quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | A volta da baleia Beluxa [escrito a quatro mãos com Zuca Sardan]



PRÓLOGO CONVENCIDO: UM TEATRO ATRACADO NA METAFÍSICA

 

FLORIANO | Dizia o Artaud que o teatro é uma arte do espaço que caindo sobre os quatro pontos cardeais corre o risco de tocar a vida. Em que momentos o teatro, segundo pensas, tocou a vida e em que circunstâncias esse toque se tornou impossível ou inviável?

 

ZUCA | O Teatro, a Arte Rupestre, a Música e os Cantos, a Dança, vêm da Pré-história, manifestações primordiais do Ser Humano, face ao Mistério do Mundo. Antes de querer explicar, o Homem se maravilhou face à grandiosidade do Mundo, o Sol, a Lua as Estrelas,… e… a Língua!… o que lhe abriu os caminhos do Mito e da Magia, e finalmente criou o próprio Homem… E não vice-versa: o Homem não criou as Artes e a Língua. Mas sim, a Língua e as Artes criaram o Homem. O Teatro faz parte da vida, e nasceu com a Metaphysica, na Pré-história, com os ritos dos Homens fascinados com a maravilha do Cosmos.

 

FLORIANO | A Metafísica, no entanto, acabou sendo devorada pela Moral, tendo o mundo desde então mergulhado em uma racionalidade caprichosa. Os caprichos são as cortinas de fumaça que o Homem inventou para nublar a percepção e situar-se distanciado do outro. Ionesco atalhou a questão aclarando que os sistemas de expressão não servem sempre para comunicar, servem frequentemente para esconder uma intenção. As ideologias são geralmente álibis e dissimulam, voluntariamente, coisa bem diferente da que elas proclamam. Por um efeito de folclorização da cultura o teatro perdeu a sua força mágica e converteu-se em mero espetáculo.

 

ZUCA | Foi justamente o que o Ionesco fez numa genial manobra de contra-vapor. Usou a galhofa pra desmascarar a seriedade plastificada das verdades definitivas das autoridades que queriam usar a galhofa comercializada meramente pra arrematar, dar a última pá de cal na robotização distinta da população mais esclarecida corretamente engajada pelas luzes da ideologia hierárquica.

 

FLORIANO | Como ele próprio recorda, a sua estratégia não funcionou em grande parte porque a crítica dramática da época herdou a mentalidade de boulevard, foi descaracterizando a seriedade do teatro de vanguarda. Mas é fato que a sociedade como um todo, corneada – para usar um termo caro ao Salvador Dalí – pela beligerância arrogante do Capitalismo e do Comunismo, derrapou em crises longe de uma essência humanística, e com isto as Artes se bandearam – em parte como refúgio, em parte como ato dessacralizado – para os porões das Ciências e das Religiões.

 

ZUCA | Deixando as Artes nos porões, as Ciências e as Religiões iam em carruagens separadas para os castelos das Autoridades dos Dois Mundos Rivais, que aprontavam um teatro de Guerra Iminente, para que suas respectivas Sociedades se embandeirassem de patriotas e aceitassem que a Ordem precisava, a contragosto, soltar umas borrachadas suasórias nos rebeldes mais assanhados, que não compreendiam a gravidade do momento e aprontavam constrangedoras manifas desaforadas de protesto. Mas o bem encenado Teatro acabou com o desabamento do Bloco de Varsóvia, e o Capitalismo transformado em Deusa da Liberdade, criou a Globalização, para que as populações de todos os Países se unissem até formar o Mercado Comum, e o Consumo se alastrasse do Polo Norte ao Polo Sul.

 

FLORIANO | Caídos os dois impérios, os dois túmulos foram revirados a todo vapor e fedem até hoje, ainda dividindo o mundo em cicatrizes incuráveis, verdadeiras fístulas. Um mundo de essências desfiguradas, onde os espelhos já não mostram a devida máscara de ninguém. Em meio a isto, nós dois reatamos uma conjugação de forças de tom Metafísico e Patafísico, ou seja, um teatro que soma vários recursos das vanguardas, ligados à sátira, ao humor negro e àquela épica desmitologizada defendida pelo poeta e dramaturgo nicaraguense Pablo Antonio Cuadra. Nossa carroça, no entanto, percorre a floresta sem condições de montagem e nossas vozes já não repercutem como bem poderiam.

 

ZUCA | Precisamos de um megafone, e umas caboclas pra dançar… um tocador de tambor e… solta no terreiro, uma armação com guichet de janelinha, e, do outro lado, Leonor vende os bilhetes… logo aparece um pouco de gente… Se sair porrada na boca do guichet, os jornais locais botam em manchete, e, no dia seguinte, teremos um recorde de público, cadeiras e camarotes lotados, pivetes e trombadinhas pendurados nas cortinas e candelabros…

 

FLORIANO | Nossos dois protagonistas ocultos: o ponto e a cortina, eles regem a orquestra de improvisos e tiram da manga e de fundos falsos os personagens de cada cena, com seus paradoxos e sarcasmos, suas premonições e alucinações, transformando a realidade no que ela menos suporta, ou seja, nela mesma.

 

 

AS FABULOSAS LAGARTAS PINTADAS

 


FRONTOSPÍCIO

DOUTOR PASCALHA ANUNCIA O LANÇAMENTO DE PEÇA SADO-LIBERTINA NO MANICÔMIO DE PATAKAWA

 

O diretor do manicômio de Patakawa, Dr. Pascalha, grande conhecedor da obra do Marquês de Sade, se interessou vivamente pelo livro Oráculos profanos, de Zuca Sardan e Floriano Martins, e decidiu montar uma de suas peças – cujo título ainda mantém em segredo – no auditório do Manicômio, para os seus pacientes, e tenciona inclusive convidar Martins para ser o diretor de encenação da porno-libertina mostra de Guinhol Automático. O assessor do Pascalha, Dr. Franela, tentará chamá-lo à razão.

 

FRANELA

Mas Doutor Pascalha, isso é obra de dois loucos furiosos!… O Senhor leu o prefácio?…

 

PASCALHA

Li o livro todo, de um fôlego só, Franela, é obra de gênio, uma obra digna do Marquês de Sade!…

 

FRANELA

Mas Doutor Pascalha… esse livro é uma porcalhada de psicopata, é coisa de louco… causará um trauma em nossos pacientes…

 

PASCALHA

Justamente, Franela, é obra de catarse para os nossos loucos, de que muitos sairão curados, sobretudo os que trabalharem de atores no capolavoro.

 

FRANELA

É verdade, Doutor Pascalha, o Senhor tem toda a razão… com louco não se discute… Direi logo ao editor que cuide dos papéis…

 

I. E ASSIM PASSAM OS PANOS

 

DOC FLOYD

Vou ao México, de onde nunca sei se volto. Quando ali estive pela primeira vez quase boto o fígado pela boca tentando chegar ao cume da pirâmide do sol. Anos depois consegui subir uma pirâmide menor, em Monte Albán.

 

ZUCA SARDAN

Da próxima, melhor subires a Pyrâmide Xapaka tem elevador com corda na grande roda com eixo de prata, puxada por campônios xiximecas.

 

DOC FLOYD

E subindo pelo centro da pirâmide pocotó-tepek o clima é bem gostoso.

 

ZUCA SARDAN

Faraó Osíris Xapok, aproveitando os avan§os da tecnologia, instalou sete possantes ventiladores com trombetas dentro da Pyrâmide, que criam um um espantoso torvelinho musical, que faz os visitantes entrarem em êxtase mystico, e pronunciarem oráculos indecifráveis.

 

DOC FLOYD

Com uma acústica tão refinada que na medida em que sobe (a descida é por fora da Pyramide) o elevador gera um efeito distinto dos demais, como uma espiral de sons, um mantra ondulado.

 

ZUCA SARDAN

Faraó Osiris Xapok, e sua Faroletta Dolores, são um casal progressivo que incentiva as artes na região das Pyrâmides. Famosas são as corridas de cavalos com tiroteios, para furar uma bola de futebol suspensa por cordel num obelisco. Boleros de Agostín Lara na voz soluçada de Pancho Solis, ao som de guarachas multi-seculares, ressoam nas cálidas noites mexicanas.

 

DOC FLOYD

(À sombra de um bolero sem alça)

Osiris levava sempre o sol dentro do bolso

e com ele mantinha sua Dolores aquecida.

Ela lambia o sol como uma fruta tropical,

e aos boleros de Lara entregava a sua vida.

 

ZUCA SARDAN

E así pasan los anhos… chaca-chaca-chaca… y yo que te pregunto, Dolores de mis amores, y tu que me respuendes… “ay que sí, ay que nô” y me arrastras y arrastas en ciega pasión…

 

DOC FLOYD

Osiris acabou cego de tudo, porém nada lhe entornou a felicidade, passou a ver com os olhos de seu amor, Osiris passou a estar em tudo que ela via, Dolores lhe revelou a senha da gravidade.

 

ZUCA SARDAN

Osiris chega de elevador ao último andar da Pyrâmide, tateia a porta de seu gabinete. Entra, fecha a porta, tira o zoclos pretos, bota no cabide a bengala branca e saúda a Secretária: “Bom dia Dona Mazzoca… como vão as coisas?…” “Sucesso absoluto, Dom Osíris!!! A fila dá sete voltas da pyrâmide para chegar ao guichet!!!” “Muito bem, Dona Mazzoca… Temos de continuar a manter o Mytho, com o mais absoluto segredo. Ocultismo total…

 

DOC FLOYD

Dona Mazzoca arregalou os olhos ao ouvir falar em Ocultismo Total, sorrateiramente saiu de sua boca uma língua volumosa e inspirada. Patranzinho, não era o caso de se criar uma escola de ocultismo aqui no alto do morro Ocultepek?

 

ZUCA SARDAN

Sendo o Ocultismo uma prática oculta, talvez já exista aqui no morro Ocultek, mas ninguém sabe disso… Porque seus praticantes jamais diriam uma palavra sobre isso, e muitos deles, por prudência, e despistamento, adotariam outras idologias, muitas delas, aliás, contra o Ocultismo.

 

DOC FLOYD

Soube agora, isto por um sobrinho, católico fervoroso disfarçado de hare krishna, que demais ideologias e também suas religiões filiadas, há muito utilizam igual estratégia, de modo que já não sabemos quem é quem, qualquer que seja o fruto de sua presença entre nós. de tal modo que o mundo, por mais que fale, já não nos diz lé-com-cré…

 

ZUCA SARDAN

Talvez teu sobrinho, ao final, tenha se tornado um hare krishna que usa o disfarce de católico fervoroso disfarçado de hare krishna…

 

DOC FLOYD

Uma manada de nuvens lhe acompanhou por todo o regresso, a janela do avião lhe sussurrando que saltasse dali e fosse viver acabanado no coração daquela salina celeste. Seria ele? Seria eu? Desperto dessa visão segurando o pacotinho de sal, a ponto de colocá-lo no chá…

 

II. FALSO TORMENTO DA REALIDADE

 

DOC FLOYD

Está concluída? Creio que sim. Tenho que reunir nossos últimos escritos, por vezes penso que daria uma boa antologia a ser publicada, já verei, já verei…

 

ZUCA SARDAN

Sim, sim, está bem concluída. Tangas e Zcrita-Cordel, melhor curtas… A curtíssima tem a vantagem de ser mais apetecível pras novíssimas gerações. E uma Antologia também é atrativa, justamente quando é constituída de curtíssimas, argumentadas com cartuns.

 

DOC FLOYD

Navalha bem limpinha e pronta para descascar o olho oculto do mais severo leitor de Pompéia.

 

ZUCA SARDAN

O Sentinela de Pompéia sempre alerta, usa monoklo e patins para correr quando explodir o Vesúvio.

 

DOC FLOYD

O Sentinela de Pompéia deu nome a um planfletinho que circulava pelas ruas em zombaria de tudo quanto era lei lacrimosa e títulos de nobreza…

 

ZUCA SARDAN

Enquanto o Sentinela Dirceu Vão Bestoide lia do Lenin o tabloide Vesúvio comeu Pompéia.

 

DOC FLOYD

Alheio à tragédia que causara

Vesúvio cantarolava uma trova

ao ritmo de seu cachimbo que

dizia não crer em choro ou vela.

 

ZUCA SARDAN

Não acabou a trova, o desditoso

sentinela trovador, cantando

arrastado em cruel torvelinho

pelas larvas incandescentes.

 

DOC FLOYD

Não acabou o trago, o sonâmbulo

metafísico de bengala, aos cinco

ventos anunciou que uma vez a cada

cem anos uma fênix seduz o fogo.

 

ZUCA SARDAN

Não sei se ainda terei tempo de ver essa fênix duas vezes. O Oscar Niemeyer poderá ter visto, mas da primeira vez ainda estava de fraldas, e não lembrava mais…

 

DOC FLOYD

Sem falar naquela parcela da população que finge que não vê a Fênix, ou a confunde com a ave negra de Hollywood.

 

ZUCA SARDAN

Em matéria de não ver (com os próprios olhos) a Parcela da população é quase maior que a população total… a Parcela não quer ver nada por conta própria, só acredita no que os Locutores de Tevê lhes contam… Os Locutores Tevê são os Grandes Sacerdotes da Revelação do Mundo Quadrado… os grandes desastres ecológicos, que estamos assistindo, são devidos aos esforços tectônicos do Globo, em adquirir uma forma de hexaedro, para melhor se adaptar aos aparelhos receptores Tevê.

 

DOC FLOYD

A Grande Rebelião das Fibras Óticas começa a mostrar um mundo bem distinto do real, embora já não caiba importância à realidade comprovada, tendo ganho o pleito forjado a realidade condicional. Qualquer mestre de vigarices facilmente convence sua plateia da forma que bem quiser dar ao globo e suas sombras.

 

III. O CASO DA BENGALA ESQUARTEJADA

 

Quero a miiiinha bengala de volta!…

É do século XIX, e tem uma formosa

sereia de prata, esculpida no castão…

E duas iniciais: TL, de seu antigo dono.

 

O branco deu no galo

O galo deu na luz

Requebra o castiçal

Nenhum vento satisfaz

A bengala do Sardan

Deu um salto na lagoa

Dona Sapa desfalece

Tropeçando no aguidar

 

Cai lentamente a cortina…

 

A cortina lentamente

Deu um curta no cenário

Querubins pra todo lado

Zonearam o chimarrão

Toque um fado, toque um tango

Não importa a dor que doa

Saltimbancos no telhado

A cortina foi pro brejo

 

GERENTE

PLATÉIA AGITADA!!! É isso que queremos!!!… MAIS!!! MAIS!! MAIS!!!

 

JUVENTUDE REBELDE

MAIS!!! MAIS!!! MAIS!!!

 

GERTRUDE

(sottovoce) Vamos sair de mansinho, Gaspar, ou essa juventude ensandecida nos trucida…

 

GASPAR

Não te preocupes, Gertrude, sou professor, sei como acalmar meus alunos… (trepa na cadeira e bate palmas) PLAFF-PLAFF… Atenção meus bravos jovens, Esperança derradeira de nosso conturbado Brasil… Ouçai lá…

 

Minha terra tem palmeiras

onde canta o sabiá…

Piripi… Piripi… Tatá…

 

Zé Fininho se abastece

De esperanças que falseiam

De um gole bebeu todo

O sangue da gueixa Sabiá

Vamos sair de mansinho

Disse a turba ao microfone

À nossa frente as palmeiras

Disfarçarão a debandada

 

GASPAR

(triunfante) Está vendo só, Gertrude… como minha retórica de veludo… acalmei a moçada…

 

GERTRUDE

Até aqui tudo bem, Gaspar, mas e a pobrezinha da Gueisha Sabiá?…

 

GASPAR

Não te preocupes… telefonarei pro Frade Feijão.

 

Ao sair da cabine telefônica

De seu poleiro confessional

Frade Feijão coçou as partes

A batina em grande amasso

Quem nunca viu desconhece

Quem viu – dizem – quer mais

Porém ninguém ousaria falar

Da cor do pecado filisteu

 

GERTRUDE

Gaspar, li hoje no jornal, um cronista religioso… que se referia, sem mencionar qual fosse, ao pecado filisteu. Sabes lá qual seja?…

 

GASPAR

Enfim, Gertrude, nunca são convenientes, as leituras sobre pecados… Bem melhor seria leres sobre as boas ações…

 

GERTRUDE

Tens razão, Gaspar… Melhor nos voltarmos a assuntos científicos… Aliás, li hoje no jornal, com ilustração na primeira página, de que os astrônomos conseguiram fotografar o Black Hole!!!… Um buraco preto colossal!!!

 

Negra peçonha do mundo

Estreita os laços do pecado

Fosse uma vestal revelaria

As suas sombras interditas

O mundo inteiro caberia

Na vastidão sagrada da foto

Sentenciaria então o big bang

A um acorde de gazes do mistério

 

GERTRUDE

Que disseste lá, Gaspar??? Estavas de olhar esgazeado, e voz cavernosa…

 

GASPAR

Eu não disse nada, Gertrude… estas tuas leituras de pecados filisteus e buracos pretos estão a te embananar os miolos… melhor será a sessão culinária.

 

GERTRUDE

Embalsamar?…

 

GASPAR

EM… BANANAR

 

Espólio de bananas embalsamadas

E peixes ruminando pérolas gastas

A noite lustrava a prata das luas

Espelhando as naturezas mortas

Melhor servir na bandeja o zoo

de nossas visões metamorfoseadas

O galo engasgado com as manhãs

Pardais cuspindo fora suas casas

 

GASPAR

Agora eu ouvi!!! És tu mesma!!! que falas essas tenebrosas coisas com voz gutural!!!… Estás possessa, Gertrude!!!… Ai!!! Céus!!!… a voragem do Inferno!!!

 

GERTRUDE

(olhos revirados, sorriso satânico) Isso mesmo, meu gostoso enrustidão… Mas desta vez não escapas… agora, debaixo desta árvore frondosa… vou tirar teu cabacinho, meu amor de perdição… (dá um salto de onça)

 

GASPAR

(com Gertrude grudada, por cima) Enlouqueceste, Gertrude?… Há décadas casadinhos felizes e agora… ai!! que tu me esfolas!!! Ai!!! Vais me matar!!!

 

FREI FEIJÃO

(chega, assustado)- Céus!! Dona Gertrude está possuída pelo Diabo!!! Vou exorcizá-la!!!…

 

GASPAR

(voz agônica) Chegastes tarde, oh, Frei Feijão!!!… Agora deixa ela me matar… Vai-te embora, sacão… deixa eu morrer e… GOZZZARRRRRRRRRRRRRRR!!!

 

FREI FEIJÃO

(apavorado, sai correndo)- Ai, Socorro!!!…

 

PANO

(cai) PLAFFFFF!!! (Ouve-se a 4ª Fuga de Bach)

 

Cai a anágua do Feijão travestido

Cai o verbo desencarnando-se

Cai a pedra suspensa por Magritte

Cai o último espelho enrugado

E a prece dos vigários saltimbancos

E o culto das megeras parideiras

E a maçã na cabeça oca da ciência

E o moto perpétuo impresso no pano

 

Mas a cortina ah a cortina essa não cai…

 

GASPAR

(gemendo) Ai… Fertrude… Ai… me mata mais um pouquinho… AAAiii…

 

GERTRUDE

Fertrude, não, Gaspar… Gertrude é o meu nome!… Estás endoidecendo…

 

GASPAR

Endoidecendo de gooozo, minha fera Fertrude… me esfola… me mata mais um pouco…

 

GERTRUDE

Não posso fazer mais, porque a cortina está levantada, a plateia começa a reclamar…

 

BOAS FAMÍLIAS

Ai, que horror!!! Peça do Gelson Bromires!!! Telefonem pra polícia!!!

 

CORTINA

(discreta, baixa um pouquinho) Fung-Fung-Fung…

 

GALERA PESADA

Qualé??? Quem é o basbaque que está baixando a cortina? Pega!!!

 

TURMA GROSSA

Pega esse bedel de bosta!!! Vamos quebrar-lhe a cara!!!

 

CORTINA

(assustada sobe depressa) Fong-Fong-Fong…

 

GERTRUDE

(montada no supliciado) Ai, Gaspar, a cortina subiu de novo!…

 

GASPAR

Dane-se a cortina, Fertrude, manda brasa, me mata, me trucida, Ai.Ao.AAAUUUUUUU!!!

 

Um cavalo assustado

Uma pele azunhada

Um potinho de mel

A vida passa ligeiro

Quem vê lá de cima

Logo pensa em cair

Quem vê lá de baixo

Quer mais quer mais

 

Doramundo, um saltério

Lhe puseram nas mãos

Ficou cego e azulado

Um improviso atrás de outro

Quando veio para casa

Recusou-se a entrar

Até hoje o destino

Cantarola agachado

 

GASPAR

(tombado, abre os olhos) Ai… Gertrude, que se passou.

 

GERTRUDE

Ai, meu bem, você tropeçou caiu, e ciscou a roncar.

 

GASPAR

(desconfiado)- Mas… porque não me acordaste?…

 

GERTRUDE

Você estava com um ar tão feliz, que achei melhor deixar você dormindo.

 

GASPAR

Mas… e a peça, Gertrude, já acabou…?

 

GERTRUDE

Esta peça nunca jamais se acabará, Gaspar…

 

GASPAR

(preocupado) Não se acabará? E por que??

 

GERTRUDE

Porque a cortina cai e torna a subir, cai e torna a subir…

 

GASPAR

(estala os dedos) Plec! plec! Já sei, vou telefonar pro João Batista.

 

GERTRUDE

O tocador de gongo?

 

GASPAR

Exato, Gertrude… Estou seguro que é ele que está escrevendo esta peça…

 

GERTRUDE

O… Armagedom?…

 

GASPAR

Esse mesmo, Gertrude, vou telefonar e pedir-lhe que venha com seu gongo…

 

GERTRUDE

E se ele tocar o gongo?…

 

GASPAR

Acaba-se o Mundo, e acabando-se o uindo…

 

GERTRUDE

…acaba-se a Peça?… Duvido

 

GASPAR

Ouço seus passos… Presto, Gertrude, vamos fugir antes que ele chegue e toque o gongo!… (saem Gapar e Gertrude, entra João Batista de tanga e turbante, coloca o Gongo no palco, alça o bastão e, solene, belíssimo gesto, gira o instrumento… e…) GOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOONNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNNGGGGGGGGGG!!!

 

GALERA PESADA

Parece que agora puseram o enredo no saco…

 

TURMA GROSSA

E nunca se soube o paradeiro da bengala…

 

IV. QUANTA LARANJA MADURA, QUANTO LIMÃO PELO CHÃO

 

Entra em cena o Belchior:

 

Não cante vitória muito cedo, não / Nem leve flores para a cova do inimigo. / As lágrimas dos jovens são fortes como um segredo, / podem fazer renascer um mal antigo.

 

PLATEIA

(de pé) Bravoooo!!! Viva o Belchior!!! Dá-lhe Belchior!!! Senta, macacada!!! Bravooo Melchior!!!

 

FÃ DE BELCHIOR NA FILEIRA DA FRENTE

Merchior, que sempre foi um carrancudo sem sentido algum de humor, fez cara de ainda mais bravo e disse: a juventude é puro fogo de palha. Somente a maturidade pode salvar o mundo… Ploft, alguém lhe deu com uma carabina no meio do quengo.

 

PLATEIA

(em furor herculeano) Bandido!, matou o Merchior!!! Pega!!! Pega Mata e Come!!!

 

Pandemônio generalizado, o Gerente do Teatro entra e pede calma:

 

GERENTE

Podem se esmurrar!!! Nos cornos!! Nos bagos!!!! Mata!!! Mas cuidado com as cadeiras do Teatro, e os archotes!!! Quebrem-se ossos, mas… não quebrem o nosso Teatro Lux, que sempre lhes traz Comédias, Rastapés, Fandangos e Rancheiras!!!..

 

GIVALDO, O PONTO DESEMPREGADO

O estropício transcende o espaço de representação que constitui o teatro. Dois palhaços recolhem as vísceras e a sombra estraçalhada do morto. Um pouco de sátira e humor negro é o que precisamos para suportar os panfletos lúgubres da realidade…

 

GERENTE

Um pouco de sangue sem transfusão, um Drácula velho com dentadura de aço, uma piranha no aquário: “Dê-lhe um naco de pãozinho na boca, Dolores…”

 

O FÃ

Um pouco de sal na panela, à espera da entrada em cena da galinha-de-angola. Seus dentes nasceram há pouco, apesar da falta de fé de seus perseguidores. Parte do mundo por vezes cai fora da cartilha, e o que se perde é sempre o ganho maior.

 

GIVALDO

Se cai fora da cartilha, será a do Colégio Malek Scolares, o mais científico e vai-pra-frente educandário, preferido pelas famílias progressistas.

 

O FÃ

Mas ninguém quer ficar fora da panela. A partir daí é que as cartilhas perderam um pouco a influência sobre os corpos terrestres. Essa gente detesta Einstein, mas vivem à sombra da relatividade.

 

GERENTE

Detestam nada… no máxmo, fingem… Quando o Einstein aparece botando a língua, todos adoram… até quando colocam a foto de Bomba Atômica ao lado, ex-plo-din-dooooooo… em Giroshima… ou Sakazake… Sucesso garantido… em todas as revistas e jornais.

 

O FÃ

Quem lucra com isto é João Borzeguim e sua banca de revistas plantada no coração da Praça das Três Pistas… - Ô menina, abre logo outro pacote…

 

GERENTE

Pois é… Sigamos nós pela sombra das mangueiras… e que se vire lá como possa a Gorda de Saragossa.

 

Saindo de cena o Belchior:

 

E a nossa esperança de jovens não aconteceu…

 

V. ONDE FICARÁ O ACRE?

 

DOC FLOYD

Soube agora que seremos convidados para gravar uma entrevista para a TV Aurora. Certamente nos indagarão, logo de início, como passamos o dia.

 

ZUCA SARDAN

A Tevê Aurora sempre tem programas instigantes pra nossa saudável Juventude… e testes educativos, verbi gratia: Quantas estrelas tem a Bandeira do Brasil?…

 

DOC FLOYD

Curiosamente a bandeira do Brasil tem 0 DF na parte de cima e 25 estados na parte de baixo, ou melhor, são 26, porém um deles é tão minúsculo (ou apagado) que quase não se nota. TV Autora pergunta: qual é o estado que quase não se identifica na bandeira?

 

REITOR PANDARECOS

O Acre, de que a estrela é pretinha, em homenagem à Marina, nossa caboclinha valente.

 

ZUCA SARDAN

Quantos acres de terra foram usados na invenção do Acre?

 

DOC FLOYD

Porém quando lá chegaram os cearenses, graças a seus estudos naturais de miscigenação, todos foram para a cama e então surgiram os acreanos.

 

ZUCA SARDAN

Uma explicação freudiana da miscigenação racial luso-tropical no Brasil. Mas em Portugal, só o Marquês de Pombal saberia explicar.

DOC FLOYD

Orixás e deuses tupis se misturaram na clareira onde foi rezada a primeira missa. Oswald de Andrade fez disto uma piada, seguido pelo cinema nacional, porém as verdades sempre se fizeram descascando o milharal das mentiras.

 

ZUCA SARDAN

Sei de fonte segura, que havia sacis também na clareira, fumando seus cachimbinhos. O quadro do Vitor Meirelles tem sabor, mas ele não ousou pintar os espíritos da mata, porque em seu tempo a Inquisição, discreta embora, seguia patrulhando. Cassiano Ricardo avançou, mas se limitou aos papagaios…

 

DOC FLOYD

Quem avançou foi o Bopp, em sua canoa de mil proas, ao semear ímãs na floresta e animar a festança dos três reinos. Se a canoa não virou foi porque nunca parou de remar. Nosso conquistador de maravilhas.

 

ZUCA SARDAN

Quanto mais o tempo passa, melhor o Bopp!… O Cobra Norato vai se destacando cada vez mais como um dos maiores capolavoros da turna de 22. E vai ficando cada vez melhor.

 

DOC FLOYD

Desde as terras de dentro do Rosa que não se via um acre poético tão ciente das origens e do que se pode fazer com elas. A essência de nossa cultura está onde se insiste em não buscar.

 

VI. O OITAVO CIRCO

 

A sereia trouxe Para Netuno a Gazetta Marinha, com a misteriosa notícia, em manchete de primeira página. A notícia foi passada à redação do tabloide submarino pela própria Parteira. Em entrevista-relâmpago, emocionada, a parteira foi logo declarando que jamais viu criança tão inteligente, já nasceu falando e respondia a toda pergunta que lhe fizessem os surrealistas…

 

JORNALISTA

A Parteira Pirandola, pra se fazer interessante, inventou essas farofadas… A criança deu tão só uns mugidinhos…

 

PIRANDOLA

O Senhor é um jornalista meio singelo, com uma filosofiazinha indigente… certamente um positivista?…

 

JORNALISTA

Sou marxista.

 

PIRANDOLA

Exatamente. Era isso mesmo que eu estava pensando, mas por delicadeza não quis dizer.

 

GENERAL

(entra meditativo a cavalo e murmura, em voz plangente) Bons tempos o do Augusto…

 

CIVIL

(entra de mansinho, faz rapapé, tira o chapéu) Os tempos do concretismo, General?

