaso, pouco lhes importando que sejam carrapatos ou parasitas.
GENORR
NETUNO
Vejam só, do
que são capazes as lágrimas! O fogo está se dissipando…
FOGO FEROZ
Diante da
voz desse canastrão até eu me ponho a chorar… E quando choro eu me apago todo…
PRESSÁGIO CAVILOSO
Pouco se
sabe do que veremos a seguir. Ao que parece o Capitão Gin, em uma das paradas
em terra do Vapor Bidon, dando uma vista displicente nas gravuras do Salão
Dependente de Fumo… se depara com a “Tenebrosa Baleia Beluxa destroçando uma
Nave da Marinha Britânica”, tela gigantesca e apócrifa, embora alguns críticos
suspeitem tratar-se de uma das primeiras obras de Gilbertinho Turno… o bom
Capitão toma um choque terrível, com essa premonitória visão do passado… A
terra treme e surge essa historieta com ares vagamente familiares
ALGO NA TERRA AINDA TREME
Um sábio conselho: não tente ser anjo.
JOE DEACON
Quero
agradecer pelo https sobre poesia e vida de Alfonsina Girardosia.
Ela merecia um pequenino folheto, 36 páginas com uma de suas extraordinárias
fotos, naquela atmosfera espanholíssima, onde podemos conversar com ela, e
conhecê-la mais a fundo do que em uma biografia de 850 páginas. Do mesmo modo,
dois ou três poemas dela, bem escolhidos, saberiam mostrar sua bela poesia.
Nunca ninguém pensou em fazer uma cole3ÃO de folhetins de 36 pgs.
Acho que o
mercado de livros fez apostas erradas em todas as direções. Ainda imagino que
uma coleção de pequenos livros com breve apresentação e seleção de poemas seria
de boa monta. Uma coleção que lançasse vários livros de cada vez e saísse com
frequência regular. Mas creio ficamos longe disso.
Vou propor
um romance histórico de 600 páginas reduzidas a um bilhete de 6 linhas. O gordo
Maneco Flores acadêmico tem tudo, admiração total de seus pais, e vai levando
na maciota uma tranquila vida universitária, até aos 40 anos, quando consegue o
posto de assessor do Doutor Baltazar Mascaranhas, Catedrático de Língua
Portuguesa na Universidade de Porto Velho. Compete ao Maneco Flores mensalmente
preparar para o Mascaranhas um não-papel, de umas 9 folhas datilografadas
espaço dois, a serem entregues à Dona Wanda (o que este mês ele fez via postal,
por estar em tratamento médico em Barra Mansa), sobre um notável escritor, no
momento injustamente esquecido pela Inteligentsia, Archimedes Beltrão, que
teria participado da Inconfidência, sem haver porém acompanhado a fase decisiva
da revolta, por estar na época em tratamento de uma pertinaz bronquite, em
Barra Mansa, justamente. A situação está tensa, e Dona Cassandra, mãe de
Maneco, passa-lhe por telefone alarmantes notícias, e aconselha Maneco a não
voltar a Ouro Preto, e prosseguir seu não-papel em Barra Mansa.
As 9 linhas
se baralharam com a queda de Maneco de sua Eletric Chair último modelo. Sua
mãe, tão aplicada em sutilezas insuspeitas, deu-lhe a notícia em um teletro
para a clínica em Barra Mansa. Maneco não se conteve em lágrimas de encharcar a
tapeçaria do local. Seu maior arrependimento era justamente a sua teimosia,
nunca desistir de uma frase solta que fosse e cuidar bem de todas as linhas
viúvas. No fundo, seria ele o notável escritor e não aqueles todos, sobre quem
aceitara escrever. O que fazer agora é algo que ele deixara para decidir
amanhã, pois a essa hora da tarde na clínica em Barra Mansa costuma ser
servidos deliciosos pastéis de camarão seguidos de um sorvete caseiro de manga.