 

GENERAL

Não, meu filho, os tempos do Po-si-ti-vismo, a sabedria, a ordem, do Augusto…

 

CIVIL

Pois é, Marechal, o Concretismo…

 

GENERAL

Se não me tivesses promovido a Marechal, estarias preso, meu bom rapaz… As ironias da Sorte!… Ser promovido por um amável passante… que nada entende do Positivismo… Até à vista, rapaz (Civil tira o chapéu, Marechal vai se afastando a cavalo)

 

VOZ DE FUNDO

E o Sol vai tombando no mar…

Dois sapinhos que estavam ali por perto, debaixo de uma frondosa touceira da enigmática cara-de-cavalo, desataram a rir, até que um deles disse ao outro: xingar o marxista de positivista é por uma pulga atrás de sua orelha, pois ele nunca vai entender a extensão pouco lisonjeira da sacanagem. É só na hora dizer bem sério: o senhor é um positivista. Os sapinhos descoravam de tanto rir. Um deles, mal contendo o riso, disse: Eis a outra face do mesmo espelho, dizer ao positivista que se acha marxista que ele não passa de um concretista. O civil, que de civilizado nada tinha, retruca: concertista? Ah viva a música! E o outro sapinho: três vivas à vaia, como diria o músico surdo para sua plateia vazia. Um dia a casa cai.

 

SOL

(enquanto isso, o Sol, ao crepúsculo, no mar cristalino, gemia, fazendo poses de elegante astro ferido, prestes a sucumbir, agitando a ruiva cabeleira e gemendo) Ai!… nunca morrer assim, num dia assado, pelas chamas de minha bela cabeleira…

 

SAPO ARGONAUTA

Outro sol, desidratado, pereceu em abandonado estábulo, quem lhe ouviu o último suspiro o comparou a um peixe na frigideira. Segundo o Lyceo Pytanga, o Sol nasce atrás da montanha, cruza o céu durante o dia, e à tardinha vai aos poucos caindo, afunda no mar. Cada dia o mesmo drama, uma barca o leva por um túnel submerso e no dia seguinte, ele torna a renascer, por trás da mesma montanha. Em outra cartilha, menos famosa, apócrifa, lemos que as montanhas, em noites de lua nova, costumam mudar de lugar, assim que o sol, ao despertar, aquele outro monte. Só o Poptaplek se recusa a mudar de lugar.

 

SAPO TROMBETEIRO

Nada no México muda de lugar…

 

SAPO ARGONAUTA

Viva Zapata!!! Pacacá Pacacá Bang-Bang-Bang

 

SAPO TROMBETEIRO

A terra estranha dos seres imóveis…

 

SAPO ARGONAUTA

Por isso mesmo o Zapata faz tal agitação.

 

SAPO TROMBETEIRO

Em matéria de desgraças, Brasil e México são complementares, o que falta em um o outro esbanja.

 

SAPO ARGONAUTA

É verdade… tua assertiva fulminante… é, de certo modo, um elogio a contravapor de tudo o que pensam, mas não dizem por amável discrição, os defensores das opiniões politicamente… plek-plek!… digamos… crentes… e eticamente convictas, sobre todos os maus abusos e boas ações na indústria e comércio, muito especialmente sobre a histórica alunissagem do foguetão da Otan num sítio praieiro da Lua…

 

SAPO TROMBETEIRO

O pirata Kubrick chegou a distribuir uma cartilha ensinando a todos como fazer no fundo do quintal uma réplica do pouso do homem na lua, com aqueles ângulos que só poderiam ser filmados por cinegrafistas fantasmas. Quem mora em apartamento até hoje não consegue lhe perdoar.

 

SAPO ARGONAUTA

Pergunte a qualquer estadista ou cientista europeu ou norte-americano, sobre as dúvidas levantadas por Kubrick e outros hereges, e eles sequer respondem. Trata-se de questão de DOGMA.

 

SAPO TROMBETEIRO

Enumere todas as falhas de caráter de Breton e indague acerca delas a qualquer surrealista e eles sequer respondem. O dogma é um baú sem fundo de caprichos…

 

SAPO ARGONAUTA

O-Ro-Roooooooooooooooooooooo… Despacito, senão a Patrulha, cogito, vem tacar fogo no nosso Circo… O que para ti não será la prima volta… o-ro-rooo…

 

SAPO TROMBETEIRO

A patrulha se engasga com sopa de cartilha, lancha pastéis de carne de alma e as noites são empanturradas de pesadelos: cadê o ralo que estava aqui? A patrulha é um prato vazio.

 

SAPO ARGONAUTA

A Patrulha Mundial?… Tomara que seja, tomara que estejam vazias… a Patrulha Moral – a Patrulha Política – a Patrulha Científica – a Patrulha artística e cultural – a Patrulha sobre os pequenos teimosos que cismam de discordar.

 

SAPO TROMBETEIRO

Não te esqueças que as vazias são as piores, porque sua ladainha é sempre a da proibição. Não pode rimar café com cafuné. Ou decantar o vinagre azedo das teses sobre o Império.

 

SAPO ARGONAUTA

Como diziam Padre Vieira e Fernando Passoa (e acho que também o Salazar)… o Quinto Império vem aí!…

 

SAPO TROMBETEIRO

Outros dizem que será difícil passar a era do Quinto dos Infernos…

 

SAPO ARGONAUTA

O Quinto Circo ainda passa… Pior mesmo é o Oitavo.

 

VII. DOIS VELHOS VAMPYROS

 

VELHO VAMPYRO 1

O que fazer com a nossa idade avançada?

 

VELHO VAMPYRO 2

Necessário escolher uma árvore meia escondida, mas não muito longe do vilarejo.

 

VELHO VAMPYRO 1

Sobretudo próxima da capela, pelo cheirinho das velas de mil orações e a pia batismal, cuja água é melhor do que a do tanque lá fora…

 

VELHO VAMPYRO 2

Sim, na capela temos boa água, e Frei Feijão nos dá um vale de indulgência, com direito a duas refeições, no total de seis por semana.

 

[CHARANGA NO CORETO DA CAPELA]

 

Foram três peruas tontas

tomar água na capela.

Uma delas se encantou

com o que viu no espelho d'água.

teve sonhos de cérbero

a safada da perua,

zombeteira como nunca

disse agora eu sou nós três

e vocês não são ninguém.

 

Saíram os dois velhos vampyros da sala de Frei Feijão, e toparam com as três peruas tontas, a tomar água na fonte batismal. Um dos velhos levou duas, e o outro levou a perua encantada. Ficaram os
cinco felizes, e o cineasta Patesco filmou-lhe a estória e ganhou o Primeiro Prêmio do Festival de Ravenna. À saída da sessão perguntaram a Dona Janyra, ladeada de seu marido Galibardo:

 

REPÓRTER

E que achou a Senhora do filme, Dona Janyra?


JANYRA

(de olhos marejados) Achei lindo lindo-lindo, finalmente um filme sadio, embargado de emoção, filme que acaba bem, com suave mensagem de paz… não é mesmo, Galibardo querido?…


GALIBARDO

Sim, parece trazer uma mensagem de Paz e Amor… Mas… melhor esperarmos até o Natal.

 

E saíram todos pela rua cantando regozijados com a fita: Vejam agora eu sou nós três / e vocês não são nenhuma. Assim a floresta se fechou e por ali não mais se viram as formosas três peruas, a iluminada toda exultante, ao ir embora disse às demais que seria a mais feliz, nem de longe estimando que o velho vampyro a poria em argolas, exibindo-a nas feiras de outros condados, a mil dobrões cada espiada. De qualquer modo, considerando que as duas outras foram direto para a panela, o melhor destino coube a ela.

 

ZUCA

Florio, acho que temos aí il magnifico finale!

 

FLORIO

Claro, pois não sobrou ninguém vivo, ah ah ah…

 

ZUCA

Não sobrou ninguém… no fogão manchado de sangue.

 

[SOBRAS DE ECO]

 

Vejam agora eu sou nós três / e vocês não são nenhuma.

 

ZUCA

Agora me bate uma dúvida: onde incluiremos este nosso auto natalino?

 

FLORIO

Verei se ainda cabe incluí-lo em nosso teatro repleto.

 

ZUCA

Pela quantidade de escritos de nosso teatro… talvez ainda dê espaço na contracapa.

 

FLORIO

Ou no dorso secreto… (espécie de fundo falso)

 

ZUCA

Um dorso secreto é uma tentação para guardar coisas muito ao contrário do que o livro conta… zombarias contra seus autores, e vulpinas críticas aos escritos… Um anti-livro do livro…

 

VIII. O MITO DESCABELADO

 

ZUCA SARDAN

Bengala com asas é coisa pra Hermes-Mercúrio… o famoso caduceu, de múltipla utilidade… O deus dos comerciantes e ladrões, está cada vez mais importante, com a Globalização…

 

DOC FLOYD

Também Netuno, envelhecido, mandou tatuar um par de asas em cada ombro. A cada noite o mal percorria o convés, e os marujos bebiam seu chá de assombro.

 

ZUCA SARDAN

Também Caronte frequenta os barcos, e vende aos marujos estampas de voluptuosas sereias, coisa que Netuno jamais faria. Caronte traz também uma série de artigos e quinquilharias, que lhes vende a preços razoáveis. Gostem ou não gostem, além das estampas das sereias, compram-lhe os marujos alguns badulaques, porque sabem que mais cedo ou mais tarde, estarão a bordo na barca do Velho Titan, que se irrita fácil, e lasca terríveis remadas nos passageiros mais imprudentes.

 

DOC FLOYD

Os barcos foram atracados, o rio foi fechado. Caronte se curva no balcão de uma taverna, completamente embriagado e ranzinza. Não lhe encoste ninguém a puxar conversa, que de suas barbas saltam faíscas indóceis e um rugido que faz tremer o mundo à sua volta.

 

ZUCA SARDAN

Caronte, no fundo, é dos raros sobreviventes do Mytho Pagão, depois de superado pelo Cristão… “Venceste, oh pálido Galileu!…” “O Grande Pan morreu!…” Só sobrou mesmo Plutão porque, havendo Paraíso, precisamos dum Inferno… E dele, justamente, o soberano era Plutão, que habilmente guardou seu trono… e pra recolher as almas condenadas, já havia o velho e experiente Caronte, que guardou assim seu posto. Mas sofre o velho Titan terríveis crises de depressão, que o levam, nas estadias, a procurar tabernas, e cair na bebedeira…

 

DOC FLOYD

Hoje o pobre titã se sente regra três de um inferno líquido, ressuscitando tangencialmente a cada amendoim mascado. Por vezes um vago supetão, e o balcão da taverna estremece, espantando os novos fregueses, enquanto os demais movimentam suas moedas em novas apostas…

 

ZUCA SARDAN

No Inferno:

(ZERPINA)

Veja só, Plutone, as infâmias que este pérfido eletro Agulha está soltando… está te chamando de pobre titã regra-três!

(PLUTONE)

(bocejão) Acho que o repórter está se referindo ao Caronte… E lá então… ele tem razão… A-RA-RA-RAAAAAAAA!!!…

 

DOC FLOYD

Todos os deuses são pérfidos e com seus cajados engabelam as aves do céu, os telhados da terra e as latas de sal que cruzam os mares. A humanidade de joelhos ante dogmas reza a mais obsoleta das orações.

 

ZUCA SARDAN

Os deuses têm de ser cruéis. Se forem bonzinhos… acabam mal.

 

IX. ONDE COMEÇOU O CARNAVAL

 

Tupy, nas maracas: Chacará Rachacá Cháchá…

Macaca Chita no carrilhão: splin-tilim, plit-spit, pin-pin…

 

Macaca aproveitou quo o sineiro Corcova estava dormindo… Corcova é surdo como uma porca… Macaca lambeu a terebentina com que Corcova limpava os badalos e ficou doidona, foi pro meio da avenida imaginária e lascou-se a sambar entusiasticamente. Como era o Carnaval, e estava todo mundo doido, acharam muito normal a Macaca dançar. Macaca fiou-se nisto e fez verdadeira orgia em um bananal, saindo de lá zonza e cantando:

 

a lagarta bem fumada salpicou meu coração

tanta banana me come que suspiro em oração

 

Ganhou logo o primeiro prêmio da canção do Sambódromo, e o Prefeito lhe ofereceu um cacho de bananas com um retrato autografado da Carmem Burana. Dizem que o descamba-enredo que quase lhe tomou o prêmio era O galo de Calcutá singrava os mares do sertão, composto por Jocélio das Mangas, estreante na comarca das alegorias.

O galo de Calcutá acabou afundando na panela do Trio Taquara, que convidou o Jocélio para o banquete. Dos ossos, secos e pilados, ele fez pacotinhos alucinógenos e distribuiu por toda a plateia. Sucesso extraordinário do show no banquete, o empresário Gordini contratou o Trio Taquara por uma fortuna colossal e o Galo de Calcutá liderou a Rita Parada por vários meses, com porrada no guichê a cada noite, o Teatro Fox lotado até às cumeeiras. O filósofo Doutor Fritz fez pesquisas profundas para desvendar o mistério da atração fanática das massas por tão medíocre espetáculo.

No gabinete do Dr. Fritz foi encontrada uma pasta que estampava o título OSSOS DA ESTRELA, cujo conteúdo dava sinais de uma investigação envolvendo suspeitos que estiveram no banquete de premiação e fotos de todos com os olhos esbugalhados ante o flash da câmara digital… Arturo Chimba, velho rábula, alardeava que não poderia haver assassinato sem cadáver, o que impedia a prisão de quaisquer dos suspeitos.

Berlock Xolmes, famoso detetive escocês, soltou três baforadas de seu cachimbo de jacarandá, e pontificou: sem cadáver não há processo de assassinato, mas ossos mastigados indicam um ato de deglutição Para não deixar indícios, o assassino teria devorado o cadáver esquivo, mas… cuspira os ossos fora.

Armada a confusão, toda gente tirou do bolso o que ainda restava do pacotinho de ossos e se apresentou inocentemente a Berlock na intenção de não ser considerada cúmplice de alguma ilegalidade. O rábula se apressou a defender a gente dizendo que todos tinham sido vítimas de um presente mal-intencionado, e que, caso necessário, poderia guardar os ossos, antes que chegassem as autoridades.

Telefonaram para o Delegado, que chegou acompanhado do Sargento que trazia três rosnantes molossos. Para não serem mordidos pelos molossos, tod’a gente passou seus ossos ao rábula, que presto os guardou nos sete bolsos. Os três molossos saltaram-lhe em cima, rasgaram os sete bolsos, devoraram os ossos e trucidaram o portador, por ter-lhes tentado enganar. E agora, pergunta Jocélio ao Berlock:

– Mas qual a moral dessa tétrica fábula, Seu Berlock?

Belock pigarreou e não teve dúvida: Se a fome lhe leva ao desespero, não deixe nada para depois.

 

Tupy, nas maracas: Chacará Rachacá Cháchá…

Macaca Chita no carrilhão: splin-tilim, plit-spit, pin-pin…

 

X. ENCUENTRO OPORTUNO

 

REITOR

Bueno, el encuentro

sobre una mesa de billar,

de una máquina de coser

y una obrera paraguaya…

 

OBRERA PARAGUAYA

A Liana Quadrita no le gustaba el billar,

sus noches mejor las pasaba cosendo

los mejores hilos de su imaginación,

y despertaba siempre más allá del mar.

 

REITOR

Magnífico, Floyd!… Sugiro ponga siempre un título, que valoriza la quadrita… La Quadrita es una dama pequeñita, aprazle portar un adorno para empalomarse…

 

OBRERA PARAGUAYA

Liana Quadrita sonha com títulos de nobreza,

saiu de casa bem cedo a conhecer muitas mesas,

desde então jurou a si mesma não cair em troça

de títulos sem elã, e sempre manter-se moça.

 

MÁQUINA DE COSER

Coisinha Difícil

 

OBRERA PARAGUAYA

Nem imaginas…

 

MÁQUINA DE COSER

Poizé…

 

OBRERA PARAGUAYA

Severino Poizé aprendeu nos Solimões

a pescar um peixe dentro de outro,

enrolava o rio como um ouroboros,

depois da pesca espremia uns limões.

 

MÁQUINA DE COSER

Isso também, pudera… ninguém é de ferro…

e temos Democracia, não estamos em Macau

e no Solimões os peixes são um colosso

um lambari até parece um bacalhau…

 

OBRERA PARAGUAYA

Omar Bacalhau é um pescador local,

ele me garantiu haver no Solimões

um bar de nome Democracia que serve

a melhor sopa de piranhas da região.

 

MÁQUINA DE COSER

Bem posso imaginar…

Mas se não são bem assadas

as piranhas comem a língua

dos comensais. Melhor

então pararmos por aqui.

 

OBRERA PARAGUAYA

[ g a r g a l h a d a s ] (ao som

do range-dentes das meninas)

 

XI. NA CADÊNCIA DO PRÊMIO

 

ZUCA SARDAN

Já chegaste? Ou estás falando do espaço intergaláctico, no teu jato rumo ao Brasil?…

 

DOC FLOYD

Estou na terra nada santa e nada firme.

 

BOSQUE

No Brasil tem um bosque

na Ilha Marajó

o Paraíso Perdido…

onde tudo comezzou

 

DOC FLOYD

Terra de jacuzzi & pitombeiras…

 

BOSQUE

No Brasil tem samba,

tem jabuti, tem canjerê…

faz que vai mas não vai

olê olê olelê

 

DOC FLOYD

Esse Jabuti tá contaminado, virou prêmio de péssima reputação…

 

ZUCA SARDAN

Precisa dum veterinário… Quem sabe dr. Osbaldo Cruz dá-lhe um jeito… Enquanto isso… um Prêmio Avestruz viria a calhar…

 

DOC FLOYD

Este sim, o prêmio sonhado, não para recebê-lo, mas sim para ver o premiado sem saber onde enterrar sua cabeça.

 

ZUCA SARDAN

O premiado escreveu um livro pornográfico ilustrado com fotos alusivas-explícitas e foi condenado pelo clero, a marinha e boas famílias. Já está na Rita Parada.

 

DOC FLOYD

O problema da Parada da Rita é a falta de critério, da qual todos se aproveitam. Os livros pornográficos, que um dia desbancaram os de autoajuda, agora se curvam diante do frisson em torno

das biografias, não importa de quem…

 

ZUCA SARDAN

A chave do sucesso total seria escrever um livro pornô com fotografias explicitando as várias posições, o que seria uma forma de autoajuda pros trepadores singelos se aperfeiçoarem, tudo isso incluído na biografia de um artista famoso da música popular. Besticela!!!

 

DOC FLOYD

A página 127 dessa decantada centúria revelava que a biografada a toda gente levava no bico, sem pagar seus direitos. Uma compositora mais famosa do que ela certa noite cobrou a dívida em pleno show.

 

ZUCA SARDAN

Os empresários caloteiros, sobretudo quando tratam com os inexperientes artistas, são piranhas de luxo.

 

DOC FLOYD

Não apenas os empresários, ou talvez eles aos poucos tenham aprendido com os artistas a manipular o saldo das propinas estéticas, expondo à venda o estoque de óleo de suas lanternas místicas. A plateia se retorce.

 

ZUCA SARDAN

E voam milhões e milhões de dólares, de Tóquio a Londres, de Londres a Nova York, de Nova York a Katar… e grandes gênios são hoje fabricantes de coelhos de ouro, totós de flores com oitenta metros de altura, e um quadro que se evaporou durante sua venda em leilão, na galeria de Londres. O comprador não reclamou, e levou os pregos que sobraram para colocar na sua pinacoteca.

 

DOC FLOYD

O Sindicato Internacional dos Rábulas está desnorteado, seus associados não conseguem mais estabelecer as diferenças entre as obras falsificadas e aquelas que são frutos de uma sincera diluição.

Deste modo o roubo perde sentido, pois os copistas impuseram novos paradigmas, sobretudo aqueles especializados em reproduzir assinaturas, considerando régua e compasso desse novo terrorismo.

 

ZUCA SARDAN

Com as técnicas internéticas, o roubo e a falsificação são inevitáveis. Só escapam do assalto as obras complicadas, porque o mercado global favoriza os pastelões-fáceis, os purgativos-sangrentos e os pornô-sentimentais.

 

DOC FLOYD

Porém as obras complicadas não escaparam da sanha dos copistas, que as exibem com seus narizes empinados afeitos à perene descoberta do fogo. Das cabeças de bois cuspindo vitupérios às latinhas de sopa de cabeça de peixe, os copistas distribuem suas receitas de fetiches, sempre longe das artes complexas, doadas ao silêncio.

 

ZUCA SARDAN

Mas chega o Andy Warhol, copia essas cópias talquais e… faz um sucesso estrondoso, em Nova York, Tokyo, Londres e Europa…

 

DOC FLOYD

Facilmente se comprovou o que há muito remendava a colcha da história, quão fácil era burlar a plateia minando a imaginação.

 

ZUCA SARDAN

As pessoas querem ser enganadas a sabendas… Assim se sentem mais seguras.

 

DOC FLOYD

Fiquem todos sabendo: O engano está por vir.

 

BATUQUE

A pedra dos males gorjeia

no tablado das miçangas.

Quem quer bacorinho pra janta

ronque até o sol raiar…

 

XII. PERERECAS VOADORAS

 

BANDA DE PRAÇA

Roca-Roca

Zaca-Traca

Firifim

Fon-Fon

 

DO OUTRO LADO DA PRAÇA

O trombone

se agiganta

no ouvido

da formiga.

 

Toca o fole

Marrequinha santa

O negro pastor

quer tirar da cartola

uma orquestra de rãs

 

ZÉ ALUVIÃO

Porque não pererecas

negro pastor da cartola

tirar porque não pererecas

da cartola tirar pastor

pererecas pererecas

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

A perereca da vizinha

anda solta no telhado

Basta o sol bater no quengo

ela pula pra todo lado

As perninhas dela

não conhecem fado

São do frevo mais puro

e saltam como pecados

 

ZÉ ALUVIÃO

A perereca da vizinha

sempre pula mais alto

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

É porque ela sabe onde se esconde o céu.

 

ZÉ ALUVIÃO

O céu se esconde atrás da porta.

Não adianta procurar porque ele sempre se esconde… do outro lado.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

Mas as pererecas não procuraram o céu. Sabem onde ele se esconde e evitam desvirar as portas, cientes do fundo falso desses espelhos tão fortuitos…

 

ZÉ ALUVIÃO

E o que é o Mundo, e o Céu do Mundo, senão essa recorrente repetição de espelhos conjugados?… O Inferno é a barra que serve de eixo de rotação dos espelhos do Céu e da Terra, que, se colados um diante do outro, não refletem mais nada.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

No baile das noviças as pererecas entoavam cantos ocultos que evocavam o talento do Inferno por fazer com que os espelhos recuperassem a visão. Em um jogo astuto de palavras-valises, os cantos conduziam as noviças por estreitos labirintos, onde uma estranha e altíssima figura lhes abria os olhos para o mundo e o céu do mundo.

 

ZÉ ALUVIÃO

Mas Madre Marilda, experiente, lhes deu óculos de cego, com vidro preto, pra que não vissem as falsidades maldosas que aprontava a altíssima maléfica figura.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

O que Madre Marilda não previu é que óculos de cego permitem olhar apenas para dentro bem dentro, o que levou as noviças a inventarem um mundo próprio alheio à realidade.

 

ZÉ ALUVIÃO

Mas enfim, observou, Madre Marilda, se este mundo próprio é muito melhor que o mundo exterior, melhor mesmo que as noviças fiquem por lá.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

Com o que o Condor não contava é que os mineiros que deram guarida às noviças há muito eram subornados por outra legendária figura, o Leão da Metro que, com um rugido único, desarvorou os cílios postiços e a peruca da Madre Marilda.

 

ZÉ ALUVIÃO

“Assim também não é possível”, reclama Madre Marilda, “mineiros subornados por um Leão de chanchadas…”

“Pior seria se fosse leão do Dalí”

“Do Dalí? Dalí só tem lagostas e rinocerontes”…

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

Leões Dalí não tem, porém, seus elefantes repovoam a terra, ora tocando tubas, ora levitando ou em caminhadas sedutoras em suas longas e finas patas. Há quem diga que Marilda posou nua ante a sedução implacável de seus tigres. Arte, Ciência e Religião afinaram em tais cenas seus rugidos.

 

ZÉ ALUVIÃO

Nessas afinações, ninguém melhor que o Dalí… Papa Benito encomendou-lhe uma última ceia, Dalí, em lembrança ao milagre da multiplicação dos peixes, empanturrou a mesa de lagostas vivas… O quadro se encontra guardado em algum armário do porão da Capela Sistina.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

Nosso correspondente no Vaticano me garantiu que, por uma falha na manutenção, as lagostas famintas se devoraram entre si. Sobrou apenas uma, empanturrada pela gula, que acabou por ejetar um telefone, de imediato ligando para Benito, lhe dizendo: - As cicatrizes da fé a todo instante rebentam porque vocês negam a ficção de sua realidade. Benito deixou cair o telefone no chão e, antes de ser petrificado, escutamos ainda sua voz: Deus nos proteja da versão demoníaca de todo o reino da criação. Estátua!

 

ZÉ ALUVIÃO

O chefe do protocolo, vendo o Papa Benito transformado em estátua, telefonou para o genial escultor Michelanjo, no momento ocupado na criação de uma coleção de colossais escravos gigantes que se contorcem aprisionados em camisolões. Michel disse ao Cardeal, Deixai comigo… e minutos após irrompe na sala papal, e encontra Sua Santidade transformada em estátua. Rosna o Michel: Comigo não!!! Já te dou um jeito… E avança enfurecido de martelo alçado e brada PARLAAAAAA!!! E antes que viesse a martelada, ouve-se a voz do Papa desencantado: Grazzie Michelino!… Dominus Vobiscum.

 

JOÃOZINHO DISPOSTO

Na outra margem do Atlântico, o poeta das gamelas vazias estala os dedos e deixa escapar com voz roufenha: Ah esses mistérios papais, diante do martelo toda a coragem se esvai e o cativeiro mais gentil não se arrisca em nome da verdade.

 

ZÉ ALUVIÃO

O dito blasfematório do poeta das gamelas foi transmitido via e-mail por Frei Feijão ao Vaticano, onde o serviço de segurança, leva ao conhecimento do Papa o texto desaforado. Don Benito lê a desfeita, e lágrimas marejam-lhe os olhos… Aí está… essas pobres ovelhas desgarradas não sabem o que dizem… Se soubessem… iriam melhorar pelo menos a ortografia…

 

BANDA DE PRAÇA

Roca-Roca

Zaca-Traca

Firifim

Fon-Fon

 

[POSTAGEM GRAVADA PELO PAPA PARA TODOS OS CELULARES]

 

O verbo por ser verbo não sabe fazer nada

Precisa da fé substantiva que dá sentido a tudo

Tudo ou nada, tudo ou nada, quem vira santo ou demônio

Sabe que um dia terá que recolher as fronteiras do mito

Para poder escrever uma nova oração que refaça o mundo

 

O MISTÉRIO DO CACHIMBO

Não creio que Papa Benito lerá o cachimbo que não era pássaro; mas a não responder os graves dilemas metafísicos do Século 21, presentes nos textos que queimam na fornalha do cachimbo… Frei Feijão entrará em implacável dilema existencial.

 

XIII. NAQUINHO DE NADA

 

ZUCA SARDAN

Saiu o pacotão com as mulheres surrealistas. Sorrisão feliz do Floyd, cercado pelas suas 21 musas… Cada uma mais charmosa e provocante que as outras… Elas estão felizes de serem lembradas!… Acabou a tyrania du Bereton…

 

DOC FLOYD

Pois é, de tanto surrar a canoa furada do Bretão, ainda vão dizer que meu livro é contra ele. De certa forma, ser contra Breton é um modo de ser a favor do Surrealismo. Nas minhas leituras não fazes ideias de quantas opiniões negativas acerca dele eu reuni, dá para fazer um livro só com elas. Agora mesmo, ao escrever o editorial da edição dedicada ao Leiria reproduzo uma carta do António Maria Lisboa para o Cesariny dizendo que há a necessidade de se erguer em Portugal um Surrealismo sem a sombra do Breton.

 

ZUCA SARDAN

O Papa foi, porém, santificado. Quem não for às procissões, começa a ser visto como sendo um perigoso herege… Dominvs Voviscvm. Zzzzzz

 

DOC FLOYD

Odaliscas bem treinadas dessantificam qualquer pajem de quermesse enquanto eunucos apetitosos

rasuram máscaras papais e mominas nas lojinhas suburbanas e explodem as gráficas santeiras…

 

ZUCA SARDAN

Justamente por isso, as gráficas santeiras estão superando as gráficas pornográficas, sem que estas possam compreender as razões… O-Ro-Roooooooooooooo…

 

DOC FLOYD

E aí está a razão: a mania descabelada de querer uma razão para tudo. Imagine sair em busca de uma boa razão para o rapaz que se excita mais com um santinho do que com a madre superiora se masturbando…

 

ZUCA SARDAN

Para achar uma razão, pelo menos plausível, seria preciso conhecer o rapaz, conhecer a madre superiora, e qual o tipo de inspira3ÃO de que estaria tomada, pra seu ato… sacrílego?… Tampouco isto poderíamos adiantar, sem conhecer pormenores do ato… e também… saber da superiora de seus motivos… místicos?… ou profanos?… E também ver como é a estampa do santinho…

 

DOC FLOYD

Além do que o tema pertence bem mais ao fofocódromo, qualquer que seja o santinho ou as moçoilas que se puseram a discutir o assunto na plana presumível do facebook.

 

ZUCA SARDAN

Mas o facebook é a igrejinha de hoje, para as orações da juventude. Com a vantagem, talvez, de que não tem padre, nem sacristão. E para as procissões, há hoje o facebook e os smartphones.

 

DOC FLOYD

E os ovos de páscoas derretendo na chapa quente das ilusões virtuais. Temos que aprender a voltar pelos caminhos ainda não percorridos. Nada como ter experiência de coisa alguma…

 

ZUCA SARDAN

Haverá caminho ainda não percorrido?

 

DOC FLOYD

Claro que sim, sempre há, posto que eles, os caminhos, são individuais (não vale apelar para as toalhinhas de centro de mesa), e até mesmo os já percorridos quase sempre têm algo um cadinho que seja diferente a mostrar.

 

ZUCA SARDAN

Os caminhos mais difíceis só mostram um pedacinho.

 

DOC FLOYD

Um naquinho de nada.

 

FIM

 

 

ASILO DE FARSAS

UMA PIRUETA FARSANTE EM 10 ACTOS

 

A lei não distingue o que é certo do que é errado. O próprio fato de existir uma lei já é, em si, um abuso. Por tais desmandos se caracteriza a espécie humana, que a todo instante se vê compelida a criar normas para suportar a própria existência.

PETRÔNIO CAFÉ PEQUENO

 

1. ACASO ATÁVICO

 

HERALDO (toca a trombeta)

TON-TOTOOOOOMMMMMMMM!!! Bom dia, Senhoras e Senhores ouvintes da Rádio Trombetta!!! Saiu notícia, no Correio Pampulha, de que a Escola Brejeira vai montar evento com boas cabeças buscadas do lado de fora de seus muros, debates gravados sobre idiossincrasias e anacronismos de nosso tempo.

 

FLOYD NIX

Ponho dúvidas, a começar pelas dívidas da Escola Brejeira, há muito não paga sequer seus cabeças-de-bagre formados em quinquilharias genéricas. As caboclas austeras agora só querem saber de pecados sem guarda.

 

DOC FUMEX

Diga-me, Nix: pecados sem guarda são certamente… os melhores?

 

FLOYD NIX

Não existem pecados melhores, Fumex. Todos são piores. Daí que tanto interesse eles despertem.

 

DOC FUMEX

Os pecados ligeiros são menos graves, mas não tão gostosos quanto os pecados imortais.

 

FLOYD NIX

Porém nada supera os pecados imorais. Aqueles que sonegam impostos e traficam pesticidas para manter as meninas na linha.

 

DOC FUMEX

Pecados phynanceiros são os mais apreciados pelo Príncipe do Mal, que guarda no Inferno um magnífico Castelo-Cassino para hospedar os magnatas.

 

FLOYD NIX

Fichas de osso de cabra, cartas de pelo de ariranha, mesas com pernas de camelo… Lucrativa ideia de tornar paradisíaco o Inferno. Será imenso o impacto sobre os pecadores avulsos.

 

DOC FUMEX

O Inferno só faz propaganda de seus horrores, mas não explica os paradoxos do Jardim das Delícias… Quanto ao Castelo-Cassino, mantém segredo hermético.

 

FLOYD NIX

Dá-lhe uma, dá-nos duas, toma lá a terceira… Os narizes empoeirados guardam segredo a sete chaves de cristal, ninguém sabe o que se passa no tubo gástrico das emendas oligárquicas. Patê D’Ambrósio cuidou bem de seus eunucos, decepados de orelhas e língua.

 

DOC FUMEX

Decepados de orelhas e língua, os eunucos de Patê d’Ambrósio não precisavam mais de ser capados. A advertência já fora forte demais…

 

FLOYD NIX

De força tamanha que valeu o abastecimento de silêncio em todo o Reino das Três Corcovas. Até mesmo nas salas de partos os bebês já sabiam o valor intransferível da fala muda.

 

DOC FUMEX

Os bebês mais safos não soltavam um pio… Quanto aos mais parvos, Doutor Lousada enfiava-lhes uma rolha na boca. Eram os chamados bebês-rolhas.

 

FLOYD NIX

Dileta família da cruz emborcada. Cresciam por todos os lados e se ramificavam no jornalismo, na política, nas artes. Não havia rebelião que contivesse esse surto religioso das rolhas-falantes.

 

DOC FUMEX

Em boca arrolhada não entra vinho… É preciso saca-rolhas. Os rapazes dasarrolhados passam a falar desbragadamente. Já as mocitas se mostram discretas. Na antiga Babilônia, a Deusa Ishtar mandava desarrolhar todo o mundo, para evitar constrangimentos. Aprontava festas sublimes. Num banquete de Baltazar, surgiu um anão desaforado que escreveu blasfêmias na parede: ESSADOF RAZATLAB!!! Os Magos da Caldéia não conseguiram decifrar a tenebrosa mensagem.

 

FLOYD NIX

Eram três os Magos de Plantão. Dura época em que toda a areia era destinada ao fabrico de taças para os vinhos de Ishtar e o sangue das meninas que, por efeito de uma mecânica quântica ainda rudimentar, mantinha afoita, como um papiro pronto para os anátemas cavilosos do Bardo das Trevas, a pele da Condessa Devassa. Não fosse essa escassez de areia um único espelho soprado na clandestinidade permitiria aos magos desvendar o grafite desaforado.

 

DOC FUMEX

Mas não houve tempo para maiores pesquisas, porque o Rio Eufrates enfurecido entrou pelo janelão da sala de banquete, onde se desenrolava escabrosa orgia, e carregou todo mundo, além dos móveis, baixelas de prata, candelabros e quitutes escadaria abaixo… Ishtar, como sempre irresponsável, saiu voando gargalhando da desgraça dos afogados, e foi dançar na ponta do obelisco do último andar da Torre de Babel. Safada, mas tão gostosinha, quem condená-la ousaria?…

 

FLOYD NIX

Prataria magna que espelhava a impudicícia de Ishtar, taças onde fazia repousar as hóstias lunares, brilhantes caixetas com sua coleção de cílios e pentelhos, bandejas manchadas com o sangue de seus convivas… Como poucas no Olimpo paralelo, ela sabia desvencilhar pecados das garras da clandestinidade. Em rara entrevista que deu ao Correio Pampulha, disse Ishtar que pretende criar inúmeras escolas de pecado, com cartilhas em vulgata seladas com seu brasão licencioso.

 

DOC FUMEX

Pois é, Floyd, a bem dizer, Ishtar não sossega… Mas com a vulgaridade da baixaria no mundo globalizado, creio que ela terá dificuldades em levar avante seu grandioso plano de criar a cultura da licenciosidade… O Povão não vai entender… Vai pensar que ela é uma perua louca de um programa da Tevê Lambada…

 

FLOYD NIX

Por isso o Curupira tem levado jeito em confundir a todos. Graças a ele a nossa história terá sempre os pés trocados.

 

2. COPA & FLERTE COM SURREALISMO


Anos depois de haverem participado da última viagem do Trem Carthago, Doc Fumex e Floyd Nix se encontraram na Padaria Progresso para uma aguinha Xambuquira, gelo e raspa de tangerina. Ao fundo a TV Pegada Atômica transmite o jogo Brasil x Bélgica:

 

DOC FUMEX

Enquanto vemos os jogos da Copa releio a poesia de nosso cubista tropical Vicente do Rego Monteiro, tão injustamente esquecido como quase tudo em nosso país… Quando nÃO esquecemos, deixamos que pegue fogo no Museu. Cobra Norato é um barato, é o pai do Tropicalismo.

 

FLOYD NIX

Naqueles tempos, se você saísse de terno sem gravata, ou saísse da igreja no meio do sermão… era linchado. Meu pai ia de terno e gravata para o cinema. Tarsila se torna assim a miss paraquedista da época.

 

DOC FUMEX

Realmente surrealista entre os modernistas, além de Murilo Mendes, é o Raul Bopp. Acho que poderíamos incluir no Surrealismo, ao lado do Jorge de Lima, o Nelson Rodrigues e o… Barão de Itararé, que foi o nosso Alfred Jarry, por geração espontânea.

 

FLOYD NIX

O sonho do Oswald Lelé era ser a encarnação do Bispo Sardinha. O mais perto que chegou foi exatamente a mordida na canela que lhe deu Tarsila. Bopp tem um bom livrinho em que narra o caos fumegante dos bastidores da Antropofagia. Todos comiam as canelas de todos.

 

DOC FUMEX

A entrada de Tarsila pela janela deve-se provavelmente à sua fase antropofágica, quando mordeu a perna do Oswald. A questão é saber se… ele gostou. Ela tinha o seu charme… Se fosse eu, não a trocaria jamais pela Pagu.

 

FLOYD NIX

Então agora, da antropofagia, só sobram, de autênticos, os índios Caetés… Depois do churrasco do Bispo, os Caetés passaram a falar latim. Mas este fato foi oculto pelas autoridades coloniais por ordem expressa do Palácio das Necessidades. Foi um golpe cruel na nossa nascente linguística.

 

DOC FUMEX

Ficamos entre o tupi e o latim. Latimos enxotando a latinidade. Com o tempo o latim virou pó. Dissemos adiós a nosotros. Só no Lyceo Pytanga o Reitor segue aperreando a molecada pra aprender a recitar e praguejar em latim.

 

FLOYD NIX

O Latim é um cachorro teimoso… Não nos deixa assim tão fácil. Assim como as cadeiras trancadas no pátio submerso da escola de jornalismo. Na portinhola com olhos vendados a boca ainda sussurrava o daqui ninguém passa com que se exigia do aluno a reza curta a rédea ostensiva…

 

DOC FUMEX

O latim não nos deixa nunca. Nós é que nos abandonamos. Moramos em casas suspensas sem quintal e não nos reconhecemos nos vizinhos. Nem temos com quem falar. O tempo foge de nós. Mas o latim é mesmo um cão teimoso. Jogue amanhã no 5, e amarre o cachorro pelos sete lados.

 

FLOYD NIX

Tenho plano maquiavélico… Vou comprar um papagaio, batizá-lo de Plotino… e deixá-lo de estágio num convento jesuíta com severas instruções de que só falem latim com o plumoso… Depois de dez anos de estágio, eu o trago pro meu gabinete.

 

DOC FUMEX

Prof. Plotino Currupaco pode ministrar cursos de latim relâmpago e tendo ele formação jesuítica pode reformular a etimologia indígena herdada de nossos ancestrais antes da Grande Gripe que os varreu da terra. O papagaio seria certamente o primeiro a aprender o latim, e nos ensinar. Falaríamos um latim extraordinário, com sotaque de papagaio.

 

FLOYD NIX

Após a Grande Gripe, quando a população já estava completamente dizimada, inventaram o Xarope Pylathos contra tosse, gripe e bronquite.

 

DOC FUMEX

Então já era tarde e a única invenção que vingou foi a metáfora de circunstâncias que propiciou a irradiação das colônias liliputianas. Digo, das colônias de mosquitos, que empestaram o Rio de Janeiro com febre amarela. Só Doutor Oswaldo Cruz, e seus indomáveis soldados mata-mosquitos, conseguiram vencer a resistência popular, e passaram a seringa em todo mundo. Entre mortos e feridos, os mosquitos acabaram sendo eliminados. E tudo acabou numa bela festa…

 

FLOYD NIX

…e um bom discurso do Imperador elogiando o patriótico sacrifício da população.

 

DOC FUMEX

Contudo, a população já se encontrava surda e o Imperador, temendo que espiões registrassem as entrelinhas de seu discurso, o fez com a mão cobrindo os lábios e… a parte superior das barbas, que iam até o umbigo.

 

FLOYD NIX

A moda do Imperador de tapar a boca para falar pegou na tevê. Até os jogadores de futebol, durante e até depois do jogo, tapam a boca pra conversar.

 

DOC FUMEX

Pura presunção, de ambos, de acharem que suas falas despertem algum interesse. O Craque no gramado sintético e o Imperador no torreão de seu Palácio em São Cristóvão, alheios a tudo. Naturalmente o Marechal vai protestar, alegando que a guerra dos Mata-Mosquitos foi depois que ele proclamou a República. Ora, o Marechal, pouco depois de sua espalhafatosa proclamação, abdicou… E a História não perdoa: quem vai ao vento, perde o assento.

 

FLOYD NIX

O Imperador encomendou uma roupa no alfaiate mago libanês para ficar invisível. Mas só a roupa ficou invisível. E o Rei… ficou nu. Mas, com suas barbas imensas, cobriu os chocalhos.

 

DOC FUMEX

O jogador encomendou uma torcida para gritar cada vez que ele fizesse gol, mas como o gol não saiu a torcida resolveu gritar mesmo assim… Mamãe eu quero… Mamãe!… Eu quero mamaaarrrrr!!! Me traz as tetas… me traz as tetas pro bebê não chorar…

 

FLOYD NIX

O craque, porém, pegou o grilo, jogou-o contra a parede e ploffftttttt!!! Sentou-lhe o martelo. O Imperador, por sua vez real, escolado político, ainda se demora entre variadas soluções. Enquanto não se decide, resolve viajar de Zepelim ao Egito, pra ir consultar a Esfynge.

 

DOC FUMEX

Ora, há um momento em que ambos se igualam, quando Imperador e goleador coçam atrás da orelha e descobrem que ali mora um grilo surdo e sábio, que em morse bem pausado aos dois transmite o irremediável carteado da solidão. O Imperador toca três vezes a sineta, aparece o poleá, a quem o Monarca diz Almir Bambelo, traz-me cá um martelo…

 

FLOYD NIX

Tamanha distância entre as duas reações propiciou o surgimento de uma geração a mais de grilos sábios que, a cada nascimento, punha na estreita mente do rei e do goleador uma culpa sorrateira por serem tão iguais e ao mesmo tempo tão distantes entre si. Ao goleador faltavam a barba majestosa, e ao Imperador faltavam as chuteiras

 

DOC FUMEX

As respostas se multiplicam sem eliminar as perguntas. Viva a pilha do gato. Jogue no 14 e cerque bem o gato que é ligeiro de pique e mestre de pulo.

 

FLOYD NIX

Pilha dos sete gatos, pra botar no meu ventilador. Ai !, se você fosse sincera, Aurora, veja só que bom que era…

 

DOC FUMEX

Há uma caixinha especial com metade de meia dúzia, que acompanha um jogo de felpudas almofadas. Uma afoita gatinha ronrona na foto da capa. Se você disser a fórmula certa Abra cadabra de cabra dabra… a gatinha aparece.

 

FLOYD NIX

Petekas saidinhas fazem piruetas enquanto os editores cruzam palavras no tabuleiro da Baiana Leocádia… na Praça Ferroviária. E lá vem o Marechal a cavalo, tentar de novo proclamar a República.

 

DOC FUMEX

Tome Elixir Eureka!!!… Revista Guapo Azteka… Não deixa cair a peteka.

 

FLOYD NIX

Os editores em geral não querem correr riscos. Puxam o relógio do bolso do colete, e dão corda… e dão corda…

 

DOC FUMEX

Editores correm de riscos. E fazem uma risca limitando suas ações… Creio que há uma escola onde aprendem a arte do capitalismo sem risco. Não será porventura o Lyceo Pytanga, onde o Reitor ensina-lhes um heroismo de Espartacas.

 

FLOYD NIX

Certamente num armazém portuga… com um retrato… de quem?… Será o Pessoa?…

 

DOC FUMEX

Lá bem no fundo do armazém, por trás de uns caixotes velhos temos a melhor Cubunquira.

 

FLOYD NIX

Boa, pra saborearmos com bolinhos de bacalhau, e lendo no Jornal dos Sports as mazelas do Vasco.

 

DOC FUMEX

GOOOOOLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLLL DO VASCOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!

 

3. O INFERNO E SEUS PESCADORES

 

Floyd Nix e Doc Fumex tomavam a tradicional cerveja Caravaca e como sempre punham em dúvida que todas as tragédias devam mesmo ser clássicas.

 

FLOYD NIX

Precisamos ter um pouco de paciência com o bombástico jornalístico. O truque é ultrapassar incólume o tom determinístico da apresentação.

 

DOC FUMEX

A imprensa liquida o mundo na cepa da chamada. De um golpe só nos leva para bem longe do fato. A imprensa sempre se veste do mais puro engano. As manchetes jamais consideraram o vulto incontestável da realidade. São manobras, nada mais.

 

FLOYD NIX

Assum Preto por ali fazia ninho, ao buscar gravetos deu nas vistas o esconderijo das portas. Então as ensinou a cantar, até que se abriram para outros mundos.

 

DOC FUMEX

O Destino costuma não abrir mão e pegar-se com o fato de que todas as linhas já estavam bem ou mal traçadas, assim que mesmo as linhas do horizonte não eram senão um ardil para abocanhar os tolos de qualquer parte.

 

FLOYD NIX

Conversa de Camelot do Destino… Ele convence aos trouxas que as linhas já estavam marcadas, e assim ele não pode infelizmente fazer nada… Até o Destino, e o Diabo também, todos querem bancar bom rapaz.

 

DOC FUMEX

Estou experimentando a delícia de ter os dias contados! E mergulhar nos braços de uma monja deve ser a melhor das profanações.

 

FLOYD NIX

Vão os dois juntinhos pro Inferno… onde flutuarão abraçadinhos sobre Dante e Virgílio…

 

DOC FUMEX

O inferno se repete em números que já ninguém sabe contar. As horas perdidas combinam com as sombras que irão sangrar.

 

FLOYD NIX

Das três Viagens de Dante, justamente a do Inferno foi a que garantiu a sua Imortalidade.

 

DOC FUMEX

Os porcos e sua dieta severa de pérolas. Os mitos e seus vícios de pés trocados. Como exigir que o homem se refaça se ele habita apenas um punhado de terra?

 

FLOYD NIX

Melhor é não pedir nada, e deixar rolar…

 

DOC FUMEX

Eis o balanço insuperável das contradições. Tudo o que somos levados a pensar de Caim, deixa Abel constrangido. Pior ainda é quando nos deparamos com trios, quando a confusão se instaura: o trio é o melhor ardil do caos.

 

FLOYD NIX

O fracasso do Caim foi porque ele não sabia fingir… E muito menos enterrar.

 

DOC FUMEX

Veja a Santíssima Trindade e a partição do tempo. A primeira busca a Unidade. A segunda, o estigma da linearidade. Enquanto Caim tudo o que deveria ter feito era convocar as hienas famintas para dar sumiço ao corpo do defunto. Bem se percebe que, no fundo, Caim era um simplório, sem malícia, sem malemolência…

 

FLOYD NIX

A partição do tempo se imagina linear quando, na realidade, é circular, como desconfiam os relógios, e o Nietzsche. Tudo passa do futuro para o presente e do presente despenca no passado que segue aumentando… aumentando, já vai quase estourando!… Quando estourar, das duas uma: ou reverte para o presente, ou então… passa a ser o futuro. O que, no final de contas, é quase a mesma coisa.

 

DOC FUMEX

O que arruína o futuro é a falta de profetas… Com a televisão cascateando com profundo conhecimento ético e científico de tudo, os profetas não têm mais audiência. Só podem mesmo apostar nas corridas de cavalos ou trabalharem na meteorologia. Antigamente, sempre foram apoiados pelos escribas do futuro, que lhes prodigavam as melhores profecias. Mas atualmente, as televisoras querem as notícias para já.

 

FLOYD NIX

Fernando Pessoa, bebendo uma garrafa de vinho Gatão no Bar Murtinho, viu de repente o Monstrengo que sobrevoando sua mesa em círculos concêntricos, soltou em cima do vate uma mensagem profética. É a hora!, brada o Frunão, e garçom, Murtinho e clientes, todos se enfiaram debaixo das mesas ou atrás das cortinas.

 

DOC FUMEX

Do lado de lá da calçada outro bar abriga os brados que saíram de fininho ante o grito do apessoado Fernão e suas gaivotas cegas. O mundo correu pela casa, espavorido, dando sobras de provas de que a realidade havia sujado o poleiro da gangue das aves de rapina. O mundo só não fica mudo por sua intrigante coleção de anúncios com que se refaz de suas quedas. O mundo pode cair à vontade, porque tem a bunda redonda. Já a Lua, volta e meia se quebra.

 

FLOYD NIX

O garçom passou de bandeja tuas ideias para o Frunão, mas, entretanto, ele havia já emborcado o resto da garrafa, e estava entretido numa conversa chuchotada com Foffélia e o Gatto de Bottas, que se haviam entrementes escapado do rótulo do casco.

 

DOC FUMEX

Se olharmos bem numa mesa lá tão no canto que mais parece haver entrado no papel parede, veja, veja, são Dyonélio Machado e Augusto Meyer, trocam ideias sobre ratos e sombras, cada um convencido de que dentro do espelho um queijo refletido abriga uma constelação de imagens e o rótulo meio rasgado confirma: Via Láctea. Era Via Láctea o melhor vinho do Bar Murtinho. Afirma o dono do bar que o nome foi dado por Fernandão, e o Almada desenhou o rótulo.

 

FLOYD NIX

A Via Láctea continua espirrando das tetas de… plek-plek-plek!… talvez das tetas de Thétis.

 

DOC FUMEX

E as tetas de Téthis, garbosas, confirmam: O leite que nos alimenta em Roma não é o mesmo que nos alimenta em Búzios. Assim como a cascata de luz que vem do sul não é a mesma que escondemos do norte. Mas o leite das tetas de Thétis é monopólio do Almirante Basco da Gamba, chefe do maior clube de futebol do Brasil.

 

FLOYD NIX

As tetas de Thétis são o prêmio do Vasco da Gama. Por isso ela só dá para ele no templinho da Ilha dos Amores… onde se encontra o mapa-múndi, com o Meridiano das Tordesilhas marcado em linha vermelha. Ela só dá no Canto Nono, porque o Décimo é pra Apoteose d’Os Lusíadas e torna a entrar a Procissão, desfilando em torno da Torre de Belém.

 

DOC FUMEX

A Torre tombada é a que melhor se põe de pé, e reza ali em seu labirinto que melhor seria se o nosso Tratado fosse o de Versailles. Como não é, vamos mastigando miçangas, vesgos. O que não deixa de ser uma injustiça ao Tratado das Tordesilhas, criado pelo santo Papa Borgia, que possibilitou justamente a existência do Brasil. Não fosse o Papa Bórgia, e o Brasil hoje estaria reduzido à Ilha das Flores, e seus habitantes, um bando de magarefes ladrões e safados vagabundos.

 

FLOYD NIX

Melhor ainda é a Torre da Melusina, donde aos sábados… crescia-lhe então um rabão escamado e asas de morcego… e ela saía voando nas trevas da noite…

 

DOC FUMEX

Melusina foi pescar lambaris no aquário de Mr. Crowley. Foi e não mais voltou. Tampouco do aquário se sabe o paradeiro. Nas noites reviradas se ouve apenas a risada lancinante de Aleister, satânico. Certamente Aleister tinha seu talento de taroqueiro e comedor de peruas.

 

FLOYD NIX

O Crowley tinha uma piranha em seu aquário e uma flor carnívora no seu pote galé (ninguém sabe qual das duas lhe devorou um polegar).

 

DOC FUMEX

A piranha cravejada de brilhante pariu mil espigas de uma fábula à prestação. A flor carnívora disfarçada de mirante aguardava que cada vítima a ela viesse. Mas, naturalmente, a realidade jamais supera a ficção. Só chegavam à flor umas míseras moscas… Nem sequer jamais. sequer uma azul varejeira…

 

FLOYD NIX

Pesque caranguejo com o dedão do pé. Mas para a piranha, invente outro processo.

 

DOC FUMEX

A piranha, incestuosa, considerava parentes todas as vítimas de seu voraz apetite. Em seu camarim mantinha um pequeno baú amontoado de suvenires de seus pastos.

 

FLOYD NIX

Será o Boto, sempre galante, a sua próxima vítima?…

 

DOC FUMEX

Deixa que eu boto, disse a bota, em tom sapeca, defendendo que tudo não era senão figura de linguagem. É fácil reciclar as impurezas quando aqueles que entalham na pedra as regras são os únicos que podem infringi-las.

 

FLOYD NIX

A bota está muito presumida porque ela é para a perna que está faltando ao Capitão pirata unijambista.

 

DOC FUMEX

Não deixemos faltar mais nada, do contrário os rapazes virão morder a isca dos demônios maiores.

 

O prutuca do bar achou por bem bater a porta na coronha da conversa. Passem daqui pros infernos, seus catadores de fuligem. Chispem. Aluguem outra carroça para levá-los ao Morro do Farnel. E não voltem tão cedo, pois sim.

 

4. TÁBUA LASCADA

 

Onde andará Cassandra?

À porta bate o céu, seu menestrel,

venha depressa dizer o que foi

feito de nossa deusa inconsútil.

ANÔNIMO DA SILVA

 

DOC FUMEX

Primeiro o Polo Norte se derrete. Depois os rios secam… Depois então… o mar vira sertão.

 

FLOYD NIX

Caule de mandacaru na panela destampada, água fervendo olhando para o céu, mirando o reflexo da estiagem. Caso fosse cinema, viriam logo os jagunços carregando avoantes e quadris de jumentos para a Grande Festança da Seca…

 

DOC FUMEX

Também na realidade os jagunços voltarão, pelos Sertões, de picinez, medalhas e magníficos chapéus de Napoleão, vindo à frente Lampião e sua Joseca Fina de pulseiras nas canelas galopando a jegue e jumento em triângulos de Euclides, até a Colossal Pyrâmide de Brasília, onde Faraó Fó defende a Constituição gravada em hieroglyfos na Pedra da Esmeralda.

 

FLOYD NIX

Joseca tem sido a grande inspiradora do cinema nacional, que esbanja jagunços por todas as peneiras, como prova de que a vida imita a arte. Em Estornolândia cientistas de vários países estão desenvolvendo técnica de fusão de patas mesclando jumentos e jegues, empenhados em que em uma cavalgada com oito patas por equino se chega mais ligeiro ao Polo Norte. Chegando ali, o escopo será implantar imensos blocos de queijo suíço…

 

DOC FUMEX

Troppo Tarde… Não chegarão mais a tempo. Com o desaparecimento do Polo Norte todos os interesses das Grandes Potências se concentrarão no Polo Sul. Argentina, Chile, Uruguai e, por certo, Brasil passarão a ser paparicados pela Rússia, França, Prússia, Memérica, China… e até o Japão vai querer meter sua colherzinha.

 

FLOYD NIX

Colherzinha de olhares afunilados. Agora que o plano minou água de outra fonte, o que fazer com o estoque de queijo furadinho importado no mercado negro escandinavo?

 

DOC FUMEX

Se o estoque de queijo furadinho estiver mesmo podre, podem oferecê-lo como efetivo preparado camungongocida.

 

FLOYD NIX

A torcida canina acende velas em becos sem saída à entrada da Gatolândia ganindo de felicidade só de pensar nos miaus de patas para cima se debatendo até a chegada de nova encarnação. Resta, no entanto, a dúvida: entre mortos e sádicos, quem irá repor a agulha desfalcada na Bússola dos Horizontes Estreitos?

 

Boa lembrança, a do reitor, ao desafiar a trupe: ELOGIOS DE CASSANDRA. A começar por dois garis que moveriam de um lugar para outro a pedreira da moral. Sofregamente deslocam pedra a pedra cada um dos ícones de nosso bel-canto. Dois garis, Gardel e a trupe, começam a mover de um lado para outro a tranqueira.

 

FLOYD NIX

E por que chamas essa tranqueira de pedreira da moral? Tratam-se de apetrechos da vidente que foi presa pela polícia. A pobrecita foi levada à força, nem teve tempo de guardar nada, sequer sua poderosa bola de cristal…

 

DOC FUMEX

Que importa o nome… A forca espera pelos amantes da discórdia, quaisquer que sejam os papéis que esses sonsos infiéis representem. Dói-me nas costas ficar a levar de um canto a outro o falso júbilo dessa hierarquia de pedras.

 

FLOYD NIX

Deves imaginar, Colega, que estas pedras são esponjas, levíssimas… Usa a Imaginação, e hás de transformar a dura Realidade em fofa Fantasia… As asas da Realidade são de pedra… Mas as asas da Fantasia são de colossal Condor Imperial dos Andes, esse Gigante do Anil, que zomba das tempestades e sobrevoa a majestosa Cordilheira!…

 

DOC FUMEX

Eu já lhe havia dito que os arcanjos gargalham ao bimbalhar das tragédias suadas. Mas temos outra fantasia em concorrência, aquela que me faz tropeçar em sua cabeça oca, a mesma com que ele se recusa a me desvirar. Também a Realidade tem uma função a cumprir, Carneirinho, carneirão, pedra dura, pedra fofa.

 

A trupe vai se chegando, com cadeiras e painéis, prateleiras e cordas, penduricalhos e uma mesa de madeira única, e um carrinho de boa mão, ouve-se do anão que nova tranqueira se anuncia.

 

FLOYD NIX

Ora, quem sou eu, um simples gari de pontes e calçadas… Olhai pra cima, olhai pro chão, pro chão pro chão… Em minha ação de limpeza da rua de Cassandra Flores, dou graças por tudo que ela fez por mim, sete vezes mais do que nunca podido houvera imaginar, das maravilhas que me revelou para assombrar-me, com sua maravilhosa bola, para manter-me à altura da opulência que se apresenta em seus cristalinos reflexos…Nesta rua, nesta rua mora um anjo…

 

DOC FUMEX

Agora o diabo quer secar o pistão de lágrimas de nosso lagamar florido. Primeiro a notícia de que a bola desvirou reclame, todo mundo se esqueceu, ninguém soletra na carne os requebros da alma, as leis do umbigo espancaram o improviso, ninguém sabe mais apenas ser, o que for, agora toda a gente quer proteção de fraseados.