A vida sempre pode aguardar mais um pouco.
Enquanto
isto, talvez até um pouco antes ou depois, afinal entre relutante e
impertinente o tempo não se fixa em parte alguma, no Asilo Pelicano Garçon
Garcez faz o que sempre fez: anotações sobre tudo o que se passa (mas há quem
diga que seu caderno está repleto de coisas que não se passaram nunca) à volta.
GARÇON GARCEZ (pra Garçonette Suzette)
Olha, lá,
Suzettte, na mesa 7, do nosso modelar Asilo Pelicano, o novo asilado Seu Maneco
Flores, sentado ao selim de sua moto Eletric Sitting Bull de molas espirais e
motor de 2 carburadores. Ele conversa com Capitão Gin – alcunhado de A garrafa
falante, do Vapor Bidon, de 2 chaminés, e certeiro canhão francês de bolas de
chumbo. Eles estão conversando sobre qualquer coisa secreta. Cheguemos um pouco
mais perto para ouvirmos esse diálogo de Ciclopes da Modernidade…
MANECO
Vim cá para
Barra Mansa para me transformar em um poeta de larga pança, e fama
internacional.
GIN
Larga pança
já está garantida, bem se vê. E os poemas? O senhor já começou?
MANECO
Ainda não.
Por isso justamente vim para este famoso Asilo Pelicano, onde tantos gênios
aqui ousaram libertar sua obra reprimida.
GIN
Sua mãe o
reprime? Temos aqui o Doutor Marabu, discípulo predileto do Doutor Fole, o
famoso curador do General Napalhone.
Um lapso
repentino, e nisto é bom que se diga o tempo é de uma satânica esperteza.
Quando menos se espera ela já está em outro lugar.
Expedito
Limonho retocava as perucas do reino. Graças à simpatia oscilante da Rainha
empalhava marrecos eruditos e coelhos com mania de perseguição. Ele foi trazido
pelo Rei, de uma de suas idas habituais à Sardonha, onde mantinha uma amante
Genoveva que, segundo os caprichos da época, era justamente uma prima de
Expedito, então um conhecido comerciante de peles e que tinha por hobby a
manufatura clássica de cativantes barganhas. Já em sua residência real, ele
havia casualmente diluído em vinho um pedregulho esverdeado que encontrara no
fundo do caixote de suas ferramentas. Dera então de provar à Rainha e assim a
havia curado de suas quase diárias crises de epilepsia. Com isto, Expedito
passou a frequentar a cama da Rainha e hoje Vossa Graça só tremia em suas mãos.
Nosso herói encheu-se também de opinião e logo se intrometia nos problemas
reais, o que de algum modo desagradava ao Rei que começava a suspeitar de suas
idas e vindas aos aposentos da bela esposa.
Rei
Bernoldo, para espantar suas dúvidas resolve então pedir ao Mago Berlin, que
tem seu laboratório nos porões do Castelo, que invente uma poção que transforme
o Expedito num papagaio falastrão mas… capado, por via de dúvidas.
MAGO
E das bolas
do Papagaio, Rei Bernoldo, o que faço?
REI
Pinte-as de
verde, que te quero verde.
MAGO
Não
aconselho, meu Rei, porque essa máxima lorquiana foi empossada pela Rebulição
dos Cabritos, o que daria ao Expedito uma aura de mártir dos desabrigados.
Talvez, se o senhor me permite, fosse melhor enviar o papagaio em um tonel de
piche, deixa-lo sair de lá com cara de graúna iletrada. Caso se ponha a
reclamar será apenas mais uma das tantas vozes que apodrecem nos porões da realeza.
A história sempre destinou tal calabouço para os insurgentes sem pai nem mãe.
REI
Por esta e
outras razões é que manténs o teu cargo, meu bom Berlin. Estou de pleno acordo
com tua maquiavélica proposta, desde que a graúna seja antes devidamente capada
e seus bagos premonitoriamente pintados de verde-bandeira, e pregados no velho
local dos antigos bagos do papagaio.