 

As cadeiras vão amontoando o livre arbítrio, acentos multicores, encostos derreados, um lencinho com fios dourados identificam o nome de cada escolha e suas consequências.

 

FLOYD NIX

Bola reverberante, que Circe por sua ávida redondeza teria clamado, pelo menos, oh, Bola!, Não te afastes de mim!… Com ávidas chuteiras, nem pra vitória de meu time Arranca-Toco, eu jamais, jamais, jamais te chutaria!…

 

DOC FUMEX

Os monges empalhados aturam a alma burlesca do taxidermista da roça. As manhãs chegam primeiro, a bola ainda dormida no alpendre da fazenda. Como vamos enfiar tudo isto, diz lá, Nix, em palco tão mixuruca sob um toldo esburacado?

 

Muito tempo depois é que se encontrou em meios aos escombros do teatro imaginário um par de tabuletas em cujos rabiscos ainda se podia vislumbrar a possível verdade da memória.

 

DOC FUMEX

Lyceo Pytanga avisa que o Reitor ztará viajando por uns dias de Zeplin… Quando regressar, responderá aos teletros recebidos.

 

FLOYD NIX

Bem vinda a viagem que nos leva de um galo a outro da alegria.

 

DOC FUMEX

Sempre bordejando o Meridiano das Tordesilhas…

 

FLOYD NIX

O Meridiano casou-se com a Diana do Meio. Ela o ensinou a caçar tordesilhas para o lanche.

 

DOC FUMEX

Bem aventurado Meridiano, ora se refestelando com a Diana do Meio… O Papa Bórgia fez-lhe o casamento em suntuosa cerimônia na Catedral de Madrid.

 

FLOYD NIX

Madrid e Padrid compareceram à festança panteísta. Nuvens de algodão temperaram o céu por todos os poros do casório filtrado.

 

DOC FUMEX

O Conde resfolega no cangote da Condessa, Mocinha de Abanos se encrespa atrás da coluna, risos elétricos percorrem o ar seco de Orgaz. Quando as palavras se completam o mundo renasce.

 

FLOYD NIX

Enterre a mão na fonte dos desejos. Cumule fugas nas dobras da clarineta. Venere o fole que entoca ar no pulmão. Não deixe nunca a dor para depois.

 

DOC FUMEX

O dilema da esperança, seja boa ou ruim, é que ela amofina de corpo & alma o crente em suas soluções miraculosas. Melhor esquecer o miado e tratar de dar aos gatos lição de bel-canto caso voltem as chanchadas.

 

FLOYD NIX

Balas de cá-te-espero no organdi malemolente das dançarinas da corte. Sustentam o mundo em seus requebros e o corte transversal em suas anáguas.

 

DOC FUMEX

Um instante de silêncio, palco e plateia se entreolham – existirá mesmo uma Cassandra? –, a cortina ergue a cabeça desconfiada, dando pela falta de algo no roteiro ou querendo nova sessão.

 

O mapa da mina despencou em meio a uma sinfonia de cacarecos e as sílabas gastas faziam um estrondo tremendo, como se contasse outra história, da qual não se pudesse entender nada.

 

5. UNHAS DE CLOTINHA

 

As unhas de Maltilde Clotinha já nascem roídas.

ANASTÁCIO CALOTE

 

DOC FUMEX

Nem tanto… é que antes que apareçam… e já as roeu o rato … Mais a mais… Clotinha de busto altivo em par com Tio Meroles na entrada da majestosa Gare Ferroviária Labyrintho… mais que das unhas… precisa das tetinhas meio encobertas pelo decote distraído.

 

FLOYD NIX

As coberturas vazam entrando as noites mal saídas da galeria e Clotinha rói o rato em represália a seus abusos. A impertinência no olhar do famélico roedor distrai os seios que não param de crescer, buscando afago por todo o volume de suas ânsias montanhosas.

 

DOC FUMEX

Para os afagos… caberia ao Meroles se decidir… mas ele demorou muito… devo ou não devo… posso ou não posso… O tempo passou, e os dois se atrasaram. A vida é um trem apressado… na estação esteja de malas a postos… na beira do cais. Não há tempo pra ler a placa da direção. Pule dentro do trem. Depois então…

 

FLOYD NIX

…depois então a direção encontra seus passageiros. E no vagão-bar expõe os bustos robustos daqueles que perderam o trem. Meroles cavou um poço na toalha da mesa do canto. Saltavam dali as paisagens que ele ia colando uma a uma por todas as janelas em movimento. Na medida em que a viagem se declarava bem alimentada Clotinha exibia as unhas refeitas por um instante.

 

DOC FUMEX

O trem era um luxo só… tinha rodas pneu-balão… banda branca… e uma música difusa corria pelos vagões… Elvis Presley?… Parece que sim… mas o chapéu cowboy cobria-lhe o rosto…

 

FLOYD NIX

As máscaras sempre se ocupam dos santos, menosprezando o milagre. Um pedregulho no trilho fez o trem dar um salto súbito e por uma das janelas entrou rasgando um facho de luz crepuscular. Clotinha foi logo gritando: Cuidado ao cruzar o semáforo que me vão borrar as unhas. O barman, que não tirava os olhos dum cantinho rendado de seu decote, deu dois passos para trás, como costumam fazer os acólitos, e desfizeram-se os laços de sedução da cena.

 

DOC FUMEX

Aproxima-se meio cambaleante ao sacolejo do trem, Elvys Presley, sempre com o chapelão acobertando parcialmente o rosto.

 

DÓRIS NIGHT

Diga-me, forasteiro, és mesmo o Elvis?...

 

ELVYS

Sim, Boneca, justamente porque duvidas… sou o Elvis. Sempre guardo um pouco de mystério, pra fascinar minhas fãs.

 

FLOYD NIX

Novo sacolejo e Elvis retira da capa uma viola branquinha:

 

ELVYS CAPOTÃO

Sentimental eu sou, eu sou demais… Um dia ainda concluo essa versão.

 

DÓRIS NIGHT

Ai meus sais, que voz, mesmo morto ele é tão lindo…! Imagina ressuscitando em minha cabina…

 

FISCAL-MOR (Entra, preocupado)

Olá, Dona Dóris, perdoe-me a interrupção, mas como vedes por meu uniforme com três estrelas, sou o fiscal-mor da fiel equipe de funcionários de nosso fulminante trem Paralax. Desejaria participar-lhe, Dona Dóris, vós que sois uma cantora dramática extraordinária, de quem desejaria, mas não ouso pedir, vosso retrato paramentado com autógrafo… que temos a bordo um pseudo-Elvis vil caçador de peruas distraídas…

 

DÓRIS NIGHT

Ah logo vi que o roteirista tinha exagerado no tempero de minha moqueca… O barman também me disse, enquanto me espremia num cantinho ventilado entre vagões, que se tratava de Elvys Capotão, um salafra que leva na lábia as mulheres avulsas que cruzam o mundo no Paralax.

 

FLOYD NIX

Paralax é o nosso transglobal, dele não há palmo de terra que escape. Clotinha faceira debruçada no recorte de uma janela soprava as unhas recém-roídas e se deixava beijar na face posterior de suas coxas pelo anão Fraseado Solto, que entre uma beijoca e outra deixava escapar o mantra: dura lex, sed lex

 

FISCAL-MOR

Preciso manter o clima romântico do Paralax, pra que não caia numa pornochanchada dum trem treme trêmulo qualquer… Minha missão romântica agudinha vai se tornando cada dia mais difícil com a vulgar licenciosidade grosseirona de nossos dias… Queremos um ambiente em tecnicolor original de cinema panorâmico dos anos cinquenta, do século passado… com Clark Garbo, Verônika Lago, e a colossal banda de jazz de Bill Summer… Todos de smoking e uma bateria de dez saxofonistas…

 

DÉCIO CUBATA (o barman)

Vou preparar meu ponche de groselha com saquê e folhinhas de malvarisco na borda das taças, que deixa o coração acelerado e a garganta prontinha para as falésias guturais de um longo trajeto de canto e luxúria.

 

FLOYD NIX

Não te esqueças dos canapés com pimenta doce que Clotinha adora ofertar na catedral de seus acidentes anatômicos.

 

FRASEADO SOLTO

Numa noite a mil a eternidade eu desfio.

 

DOC FUMEX

Parece que o romantismo liberô do novo Milênio vai muito além do novecentismo do Fiscal-Mor… que se deixou ficar no café duma longínqua estação… E o Expresso Paralax segue sua viagem pelas novas Galáxias…

 

FLOYD NIX

Pois é justamente aí que reside a passagem do tempo em meio a seu eterno dilema de querer ocupar dois espaços simultaneamente. O anão debulhava seus axiomas que aos poucos iam irritando a todos na folia mecânica do Paralax. Numa dessas noites abocanhadas pelo acaso, numa série de curvas que se repetiam como uma elipse, Padre Anselmo olhou para o céu e vislumbrou um palito de luz. Elvys Capotão e Verônika Lago ensaiavam uma marcha-rancho em meio a uma breve melancolia que se instalava no vagão. O que seria tal luz? Anselmo apontou para o alto e os olhares todos o seguiram. O azul-prata brilhante parecia mergulhar nos olhos de cada um. E logo a luz era a única paisagem possível, nela sumindo o próprio vagão. Clotinha foi a primeira a identificar os ruídos fortuitos e o vazio silencioso e avassalador que os devoravam.

 

CLOTINHA

Afinal, aonde diabos nós viemos parar? Décio, parecemos firmes no chão, mas não há chão. Tudo é vazio, porém não estamos flutuando. Podemos andar, mesmo não havendo piso. Minha gente, o que está se passando conosco?

 

DÉCIO
Creio, Clotinha, que este mistério transcedental só Doc Fumex, com seu cachimbo e encyclopédica erudição, nos poderá elucidar… Diga-lá, Doc Fumex.

 
DOC FUMEX

Deixa rolar o Paralax… Lex Dura Lex, pro meu cabelo só Gumex.

 

FLOYD NIX

Ai, meu caro Fumex, eu vejo agora que no sacolejo em que se embaralharam tempo e espaço algo se perdeu… Fritz Banzo já dizia que nessa vida não há ninguém que não se perca, um cadinho que seja. Talvez a vida seja o sumo dos fragmentos desencontrados ou esbagaçados no balanço das viradas. Se Clotinha não roesse tanto as unhas já teria percebido que fomos abduzidos para um tubão de tudo-nada. Agora somos essencialmente as partes que faltam. Cenário assim tão de todo nu… sem chão ou teto… sem paredes… parece ser a grande solução para o Theatro Automático, ao reduzir a quase zero os cifrões da produção.

 

6. DRAMA DO NÃO-ESPAÇO

 

Volta e meia o cacimbão regurgita deuses.

KLEP MUNIZ

 

FLOYD NIX

Se houve um dia Paralax já não o sabemos. As incertezas constituem o núcleo melhor sedimentado da história. A descoberta do não-espaço propiciou redimensionar antigos enredos, dando à criação um novo motivo para seus delírios e folguedos. Estrada infinita pela frente, qualquer que seja a direção, qualquer o ângulo. Assim como sapos saltando da cartola escangotada do Mago Cremix, do mais pleno vazio saltam cenas e personagens… Experimente sacar algum enredo, Fumex.

 

DOC FUMEX

Quem sou eu?… Um novecentista romântico, ante essas mirambolâncias eletrônicas do 21… E quem descobriu o não-espaço? O Mago Cremix? É tão só um farsante mago de mafuá… O não-espaço certamente está dentro de sua cartola, tão repleta de ratos, coelhos e bagulhos, que não sobrou espaço para mais nada…

 

FLOYD NIX

O não-espaço é o cenário do intangível, o escoamento da forma, nele apenas o fraseado se põe de pé e mesmo assim apenas no instante em que se fala. É bom para viajar, porque não requer sair de onde se está, até porque no não-espaço caem por terra os conceitos de ser e estar. Dizem que o Mago Cremix encontrou uns papelotes no fundo falso da cartola de outro ilusionista, André Brejeiro, com quem chegou a dividir banco de tenda no Pavilhão das Liberdades Frustradas.

 

DOC FUMEX

O não-espaço me assusta!… Ztou roendo as zuuuuunhas… Ainda bem que o Vesúvio não está no bairro… Ou se tivéssemos um Titicaca… um Aconcágua, ou um Ximborazo, um Popocatepel… Uma morte no fogo!… Cruel, mas humana… Ao passo que esse Não-Espaço é coisa de morto-vivo… de Allan Kardume!…

 

FLOYD NIX

Ora, Fumex, ninguém rói melhor as unhas do que a Clotinha, e ela está aqui conosco justamente para ensinar aos povos de outras dimensões essa prática que, em todo o Universo, é domínio apenas dos terráqueos. Até mesmo no reino animal somente os homens roem as unhas. Nem mesmo os tamanduás ou os demônios da Tasmânia. Todos nós estamos aqui para cumprir tal missão. Como fazê-lo? Através das artes dramáticas…

 

CATÃO BALUARTE

Tlém, tlém, tlém… Toco o meu badalo imaginário e convoco a todos para o centro do não-palco! Venham, venham, hora de começar a soletrar os primeiros improvisos…

 

DOC FUMEX

Tragam taças de porcelana da Bélgica, copos de cristal da Bohêmia, uma chaleira com Café Fonema, uma ânfora de vinho Falerno e bananas pra Macaca Pinola… A Poesia é a filha maluca de Dona Razão. Dai-vos pressa, oh Filhos da Arte!… A chaleira já está chiando um fado de Maria Tamanco, duma tristeza de rachar.

 

FLOYD NIX

Dai-vos pressa, ecoa Catão BaluArte!… E introduz em cena Madame Putinheska que acentua nossas mazelas físicas e, frenética, descortina que aqueles que caminham como se de algo fugissem serão descarnados como uma matéria putrefata. Ela fareja o vazio e defende que somente a libertinagem cria.

 

FRASEADO SOLTO

Se um castelo se isola do mundo no alto derreado de um penhasco, por mais que grasne jamais será seguido sequer pelo fogo. Também os amores que se mantém isolados em suas camas de cristal não expressarão jamais a grande fome de viver.

 

MADAME PUTINHESKA

As leis da física enterram o homem vivo. É preciso criar um salto de imaginação. Por isto saio das páginas de Prepúcio Boreal e venho me misturar com todos de modo arrebatado e assim mesmo nuazinha como vim ao mundo.

 

NELSON ROMILDES (jornalista)

A plateia, face ao discurso passional de Madame Putinheska, se divide entre a Esquerda Libertária e a Direita Ultrajada. E Doc Fumex, em que bloco se coloca? Não o encontramos!… Onde andará o Fumex? Lá está, enrolado na cortina, para não se comprometer. Ora, Fumex, não vou achacá-lo, exigindo que tome posição nesta tediosa pendenga… Somos colegas da imprensa… Gostaríamos apenas que nos passasse algumas fofocas ilibadas, mas objetivas, sobre alguns personagens. Quem é, afinal, essa perua louca ninfomaníaca, que quer comer todo mundo no sarau?…

 

DOC FUMEX

Pois é… Marinela foi educada no Sacré Coeur, onde lhe completaram os bons ensinamentos para a cultura e o espírito. Tinha invejável tino literário, apreciando as obras de Marquês de Sade e do Conde de Lautréamont. Quando sua mãe lhe perguntou qual presentinho ansiava para os seus quinze anos, ela, de olhos baixos, pediu-lhe um chicotinho… de pelica, pequenino, mas de três braços, com preguinho na ponta. Seria pra servir-lhe de cilício.

 

NELSON ROMILDES

Estou anotando tudo de memória, mas me surge uma dúvida. Acaso ela não é o anjo aterrador do romance de Prepúcio Boreal? Lembro bem umas páginas em que se dizia que o império estava feito por rufiões e mercadores, e que os dois se confundiam em uma mesma cafajestice…

 

FLOYD NIX

É possível, porque houve um momento em que a humanidade se viciou em aforismos e os apelidos eram uma lambança metafísica a surrupiar as identidades… Boreal era um reflexo dessa travessura humilhante.

 

MADAME PUTINHESKA

Ah esses pobres moços machucados pelo passado! Tragam para mim seus cabos de guerra, nós precisamos refundar o horizonte. Os acidentes dão à vida um relicário menos servil. Venham, meninos, Mamá espera a todos no abominável teatro de minhas coxas ensopadas…

 

DOC FUMEX (de pé no peitoril da janela)

Prezado Floyd, está na hora de meu embarque… O táxi lá embaixo já me está esperando. Pulo agora da janela, deste quinto andar, utilizando o meu magnífico guarda-chuvas inventado pelo Leopardo Davint, extraordinário inventor de asas mecânicas e paraquedas. Divirtam-se! Zaaaftttt!…

 

NELSON ROMILDES

Doc Fumegas pulou presto, bem sei por quê. Olhem para o público!… Cavalheiros e Damas dos camarotes, e os velhotes e damas de boininha da galeria intelectual, numa revolta vociferante se transformaram na Tromba Humana!… É uma espécie de versão terrestre da Tromba d’Água dos Lusíadas!... Vai crescendo em espirais e vem se aproximando de nosso palco!… Passei por perigo parecido no lançamento de minha peça Tanguinha de Núpcias

 

MADAME PUTINHESKA

Esse chupa-brumas é um menino levado. Em minhas mãos eu lhe daria remendo…

 

FLOYD NIX

O público sempre foi a velha ferida na alma de Doc Fumex. Cheguei a pensar que em um Teatro do Nada, em pleno não-espaço, pela impossibilidade de existir público, ele recauchutasse seus velhos traumas. Mas ele inventa um público ulterior que acaba por castrar sua imaginação. Acho até que foi péssima a ideia de abdução. O homem ainda não está pronto para descobrir seu duplo em outra galáxia.

 

FRASEADO SOLTO

O sovina come requentado. O mascarado leva uma vida de bailes. A poça d’água é o espelho da imensidão…

 

MADAME PUTINHESKA

Alguém desligue essa coisa!

 

CATÃO BALUARTE

Tlém, tlém, tlém… Finis terrae

 

7. ANTES QUE HOUVESSE TEMPO DE MENTIR

 

Um dia puseram as cortinas para lavar. Falas e cenários, que por vezes até se atropelavam, em face da barafunda de improvisos, não deram por conta das poltronas na plateia que, embora vazias, não desgrudavam o olhar dos argumentos, sobretudo quando os mesmos fugiam do contexto.

 

FLOYD NIX

Olha, acho que eu deveria dedicar este livro à Bruxa Rosana, graças a ela fui sempre muito bem recebido em todos os ciclos do Inferno.

 

DOC FUMEX

Seria muito merecido. A Rosana faz tudo o que lhe peças. Ela é pra ti tal qual a Sibila de Cumes pro… Enéias.

 

FLOYD NIX

Além do que criará uma aura de mistério, imagina, logo no frontispício: Dedico este livro à Bruxa Rosana… Amanhã ponho em ordem o material que recebi hoje, da pena de Aderbal Quaresma, outro expurgado pelo Faraó das Três Limas.

 

DOC FUMEX

Além do mistério pra ouriçar a plateia… Rosana agradecida vai aprontar pro livro um feitiço!! Fará um feroz furor no guichê de Leonor.

 

FLOYD NIX

Um furor para Leonor Fini, onde nada se finda, onde tudo começa ou recomeça. O recomeço, por sinal, é uma pérola da retórica, pois tudo é sempre começo. Chamarei os carpinteiros canastrões do reino para que ampliem o balcão.

 

DOC FUMEX

Leonor Fini vale um apertão no guichê!… A multidão aumenta cada vez mais.

 

FLOYD NIX

Em casos assim sempre aparece alguém do Comitê Central a trazer à tona a velha discussão de quem veio primeiro: o guichê ou a multidão. O mundo e seu remake.

 

DOC FUMEX

O problema é que a multidão sempre vai para o teatro errado… Em vez de vir para o nosso, com Leonor Fini no guichê, vão todos ao Cine Metrox, ver o Ben Hur… ou ao Cine Fox, ver o Victor Mature… de Sansão.

 

FLOYD NIX

Por isto que o remake é a Grande Obra. Base dos best-sellers, receita infalível da Sétima Arte. Nada se cria. Tudo se reproduz, com pequenos retoques, em nome de uma vanguarda cristalizada.

 

DOC FUMEX

Por isso mesmo acho que nosso único recurso é fazer uma paródia de besticela… fingindo que é mesmô… besticela… O povão comprará milhõõõõõessss d’exemplares!!!… No Aeroporto de Orly, quando descobrirem nossa fraude, haverá uma revolta popular, a multidão enfurecida cercará o prédio da editora e… tacará fooooogo!!! Morrerá de vítima o inocente samaritano, o pobre Salim abraçado a suas panelas no Bazar Baltazar.

 

FLOYD NIX

O povão já se acostumou tanto a aplaudir o dobrado de pistões falsos que vez que outra quando a música acerta o passo sempre se escuta o ribombo de um tomate podre na caixa de retorno. Alguém na plateia sempre se mantém o mais atento a todas as correções eventuais do que é falso notório. Não importa se os cravos nas mãos do Nazareno ou se o pouso fajuto da Nasa na lua. Ninguém ouse corrigir os falsetes da história.

 

DOC FUMEX

Se jamais os astronautas conseguirem pousar na Lua e voltar… Será que vão confessar que aquele mal encenado primeiro pouso foi… Balão de ensaio?… JAMAIS!!! JAMAIS CONFESSARÃO!!! E a Opinião Pública JAMAIS ousará pôr em questão este DOGMA da Civilização Contemporânea…

 

FLOYD NIX

Nem este nem aquele do gatuno sementeiro a quem primeiro a Tereza deu a mão, não importa o quanto a estrada estivesse repleta de laranja tão madura. A história ama o soslaio e a vela manufaturada nos fundos da quitanda de Sor Inês. O resto da festa sempre a garantem os copistas de Caravaggio e Chico da Silva. Amém.

 

DOC FUMEX

As garras de Floyd Nix cada vez mais afiadas… como diria o Padre Jardim: Assim, meu filho, ninguém escapa…

 

FLOYD NIX

Padre Jardim ainda guarda às vistas de todos, pendurada em seu pescoço, a chave do maior de todos os mistérios: o cristal que nos faz ver tão longe quanto perto, tão íntimo como ausente. E a quem lhe indague as razões de tamanha ousadia, ele reafirma que o oculto por excelência é o que vemos a cada instante em qualquer parte.

 

DOC FUMEX

Padre Jardim está avançadíssimo… Deve ter lido a Pedra da Esmeralda.

 

FLOYD NIX

Em plena cumplicidade com o Acaso ele descobriu que cada pedra luminosa ao ser refletida no calcário e, dado incerto ângulo, reproduz a estrutura íntima de outra pedra igualmente luminosa, e foi assim que compreendeu que todos os reinos são um só, bem como os deuses.

 

DOC FUMEX

O acaso da intenção? ou… a intenção do acaso?

 

FLOYD NIX

A intenção é o pior de todos os acasos, assim como o acaso é a mais destemperada de todas as intenções. De que lado por a asa da xícara antes que o voo embriague?

 

DOC FUMEX

O voo só te poderá embriagar quando a xícara tiver duas asas.

 

FLOYD NIX

Um artista português, após muito refletir, resolveu por a asa no lado interno da xícara. Assim o voo se daria de outro modo, por efeito de infusão. Não sem antes o sermão.

 

DOC FUMEX

O artista português inventou, assim, o disco voador.

 

FLOYD NIX

E tão rasante foi o voo experimental que voltou a ser xícara, desta vez desossada.

 

DOC FUMEX

Bota-lhe uns pelos da Meret, que ela vai gostar… Toda xícara é mulher, e toda mulher gosta de ser gostosa… Sorve-lhe um café nos pentelhos que ela vai gostar. Ai ai ai, agora… querer ser poeta num mundo em que despreza ou ignora a poesia é uma insensatez. Melhor a música, o romance, a tevê, o cinema. Ninguém, dotado de bom senso, JAMAIS escolherá ser poeta… Então… porque e para que vamos nós ficar de semente?… E não somos burros… Mas porque cismamos de ser poetas? E… in-sis-ti-mos? Acho, Nix, que a única explicação é que foi a Poesia quem nos escolheu, e não nós a ela. Somos os mosquitos… e a poesia… é a nossa Aranha… que nos fascina, e nos vai devorando… pedacinho por pedacinho… E nós… gostamos… O-Ro-Ro-Rooooo

 

FLOYD NIX

A ferida faz de tudo para não estancar. A fístula do bem viver. O cadáver delicioso atado ao pé do abismo. O inferno pajeando a melancolia e outros destemperos do ser. Quem cria sabe que afia a própria lâmina que um dia lhe dará o golpe fatal. No entanto o verbo flerta com todas as flexões do destino. Acho que pregamos tantas coisas no céu com a clara intenção de impedir o voo. Nuvens e antenas, estrelas e arranha-céus. Quase não sobra espaço para um rasante bem dado. Troquei as crinas do alazão pelos pentelhos da Meret, agora meu cavaquinho não desafina mais não.

 

DOC FUMEX

Aproveite enquanto possa antes que chegue a carroça. Agora então com o Feliz Final cai a cortina: BOM REBELHÃO. BONG PLOFT BANG!!!

 

Mas não havia cortina alguma, era apenas o efeito fantasma do membro extirpado. As cortinas ainda não haviam retornado da lavanderia. No entanto a plateia, igualmente inexistente aplaudiu de pé o encontro entre os dois corifeus que tão bem maturaram, de manga solta, sobre as inúmeras traquinagens pueris e até mesmo sádicas de nosso tempo.

 

8. QUIMERA É ESSA?

 

FLOYD NIX

A mais farisaica de todas as quimeras se chama Inocência. A mais tormentosa de todas as incongruências místicas. O Chapelão da Corte, que passa a vassoura nos pecados da terra, jamais aprendeu a lidar com a heterogênea Inocência. Há poucos dias uma híbrida Lolita veio morar comigo. Resfolego sem saber a que duras penas me submete a implacável imponderabilidade da existência. Dá-me uma lanterna, Doc…

 

DOC FUMEX

Passo-te uma lanterna semiapagada… (canto:) – E tudo a media luz… trali-trali-tatá… o pecado passa de contrabando na mochila do camelo.

 

FLOYD NIX

Passa o rebanho das pilhas gastas, para que os temas que assolam o presente se mantenham sempre carentes da presumível clareza que exigem. Um pouco de tudo ao passo de mil saguis que tamborilam na pele da surdina. Mas o que se pode fazer com a Inocência afastada dos espelhos?

 

DOC FUMEX

Todos os espelhos da casa de Tio Carol estão encobertos por espessas cortinas, para que Lilica não os atravesse, e a Maioria Silenciosa não veja a própria cara de basbaque. O Polo Norte se derrete, mas no Polo Sul os Pinguins Imperiais seguem de fraque em solene Congresso.

 

FLOYD NIX

Congressistas debatem aos berros sobre a teoria dos exílios fiscais, cada um com uma mão no bolso, certamente segurando o botão de controle da próxima bomba ecumênica. Lilica vive com as unhas a namorar as paredes buscando uma imagem perdida.

 

DOC FUMEX

Talvez seja a imagem do Coelho Branco. Ele era o xodó da Rainha Ruiva… Xodó tocava a cornetinha pra cá, tocava a cornetinha pra lá, desenrolava um pergaminho, e recitava o cardápio de bolos do dia, no chá da rainha… Cada bolo do chá simbolizava um bolo político no logro da população…

 

FLOYD NIX

…até que um bolo no estômago fez as ideias saírem por uma tubulação indesejável. Sem a linha labial que lhe indicasse a origem, ouve-se risada grotesca de quem se supõe seja o gato desbotado. De um modo ou de outro, o mundo se perde em trilhas abandonadas.

 

DOC FUMEX

Mas o sábio Ling Fó, acompanhado de seu fiel gato sem botas, em seu laboratório alchímico, por encomenda real, está descobrindo uma pastilha mágica, que transformará no estômago da comensal suas boas ideias em pipi de ouro!... As más ideias, porém, seguirão sendo mesmo de bosta.

 

FLOYD NIX

Não metam a mão em cumbucas vazadas. A vazante da seda resultou em rota que escorria para dentro, até a foz do pavio do circuito imperial. Uma modesta falange crescia no paralelo, pintando de lilás o lodo de suas células. Na Biblioteca das Sete Tábuas há um papiro que registra aí o nascedouro do terrorismo.

 

DOC FUMEX

Justamente na Biblioteca das Sete Tábuas, um fanático lascou a tábua nos cornos do Bibliotecário, e se tornou assim Ali Babu, o primeiro terrorista da História. O Bibliotecário Jorge Bagre teve um enterro concorridíssimo, centenas de milhares de manifestantes, com cartazes de protesto. O Juiz, severo, condenou Ali Babu. Como ainda tinha folha corrida, salvo pequenos assaltos, foi condenado a dois anos, de liberdade condicional, assistido por um psicólogo pra preparar sua reinserção social.