VALETE (pigarro)
…grm grm…
Rei e
Astrólogo acintosamente não percebem o Valete, que passa a uma mímica mais
radical: um espirro-rugido de leão.
VALETE
GRUAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!
O súbito
terrível rugido autêntico de leão assusta o pequeno Mago, que pula apavorado
nos braços do Rei Bernoldo.
REI
Pois então
agora, Valentim, pegue este Astrólogo cagão e o jogue pela janela.
VALETE
Na panela?
REI
Não era de
todo má ideia, mas por enquanto melhor deixa-lo lá fora, quem sabe ainda
encontramos para o tapado-cagão alguma serventia.
Valete
cumpre sempre às riscas as ordens bem pedidas do Rei. Os dois se sentam e se
articulam como se avaliassem um projeto de desterro para o Mago Berlin.
Imperava a preocupação de como conseguir um bom estoque daquela mistura verde,
pois do contrário voltariam à tona os ataques epiléticos da Rainha, justo agora
quando se aproximam as festas em torno do torneio anual de Berrantes.
VALETE
No
Hemistério Sul há uma famosa Cerveja Vaca Preta…
REI
Dizeres
queres HemisFFFério Sul.
VALETE
Dizer-vos
quero HemisTTTTTério Sul. Trata-se de um Arquipélado de uma só ilha perto do
litoral britânico de que o Fog inglês entrando mar adentro engloba totalmente e
o faz desaparecer. Graças a este fenômeno, de que as razões os cientistas não
conseguiram ainda elucidar, o Fog é muito querido dos habitantes do Hemistério,
porque quando os funcionários do Fisco aparecem, o Hemistério desaparece.
REI
Ora,
deixemos essas questões do Fisco inglês, e voltemos ao cerne de nossa reunião
plenária: qual afinal a consistência dessa Cerveja Vaca Preta?
VALETE
O Meu Rei
alerta sempre acerta na mosca azul do problema. Justamente, Majestade, a
cerveja é feita com boa dose de cogumelos pretos da Vaca Fiohzinha, mandada
buscar em Uberlândia, a Terra do Úbere Destampado, que dá uma espuma leitosa de
uma cor escura graças à aposição de boa dose não especificada dos substanciais
cogumelos da Vaca Preta.
REI
E seus
efeitos sobre as freguesas contumazes…
VALETE
As freguesas
vão aos poucos ficando alegres, inofensivas, obedientes, risonhas…
REI
Muito bem.
Encomendemos um estoque considerável. Reservemos boa metade para a Rainha, e o
que sobrar que seja destinado às teimosas rebeldes campônias.
VALETE
E para os
rebeldes campônios?
REI
Para eles,
nada. Terão agora a felicidade no lar, e nos ficarão eternamente agradecidos.
VALETE
Mas o lar
não é como o mar. O lar tem seus desgastes e a areia que lhe entope as narinas
não se esvai com a sombra das marés.
O Valete
Valentim saíra dali duvidando ainda se acaso não seria melhor jogar na panela
aquele Mago papudinho. Onde já se viu tamanho atrevimento, futricar nos
guardados carnudos da realeza, fazendo o Rei passar por trouxa dourado.
GIN (voz em off)
E nem um
cafezinho para os amigos!…
VALETE (buscando a origem da voz)
Quem disse
isto?
GIN (voz em off)
Aqui, olhe
bem pra cá.
VALETE
Eu bem que
havia reconhecido a voz da garrafa falante… Mas o que andas por aqui?
GIN (voz em off)
Ninguém
precisa saber que eu estou aqui. O Mago desconfia de algo e teme por sua vida.
VALETE
Ora, mas se
ele é o bracelete de ouro da Rainha e o fiel opinante real! Quem iria contra
ele?
GIN (voz em off)
Nunca se
sabe. Às vezes uma fila invisível se forma sob a janela do inquestionável. O
certo é que o Mago guardará corpo oculto por algum tempo.