 

FLOYD NIX

Como uma catinga abafa outra, durante algum tempo não se falava em terrorismo, sendo a voz da vez um estrondo das falhas interpretativas da Lei da Camurça Tingida, pois a reinserção de Ali Babu foi o leite entornado sobre o óleo das ilusões refrescantes. Ao deixar o complexo das grades tratou de mudar de rosto e nome, passando a se chamar Leocádio Trancinha, vindo a comandar uma das falanges criminosas mais violentas.

 

DOC FUMEX

Leocádio Trancinha não sossega, nem se corrige. O Juiz Hades Roboaldo, porém, é duma dedicação inflexível no resgate dos desajustados sociais. Trancinha terá de se corrigir à força, porque Hades Roboaldo é um incansável iluminista defensor dos Direitos Humanos. Após seu oitavo assassinato, de que a vítima foi o Padre Procópio, as manifestações de protesto, contra a inanidade da Justiça, foram contrarrestadas pelas borrachadas suasórias, e o ácido Juiz condenou Trancinha ao exílio na ilha de Paquetá, aos cuidados do psicólogo Levi Damásio, que criou um sistema progressista de portas e janelas abertas… (e um baseado de maconha por dia, pro Trança)…

 

FLOYD NIX

As reticências da lei, exaltadas, até com os olhos dobravam os fuminhos bem plantados e colhidos. A jovem Inocência fazia cara de Volúpia, sua irmã mais despudorada. Levi Damásio defendia que os vegetais ainda foras da lei eram a tabula rasa das resoluções psíquicas. Tratamento com ele não podia deixar de lado a sessão fumacê e a boa regressão hipnótica. Se o penitente tem o mundo dentro de si não há motivo para querer sair de seu recolhimento. Famoso ficou seu livro: Ermos & Ervas – O lugar do homem no mundo. Leocádio Trancinha não tardou a rezar por sua cartilha, em especial porque Damásio lhe dava sempre, como prêmio, como sardinha na boca da foca amestrada, uma noite bem lavada e passada com uma das meninas que cuidavam do roçado.

 

DOC FUMEX

Assim, tudo como antes no governo de Doutor Abranches. Os jornais de amanhã já são distribuídos hoje, pelo jornaleiro Bocarra, que amanhã vai tirar o dia para pescar no Rio Pirajá, onde a maré entra quase até a nascente, de modo que neste rio podes pescar peixes fluviais e marinhos. Tanto que um tubarão, numa de suas pescarias, arrancou uma perna do Bocarra!… Felizmente era a perna-de-pau, e Doutor Abranches deu-lhe outra, em jacarandá, lavrada por Bernini.

 

FLOYD NIX

Este sempre foi o xeque-mate da imprensa: como inventar a diário um sem número de novidades, se o mundo progride por repetição? Bocarra dá risadas tremendas ao anunciar dia após dia uma nova edição. Dizem que certo dia a venda esgotou tão rapidamente que ele buscou em seus guardados umas edições anteriores e saiu a gritar: Extra! Extra!, vendendo tudo ligeirinho, sem que o leitor percebesse.

 

DOC FUMEX

Tendo sangue, porrada, pivete, carnaval, starlette de bumbum de fora, futebol, senador preso pela polícia no salão durante a sessão no Congresso, tudo bem, ninguém nota a diferença do jornal de hoje e o do mês passado. O único problema é que Bocarra sempre procura vender uma edição em que o Vasco venceu.

 

FLOYD NIX

Assim como a notícia caminha também o mundo, engessado de cima abaixo, e o grande regente dessa turnê será Praxedes, o taxidermista volante, que percorre a Corte dos Terçóis e o Magistério das Palafitas. Votemos nele para líder de banda, quem sabe assim a Inocência saia de vez de cena. Caro Doc, deixe a porta entreaberta ao sair, por favor.

 

DOC FUMEX

Muito bem, Floyd, deixo a porta entreaberta e desapareço. Ciao…

 

9. TUMBA LACRIMOSA

 

Um dia o inferno olhou para dentro de si e desabou em choro verborrágico.

TUPÃZINHO DE ALGIBEIRA

 

FLOYD NIX

Caro Fumex, li em uma daquelas páginas confinadas ao fundo de gaveta, que houve uma época em que se fez moda o método de forçar os enfermos da cuca a malharem em ferro frio. A seu lado era pregada em sofá uma orelha e criada a ilusão de que tudo o que ele depositasse em seu interior seria decisivo na faxina de sua pobre alma combalida. Trouxe comigo uma cópia do sofá orelhado, quem sabe assim livraríamos algumas botas do Inferno.

 

DOC FUMEX

O sofá, segundo a Encyclopédia Labrosse, tinha orelhas de burro, ouvia muito, mas entendia pouco, boca e dentes de cavalo, relinchava e comia o tapete, mas com pernas e pés de porco, não sabia galopar nem pular pela janela, pra fugir dos loucos. No soalho havia o bueiro de um profundo poço que dava direto para o Inferno, mas permanecia trancado a sete chaves. O Inferno estaria superlotado. Em todo caso, conforme diz Nelson Romildes na Rádio Lambada, Lugar de Louco é no Céu.

 

FLOYD NIX

E para lá iam hordas infladas, crentes que a parvoíce era prima-irmã da loucura. Muitos entravam pela orelha do burro e se perdiam no trajeto. De volta ao sofá nunca se soube de um caso. Porém em um papelote na 116ª edição da Labrosse, a título de fé de erratas, qualquer um podia ler que a ilusão em muitas páginas onde era citada não passava de um grau mais alto de entropia. A verdade, que sempre preferiu estar do lado de fora, jamais foi tão irreversível quanto se imaginou. Daí que o sofá orelhado durante décadas funcionou como um colete salva-vidas.

 

DOC FUMEX

A Verdade e a Justizza sempre estão do lado dos grandes batalhões. Por isso o Lening, indo pro Kremlin em sua limusine Rolls-Royce de seis rodas e cremalheiras, trazia sempre um ás de espadas forrado no boné, e… intitulou seu jornal de… A Verdade (Pravda). E… era mesmo… não convém discutir.

 

FLOYD NIX

Desde então a verdade oscila entre privação e depravação. A partir daí o mundo foi se ramificando em cárceres privados do desejo. A indústria da moda abana seu rabinho e as meninas percorrem as galerias da Ratoeira Central. Os meninos se entopem de loção barata e acendem a lamparina de seus pequenos vícios. Logo o sofá orelhado passa a ser vendido nas melhores casas do ramo a preço de ocasião.

 

DOC FUMEX

Aproveite, freguês, esta oferta im-per-dí-vel!!!… O sofá-de-orelhas vem com um alicate de médio alcance para quebrar galhos de quintal, que podem rasgar fantasias carnavalescas de… de… Had Hoc!… ou talvez de… Had Dad?… Eis a questão… a ver se bem me lembro… plec-plec-plec… estalo os dedos.

 

FLOYD NIX

Fato é que já não se sabe de que lado fica a realidade. Talvez o freguês mais astuto fosse aquele que comprasse dois sofás e os dispusesse em sua sala um de frente para o outro, enlaçados por tripas comunicantes, preparando fuminhos de vidas paralelas. Quem sabe assim, tendo de um lado Had Hoc e de outro Had Dad, a cozinha do inferno voltasse a bater suas panelas e uma multidão de grilos falantes saísse em passeata pelos guetos mais recentes da história.

 

DOC FUMEX

Justamente Manuel Fontana, famoso artista conceitual, comprou dois sofás-de-orelhas e colocou-os um diante do outro, bordejou-os de tubos neon, alguns mapas de Palermo, colocou uns tufos de algodão, garrafas e esparadrapos, e ganhou o Primeiro Prêmio da Bienal de Ravenna.

 

FLOYD NIX

No chão havia uma placa de metal que fazia menção às partículas entrelaçadas, sugerindo ao público que poderiam ser manipuladas com o olhar, assim os orelhudos acentos ganhariam vida e toda a cena se converteria em um ninho de preás do reino. Ascendino, o vigilante daquela parte da Bienal, anotava em mil papelotes tudo o que via, dos passantes às variações de humor dos sofás. Ao voltar para casa tentou montar o quebra-cabeça e dormiu com a cabeça sobre os joelhos na cópia bege de um daqueles sofás que havia comprado em uma venda de garagem. Ao acordar não se reconheceu diante do espelho.

 

DOC FUMEX

Aí está, Floyd!… A Missão Supina da Arte!… Transformar seus filhos em Homens Novos!… Abertos para a Cultura, a Sabedoria, a Democracia e os Direitos Humanos!!! Ascendino não se reconheceu no espelho, porque tinha ascendido ao estado de graça de… Artista!… Com sua instalação de papelotes, ora sonha em participar na próxima Bienal de Ravenna, o que anunciou ao Professore Podrecca, Diretore della Biennale, que o parabenizou. Quando Ascendino deixou seu gabinete, Professore Podrecca telefonou súbito para o asilo de alienados Castelo Nunkamaz, e falou com seu diretor, o filantropo visionário, Doktor Frankenstein, que, pelo conjunto de sua prática e seus tratados sociológicos, seriamente ameaça ganhar o Prêmio Nobélio!…

 

FLOYD NIX

Anarquino Trapiche foi o terceiro dos artistas premiados, com uma surpreendente cabina telefônica de puro látex, maleável a qualquer um que lhe adentrasse, de onde se ouvia, oriunda de pontos distintos e permutáveis, vozes distintas que repetiam Eu preciso falar, Eu prefiro falar, Eu consigo falar. O júri se confessou confuso ante o embaralhar de promessas e profecias, característica da Política e da Arte Conceitual. Do lado de fora da Bienal uma multidão empilhava sofás orelhudos de todas as cores, como prova de que a Arte deve ser feita por todos.

 

DOC FUMEX

Sim, a Arte deve ser feita por todos, a começar no aconchego do lar, os cônjuges devem fazer arte bilu-bilu, as crianças fazer arte infantil, o papagaio deve fazer arte oratória, a cozinheira arte culinária, a arrumadeira deve cantar sambas e marchinhas carnavalescas. E os bombeiros devem praticar acrobacias hidráulicas, para salvarem nossos museus e seus acervos multi-seculares dos repetidos incêndios, que se propagam de preferência aos domingos e feriados, devorando vorazmente a uma velocidade espantosa quadros e mobiliário, incentivados pela falta de material de prevenção, e talvez também falta d’água, e falta de catálogo telefônico, pra alguém encontrar o número de telefone do posto de bombeiros. Teme-se que a Primeira Missa do Brasil, flagrada por Vitor Meirelles, também tenha sido incendiada, o que põe em cheque a catequização do Brasil.

 

FLOYD NIX

O sapo na lagoa brejeiramente lavava o pé. Preparava-se para ir ver os restos do incêndio, informado que havia sido que em meio aos destroços escapara incólume a ossada de Mama Sapa, o mais antigo batráquio escavado pela Companhia Pás de Antanho. O que o sapo tinha dúvida é se a Arte pode ser refeita por todos ou ao menos por um. Muitos desastres sociais são querelas incendiárias. Vitimados pelo lamento excessivo o mundo pouco a pouso se desfaz. De nada adianta salvar os catálogos telefônicos, porque as linhas de emergência há muito foram rompidas. O sapo viu fugindo pelo matagal um homem nu, peludo como um bosque abandonado, gritando olha que lá vem de novo o mesmo varal de escritos escatológicos de sempre. Quem sabe alguém ainda sonhe com Pasárgada ou a Terra Santa, porém o sapo sabe bem que não se coaxa no dilúvio.

 

DOC FUMEX

Sapo Brejeiro se foi, subindo em dez horas a encosta do Pão de Açúcar, um dos mais altos do Rio de Janeiro, e justo em cima do Cassino da Urca. Era quase ora do xou… Brejeiro assestou sua velha luneta, pra escrutar a janelinha do camarim de Carmen Guirlanda, a saracoteante vedette do samba… Afinal, Brejeiro era o Senhor do Brejo Fundo, e recebia em casa própria a elite da saparia, respondendo familiarmente às perguntas mais indiscretas, e relatando anedotas picantes e aventuras de caçadas às moscas varejeiras… Mas… a todas essas… Carmen Guirlanda não apareceu na janela.

 

FLOYD NIX

O que poucos sabem é que as janelas se tornaram as orelhas preferidas da psicanálise. Assim mudamos de túmulo, embora a morte permaneça a mesma. Mesmo que se entupa de monturos o Pajeú de ontem jamais será o Tietê de hoje. Sapo Brejeiro, em sua última conferência, provou que detritos não fazem autocrítica. Nova falange de desastres começa a por suas mangas e nabos de fora. A Encyclopédia Labrosse anuncia que em próxima edição se incluirá um verbete destinado a explicar a analogia entre sofás e orelhas que levou a pique as ciências da cuca. Até lá, como dantes, como dantes, todas as revelações são quiméricas, todas as compilações são originais.

 

10. A ÚLTIMA QUENTINHA

 

Um fã ardoroso e galhofeiro grita do lado de fora do teatro e lá de dentro se ouve a resposta sem que se saiba o dono:

 

– Dona Clotilde, onde estás?

– O oráculo comeu!

 

CORDEL VERTIGINOSO

ANTES QUE O BOI DURMA



1. PRESCRIÇÕES DO ACASO

 

FM | Wilson Fisk, personagem criado em 1967 por Stan Lee (hoje um verdadeiro Midas da indústria dos super-heróis: gibis, televisão, cinema) e John Romita Sr., é uma das figuras criminais mais temidas de todo o universo Marvel. Arqui-inimigo de heróis como Demolidor, Justiceiro e Homem Aranha. A série Demolidor, para a televisão, teve uma belíssima performance de Vincent D'Onofrio como Wilson Fisk. Revendo sua biografia, encontramos que à pedido da esposa, Vanessa, Fisk se desfez de seu império criminoso, as Indústrias Fisk, tentando porém matar o Homem-Aranha pela última vez antes de se aposentar. Tornando-se depois, gerente e diretor da HIDRA de Las Vegas. Na edição da graphic novel Daredevil out (no Brasil ganhou o título de Demolidor revelado), de Brian Michael Bendis e Alex Maleev, publicada em 2015, há uma curiosa afirmação da esposa de Fisk, em jantar com Matt Murdock (Demolidor). Ela confirma haver vendido o prédio da Torre Fisk para nada menos que Donald Trump, e observa: “Creio que ele mudará o nome para Trump alguma coisa, mas, seja como for, esta propriedade não terá nem o nome e nem os negócios dos Fisks”. Como o mundo perdeu a completa noção do que é realidade ou não, será que esta é a verdadeira origem da Trump Organization?

 

ZS | Talvez a Fisk Power seja mesmo a atual Trump Tower. A realidade virtual está se tornando mais forte que a realidade factual. Uma se torna, cada vez um espetáculo da outra, em vice-versa simultâneo. Um fenômeno de espelhismo totêmico coletivo, que explode no século 21, e vai se adensando cada vez mais…

 

FM | Ao abrir uma lata de conserva, não importa que dali saia uma feijoada completa, um caldo de pupilas de ostras ou a coleção inusitada dos cascos de todos os unicórnios fabulares. Tudo ali está rigorosamente preparado para manter a data original de sua clausura. E naturalmente se registra igualmente inconfundível uma data de vencimento da magia. A lata de conserva foi algo que no passado repugnava a criação artística e hoje se converteu em seu método preciso de sobrevivência. Trocamos a eternidade pelas técnicas de durabilidade, cada vez com mais curto prazo de validade. A fraude totêmica é uma evidência criminal de nosso tempo. Quantos deuses caíram em desuso simplesmente por não caberem na lata de conserva?

 

ZS | Caíram pelo menos 783 deuses, dos quais 334 da Grécia. Em nosso livro, verdadeira encyclopédia totêmico-rupestre, apresentamos, conforme o ladino leitor já terá percebido, bela coleção de estampas-duplas, levando assim o comprador trinta estampas pelo preço de quinze!… E quanto mais estampas adquirir, maior será o abatimento que abiscoitará. Elevando-se indefinidamente este aumento de desconto pela quantidade de estampas compradas, o colecionador poderá, se quiser, se tornar um milionário e abrir um museu de estampas na Rua Augusta em São Paulo, ou na Quinta Avenida em Nova York. Prometemos comparecer à inaugura$ão do Museu, quando ofereceremos nossos autógrafos aos melhores fregueses. A leitora adepta de arte fotográfica certamente já terá percebido, entre nossas estampas, uma substanciosa série de instantâneos em raio x, onde se podem apreciar, além de inúmeros monumentos, curiosos flagrantes do que se passa no interior, cenas de cama e mesa, algumas de íntima beatitude, e outras quiçá mais ousadas. Os mistérios da alma humana postos a nu pela surrealidade totêmico-rupestre…

 

FM | Este foi o primeiro tratado recolhido por falta de assinaturas. Na verdade, eram estudos. Fomos vendo de que modo deuses de distintas cosmogonias suportavam a concorrência. Quantas madres dolorosas possuíam passaportes falsos quando cruzavam as fronteiras invisíveis do mito. Ninguém compareceu ao funeral de Salomão. Aos poucos foram rodeando o abismo de seitas perigosas. Novo horizonte foi forjado para que olhássemos pela janela o dia começando sempre forçado a apresentar uma oferta nova. Quando enferrujamos de tal modo os ferrolhos epopeicos, já não cabe a ninguém preservar o próprio nome. Tornamos inúteis as flautas mágicas e desprezamos o poder do cálice de lágrimas. As prateleiras do Mercadinho Consagrado passam a ser a nossa referência existencial.

 

ZS | Vamos então abrir nossa lata de… conversa, e jogar na mesa as cartas que estão lá dentro: Castelo, Coroa e Rainha de Copa e Cozinha. Trata-se de um Tarot Moderno. Num Tarot dos séculos anteriores, haveria uma Rainha de Ouros, mas jamais uma Rainha de Copa e Cozinha. Porque antigamente havia o Valete de Copas e a Dama de Cozinha. Por encomenda do Barão João Batista Drummond, o jogo-do-bicho foi inventado em 1893 pelo mexicano Manuel Cevada. Tinha de ser Cevada, pra alimentação dos bichos do Jardim zoológico do Barão e preparação de cerveja pros jogadores. O jogo era pra levantar verba com uma loteriazinha montada no Zoo, os bilhetes levavam uma figura cada, da coleção de 25 bichos, e no fim da tarde aparecia no mastro a bandeirola com a figura do bicho vencedor. Os insondáveis mistérios totêmicos foram violentamente agitados pelo joguinho, multidões acorreram subitamente ao Zoo e em 1905 já tinha se alastrado por todo o Brasil com força irresistível, e jamais pôde ser refreado pela Polícia. Era duma honestidade extraordinária. O freguês apostava na mesa do boteco uns três tostões com o moleque do bicho, que vinha de bicicleta recolher as apostas. O recibo, um papelzinho rabiscado. E o freguês poderia ganhar uma fortuna colossal. No dia seguinte, infalivelmente, aparecia o moleque do bicho, e dava um embrulho de jornal que continha a fabulosa fortuna. Não precisava contar. Estava correta e completa até ao último tostão… A honestidade infalível do Jogo tinha um caráter sagrado que fortalecia o caráter da população. Infelizmente o jogo-do-bicho foi destruído pelo tráfico da droga. E a Honestidade, que se abrigava no Jogo-do-Bicho… hoje em dia anda meio sumida.

 

FM | O dilema é que passamos do Estado Novo para o Estado Nada de Novo, e nessa ponte pênsil ao menos um dilema se manteve: o que fazer com a Rainha de Copa e Cozinha? Até hoje não conta o que ficou para trás, porque nisto radica um de nossos fracassos vorazes. Nunca soubemos quanto custa o tempo, pois sempre despertamos ao fim da manhã diante de uma sacolinha com as moedas de um futuro próximo. O futuro garantido sem limites com o tempo se desgastou de tal modo que o presente começou a ser tratado como um novo tratado a ser adequado às conveniências de momento. As massas se liquefizeram por muito menos, assim como o romantismo e o cérebro infantil. Os mensageiros que dessem um jeito para que ninguém os pegasse enquanto grafitavam nossa real descendência nos muros da pátria. A noite repousava em suas pálpebras gastas. Os talismãs reescreviam o oratório das crenças em todas as esfinges. Quando o silêncio ousava sussurrar, quem se dignava a ser honesto? Soube que quando morreu Deus ninguém entrava em acordo acerca do destino de seu cadáver. Eu então indaguei se alguém chegou a ver o defunto. A morte de Deus é uma metáfora de nossa desolação, apressou-se a garantir alguém. Ora, pois se é metafórico o velório, nosso sofrimento não passa de uma noite naufragada em maus lençóis. O céu que nos proteja, reza a multidão em busca de reconciliação.

 

ZS | A Rainha de Copa e Cozinha recebeu de bandeja a Coroa do Estado Velho e nomeou pra Chefia do Governo o Ministro Fenecido de que o Gabinete caiu na fossa da orquestra, onde se encontrava Daniel com seus leões que comem capim pra ver se conseguem dar um futuro melhor ao passado imperfeito, já que o Daniel é Profeta e nas suas Profecias faz a História do Futuro, começando seu livro no último capítulo e avançando pra trás faz a Profecia retrospectiva até chegar ao presente do indicativo (que ele mostra na folha com o dedo indicador), enquanto nosso Governo do presente… Qual deles?… O Governo que caiu da jaqueira?… Ou o Governo que subiu, mas… está sendo posto em dúvida por nosso Tribunal que ora conta com probos Juízes dispostos a botar todos os Parlamentares no tintureiro. De modo que o presente da Nação está indo cada vez mais para o futuro do condicional imperfeito do subjuntivo. Isso quanto ao presente… Mas no passado as coisas não vão melhores, pro Estado Velho: a Rainha de Copa e Cozinha descobriu algas tubulares e filamentosas nas barbas do Ministro Fenecido… Algas velhas, todavia de pelo menos 477 anos, e que oferecem novos índices do valor da inflação, de modo a melhor avaliar as péssimas condições do Mercado, seja à vista, seja a prestações.

 

FM | E o Passado eventualmente delira dizendo a boca pequena e trêmula que um dia já foi um simulacro de Futuro. Farelos mofados de pastéis de Belém contam uma história similar, simulada nas melhores provas de caráter de um povo tão alinhado pelas cartilhas da devassidão maquiada. Os tratados secretos tiveram reescritos seus títulos, capa, lombada e folha de rosto, onde antes líamos: Todos são deuses, agora a estratégia é garantir que Todos são inocentes. Rábulas foram contratados para argumentar que houve trapaça, ludíbrio e ingratidão. Porém no centro da praça, os olhos vendados, ocupando o cargo de Dama da Justiça, a Esfinge garante que houve apenas indesejada revelação. Houve até quem atribuísse à falação excessiva, por mais que escorreita, a água da moringa servida no Palácio da Voz Franca, certamente adicionada de grãos de chocalho. Ao claustro também compareceram condignos representantes dos que nunca souberam de nada e daqueles estranhos tipos que se recusam a reconhecer sua assinatura nos anais da República. O que se lamenta é o exílio espontâneo e às pressas de todos os valetes do baralho das Profecias, rompendo-se assim o acesso do povo à realeza. O argumento da fuga delata toda a trapaça: nada entre nós é mais imprevisível.

 

ZS | Segundo cascateia O Blogo, estaria a notória assecla de Charles Nacerda, Viúva Arruda de Ubatuba, mesmerizando os Valetes de todos os baralhos e Tarots, a aprontarem greves e manifas, exigindo melhores salários e ascensão hierárquica. Isto porque os Ases e Coringas tendem a subrepticiamente se colocarem em posição acima dos Valetes. Segundo as damas nevropatas do Clube da Brotoeja, os ases são uns vis sindicalistas mesmerizados pelo presidente Betúlio Bargas, que faz fofocas e discursinhos chochos por toda parte, até de seu balcão no Teatro das Folias Brejeiras, de que é assíduo frequentador, para dar decidido apoio à arte dramática nacional. “Revista de Rebolado não é Arte Teatral!!!”, vocifera Charles Nacerda na Tevê Brotoeja, e rosna espumando de raiva, rasgando o jornal Última Zorra, arrotativo comuna melancia disfarçado de progressista, que está levando o país pirambeira abaixo para implantação do Bolchevismo na América Latina… Até o famoso escritor existencialista debochadão Janpol Sastre, pra ir a Cuba incensar o Frinel, passará pelo Rio pra ouriçar a moçada da Força Festiva (por sinal com belas mocitas) e os estivadores subversivos do Cais do Porto. “Não estamos à beira do abismo… Já caiiiiimos!!”, brada o Nacerda, e rola babando pelo chão, de língua de fora e olhos revirados… Entra a Viúva de Ubatuba e traz-lhe um copo do Vinho Bromato de Sódio.

 

FM | O caso foi parar na 13ª Delegacia de Maus Hábitos. Nacerda levou consigo seu fiel escudeiro, Alaúde Chaves, que tomou a algazarra ao pé da letra e a transformou em um martelo agalopado. A caminho de lá, no vuco-vuco da boleia, os valetes que não fugiram a tempo reclamaram dos maus tratos e urravam pela presença de algum representante do Sindicato da Canastra. Não se sabe como, pelo cair da tarde apareceram umas meninas com certos ângulos avantajados e uma economia bizarra de roupas. Cantarolavam o Hino Nacional em ritmo de pagode e não faltaram dois cabos a improvisar tamborim e agogô. “Não é verdade que o douto Nacerda ocupe seu tempo a decantar as cartas vazadas de nosso baralho secreto.” – Bradava como se soletrasse uma petição o rábula Chaves, logo acompanhado pelo coro das meninas: “Chamem o Procastinador, chamem o Procastinador”. E ele: “Este folguedo deve ser reescrito, pois sua letra está ficando maior do que as margens da melodia”. O jogo parecia de todo contaminado e já se podia confiar em nenhuma de suas cartas. Nacerda, como último apelo, defendeu que a única coisa que não se podia mais acatar era a sinceridade. Segundo ele, todos se valem desse afamado clichê e assim se introduz em cena um excesso de confusão que pouco a pouco descaracteriza a própria tragédia. “Fujamos dos truques explosivos da arte. Aqueles que teimam em ser sinceros, que busquem novas formas empíricas de denúncia.” Ao dizer a última fala levantou-se dali e saiu seguido por Alaúde Chaves que cantarolava o refrão de uma modinha que havia acabado de compor.

 

ZS | Nacerda na certa teve esta acerba revelação, da inanidade da sinceridade, ao perceber o triunfo esmagador do Presidente Trumpo, que muda de ideologia e troca súbito de gravata, de modo a desconcertar seus parceiros e rivais da Europa, Arábia, China e Lapônia. O único que o enfrenta é o Kim Jon Tex, chefe hereditário da Xoréia do Norte, que modestamente declinou a coroa que seus súditos fanáticos ora insistiam em oferecê-lo, como presente de páscoa. Embora modesto, Kim Jon Tex é duma ferocidade de tigre de bengala!… Aliás, ele usa uma, de jacarandá. E ora se prepara, este Tirano Iluminado, a lançar um foguetão atrômbico contra o Alaska!… Onde a população está atônita!… Mas não creio haja perigo pras famílias numerosas, que possam sem problemas dispensar um tio velho despótico, desmiolado e pobretão, ou uma sogra de poleiro que não para de aporrinhar a família. Nem na missa ela sossega, e o padre passa para o sacristão batina sacerdotal e crucifixo, e o incentiva a ser um bravo. Certamente, face à ignorância satisfeita que ostenta a atual juventude, esse padre paradigmático quer educar o sacristão com disciplina de severidade espartana. Enquanto isso, no Alaska, as mães não levaram, esta semana, seus filhos à escola maternal. Outra medida prudencial foi o fechamento das tratorias: o fogo dos churrascos poderia fazer o foguetão explodir, com consequências incalculáveis. Todos estão de prontidão, três apitos, motoristas a postos. A prontidão durará enquanto pender a ameaça do foguetão xoreano. Mas breve se acabará tal situação desconfortável. Seja que o Kim Jon Tex mude de ideia, ganhe talvez uma gravata de presente do Presidente Trumpo… Seja então que o foguetão caia no Mar de Béringue. Se tal acontecer, não haverá, contudo, perigo pros pinguins.

 

FM | Foi fácil. Mandei buscar na casa de Bravejão Xiita seu tabuleiro de guerra naval. Agora vamos fazer dele uma tábua Ouija e anotar os quadrantes onde devemos disparar os traques atômicos. Bravejão é um mentiroso, espírito salafrário, falsificador de quaresmas, mandou por na caixa uma Tábua de Esmeralda confeccionada na Esplanada do Samba. Graças a ela todos os disparos bateriam o catolé. Soube que houvera presentado Kim Jon Tex com uma tábua dessas. Mas sei reconhecer uma boa madeira, aqui temos a melhor Ouija para as amarrações necessárias. Água do tabuleiro e que se reconheçam a firma do alfabeto convocado. Deixemos de lado o Baralho Atormentado. Quero aquelas cartas de veludo, com as bordas levemente chamuscadas. 40 anos se foram até a chegada de um novo eclipse. Amanhã cedo o mundo inteiro empretecerá por um daqueles segundos que desorienta a eternidade. A cada décimo de segundo corresponderá um porta-aviões. O Trapo Obscuro insiste na brincadeira do copo, mas não vamos uma vez mais repetir o truque barato da Caneca Divina. Desta vez temos que implodir a sala de métodos do Departamento Quimérico. Ideal seria matar dois coelhos afogados na mesma cartola. Chamem o capitão Nemo. Se deixarmos passar este eclipse só daqui a mais 40 anos. E ninguém merece essa reprise.

 

ZS | Um tabuleiro de xadrez de batalha naval!… Precisamos adaptar as peças: o Rei das abobras Dom Manuel; a Rainha das abobras, Dona Tareja; o Rei das roxas, Sultão Oberdan; Rainha das roxas, Odalisca Soraya; bispos das abobras, Nóbrega e Anchieta; bispos das roxas, o muezim de Istambul e o de Alexandria; cavalos das abobras, Camões e Ruy Barbosa; camelos das roxas, Saladino Astuto e Rodolfo Valentino; torres das abobras: de Belém e do Tombo; torres das Roxas: Catedral de Santa Sofia e Serralho do Sultão; peões das abobras, Ruy Barbosa, Maurício de Nassau, Vasco da Gama, Cabral, Carmem Miranda, Vanja Orico, Inês de Castro, Tágide. Haverá ainda um segundo tabuleiro que se coloca na gaveta da mesa onde se joga a partida. Sendo dois quadrados do tabuleiro de cima furados para que as peças do tabuleiro da gaveta possam subir e entrar no jogo a qualquer hora; das peças do tabuleiro inferior constam o submarino do Capitão Nemo, o tesouro dos Nibelungos, sereia Dolores, nereida Téthis, Netuno, baleia Moby Dick, Lord Jim, e várias carcaças de galeões espanhóis afundados pelos corsários britânicos.

 

FM | Vamos explicar bem direito essa questão. Pensemos em Xianggi. Ah sim, o tradicional jogo conhecido por Xadrez Chinês. O que era simples passatempo ao chegar a trote moroso nos cercados da dinastia Jurema tornou-se um mapa de guerra. A dupla de adivinhos Cage & Schoenberg montou um quiosque de consulta grátis no Battery Park em Noviorqui, cabana favorecida pelo cenário enevoado que permitia aos eleitos concordarem com quase tudo. Ali tanto se recuperava os amores perdidos quanto se amealhava uma impensada fortuna. A devoção democrática produz verdadeiros sacerdotes inacabados, que vendem um pouco de tudo como precedentes do melhor futuro a que temos direito. Há quem diga que arte e dinheiro foram finalmente concebidos como siameses bem diante do Jardim Esperança, erguido como memorial solidário com as vítimas da Aids.

 

ZS | No fundo, um esbulho dos políticos, o de nos prometer precedentes dum melhor futuro, que, bem ou mal, virá por si próprio quer o queiramos ou não. Melhor fariam as Cassandras de nos conseguir um melhor Passado. Mas os Políticos se esquivam de promessas para o Passado, porque lá eles não poderiam mais nos enganar. Este Passado esburacado e sempre faltando pedaços, nós já o conhecemos, e continuamos sem saber se foi melhor como foi, ou se, ao concertá-lo, não estaremos preparando um presente bem mais desastroso do que ora temos. Passado e Futuro são duas abobras do Presente que desaparecem no Nunca Mais.

 

FM | O mistério das abobras desaparecidas não se desvendará tão facilmente.

 

ZS | As Duas Abobras são um mystério totêmico-teológico: são as duas torres da fachada das grandes Cathedrais medievais, elas querem ostentar as suas Duas Abobras… São as Duas Tetas da Fé, possantes… que a Notre Dame de Paris ostenta com a confiança de imponente Dama que conhece o seu Poder. E porque, pras duas Tetas, um só Sineiro… um gigante corcunda?… Victor Hugo, gênio tocado pela surrealidade… tinha acesso ao Oculto. Os Russos, dada sua herança cultural alexandrina, adoram as tetas douradas… As Tetas da Dama Presente, que desaparecem no Passado e no Futuro, pra nunca mais…

 

FM | Duas abobras foram dadas como sumidas e logo se descobriu cruzando as ruas de Roma um poeta calçado nelas. O pastor Clemente Reique dele se aproximou, como se o reconhecesse, e disse: – Ah o senhor é o poeta dos amores submarinos… E ele, disfarçando a voz, retorquiu: – Desde que cruzei o Riachão do Atlântico devo minha humanidade ao Conde, de maneira que aqui eu sou apenas uma Brecha Enorme que presta atenção em tudo. E trouxe comigo meu tabuleiro com fundo falso. Querendo jogar comigo temos ali um lugar apropriado. Tomaram a rota em silêncio, Clemente e Conde Murilo. Um silêncio repleto de estratégias, incendiado por jogadas planejadas e restos de truques desolados. A verdade veio a pique ao se descobrir o inferno que era a convivência de muitas daquelas peças. Como arejar o espinhaço das damas e convencer as torres a se deixarem escalar? Como disfarçar em bosque o lodaçal por onde trotavam os Nibelungos? Gut Gotten! Ouviu-se na praça o espatifar-se de uma voz que vinha de uma das torres do Forte dos Juízos Tombados. – A todo galope, a todo galope, mudemos a posição de algumas peças, antes que o destino releve suas convicções. O Conde deixou abater um de seus peões, o já desfigurado Nassau, antes que Clemente percebesse o que pretendia fazer com a carcaça do Pérola Negra.

 

2. A CORTINA CARECA

 

ZUCA SARDAN

No blog Megafone, de Raul Milliet, saíram hoje dois artigos, A dança dos deuses, sobre Maradona, com a foto de um enorme painel do Zuca Sardan para a Capela Sixtina, O milagre do gol… Papa Ponchito, torcedor argentino, é favorável à sua colocação na Capela, mas conta com maciça oposição do Conselho dos Cardeais. Raul Milliet ora pediu-me para ajudar a epalhar a notícia… no que aliás Fidel Castro e Lenine se adiantaram, por escolas e hospitais, inclusive no Lyceo Pytanga, onde contaram com o apoio do Reitor Finel.

 

DOC FLOYD

Certamente o grande mequetrefe do futebol mundial havia descolado um tablete prensado de bom pó com um dos coroinhas da Lapela Sixtina. Sempre te vi mais a fim do Milagre do Goliardo Borges, de quem o Papa Ponchito deveria estar mais enrabichado, graças à tecelagem familiar onde são tecidas as tramas mais rocambólicas da sociedade argentina.

 

ZUCA SARDAN

Exato… Buenos Aires, Roma e Firenze têm as mesmas maquiavélicas obsessões…

 

DOC FLOYD

Em meio a isso tudo, só nós dois seguimos fazendo gols de placa, sem comprar as placas de gol.

 

ZUCA SARDAN

Pois é… Já furamos as redes das traves dos mais variados estádios… Mas… os juízes anulam, e os cartolas fingem que não viram. E nosso clube então… Lanterna de Sokrates, segue esquecido na 3ª divisão… competindo com times de loucos, drogados e psycopathas…

 

DOC FLOYD

Não dividimos mais nada, é a solução (de bicarbonato com raspa da pedra pomo) para a reconfiguração do mundo, conosco somente escaparão as aves do céu e os umbigos cristalinos do mico coração de leão…

 

ZUCA SARDAN

O Monopólio da Revolução pra Lanterna de Sokrates! Protestos de Bilula, e dos Esquerdistas Rebulicionários.

 

DOC FLOYD

Nas feiras do tipo TudoTem chove bugigangas rebulicionárias de toda cor e forma, inclusive um sem-número de versões falsas das lanternas socráticas. Dizem que em uma delas foi inserido um feto do Trilula, daí que as vendas tenham disparado.

 

ZUCA SARDAN

Marquês de Sade engrossou o caldo.

 

DOC FLOYD

Este há muito engrossa o caldo de caridade com o próprio esperma e come bastante beterraba para escrever com a urina vermelha.

 

ZUCA SARDAN

Baixou o santo…

 

DOC FLOYD

Outro dia ele mesmo me disse que se baixasse alguma santa daria uns traços nela, o que no dizer sadiano vai dar direto na rua do estupro…

 

ZUCA SARDAN

Realmente o Marquês não sossega… Está… solto!…

 

DOC FLOYD

Bretão Solúvel nem de longe imaginava a tolice de filiar o Marquês de Saldão ao clube do amor, da poesia e da liberdade. Já pensou na refestança no Bar de Vênus?

 

ZUCA SARDAN

Ninguém sabe porque o Bretão resolveu colocar o psicopata no ápice do Surrealismo… a não ser para sacanear o burguês… Só Buñuel e Salvador souberam tirar humor do sucedido… no L’age d’or

 

DOC FLOYD

Os dois espanhóis fizeram das tripas de Bretão o coração de seu humor lancinante e Buñuel com Lorca vestidos de freiras escrachando dentro de um ônibus em Madri eram tudo o que Bretão jamais conseguiu ser…

 

ZUCA SARDAN

Na tela, retângulo preto, com letras em arabescos - - - FIN

 

DOC FLOYD

Depois a fita ficava correndo na maquininha até o fim, despregava do carretel, o filme caía no chão, e se perdia por entre as pernas da multidão…

 

MULTIDÃO

BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!

 

DOC FLOYD

Manhã seguinte, cedinho, a turma da limpeza acha brincos, camisinhas e amendoins no carpete…

 

ZUCA SARDAN

Acho que agora, definitivamente, acabou.

 

DOC FLOYD

Por um instante, nada acaba. O próprio fim antecede o princípio. Tenho remoído sobre essas peripécias do tempo por conta do romance que rascunho…


ZUCA SARDAN

Exato!!! O próprio fim antecede o princípio!… A Serpente Ouroboros…

 

DOC FLOYD

O princípio da tecnologia de reversão. O futuro dando pistas ao presente.

 

ZUCA SARDAN

Bravoooooo… bela tirada!…

 

DOC FLOYD

O que tira atira na tira atirada do tiro.

O gato engoliu a língua três vezes.

A torta de morango não tarda a esfriar.

 

ZUCA SARDAN

O gato tem sete línguas … Mas só mostra uma cada dia.

 

DOC FLOYD

Quando a gata Fabiana pariu surrupiou as sapatilhas de Noé e nelas aninhou seus 7 gatinhos.

 

ZUCA SARDAN

Passas do Marquês de Sade pro Walt Disney com a maior facilidade!…

 

DOC FLOYD

Qual nada! Esses 7 bichanos são do espólio do Nelson Quaresma, que certa noite invadiu o Canil Central para roubar passas.

 

ZUCA SARDAN

Nelson Quaresma morreu das mordidas dos molossos do Canil. A Morte às vezes se apressa, só pega a foice e chega pelada pra ceifar o freguês.

 

DOC FLOYD

Daqui não passarás, disse a ceifeira. Mas o escarcéu já estava no ar. A bicharada vinha de todo lado.

Quaresma logo pensou em nova peça: O vestido de noiva de dona abelha.

 

ZUCA SARDAN

Dona Abelha vai casar com um rapaz distinto, mas muito zangão, com asas de brim não encolhe.

 

DOC FLOYD

Zangão Zangadão não pensou duas vezes, ia por dona abelha nos eixos e vender mel a valer, uma Vale do Mel Doce ele montaria…

 

ZUCA SARDAN

Nenhuma espécie de atividade insetífera é mais alimentícia do que o mel, e nada sobrevive de tão valioso dum passado desjejum como uma chave para a reconstituição da História culinária de uma Nação.

 

DOC FLOYD

O mel e a seda foram os dois rios caudalosos da riqueza humana, até a chegada da prata, seguida pelo silício. Hoje o planeta violentamente se satisfaz com soja e boi. No Grande Mercado não há menor cotação que a das almas injuriadas…

 

ZUCA SARDAN

BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!! Palmas ensandecidas da platéia em delírio, cai com estrondoso baque a…

 

CORTINA

KATAPLAAAAFFFFFFFFFFFFFF !!!

 

DOC FLOYD

Essa cortina está uma molengona, a toda hora caindo de madura, dura nada, mal dura, a mais pura fantasia… Cai a nuvem repleta de chuva, cai a pena do falcão peregrino, já se sabe, tudo cai, porém nada como a cortina que de tanto cair agora é a prima dona.

 

ZUCA SARDAN

O rádio possante de mogno ressoa na voz do Licenciado Astrogildo, perdigotoso e apocalíptico:


ASTROGILDO

Prezadas Cenouras y Cabalheros de nossa dialética plateia!…

 

PLATEIA

(dança de cossacos) Racatraca - Racatraca-Traca-Traca!!! …

 

ASTROGILDO

Bravooooo!!! Belíssima quadrilha libanesa!!! Com vossa estrepitosa expansão de explosivo entusiasmo comovestes nossa sensível Cortina que caiu de frêmita emoção!… os autores do capolavoro e o diretor de nossa equipe internacional, emotivos, com mal contidas lágrimas borborejando aos olhos, vos agradecemos… oh, Filhos da Pátria, Pai dos Heróis e Mães dos Necessitados!… Gratíssimos pelo exorbitante desagravo, a apoio à nossa equipe!


PLATEIA

Sossega, bode fanho!!! Nós aplaudimos foi a comovente queda de nossa seduzida e abandonada Cortina…


DOC FLOYD

Pela enésima vez cai a cortina careca, decidida a por fim naquela conversa mole sem beira ou esteira… Ao que tudo indica, dessa vez ela não mais se deixa erguer, grudou no chão com todas as suas forças. O fim agora remarca seu princípio. As chances são mínimas de que o tempo faça a nossa prima-dona recuperar sua aveludada imponência.

 

PLATEIA

Fúu, fora! Queremos a volta da cortina!

 

3. JOGRAIS DO PURGATÓRIO

 

DOC FLOYD

As carapuças eram ajustadas a pedido do Marquês e delas cuidava Esmeralda, a moçoila dourada, cedida ao Purgatório por Frei Feijão após a morte do Corcunda da Lapela Sixtina. Além de boa costura Esmeralda as deixava com um laço hábil de onde cabeça alguma poderia arrepender-se e escapar...

 

FREI FEIJÃO

O Marquês de Sales é um vil sálico-porquista. Fez das piores num Fabulário Porquinhol, quando escapei por pouco de ser aprisionado no seu sinistro castelo, em que organizava satânicas orgias… Acabou, por fim, após 777 infâmias, aprisionado na Bastilha.

 

DOC FLOYD

Em velhos papiros e rolos nada higiênicos foi lavrada a obra que é o espelho antecipado de nosso mundo de prevaricações. Como a época rangia limitada pelos cartéis da nobreza, não deram por conta que as suas infâmias eram uma certeira previsão do século XX, tão escanchado no próprio ego que não atinou para o caudal de reiterações de suas novenas profanas. E agora este XXI que é o próprio renascimento da Bastilha a céu aberto.

 

FREI FEIJÃO

As atuais porcalhadas desenfreadas não diminuem a importância dos pioneiros esbodeamentos do Marquês de Sales, que ele legou em bela coleção encadernada, de herança espiritual pra pornocracia industrializada do Século XXI, diligentemente atuante na televisão, já na programação vespertina, sabiamente misturada com números esportivos, culinários, infantis, sociais, políticos e culturais, e noticiário pormenorizado de crimes variados, de que as cenas sangrentas são apreciado quitute para atrair a atração do programa de permeio a filmes de pornografia mais primária, destinada às classes mais desfavorecidas.

 

SAPO CANAL

Uma noite as quatro Cassandras fizeram seguidas funções na pracinha do Majestic. Quadro cadeiras a toda prova e o mundaréu se coçando com os relatos de toda sorte de luxúria. Uma noite de martírios, açoites e banhos dourados. Uma das Cassandras, mais afoita, foi buscar na plateia a brilhosa pataca de seus gozos. Com a sua bundona de quermesse engolia todos os varões e gargalhava como uma possessa. A Cassandra mais jovem dava lições de como o prazer pode ser constante. Enquanto as duas outras recolhiam as roupas do público e improvisavam um coral.

 

DUENHA DOLORES

Ay!… que belhessa…

 

ASTROGILDO

Es berdad, Duenha Dolores…

 

SAPO CANAL

E choravam de rir enquanto regiam a cantoria.

 

CORAL

Se atreva seu bacurau a comer no meu cercado

Logo um chute na pança o fará perder a fome

Não venha cantar de galo nas dobras de meu terreiro

Ou seus bagos no jantar servirei a qualquer um

 

ASTROGILDO

[para Duenha Dolores]

Bagos, que lo sepa, son los del toro muerto en arena, que se los comen después…

 

DUENHA DOLORES

¿Después… de qué, Don Astrogildo?…

 

ASTROGILDO

Después de muerto, por supuesto, Duenha Dolores…

 

DUENHA DOLORES

Pero ahora me ha dado ganas de probar sus huevones, aunque sean fuera del cuerpo…

 

ASTROGILDO

No me venga con eso, que la Muerte anda por ahí, en su caballo pateando la tierra.

 

SAPO CANAL

A terra arada pela Morte tem um gosto sofismático, parece ser um pasto cozinhado e temperado com sutilezas de espíritos decaídos. Dizem que os defensores da terra plana são o melhor adubo para as fanfarras dessa assombrosa senhora.

 

MARQUÊS

[finalmente, porém apenas a silhueta desenhada em uma parede do canto] Ah mas quanto espero um dia enrabar essa donzela, morta ou viva, não me importa, desde que seja a dona Morte.

 

ASTROGILDO

Por piedade, Doc Floyd, este guinhol está sem cabo nem rabo, nem mais sequer cortina, já despedaçada no guinhol anterior… sem pé, nem cabeça, nem chifres, só lhe sobraram quiçá, os bagos, se não forem os do touro de Madrid... morto na arena, como um bravo…

 

DUENHA DOLORES

Nem os bagos, Dom Astrogildo, do touro sobraram, que foram comidos no banquete do Alcaide Bermudez de Madrid.

 

DOC FLOYD

As coisas no Purgatório costumam ser assim, a eternidade a banho-maria, volte um século depois e ainda não está no ponto, há sempre alguém cozinhando o pato da memória. Tampouco no Purgatório não tem cortina, pois as coisas não possuem princípio ou fim, só esse esqueleto do abismo, sustentado em uma moral esfarinhada que amolece o tutano de qualquer um. Por isto a Morte passa ao largo, vez que outra observa se alguma alma veio parar aqui por engano. Talvez por isto o Marquês tenha escolhido como palco de ensaio de suas firulas dramáticas. Outra coisa que no Purgatório não acontece nunca: a desistência da morada, a entrega do cargo, o arrependimento. Quem vem dar aqui fica como um peru em círculo de giz. Ninguém se livra do Purgatório.

 

FREI FEIJÃO

Marquês de Sade só melhorou ao fim da vida, confinado ao Hospício de Charenton, onde o Diretor, gentilíssimo, insistia a que fizesse teatro pros seus inquilinos dementes… num palquinho improvisado do fundo do salão de refeições. O Marquês, malgrado já estar meio gagá e alquebrado por sua vida quase toda passada em variadas masmorras… tocado pela gentileza do Diretor, aceitou comovido… e fez umas pecinhas alegres e piedosas, que foram rejeitadas pela Posteridade, sempre ávida de suas porcalhadas, elevadas à categoria de Obras Primas da Humanidade.

 

O DIRETOR

Mesmo com a morte do Marquês nossos hóspedes seguem compondo seus jograis, algumas picarescas histórias do baú de seus desejos reprimidos. Anselmo Lacarte chegou aqui imerso em grande crise mental, lacrado em seu universo íntimo, mal abria a boca para alimento e medicação. O Marquês lhe deu um papel de destaque como a cortina de suas pecinhas. Anselmo então subia e baixava com esmero, marcando o princípio e o fim das porcalhadas.

 

4. JUREMA E O TESÃO AMALDIÇOADO

 

A noite já tinha entrado nos estratos mais bem forrados da goiabeira divina quando de lá do quintal saltaram dois mancos presumindo que a escuridão e uma velha lamparina da chama gasta poderiam dar ao mundo a miragem de novas divindades.

 

MANCO TONEL

Ando colando em cartas vulcânicas as figuras que darão pelo fim, eventual, do encadeamento lógico da espécie humana.

 

SÁBIO DETÔKA

O encadeamento lógico é o que levará a espécie humana à sua extinção. Sua única chance é enrolar o encadeamento no pé-de-manga, e ir saindo de mansinho…

 

MANCO TONEL

Mas aí tem um dilema eterno: o pé-de-manga insiste em não sair do lugar, argumenta que ficou imenso, e cresce cada vez mais a devorar a sombra da planície das ilusões inteira…

 

SÁBIO DETÔKA

Trata-se de um Pé-de-Manga-Sagrado… Mais uma vez, o Concerto das Nações tira o chapéu para o Brasil.

 

MANCO TONEL

Isto se deve em grande parte porque abriram a caixa de consertos das nações e deram de cara com a imensidão de um vazio silencioso.

 

SÁBIO DETÔKA

A caixa de consertos estava quebrada.

 

MANCO TONEL

Tão quebrada e ao parecer irremediável que logo organizaram um concerto com instrumentos dispersos, a ver se era possível reunir uns tostões para o conserto.

 

SÁBIO DETÔKA

Apitos e reco-recos…

 

MANCO TONEL

Mas nada, público esvaziado, instrumentos desafinados, mais parecia a orquestra do Fellini, não juntamos um trocado que seja.

 

SÁBIO DETÔKA

É que esse público é acadêmico, só quer Guerra-Peixe, o Guarany, e… o Wagner…

 

MANCO TONEL

Já tratei de reenviar o vídeo para o Xu-Manfú, que não apôs a menor declaração de recibo ou desgosto. Nem conserto ou concerto, os peixes estão em guerra na panela e os guaranis traçaram o Wagner no almoço, com pirão de valquírias e a velha e boa água de fogo.

 

SÁBIO DETÔKA

Agora então… Só resta embarcar no trenzinho caipira e subir a Serra da Boa Esperança.

 

MANCO TONEL

Dizem que Dona Esperanza perdeu a serra na bocarra de uma Boa no pantanal. Sequer foi à festança em Currais Novos do Céu.

 

SÁBIO DETÔKA

Isso acontece com as melhores famílias

 

MANCO TONEL

As melhores famílias são hoje um outdoor na entrada do Grande Shopping Barnabé, mas ah como doem…

 

SÁBIO DETÔKA

Quando abre a porta do Saldo Global Começa a Grande Porrada Familiar.

 

MANCO TONEL

Tailandeses e filipinos no saldão da semana, porcos e pérolas embaralhando as tábuas da lei.

 

SÁBIO DETÔKA

E o turco vendendo tapetes gombra ké baratinho, freguês…

 

MANCO TONEL

O turco faria melhor do que insistir em ser videomaker. Mas a quem deleita chá de pó de osso, que trate de raspar o seu bem raspadinho.

 

SÁBIO DETÔKA

O Selim insiste em querer fazer um zuper-8 do Homem Vapor… não precisa contratar ator nenhum. É só filmar a chaleira.

 

MANCO TONEL

Pois de tanto falarmos nele o Homem-Vapor acaba de chiar na panela de pressão, e me escreveu dizendo haver perdido o vídeo turco

 

SÁBIO DETÔKA

O Homem-Vapor é de uma astúcia oriental, e de uma periculosidade de Xu-Manfú … Há sempre um 2° pensamento oculto em suas amáveis crípticas declarações… Xu-Manfú certamente está fumando seu ópio… e quer que tudo o mais vá pro Inferno… Tenha Confúcius seus ancestrais, Buda seu Nirvana… Lao-Tse seu Tao, e Mao-Tse-Tung seu trator… Que lá importa?… Contem eles suas marolas pros parvos… Tenha o Bebê suas Tetas… Xu-Manfú tem o seu Ópio…

 

MANCO TONEL

E fuma como um jargão caído do pé. Tombando nas raias da impunidade, atravessa os séculos com a mesma pá, cavando o que se agigante contra ele.

 

SÁBIO DETÔKA

O segredo do Xu-Manfú é que a força do tráfico tem o apoio místico da galera do fubá.

 

O meu fubá ao sol

eu deixei para secar.

A Jurema chegou cedo

e lavou toda a varanda.

O fubá que estava seco

aprendeu logo a nadar.

A Jurema encabulada

saltou bem na minha cama.

 

Embevecidos com a melancólica voz do prado, os dois troca-leros nem deram por conta, o Homem-Vapor se disfarçou em Surco Talim, pirateou uma nave-mãe nos porões da área 51 e dizem que foi repaginar a Ursa-Maioral…

 

SÁBIO DETÔKA

Homem-Vapor fala muito, mas o que gosta é de estar juntinho da jornalista do Braz-Ximbum, uma bonequinha de molas…

 

MANCO TONEL

Telma Suspíria é o nome dela, e pula e pula, como se as verdadeiras molas as levasse em seu íntimo, eu a conheci no México há mais de uma década, e se riu quando indaguei se ela havia engolido um canguru. Com seu olhar magnético me disse: "Eu sou uma rã".

 

SÁBIO DETÔKA

Cuidado com a Kiki Moleng… se facilitas… te dá um nó-cego nos cordões do sapato, e te passa um coquetel do Rei Coreano…

 

MANCO TONEL

Pois foi em outra festa, bem pra lá do ChiBungai, que conheci o então famoso coquetel do Rei Coreano, apontado por três revistas especializadas como o mais atrativo dos alucinógenos líquidos… Lembro que as paredes da festança pareciam os biscoitos Fraterno, e dei de saboreá-las como a última quimera.

 

SÁBIO DETÔKA

Xu-Manfú e Rei Jonjonga da Coréia cada um tem seu Dadá: Xu-Manfú o seu ópio e Rei Jonjonga os seus foguetões

 

MANCO TONEL

Decerto os dois se matariam mil vezes seguidas, empanturrando a barriga da Grande Baleia devorada por Jonas, o Pacífico. Primeiro exercício de levitação: tornar o desejo mais pesado que o objeto.

 

SÁBIO DETÔKA

Perdemos o salpico na esteira das ilusões, onde os pesos excessivos tinham a última chance de levitarem e as cordas que nos prendem ao mundo poderiam esticar até o desenlace entre sonho e vigília. Os querubins sopravam as flautas uns dos outros. As luzes coruscantes cobriam de efeitos as células que sucessivamente germinavam no umbigo de todas as divas. Quem dera um pomar para reciclar os desejos. Quem dera uma torta onde hibernar as abelhas. Perdemos tudo – ainda grita o Padre Ezequiel, e o tesão amaldiçoado completa o ciclo das tensões.

 

MANCO TONEL

De tesão amaldiçoado, melhor dar uma pausa no andor, e ir pedir uma benção do Padre, e outra da Mãe de Santo.

 

Padre Ezequiel me disse que atualmente a fé não anda movendo nem montinho de areia e que no sótão da capela tem uma caixa de milagres que deve estar comida de bolor. Jararuna, a mãe de todos, lá em seu terreiro, me tranquilizou afirmando que de maldição ela entende e que dará um jeito no tesão.

 

EZEQUIEL

Aí está, o mundo de hoje… a continuar assim, presto virá o Armagedão…

 

MANCO TONEL

E as tropas de Arcanjos, depois de destroçar os pilantras de Belzebú, voarão pra Terra do Fogo, pra comer as Gigantas Patagonas nas escarpas dos Andes…

 

Para onde quer que se mande o cachimbo o tempo fumará seus bigodes, não importam os calos do Tinhoso ou as alpargatas do mocreia, a selva será sempre selvagem dentro dos olhos do lince, e o guerreiro mantém a guarda mesmo em repouso. Credo, assim o cajado se parte e a conversa destripa a língua. Dali… Jurema foi se confessar com Padre Ezequiel. Manco Tonel nunca mais se viu.

 

JUREMA

Ai, meu santo Padre Ezequiel, que faço eu pra obter o perdão divino?…

 

EZEQUIEL

Pois, Jurema, só com umas lambadas…

 

JUREMA

Lambadas vossas, meu Padre?…

 

EZEQUIEL

Mais eficazes serão as lambadas do Sineiro Corcunda, com a corda do sino.

 

JUREMA

Mas as vizinhas vão ouvir…

 

EZEQUIEL

Já estão acostumadas…

 

Jurema ainda indagou se não lhe cabiam melhor umas lambidas, assim os pecados tomavam gosto, se empanturravam e quem sabe até naufragariam na barca dos degredos, ah Padre, deixa…

 

EZEQUIEL

Lambidas só no Purga, quando Catão de Utica está distraído…

 

JUREMA

Ai que eu beijo a pulga dele toda…

 

O PÚBLICO

Beija, beija, beija…

 

CORTINA

O que eu faço agora? Caio?

 

Bem poderia ser o fim do psicodrama, não fosse a dúvida corroer a alma acetinada da cortina. Um lapso e os Manuscritos de Tália soltam a sinopse de sua próxima comédia: Brancaleone e as vicissitudes do Dynamo Astral, sempre um patrocínio das Casas Prometeu e a benção do Papa Ponchito. E à dica culinária desta noite, atenção: Mistura o pó da inquietude em um cálice do talo da fina flor de lótus da pradaria... Ajuda o destino a tomar as mais sábias decisões.

 

MANCO TONEL

Como já disse o homem Fuzed das brasileiras noites: “Os dias que passam, estes passarão, mas, as noites, as noites que passam, ah elas também passarão.” Mas quem passou foi ele.

 

SÁBIO DETÔKA

O Ibralim se foi?… Uma celebridade dos 50s, surpreendeu-me a qualidade desta tirada!… A sua Coluna, agora fiquei desconfiado… talvez tivesse uma graça oculta… que na mocidade eu não saquei. Mas se ele escrevesse um livrinho inteligente, sua Coluna seria cancelada. Se escreveu, ficou em manuscrito, enterrado no quintal.