VALETE
E onde mesmo
será esse lacre secreto atrás do qual ele se esconderá?
GIN (voz em off)
Ora, Valete,
se isto a alguém revelo… deixará de ser secreto, como aliás é a moda de hoje:
tudo acaba aparecendo na Internet. As Quimeras novas não são tão espertas
quanto as Antigas, que eram secretíssimas… As novas são boquirrotas. Mas... têm
as garras fortíssimas, e esfolam com feroz violência…
Levanta-se
Gin, com ar compungido, vai até o canto da sala, junto à cortina carmesim, e
aciona o fonógrafo. Evola-se, num trêmulo magistral, a voz de Caruso… ocupando
todo o recinto. Cada investida de sua voz era como chegar de novo ao mundo. As
ilhas voltavam a se abraçar, os continentes tremiam de sonhar com sua pangeia
desfeita a pauladas regidas pelo Olimpo. Todas as árvores emendadas formavam
uma só brisa e cantavam em coro acompanhando Caruso.
GIN (de volta à cena, mas já com um humor mais
contido até mesmo em seu traje, gravatinha borboleta e luvas, sem mais nada)
As ordens do
Olimpo fizeram o mundo tremer muitas vezes. Agora reclama-se das tempestades,
da voracidade dos terremotos e desse despertar agônico dos vulcões. A terra
está novamente reunindo suas sombras, refazendo a mais íntima geografia, e o
homem parece não ter vez nesse seu manancial de desassossegos. Mas… esta
gravura inglesa… diz: From Velox Ship’s Bow Captain Lufoldo Spinachs in
Spanish the Whale Beluxa…
VALETE (pálido)
Enquanto o
Senhor lia o título, a Baleia deu uma trombada terrível no Vapor Velox, que
afundou.
GIN (puxa o cachimbo do bolso, acende-o com
isqueiro à gasolina, solta uma baforada, e torna a ler o título da gravura)
Baleia
Beluxa Laughs at Sunset
(…solta uma
longa baforada, com ar meditativo e melancólico, e sussurra)
Cosí Fan
Tutte.
Recuperando-se
do susto, ainda pálido, Capitão Gin balbucia: A Beluxa me persegue…
sempre! É uma doida paixão… Valete, com cínico esgar, comenta em
surdina: Dr. Freud, um vão humanista, não saberia sacar essa lacanagem
de 2° grau.
GIN
Certamente
nem o próprio Dr. Lacan, que bancava o lacana, mas… era muito carola… tampouco
sacaria.
VALETE
Somente
Doutor Xarkot, o psicólogo totêmico, saberia sacar esse tesão tabu, da infeliz
Beluxa…
GIN
Por certo
essa jornada não terá um final na esfera humana, e mesmo alguns de seus ossos,
acidentalmente encontrados ao longo de milênios, alguns rancorosos, outros
falaciosos como a gralha Al-Forrida que perdeu a ponta em Hollywood, jamais a
técnica hoje ociosa do Carbono 14 poderia aceitar como argumento a simples
queda da cortina. A Baleia Beluxa tão bem sabe disto que permanece afeita a
toda tática de metamorfose, fazendo com que a terra trema muito além de suas
decadentes convicções e a barbárie de suas frustrações.
∞
ZUCA SARDAN (Brasil, 1933). Poeta, dramaturgo, desenhista, o mais eletrizante criador possuído pelo espírito da Patafísica no Brasil. Entre seus livros, estão: Aqueles papéis (poesia, 1975), Os mystérios (fábulas, 1979), Visões do bardo (graffitti, 1980), Ás de colete (poemas & desenhos, 1994). É autor, juntamente com Floriano Martins, de 8 peças de teatro automático, onde se destaca a trilogia O iluminismo é uma baleia (2016).
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
∞
Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
∞
Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
Nenhum comentário:
Postar um comentário