 

MANCO TONEL

Pois é, o Ibrahim não teria o sucesso que teve, na época, se não tivesse se decidido a ser o bobo da corte, resta a dúvida, agora que ele passou, como as suas noites, se ele era bobo mesmo ou se sagazmente criou o notável personagem…

 

SÁBIO DETÔKA

O Ibralim Fuzed é um curioso caso, meio inspirado no Frunando Fussoa. Todavia, enquanto o Frunando criou seus heterônimos, o Ibralim escolheu ser o seu próprio heteronômio. Um processo singularíssimo, que escapou à argúcia lacaniana do Jório Borbes.

 

MANCO TONEL

Fuzed, também conhecido como Ibr-Fuzarca, recortava fotos suas em cena e as colava em paisagens de vários países, ruas, praças, na velha Enciclopédia Conhecer. Assim o conheci.

 

SÁBIO DETÔKA

Fuzed tentava promover seu irmão Zefud, porém Zefud não ia pra frente nem pra trás. Zefud era irmão, mas não tinha o jeitinho do Fuzed, de empacotar dondocas finas com grazzolas velhas frouxas, mas ora, se as dondocas gostavam, tudo bem…

 

MANCO TONEL

Pois logo dali deu a entender Ibr-Fuzarka que se mudara, por algum tempo… quando a rigor se tornou invisível e visitava as peruas chiques com seu colar de contas e elas em suas mãos suavam o perfume de suas ânsias.

 

SÁBIO DETÔKA

Assim, pois, desvendado o mistério: Fuzed é o Homem-Vapor que apavora os cinemas dos subúrbios da cidade!… O pavor do Homem-Vapor é contagiante e a inquietação ganhou as manchetes dos jornais, de sucesso em sucesso, foi avançando o filme irresistivelmente em direção ao centro da Metrópole. E Zefud foi erroneamente identificado com o Homem-Vapor. O Destino já estava escrito em seu próprio nome!… Recônditas são as sendas da Fatalidade…

 

MANCO TONEL

Não resta dúvida. Recônditas são as sendas da Fatalidade…

 

O PÚBLICO

Ohh-oooooh-oh

 

A CORTINA

Agora é o jeito. Caí, em definitivo. Este foi meu último suspiro.

 

5. O LENDÁRIO COSMONAUTA FRECHE GORDO

 

Freche Gordo me disse certa vez ter tomado todas

as precauções para que a última viagem se desse

sem conflitos, pregando no leme um piloto automático

que encontrou perambulando pela Sucataria Pajeú.

Agora sim, poderia tomar todas as cervejas do boteco.

De tão sábio, Freche Gordo é o melhor piloto do mundo,

conversando e bebendo no barzinho da cabine.

Nesse giramundo florido de espumas douradas

Nosso ébrio cosmonauta chegou a pilotar quatro naus

ao mesmo tempo, confirmando a teoria

de Plasmo Alencart da irrefutável existência

de vidas paralelas, além do mar Caribe…

Freche decerto tem vidas paralelas dele mesmo.

Uma mulher em cada continente, e um apetite

voraz para o drama conjugal com cada uma.

E tais cenas se desdobram por afinidades em outras

tantas ocorridas em cada porto, em especial quando

essas vidas paralelas se encontram pelas tavernas.

Para cada uma das esposas Fercho confessa:

És tu, minha rainha, meu presunto, meu pé de manacá,

a única mulher que desencarde a razão de minha vida…

E em uma nuvem sorrateira se dissipam as ilusões

da coitada, quando pelos corredores de seu castelo

de sonhos vê passar outras tantas que embora

com ela se pareçam são mais do que suas sombras vãs.

E o que diz então Freche Gordo para a desditosa?

Só tu, querida, existes para mim, pois essas

outras tantas… são meras sombras que passam…

E tantas outras passam que por mais que a jovem

plebeia queira entregar-se à crença de um amor sem fim

algo em seu espírito titubeia e o desencanto brada:

Oh Freche, não me enganes, não suporto mais esta vida!

E logo rebate o amante contumaz: Não te tortures, Manon,

por umas borboletas efêmeras que se esvaem na brisa

da tarde e no dia seguinte são apenas pó ao vento…

E Beltrana Farnica, agora sabemos seu nome, insiste:

Oh Freche, a tua borboleta azul já não sabe o que fazer

com tantas espigas falseando o meu desejo, tantos ventos

levando o cardume de meus ardores por escuras lagoas.

E de seus lábios salpicados de encantos Fercho desfere:

Mi mosca azul… ¡Eres tú, mi amor, de alas de oro y granada!

E assim tão desfeita em aflições nossa bailarina conjugal

pela manhã cedo arruma a cama desfeita por outras damas.

 

CODA AUTOMÁTICA

 

FLOYD

Sugestão: O Zuca apronta um desenho, eu aqui lhe inspiro um fundo e uns badulaques…

 

ZUCA

Muy bien, Floyd, Grazzzzie pelo convite!… Vou já começar a aprontar. Abbrazzzzzi / zzzzzzZuca

FLOYD

Magnífico. Aí eu mando tudo para a Meg Triplóvica.

 

ZUCA

Wunderbar… Já apontei o lápis e afiei o bico da pena de gralha… agora só falta achar o pincenez… E que mais?… plek-plek-plek!… Ah!, sim … … o papel.

FLOYD

Experimenta sem papel, ah ah ah…

 

ZUCA

Sem papel é mais fácil de fazer, caso você aceite um desenho falado. Talvez uma novidade, um livro com ilustrações faladas. Apenas, não poderíamos deixar o Doutor Xarkor saber, senão, o prox. n° da Pharol… será inteiramente zpholado… mais difícil de despachar pelo apparat.

 

FLOYD

Do retrato falhado ao desenho falado, que belo percurso… E deixamos Doutor Xarkot no Museu. Ele jamais ousaria mexer conosco, sempre foi um grande barbaças solene e trapalhão

 

ZUCA

Hoje espero sem falta te passar o desenho desemoldurado. Para mim é mais difícil tirar a moldura do que fazer o desenho. A moldura para sair, arranca metade do desenho. Então o desenho desemoldurado tem de ser falado, um curto texto explicando o que ficou faltando. Ou seja, um novo tipo de recensão: a… RECENSÃO RECOSTITUINTE.

FLOYD

Por vezes acontece, se tiras a moldura do desenho, tudo o mais cai por terra, e a terra não costuma ser breve nem leve. Dizem que a história tem um peso insustentável, e que o passado se agarra a cada um de nós como certos alimentos no céu da boca. Dito isto, que venha também a moldura, pois aqui eu posso sempre fazer uma bela festa.

 

ZUCA

Poizé… Tive um trabalho danado pra tirar a moldura, e agora dizes que posso mandar com a moldura… Já não sei se vou ou se fico, já não si se fico ou se vou…

 

FLOYD

Ao final da louça, o importante é o desenho e não o atelier. A obra recomeça sempre do ponto em que a deixamos.

 

ZUCA

Agora… é troppo tarde. Entrei numa fúria louca contra a moldura, passei-lhe o serrote, mesmo que o desenho tenha sido serrado junto. Passo-te a seguir uma primeira metade, se não conseguir recolar as outras duas metades, terei de me contentar com dois desenhos rasgados sem moldura. Talvez aí, uma nova fórmula, para a arte: o desenho reconstituído. Já comecei a tentar fazer, mas não me lembro bem, qual a parte de cima, ou qual a de baixo. Talvez então te mande em pedaços e tu os reconstituirás o melhor que possas, porque não me lembro mais exatamente o que fosse, mas sei que havia dois desenhos ocupando verso e reverso do papel. Há um naco da Queda da Bastilha, e outro da Jangada da Medusa. Mas num naquinho extra, aparece o Napoleão discretamente se coçando com a mão por dentro da camisa.

 

FLOYD

A esta altura o papel acabou revelando um diálogo secreto seu com a pluma, quando ele lhe pediu que levantasse a perninha e o deixasse fazer o melhor desenho. A moldura de olho na cena, comprimiu o peito e disse que por ali a imagem só se estabelecia se ela o permitisse.

 

TODO FIM É UM PRINCÍPIO

 

6. NADA NO MUNDO É DE TODO IMPERFEITO

 

ARAUTO

Manhosamente incrustada no majestoso palacete luso-tropical em estilo dinâmico, a sede provisória do Triplov sonda a possibilidade de receber para uma boa conversa um dos mais prestigiados ilusionistas de nossa época, Florium Blavesko. Ele acaba de criar um palácio de papelão, arquitetura que alcança um perfeito equilíbrio entre o invisível e o transparente. Como bem sabem nossos leitores, O papelão é um dom dos papeleiros do Nilo, para enganar o Destino. O mortal se escapa daqui; o Destino o escorava dali… Vamos ver no que isto pode dar. Mas eis, vejo aproximar-se uma dama e… ora!, vou bater o bastão presto PAF-PAF-PAFFF!!! E agora com vocês…

 

ZUCA SARDAN

Dama, Arauto de bosta, é o cu da pata preta!… Ponha um pincenez na bicanca, Seu Admeto de Bosta… Haja saco de cossaco!… Pois é, Florio, que tal se acaso encetássemos uma entrevista, contando com a participação inopinada de Anita Borgia, sobrinha-neta do genial Papa Borgia, um santo, que por sua sábia bula, mudando um pouco mais a Oeste o Meridiano das Tordesilhas, garantiu a existência do Brasil… e de nossa atual entrevista. Ou os prutucas ficariam acampados na ilha Fernão de Noronha. Sua sobrinha-neta, ora já talvez, com sua manha florentina, escondida atrás de uma das colunas gregas magistralmente imitadas em papelão-mastigado do pataphysico palco do Auditório, uma joia architectônica psychodélica do architecto Orgaz Maya.

 

FLORIUM BLAVESKO

O papelão é a casa dos desvalidos. Os precavidos colecionam papelões desde os seringais da infância. Ao invés de ode, celulose…

 

ZUCA SARDAN

O papelão é como a música… já vem da infância, tal como o Mozart menino de violino…

 

FLORIUM BLAVESKO

Amanhã coruja vai fazer ninho em casinha de papelão,

deitei pedacinhos do santo de gesso, São José que se

partiu, hospitalizado em bom papelão, amanhã o refaço.

Papelão, papelão, que escola boa de recomeçar…

De remendo em remendo, a cada dia um novo repente.

 

ZUCA SARDAN

Magnífico, Florium!

 

FLORIUM BLAVESKO

Este poema, escrito ontem mesmo, talvez faça parte de uma série que ando escrevendo pelas mãos de uma diaba que ainda não quer se revelar, heterônimo com o qual publicarei um livro.

 

ZUCA SARDAN

Meus augúrios do maior sucesso.

Prepara-te… porque se o sucesso for grande… terás de te travestiçar pras photos!…

 

FLORIUM BLAVESKO

Sim, já me anteciparei e cuidarei de uma breve série fotográfica; pedirei a Woman Reina que cuide dos cliques mágicos, por certo, por certo.

 

ARAUTO

[Olha súbito, nervoso, o relógio] Ai!, cáspite!!! Eu estava meio cochilando e o espetáculo já começou!… Mas enfim, vamos fingir que só agora a peça vai começar, após eu bater o bastão, e saudar o… DISTINTO PÚBLICO!!! PAFF-PAFF!!! PAFFF!!!

 

[silêncio indefinido, capeado pelo acrílico da incredulidade. Arauto olha para Zuca Sardan em sinal de inquietação. O que estará havendo? Onde está a dama entrevistadora, cujos passos já se ouvia aproximando-se do centro da redação?]

 

CORTINISTA GODOFREDO

[sottovoce, por trás do pano] E agora, Arauto, se a plateia se impacienta?…

 

ARAUTO

Pois é, Godô, agora sentamos na coxia à espera de Anita, a prometida dos deuses…

 

CORTINISTA GODOFREDO

Tudo bem, mas se ela seguir não chegando, o povão vai começar a s’amotinar… e aí então?…

 

VESPINA

Meu senhor, isto é um absurdo. O senhor quer ser entrevistado ou prefere se entrevistar sozinho? Por que?

 

ARAUTO

Ah finalmente alguém chegou. Talvez fosse outra a dama esperada, mas agora pelo menos temos como acalmar o povão…

 

VESPINA

Ah, era por isso? Estava esperando pela Anita? Pela Papisa também? [Vespina ri até chorar e finalmente gargalha. Depois seca as lágrimas e fica muito séria de novo.] Anita está viajando, só volta daqui a três anos e a Papisa está em retiro espiritual com um pajé amazônico. E nenhuma das duas é jornalista, meu senhor, como iam entrevistá-lo, o que o senhor tem na cabeça?

 

CORTINISTA GODOFREDO

A cabeça custa a crer o que tenha, de quem herdou, pra quem vai dar.

 

VESPINA

Tudo bem, vamos começar de novo. [Estendendo a mão, cada vez mais séria.] Boa tarde, meu senhor. Como vai o senhor? E a sua esposa? Soube que o senhor agora é transformista. Verdade? Fake news?

 

FLORIUM BLAVESKO

Jamais fui tão destratado por qualquer canal de notícias! Como vou querer ser entrevistado, se estou metido nessa ousadia arquitetônica de criar gigantescas urbes de papelão! Ora, que destino mais incerto o da roda da fortuna! A mocinha achou de se pegar com o espectro escandaloso da trama, me azucrinando com essa de transformismo. De qualquer jeito, estou disposto a começar de novo o que sequer havia começado. Aqui estou. Façam de mim a sua próxima notícia!

 

DYRCEO

[Entra, de microfone na mão.] Bom-diiiiiiiiiiaaaaaaaaaaaaaaaaaa, para todas no palco e na plateeeeiiiaaaaaa!!!

 

PLATEEEIA

DYRCEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEU!!!! DYRCEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEU!!!!

 

ARAUTO

[Entra, indignado, e interpela Dyrceo.] E quem é o senhor, para entrar assim no palco??? Fora!!!!!

 

PLATEEEIA

Fora você, Arauto Buuurrroooooo!!! Fora, Panacaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa!!!

 

DYRCEO

Sentiste, rapaz, a minha importância?… Eu sou Dyrceu, o Locutor favorito das Ouvintes da Rádio Tupy!…

 

FANZOCAS

[Em delírio] DYYYRRRRRRCEEEEEUUUUUUUUU!!!!

DYYYYYRRRRCEEEEEEEEEEEUUUUUUUUUUUUUUUUUUU!!!

 

DYRCEO

Não se preocupe com Dona Vespina, Doutor Blavesko! Faça a entrevista comigo. A Rádio Tupy tem alcance em todo o Globo Terrestre!!!

 

FLORIUM BLAVESKO

Como fazer a entrevista contigo! Eu sou a notícia! O esplendor do fato inspirado e insubstituível! O primeiro heterônimo feminino criado por um homem e o autor de uma expansiva obra arquitetônica feita no mais legítimo papelão egípcio!

 

DYRCEU

[De microfone.] A Senhora não quer que eu a entreviste, Dona Vespina? Seria magnífico, imagine só, na Rádio Tupy: A Entrevistadora Entrevista

 

VESPINA

Ótima ideia, Dyrceu! Eu entrevisto o transformista e você entrevista a entrevistadora. Será a primeira entrevista simultânea da História.

 

DYRCEU

Mas claro, Dom Florium, que o Senhor é a própria Notícia!!! Por isso estou aqui… para… captar a Notícia!!! E lançá-la pela Rádio Tupy em todo o Globo Terráqueo… e pelos satélites interplanetários russos, americanos e chineses para o Cooosssssssmmmoooooooooooooooooo!!! Temos acordo com a TV Medéia, para distribuição televisiva apoiando a nossa irradiação no Brasil e toda a América Latina!!! Tudo isso sob o alto patrocínio do Café Cometa!!!

 

FLORIUM BLAVESKO

[Estala uma gargalhada excepcional.] É bem possível que agora nos entendamos. Alguém me sirva uma batida de saquê com tangerina, enquanto aguardo as perguntas. Três pedras de gelo…

 

ARAUTO

Que está esperando, Godô?… Traga uma bandeja de drinks e aperitivos pro ilustre elenco!… e… a batida de saquê com tangerina, pro Doutor Blavesko!…

 

CORTINISTA GODOFREDO

Pra já, Admeto, parto feito flecha e logo-logo chegarei.

 

DYRCEO

Pois então, Doutor Blavesko, como se sente, agora que se precipita nesta metamorfose de autoduplicação?

 

FLORIUM BLAVESKO

Agora que as pitangas já reconhecem as pradarias de onde vieram, sim, eu diria que me sinto em casa, casa dupla, bem pensado, pois se souberem o que perguntar certamente teremos a melhor explanação sobre heterônimos e aproveitamento papelônico em conjuntos residenciais. Por onde começamos, então?

 

DYRCEO

Precisamos de um pequeno aproche histórico, pra que nossas queridas ouvintas e estudiosos ouvintos… pois, Doutor Blavesko, já podeis perceber minhas preocupações com o sexo das palavras… o vocábulo Ouvinte é visivelmente um transexual, algumas vezes é O ouvinte, outras vezes A ouvinte… meu professor de gramática, o impoluto letradíssimo Frei Feijão, ensinou-me que a luta contra o transexualismo deve começar com o combate à subversão idiomática… o vocábulo Ouvinte é um transexual descarado que precisa ser enquadrado. Todo o cuidado é pouco, Doutor Blavesko, contra a orgia de transgressão sexual que estamos vivendo neste século 21, perverso, subversivo, safado… Que acha o senhor, Doutor Blavesko?…

 

FLORIUM BLAVESKO

Nossa primeira atenção deve ser em relação à retórica. Ela é a verdadeira caixa de marimbondos que imprime perigo à espécie humana. E é justamente uma invenção humana. Distorção semântica em nome de um preconceito desvalido. Já vivemos este ciclo pastelônico com uma presidenta da coisa pública. O substantivo de dois gêneros, que hoje é de mil gêneros, é um modo bastante útil de aceitação da diversidade, e não o contrário. Para mim soa patética a fórmula de inclusão encontrada pela bipolaridade senhores e senhoras, brasileiros e brasileiras, prezados e prezadas… O acento no politicamente correto não reflete senão uma pobreza de espírito. E geralmente quem o pratica, nos bastidores é um verme. Já em relação à transgressão sexual, até onde ela existe, há que separar a busca de escolhas do modismo e sua consequente orgia de classificações. Sempre penso naquele alfinete no dorso das borboletas em uma coleção.

 

DYRCEO

Magnificamente lembrado, Doutor Blavesko, o dramático caso da nossa Presidenta!… Tratou-se do primeiro exemplo de luta gramatical contra o manhoso ardil dos substantivos transexuais de saírem impunemente passeando pelos textos, sem que as autoridades percebessem e pusessem um freio ao perigoso precedente. Nossa indômita Presidenta, possivelmente inspirada pelos sermões do alerta Frei Feijão, foi a primeira personalidade a se levantar contra este conformismo gramatical que seria a preparação da Queda da Bastilha Familiar face a onda colossal de Suname que afundou os alicerces morais da Família Iluminista. Se estiverem vendo, pela lucarna com telescópio do Paraíso, a que se refere Dante, a esbodeação globalizada deste Século 21 Pós-Moderno, imagino o espanto e revolta de nossos mais ilustres pensadores, o Águia de Haia, e nosso Imperador, o segundo, por suposto. Felizmente ainda há moscas virtuosas… Aliás, achei os versos de Aurora Leonardos inspirados por uma sadia espiritualidade, voltada ao lar, e aos bons ensinamentos de Frei Feijão.

 

FLORIUM BLAVESKO

Suponho que estás aplicando o Taco Disparato em tudo o que digo. O Taco Disparado era um mecanismo de embrulho na lógica utilizado pelo ministério da defesa russo ao transmitir notícias radiofônicas sobre a invasão extraterrestre nos porões do Hermitage. Consta que ali haviam trancafiados os corpos de três alienígenas que foram brutalmente assassinados no interior de Minas e depois surrupiados pelo governo dos Estados Unidos. Com a indefinição nas eleições presidenciais, que já duram três anos de suspense, um acordo secreto entre os dois governos garantiu a transferência dos restos mortais para o museu russo. Contudo, o assunto não se manteve muito tempo em sigilo e logo a mídia começou a divulgar suas suspeitas. Foi quando se passou a aplicar o Taco Disparato, assim a população ouvia uma coisa, mas entendia outra. Como o Brasil é mestre em se apossar de coisas que não sabe usar, vejo agora que estás desconjuntando minha fala. Insisto que as travessuras sempre anacrônicas de nossos governos sucatearam de tal modo a linguagem que o que chamas de conformismo gramatical não passa de um vício barato acobertado pela moda e o estado falimentar de nossa moral.

 

DYRCEO
Maravilhosa tirada, Doutor Blavesko!!!! Bravôôôô!!! No Brasil, onde ainda estamos em trenzinhos caipiras em vez de satélites intrujões e foguetões interplanetários, suas transcendentais revelações não podem ser captadas pelos nossos honestos, mas despreparados nordestinos sertanejos. Não obstante, nota-se surpreendente capacidade assimiladora da cultura terrestre e subterrânea, pelos nossos humildes mas bons e patrióticos lavradores e índios da Amazônia que têm de enfrentar de um lado os madeireiros clandestinos… ou clonestinos… enfim, arboristas bolivianos , que vêm serrar nossas belas árvores e roubar nossos tatus-bolas e taturanas, para experiências aterradoras, destinadas à pérfida criação de um novo vírus, o Boroca, que deverá defender nossa América Latina contra o traiçoeiro micropata Coroca…

 

ARAUTO

[Sottovoce para Florium] Oh Ilibado Mestre, esperança dos aflitos pescadores dos rios da Amazônia, e das viúvas chorosas de Piracicaba: Não seria melhor baixarmos a cortina? Ou este politicamente correto locutor vai seguir a vos agoniar com sua cascata de disparates…

 

FLORIUM BLAVESKO

Esta não é uma decisão minha, pois ainda aguardo as perguntas de Sra. Vespina. De qualquer modo, e isto se passa sempre que a mídia visita uma notícia, dá-me a impressão de que viemos para uma coisa e fizemos outra.

 

ZUCA SARDAN

Aguardemos, pois, a chegada de Vespina, com seu anel renascentista de ouro finamente cinzelado por Brunelesco, com micro cofre porta-veneno embutido.

 

VESPINA

Meninos, esta é a última versão? Tem já cinco páginas e falta a entrevista.

 

FLORIUM BLAVESKO

Meu caro Zuca, tens que parar de tanto lero e começar logo a entrevista. Pelo andor do pasto essa Vespina vai furar o bolo e melar o fubá.

 

ARAUTO & CORTINISTA GODOFREDO

[coro no gargalo]

Ao timão, o timoneiro.

O esfregão ao escrivão.

Gira, gira, girafa anã,

Ao pecador, a devoção.

 

ZUCA SARDAN

Pois então, Dyrceo, ouviste o que disse nosso entrevistado, ele quer que acabes com tanto lero-lero de que tu és o grande culpado, com este teu papo furado de novelas da Rádio Capivara. Faça perguntas objetivas!!!

 

DYRCEO

Doutor Florium, chega de enrolações, não tente se desviar do assunto, vou a perguntas perguntantes: Dona Aurora é boreal?… É virago romântico bossa Saphô?… ou machona só de pose… tal George Sand que fumava seu charutinho e se vestia de homem? Quem o senhor acha que comia quem? George Sand comia Chopin? Ou Chopin comia George Sand? Quem ensaboava quem, com o Sabonete Molek? Que tal o Senhor acha Lina Ivanova, poeta de Recife e editora da revista anarquista-feminista Mais Pornô, que vive entre Koln e Berlin? Quais as revistas porno-feministas brasileiras que o Senhor mais aprecia? Qual a situação da poesia porno-feminista no Brasil? Em que linha se situa Aurora Barcelos? Quais poetas viragos são as mais importantes do Brasil?

 

FLORIUM BLAVESKO

O senso de objetividade desse radialista tem a leveza de uma pata de elefante ferido. E sua verborragia é trôpega como um cancro desenfreado. Tens o fôlego retrô de um jornalista marrom. Uma obsessão frasista pelo escândalo de primeira página. E uma intencional confusão entre o grelo e o clero, ainda que por vezes haja tanto de um no outro. Pensar em Goerge Sand como pornógrafa é uma dessas farsas machistas, e ainda essa perversão em torno da menina Ivanova, levantando a suspeita de que ela é um menino. Ora, ora, Dyrceo, o que há de teu nessa máscara que grudaste no rosto? Se queres mergulhar nos bastidores do transformismo, sugiro que visites o Museu Lamarck, há uma página web disponível. Quanto à Aurora – seja Boreal ou Barcelos –, que, a rigor, é Leonardos, trata-se de um caso único de heterônimo feminino, de modos que se queres conversar a seu respeito, aqui me tens.

 

DYRCEO

Muito bem, Doutor Florium, vejo que sacaste bem meu estilo iconoclasta e subversivo. Mas… temos uma surpresa!!! A Rádio Cambuquira vai agora mesmo fazer um espetacular Anúncio do livro de Aurora!!!… Deixe-me ligar este velho aparelho Felix, de oito válvulas e… plek -plek-plek…

 

RÁDIO CAMBUQUIRA

Preza… dá-dôs ouvintos e vivintas da vossa insuperável Rádio Cambuquira!…Apresentamos agora vosso programa predileto!!! As sensacionais Novas Profecias de Nostradamus!!! Hoje trataremos de um manuscrito posterior às Centúrias, e se referindo ao Século XXI e ao Armagedom…. com o Arcanjo Wenceslau tocando a Trombeta de uma nuvem rente ao campanário da Cathedral Notre-Dame de Paris. Nas suas considerações preliminares, atendendo ao interesse da Rainha Catarina de Médicis por assuntos mais picantes, Nostradamus escreveu sobre o grande surto da praga do vírus micropata Coroca, e do aumento vertiginoso do transexualismo, sobretudo com o tumulto provocado por um livro que se chamaria… Aurora sim, é que era Travesti de verdade… ou algo similar… com pressões sobre o Vaticano e Moscou, para se definirem, sim ou não, com referência à procedência dos matrimônios transexuais. Na noite de lançamento do livro o Palacete de Papelão Mascado do Triplov será invadido por batalhões em encarniçada luta entre travestis, machistas, bissexuais, polysexuais, grupos religiosos rivais, kardecistas e bolcheviques.

 

FLORIUM BLAVESKO

Quanto mais se espalha a bomba de luxúria do radialista Dyrceo mais as fábulas da delegação de autoridade das classes obstruídas se dissolvem nos latões cítricos da propaganda. Tudo isto porque as artes creditaram a si uma moral de chiclete. As pastilhas bíblicas hoje não curam mal algum, e o rugido dos escândalos enlatados sequer alimentam os seguidores de Donald Warrol. A esta altura de nada adianta bradar que Aurora é lésbica e não traveco, pois o mal da mídia já lhe garantiu um lugar na comarca das disforias de gênero. Quem mais se interessaria pela tragédia de uma jovem vida acidentada que se foi e deixou um livro com uma das poéticas mais audazes dos últimos tempos…!

 

ARAUTO

Pois então, baixamos a cortina ou não, Godofredo, que achas?…

 

CORTINISTA GODOFREDO

Tenho uma ideia… vou baixando o pano bem devagarzinho… e se o Doc Florium, ou o Dyrceo, um dos dois, reclamar… comezzo a tornar ir subindo devagarzinho…

 

ARAUTO

Godô, és espertíssimo!… Vai baixando então, a flanela, bem, bem devagarzinho… pra ninguém perceber…

 

CORTINA

[Vai começando, imperceptivelmente, a cair.] Ronnng… roonng… rong ...ron… nnng… ng… g…

 

FLORIUM BLAVESKO

E a genialidade arquitetônica de meu Palácio de Papelão também foi pelo ralo.

 

ARAUTO

E agora, Godô?

 

CORTINISTA GODOFREDO

Nem dou pelo resmungo. Segue, cortina…

 

CORTINA

Ronnng… roonng… rong ...ron… nnng… ng… g…

 

 

AS SETE TRAGÉDIAS DE SARDANELO & MARTINICO

 

A vida é difícil, mas não tenho paciência de ficar morto.

ZUCA SARDAN

 

Tarimbô, taram, três vezes soprar nos olhos de Butifá, até que a realidade ponha a cabeça de fora, e… paulada nela!

(em off) PANDA KARMAL

 

Ninguém herdará a terra.

FLORIANO MARTINS

 

AS BECAS DA TORRE LOUCA

(Aguardando a chegada de Sardanelo & Martinico)

 



Zuca Sardan e Floriano Martins, após o sucesso internacional da trilogia de teatro automático intitulada O iluminismo é uma baleia, concederam um tempo de sua apertada agenda para um encontro com estudantes no auditório da Escola das Marrecas. Não quiseram, no entanto, seguir o hábito da apresentação com um mediador, e propuseram um diálogo improvisado entre ambos. Zuca Sardan foi o primeiro a disparar a provocação:

 

ZUCA SARDAN

Uma das questões clássicas dos exames do Colégio Prutuca: Para que lado estava virado o bico do pelicano no portal da capa da 1ª edição dos Lusíadas?

 

FLORIANO MARTINS

Há nisto uma sinuosa provocação, pois se sabe da existência de uma edição príncipe, a primeira com uma costura usando linha feita com lã de cabra montanhesa, em que o pelicano tem seu bico apontado para direção inversa à da edição que até então se supunha a primeira. O famoso gravador Gustavo Dourado durante algum tempo reclamou a autoria da capa dessa rara tiragem. Sabe-se que na biblioteca do Colégio Prutuca havia exemplares das duas edições, o que acabava gerando imensa confusão entre os alunos. Para uns, o pelicano mirava a direita; para outros, a esquerda. Assim é que todos eles passavam no exame, não importando a resposta dada.

 

ZUCA SARDAN

Belíssima resposta, Florianooo!!! Levas de prêmio uma caixa da Cerveja Pelicano, a preferida do Rei Manoel, com um autógrafo autêntico, numa das garrafas, quatro com o bico virado para a esquerda e cinco de bico virado para a direita, com o autógrafo de quatro marujos da caravela do Vasco da Gama.

 

FLORIANO MARTINS

Enquanto eu desfrutava uma das garrafas da cerveja a minha neta se aproximou e com os olhos bem-postos sobre as caixas me disse que todas assinaturas eram iguais, menos uma. Fui averiguar em meus alfarrábios e descobri que Vasco da Gama havia fundado a primeira escola de produção em série de autógrafos autênticos. A assinatura divergente depois se soube que era de Eufrasino Maneta, sobrinho preferido do Rei Manoel que impôs sua presença na escola. Vasco da Gama logo descobriu um jeito de livrar-se do problema, instituindo um prêmio especial a quem descobrisse a garrafa com a assinatura discordante. Até hoje o fato é celebrado como a primeira conversão de erro em acerto.

 

ZUCA SARDAN

A erudição do Marquês vai aumentado em passos de Gigante. Sua fama começa a crescer entre os alunos do Colégio Prutuca.

 

FLORIANO MARTINS

O gigante Gaspar Líbero mantinha em segredo sua erudição, em parte porque era lá no Colégio Prutuca onde ele frequentava às escondidas o porão para treinar a sua voz de barítono. Tinha plena convicção de que um dia seria reconhecido por seu canto aveludado. Mas ele também gostava de se gabar, entre as meninas em saias soltas, fazendo-as suspirar com seu repertório de verdades em falsete. Os tempos se foram sem dar pela presença daquela lírica criaturinha de Deus, nem mesmo o infortúnio que se abateu sobre o ventre das jovens letradas foi capaz de dar a Gaspar o palco com que sempre sonhara. Amargurado no ostracismo, um dia simplesmente desapareceu, sem jamais conhecer sua prole.

 

ZUCA SARDAN

A prole do Gigante Erudito, deu origem às colossais Gigantas Patagonas, que, com suas formas monumentais, atraíram os Gigantes Arcanjos… Após a vitória sobre os Anjos Safados Subversivos, na terrível batalha sobre os Andes, e soterrados os Safados Subversivos nas profundezas do Globo Terráqueo… puderam os Bons Arcanjos usufruir do merecido Repouso do Guerreiro, nos braços e coxas monumentais das lindas Gigantas Patagonas… Começaram assim a História Santa e a História Profana, na nossa América Latina.

 

FLORIANO MARTINS

Uma história que sempre se diz que não cabe nos sapatos dos anjos. Um dia acesa a centelha da curiosidade os alunos do Colégio Prutuca começaram a indagar do Marquês com quantas palhas de coqueiro se faz uma aldeia de pecadores. O Marquês, não entendo a pergunta, foi logo exigindo respeito, que a estrada pia longe quando o ermitão perde o caminho de casa. Ora, mas era justamente o que esperavam os alunos, que mal contiveram o riso e declararam que as amarras da ponte muitas vezes impedem que o exílio floresça na outra margem.

 

ZUCA SARDAN

O Marquês é um excelente professor, usa (sem saber, naturalmente) o inconsciente didático que age diretamente no inconsciente dos alunos, provocando uma euforia geral.

 

FLORIANO MARTINS

A euforia é um estado de permanente fervor e não se deve considerar seus efeitos senão como os favores da persuasão. Os alunos de algum modo acabam aprendendo que a vida só se realiza na colagem de emoções, no uso contínuo de tesoura e cola em cada um de seus fatores existenciais. Menos Jacinto Pudente, que evoluía por reprovações e se recusava a recorrer ao alheio em sua trágica ilusão de autoria.

 

ZUCA SARDAN

É preciso o aluno aprender a colar o rabo de uma frase do Kant no corpo dum conceito do Comte. E colar a cabeça da Medusa no busto decapitado de Confucius.

 

FLORIANO MARTINS

Há mesmo certas coisas no mundo acadêmico que são insustentáveis. Se embaralharmos em um Atlas as inúmeras cavernas onde foram encontradas caixas e mais caixas de ouro, veríamos que os saques desconheciam fronteiras e que certos púlpitos e monumentos poderiam ser apenas a ponta dos icebergs das religiões. Como não deixar os alunos mais curiosos aplicarem o aparelho Lenoir na leitura de antigos manuscritos? E se um deles gritasse: Eu vi o roubo, eu vi o roubo!, deixá-lo então desfrutar a ilusão de que a civilização evolui. Desaconselhar a colagem é como tirar a confiança no acaso. Ninguém pode ir tão longe se não acredita em sua capacidade de errar.

 

ZUCA SARDAN

Desfrutar a ilusão de que a civilização evolui, foi o que fizemos a partir da segunda metade do Século 19, e durante todo o Século 20, depredando o Planeta, para aumentar os lucros comerciais e industriais. Quando no 21 começam os cataclismos da Natureza, procuramos disfarçar o quanto se possa para não assustar a freguesia. Já começamos a espalhar a ideia de emigrarmos para outros planetas que ainda estão novinhos.

 

FLORIANO MARTINS

A todo instante a vida imitando a arte, por absoluta falta de imaginação. E cinicamente o homem achando que ambas podem ser uma só coisa, como queriam as vanguardas resfolegantes do 20. Com a desfaçatez com que passamos da maconha para o crack bem se pode imaginar que um cartão de crédito nos garanta uma caixa-morada de silício em alguma lua de distante planeta. Os alunos do Colégio Prutuca mal desconfiam que o sistema solar já se encontra todo loteado.

 

ZUCA SARDAN

Como a Arte não consegue mais imitar a Vida, como o fazia na Renascença em plena Capela Sixtina, onde Adão pendurado no teto todo nu avança o indicador para tocar o dedo de Jeová, e este vem voando feito uma flecha com seu indicador avançado em direção ao dedo de Adão, para transmitir-lhe uma carga de Vida, Saúde e Eletricidade, ademais de Inteligência e Juízo, desde então a Vida começou a imitar a Arte.

 

FLORIANO MARTINS

Tudo ardil maroto, para provar que os evangelhos tinham razão. Daí criaram a ideia de um juízo final, com essa palidez arbitrária pregada na tez dos anjos. Quando o grude secou a tatuagem de algumas frontes foi ao chão da capela, formando aquele piso irregular batizado de calvário. Novamente era preciso entender que somente a cola e a tesoura fixam a diferença entre arte e vida.

 

ZUCA SARDAN

O Juízo Final só virá depois da prorrogação de nossa loucura lógica. Havendo Lógica, acredita-se que não há Loucura. Mas muito pelo contrário: quanto mais louca, mais perigosa é a Lógica. Já tivemos fartos exemplos na História recente. Para não relembrarmos casos de feridas ainda não cicatrizadas, melhor nos determos em caso mais antigo, e mais ameno, por exemplo, Nero cantando e tangendo a lira ao balcão, durante o incêndio de Roma.

 

FLORIANO MARTINS

Questão inserida em uma prova polêmica, onde muitos alunos responderam que a cena era uma espécie de metáfora da recriação do mundo, sob o argumento de que não se pode criar do nada, de modo que para haver uma nova história é imperativo destruir a atual. Por mais que os Irmãos Raristas do Colégio Prutuca de tudo fizessem para evitar o escândalo escoar, a prova vazou, logo saiu na primeira página do Diário do Tombo, uma agência de notícias traduziu o texto para mais de 50 idiomas, pode-se dizer que o mundo nunca mais foi o mesmo. Estava justificada a catástrofe como mal reparador de mazelas.

 

ZUCA SARDAN

Enquanto isso… o Arcanjo já lustrou a Trombeta do Juízo Final. Dá umas esfregadinhas finais na Trombeta e se levanta na Nuvem Preta. O Sineiro, de binóculo do alto do campanário, achou que já é hora de avisar o Arauto. Pega o telefone, disca o número do Arauto.

 

TELEFONE

BRING… BRING… BRRIIIINNNNNNGGGGGGG!!!

 

ARAUTO

[Ouve o trinado do telefone, boceja e atende] Alô, aqui o Arauto. Quem fala?

 

SINEIRO

Alô, aqui o Sineiro. Arauto olha só as cumeeiras… O Arcanjo está se preparando para tocar a trombeta. Baixa rápido a cortina, antes que ele toque, rapaz, ou começa o Fim do Mundo!…

 

FLORIANO MARTINS

O que se deu, por instantes, foi a confirmação de que o vazamento de provas pode alterar a realidade. Alguns diriam, como o Arauto: – Não pode ser o fim do mundo um mundo sem fim. A simples ideia de uma coisa ter fim já é uma ladainha perniciosa. Como alguém pode viver em função do fim. As aves pernaltas aprendem cedo a voar. O homem teria aprendido a rir com a hiena ou o macaco? Aqui estamos no auditório do Colégio Prutuca sem escapatória. Nenhum sineiro ou cortino virá nos salvar. Quem sabe não é a hora de recordarmos as vadiagens de Vasco da Gama!

 

ZUCA SARDAN

Vasco de Gama partiu para a descoberta do Caminho Marítimo para as Índias indo para lá mesmo. O tradicional senso prático dos Portugas, bem ao contrário das loucuras do Colombo, que queria descobrir as Índias tomando a direção oposta à das Índias, porque cismou que a Terra é redonda… Resultado: em vez de chegar às Índias foi bater nas até então desconhecidas Américas, que ele cismou que eram as Índias!… E até hoje nossos amerabas são denominados índios. E o Colombo, comprovado seu engano colossal, procurou esconder a batata declinando a oferta da Rainha Isabel, de que as terras descobertas se chamassem Colômbia, e, bancando o modestinho, sugeriu à Rainha que oferecesse o nome do novo Continente ao… Américo Vespúcio!… um modesto cartógrafo que lhe aprontara uns mapas maneiros de umas terras que poderiam ser descobertas a oeste da Europa… A Rainha hesitou, mas o Rei Fernando, que achava Colombo um vão carcamano falastrão, topou logo a ideia, e o novo Mundo foi assim batizado de América!… Colombo, magoado e dispensado, não pode assim descobrir o Polo Norte… Passou o fim da vida nos bares, exibindo sua galinha acrobata, que sabia botar um ovo em pé nos gargalos de uma garrafa vazia…

 

FLORIANO MARTINS

Ameríndios, o que é pior, índios da América (risos)… Para que se veja o risco que a história é forçada a engolir com essas peraltices dos nossos grandes navegadores. A América foi toda descoberta de um modo quando menos extravagante. Os astrolábios não podem ser culpados de tanto disparate. Pior ainda se passou com os efeitos de outra descoberta, a rigor uma tomada de posse, uma negociata envolvendo as coroas britânica e espanhola, quando Walter Raleigh finca em uma parte do continente a bandeira e decreta: – Aqui está a América! Na verdade, um pedaço da cuja, que acabou decepada em sua amplitude. Gatunice que encontrou eco por toda parte, considerando que há sempre um folião aculturado que sopra velinhas para o 4 de julho em todas as partes do Novo Mundo. Seguiu-se à usurpação a matança dos índios da região, acabando com as vastas pradarias de Tatanka Iyotake, mais conhecido como Touro Sentado e acabou se tornando astro de cinema. Foi aí que a vida teve sua primeira crise de identidade e se tornou arte.

 

ZUCA SARDAN

Sim, lembro-me do Tatanka, tinha pernas tão curtas que parecia estar sempre sentado. Usava uma escadinha de corda para montar no cavalo. Uma vez montado, puxava a escadinha de corda e a colocava debaixo da sela. Em vez de arco e flecha, usava uma espingarda de dois canos, e tinha exímia pontaria. Depois da batalha, quando se iam contar os mortos, os que apresentavam dois furos na testa eram a maioria absoluta, e todos… vítimas do Tatanka. Os norte-americanos assinaram um tratado de paz que estabelecia que era doravante proibido aos meliantes levarem escadinha de corda em seus cavalos para as batalhas. Irritado com o esbulho dos caras-pálidas, Tatanka passou a usar uma escadinha desmontável de madeira, inventada por um carpinteiro pele-vermelha. Os caras-pálidas, após uma boa mortandade, com pilhas de defuntos com dois furinhos na testa, urdiram uma cilada: uma corda estirada entre duas árvores, no caminho habitual do Tatanka ao voltar de sua pesca vespertina. O cavalo tropeçou e caiu, os caras-pálidas imobilizaram o Tatanka, e roubaram a escada. Tatanka ameaçou-lhes: – Aprontarei outra. Os gringos se riram e se foram com o engenhoso artefato. Pouco lhes importava que Tatanka encomendasse outra escada. O que eles queriam era exatamente esta escada, que a General Motors comprou e patenteou o modelo. A escadinha fez um sucesso estrondoso, vendeu mais de um milhão em dois anos, e segue vendendo até hoje.

 

FLORIANO MARTINS

Do outro lado do mundo, tal sorte não teve outro guerreiro de baixa estatura, o Kublai Kahn, pois, ao invés dos puros-sangues que vieram da Europa para a América, seus miúdos pôneis tornaram desnecessária a invenção da famosa escadinha. Mas deu sorte o mongol por contar com a presença do pai espiritual do Leonardo da Vinci, o jovem Marco Polo, que para ele inventou a primeira catapulta da história, permitindo que Kublai conquistasse a China após a derrubada de uma parte da Grande Muralha, por onde passou com mil guerreiros. Na América as conquistas do território nativo chegaram a ter participação de associados alienígenas, pois até hoje não se sabe o que ocorreu com o império guatemalteco. Até hoje o fantasma de um condor dourado esquadrinha os céus e lá do alto procura o destino de Atlântida, um mistério mais bem guardado do que os segredos do Vaticano. Quanto ao império do Tananka, em Hollywood já ninguém quer tocar no assunto.

 

ZUCA SARDAN

O império guatemalteco foi rapidamente devorado pela floresta tropical centro-americana, inclusive a capital do reino de Galtek-Aspik foi totalmente submersa, enquanto o rei Galtek seguia fingindo que estava tudo normal. A floresta devorou toda a cidade, das salas às cozinhas, as fortalezas, os templos e o Palácio imperial. Não há a menor explicação. Os sobreviventes, que só se sabe que são sobreviventes porque têm exatamente a mesmíssima fisionomia dos extraordinários baixos-relevos de cenas de estripamentos de vítimas para um ritual, estes nada sabem de seus antepassados. Não têm a menor ideia do que se teria passado, e fingem que nada tenha acontecido.

 

FLORIANO MARTINS

A floresta também devorou Chernobyl, e nos arredores todos também fingem que não sabem o que houve. Parece que a floresta causa esse efeito sempre que mata a sua fome. No Reino de Paul’Afonso as luzes se escondiam da escuridão. Um prefeito folgazão mandou construir uma réplica da Torre do Combo, onde até hoje se acumulam as miçangas com que nossos amerabas foram levados na troça. Aos visitantes continuam presenteando miniaturas de urubu empalhado, ave que foi nosso primeiro totem, antes mesmo da chegada do Zé Carioca. Os colonizadores espirraram em terras brasileiras a primeira pandemia seletiva do continente.

 

ZUCA SARDAN

[Em silêncio.]

 

FLORIANO MARTINS

Eu também por momentos me calo, ressoa em meu íntimo um silêncio que é pura indignação.

 

ZUCA SARDAN

[Em silêncio.]

 

FLORIANO MARTINS

…mas logo me recupero e me ponho a recordar essas atrocidades todas.

 

ZUCA SARDAN

[Em silêncio.]

 

FLORIANO MARTINS

Já chega, meu velho. Vamos continuar.

 

SINEIRO

O velho dormiu. Acendam as bênçãos dos intrépidos cajados. Ouçam com atenção, o velho está ressonando. Se alguém não fizer nada, logo ouviremos o estardalhaço de uma sinfonia de roncos. Chamem o médico!

 

DOUTOR PASTILHA

E não só o velho, mas… todos os alunos e alunas do Colégio Prutuca exalam ronquinhos variados. A diretora Dona Randyra entra sorrateira na sala, na ponta das sandálias mexicanas, senta-se ao piano, suspira fundo… agita as pulseiras, e… toca em surdina um bolero.

 

ZUCA SARDAN

[Voltando a falar, como se nada tivesse ocorrido, acumulando as falas perdidas.] O império guatemalteco foi rapidamente devorado pela floresta tropical centro-americana, inclusive a capital do reino de Galtek-Aspik foi totalmente submersa, enquanto o rei Galtek seguia fingindo que estava tudo normal. A floresta devorou toda a cidade, das salas às cozinhas, as fortalezas, os templos e o Palácio imperial. Não há a menor explicação. Os sobreviventes, que só se sabe que são sobreviventes porque têm exatamente a mesmíssima fisionomia dos extraordinários baixos-relevos de cenas de estripamentos de vítimas para um ritual, estes nada sabem de seus antepassados. Não têm a menor ideia do que se teria passado, e fingem que nada tenha acontecido. Outras pandemias viriam, no Novo e Velho Mundo, tal a Peste Negra e a Gripe Espanhola. Mas a que conosco ora convive em pleno século 21, justamente quando iniciamos a projetada conquista e colonização do Cosmos, a partir de nossos Planetas Hermanos do Sistema Solar… esta Epidemia Global no Conho Terrestre (globalização do Conho Sur)… de que podemos flagrar os seus propagadores… através de nossos moderníssimos microscópios, esses micropatas vírus Covidis Corocas… que alegres convidam seus primos para compartir a matança globalizada do Homo Sapiens… Só a Pharmácia Sysipho, do Doutor Galeno poderá contê-los. A enfermeira loura Walkyria, da Pharmácia Sisypho, aplica pessoalmente a vacina nos pacientes embevecidos… A fila já dá cinco voltas concêntricas do quarteirão onde se encontra a pequena bodega, com sua magnífica coleção de múmias egypcias autênticas, envoltas em suas faixas colantes, que valorizam as formas voluptuosas de algumas múmias femininas mais robustas. As atrocidades começam no micro-mundo dos insetos… as formigas castigando suas lagartas escravas cegas… a Aranha Negra devorando seu maridinho durante a cópula de núpcias… e de manhã… a Noiva já acorda Viúva… Negra.

 

FLORIANO MARTINS

Assim eram as lendas com seus lampadários elétricos e os tesouros emparedados. Alguns informes chegavam através de cartas enviadas aos cuidados do Doutor Galeno. Certa vez Walkyria abriu uma das missivas e o envelope continha um pó que logo a fez espirrar, espalhando seu conteúdo por todo o balcão da bodega. O pai veio correndo ver do que se tratava, mas já era tarde e a curiosa Walkyria pagou alto preço por sua bisbilhotice. Estatelada no chão, dura como um rio congelado, não restou a Doutor Galeno senão enfaixá-la para que fizesse companhia às múmias. O velho acabou fechando seu comércio farmacológico por um tempo, de posse de sua Enciclopédia dos Mundos Esquecidos e escolheu ao acaso um lugar no mapa onde esperava passar o próximo semestre.

 

ZUCA SARDAN

Com a partida em férias do Doutor Galeno… há um sério perigo de que os safados micropatas Covide-Corocas voltem à carga… O que logo se verá. O que será, será…

 

FLORIANO MARTINS

Férias reparadores, segundo me disse, para curar algumas de suas obsessões mais alopradas. As obsessões são como pulgas que se escondem nas frestas do assoalho. Há aquelas que querem atear fogo no circo, e outras que não trocam o picadeiro por nada neste mundo. Umas escapam com vida até mesmo do alcatrão derretido, enquanto outras se fingem de mortas para atormentar o outro mundo. As obsessões furam o bolo antes da festa ou reabrem as cicatrizes veteranas. Dizei-me, Zuca, dentre as tuas obsessões, quais aquelas inegociáveis?

 

ZUCA SARDAN

São tantas, que já perdi a conta. Felizmente tenho um martelo totêmico que as massacra ininterruptamente, sem sequer me avisar. Minha única precaução é evitar psicanalistas, sobretudo os de boa vontade, que iriam querer desmontar o martelo totêmico… e seriam massacrados… sem que ninguém me avisasse. E os psicanalistas de má vontade iriam, pelo contrário, procurar a todo custo preservar o martelo totêmico, de modo a ter um cliente por décadas a fio, e… poderiam escrever um tratado que botaria os do Freud no chinelo.

 

FLORIANO MARTINS

Fui a um desses, certa vez. Queria a todo custo a senha de acesso ao fundo falso de meus devaneios. Na segunda sessão lhe fiz crer que meu inconsciente era uma espelunca bagunçada irredutível a qualquer intento de arrumação. Ao final do encontro me disse que estava certo de que eu não retornaria ao consultório. Assim foi. Há um ditado árabe que garante que bússola remendada não dá boa viagem. Deste modo, acomodo bem em meu Zeppelin todas as obsessões, de fio a pavio, o que me permite um pulsante equilíbrio entre perdas & planos. E como costumas viajar, de chinelo ou lamparina?

 

ZUCA SARDAN

Embora os chinelos sejam mais confortáveis… por prudência, viajo de lamparina.

 

FLORIANO MARTINS

As meias também são de grande fortuna quando as almeias sabem improvisar seus passos. Toda grande viagem será sempre lasciva, de modo que os barbantes do acaso permitem girar, girar, vendo o mundo lá embaixo de vários ângulos. Uma meada de horizonte e mesmo estáticos temos a impressão de vento em popa. O Colégio Prutuca, ao contrário, ensina a seus alunos a não desgrudarem do mastro central de seus movimentos. O ensino assim evitar comer pelas beiradas e o resultado já se sabe: um micro-mundo projetado para manter a lógica sempre atarraxada.

 

ZUCA SARDAN

Mercê de tal espartana disciplina os alunos e lunacas que lograram descolar um diploma do Colágio Prutuca… são os preferidos pelas firmas transnacionais.

 

FLORIANO MARTINS

Descolam férias nas luas de Saturno e recebem as senhas das roletas em todos os cassinos da região em que trabalham. O que prova que, por mais que se disfarcem em truques da diplomacia, os burgos continuam em pleno funcionamento.

 

ZUCA SARDAN

Com a revolução tecno-informático-pestilenta do novo Milênio… a Diplomacia e a Igreja precisam inventar novos truques e maravilhas com seus ases-de-colete.

 

FLORIANO MARTINS

Mas o que se vê é justo o contrário, essas duas sopas do enforcado nos afogam a alma, somos puxados pelos pés para o fundo do prato. Dos púlpitos televisivos ao malote-suborninho, das passeatas pela fé aos jatinhos fretados para os paraísos fiscais, os truques, se em algo mudaram, foi na desfaçatez à mostra.

 

ZUCA SARDAN

Pois é, se agitam e agitam em louca paixão. Mas o Colégio Prututa é a Glória Supina da América Latina…

 

FLORIANO MARTINS

…e os terninhos dourados tocam suas maracas no embalo das luzes psicodélicas: quem vem, quem vai, ainda ontem eu fui atrás do jabá na terra santa, Sulamita piscou alto, me pedindo uma guarida, dei pra ela um bom repasto, na janela do trem-bala, chaca-chaca, cam-cam, quero ver quem vai levar maraquinhas pro velório, quando o deus bater as botas, só o diabo vai dançar…

 

ZUCA SARDAN

Não creio que o Diabo dance se acaso Deus morrer… Porque se tal acontecer ele terá trabalho acumulado… terá de seguir na sua faina noturna de organizar sabbaths e propiciar alguns estripamentos e presidir missas de seus fiéis demoníacos, mas… teria doravante de se ocupar também dos fiéis cristãos, e se fingir de Deus em suas missas… para perdê-los. Afinal… o Diabo é preguiçoso, e já reclama de seus pesadíssimos encargos. Telefonaria para Deus para convencê-lo a não morrer. E diria:

 

DIABO

Sigai vivo, Santo Padre!… Não vos deixe morrer. Nós todos, eu sobretudo, mais do que qualquer outro Arcanjo, ou Demônio, preciso de Vós!…

 

DEUS

Deve estar havendo algum engano, por aqui chegaram notícias da dança macabra improvisada por alguém que desconheço, mas quando vi do que se trata até ri. Todos sabem da impossibilidade da morte se abater apenas sobre um de nós. Fosse assim, cá entre nós, tu mesmo já terias providenciado a minha morte, confesse. Ou mesmo eu, porque há momentos em que me causas um desconforto atroz.

 

FLORIANO MARTINS

Um antigo bedel do Colégio Prutuca me disse certa vez que a peleja entre Deus e o Diabo sempre foi superestimada, como modo de identificar as posições tomadas por alunos e professores. As duas figuras totêmicas, segundo Fragismundo, o bedel, sempre viveram em boa harmonia, quando muito Deus se irritando com o excesso de humor do Diabo.

 

ZUCA SARDAN

Acho que o humor do Diabo é mais escancarado… Deus se irrita é com a bulha e escarcéu que o Diabo faz de suas piadas… ri às gargalhadas, rola no chão de rir, se acha um grande humorista e ri por ele próprio e para seu assustado auditório.

 

SINEIRO

(Imitando a gargalhada do Diabo.) Ahhhhhrrhhsaahhhasshhaaaahhhhh

 

Talvez seja hora de um breve intervalo, nossos convidados, bem como os alunos e mestres, merecem beber a água Cambuquira e fazer um pipi. Fidelia Santos, nossa fidedigna maquiadora, também deve retocar a maquiagem de Zuca Sardan e Floriano Martins, que logo retornarão ao convívio de todos, para a etapa seguinte de seu improviso patafísico.

[…]

Tomem seus lugares, que recomeçaremos. Nossos convidados já estão prontos (na verdade, eles sempre estão prontos) para a segunda parte, luzes, testando o som, silêncio, vamos lá:

 

ZUCA SARDAN

Prezado Público, que bom ver-vos todos de novo!… Como sois fiééééisss… sniff-sniff… (Puxo discreto do bolso um lenço e assoo e fungo o nariz.) FOOOONNNNGGG!!!

 

PÚBLICO

(Em delírio.) BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!! paff-paff!!! plac!!! Ziiiffft BANNNGGG!!!!!! BOOONNNGGG!!! (Aplausos frenéticos, bate-pés, foguetes.)

 

ZUCA SARDAN

(Em lááágrimas.) Aaaai, que emoção… nunca fui tão bem recebido assim!!… Em meus oitenta e tais anos de carreira, nunca recebi uma recepção tão entusiasta… mercy mercy…. (Procuro disfarçar a fungada inicial.)… Pois é… eu sabia que vocês iam gostar da minha música concreta… Antes, costumava fazer com pente e naco de papel…

 

DONA EDMÉIA

(Da primeira fila…) Bravos, Zappa, sua assoada foi comovente, música concreta sentimental!… Nós adoramos você!!!

 

PÚBLICO

(Em delírio.) Zappa!!! Zappa!!! Zaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaappaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaazaaaaappppaaaaaaaaa!!!

 

ZUCA SARDAN

(Surpreso.) Mas há um enganinho… não sou exatamente o Zappa… mas enfim… quase… eu sou o Zuuuuuuuuuca!!! com UUU do Cassino da UUUURCAAAA!!!

 

DONA EDMÉIA

(Surpresa.) Zuca?… Que Zuca?… Ora Zappa, você sempre aprontando esses truques!… Pensa que me engana?… Ah, Zappa!… você é danado!…

 

ZUCA SARDAN

A Senhora não se lembra de mim?, em tantos e tantos espetáculos!, no Theatro Cyclame, no Cine Azteka, na Tevê Medéia, programa de calouros …

 

HORÁCIO

(Irritado, para Edméia.) Está vendo só, Edméia???… Eu lhe disse, esse velho coroca não é o Zappa!!!

 

DONA EDMÉIA

Ele envelheceu, Horácio, nós todos sniff-sniff… todos en-ve-lhe-cemos, Horácio… que tristeza… mas é preciso sabermos envelhecer…

 

HORÁCIO

Envelhecer um Naaabooo!!! Este Teatro cometeu um Esbulhooooooo!!! Botou em cena este velho coroca, com o nome do Zappa!!!…

 

PÚBLICO

(Súbito enfurecido.) Peeegaaa!!! Maaataaa!!! Esfoooollaaaaaaaaaaaa!!! Fooooogooooo!!!

 

BEDEL

(Surdina, pro Arauto.) Está vendo só, Arnaldo?… O truquezinho do erro de ortografia que o Gerente inventou, deu cagada!!!… Anuncia presto a entrada do Floriano, ou esses psicopatas vão nos esfolar…

 

ARAUTO

(Pálido.) Prezado Público!… E agora com vocês o fantástico, fenomenal… Floriaaaannnnnoooooo!!!…

 

FLORIANO MARTINS

Pelo visto não há outro modo dessa Torre Louca ser permanentemente reerguida, senão provocando suas múltiplas quedas e seus estardalhaços. Por vezes algumas dessas quedas nos jogam bem longe do lugar de seu impulso. Veja o que aconteceu agora, e não me refiro à confusão entre os nomes de Zappa e Zuca, mas sim às reações do pasto escolar, na verdade, uma deformação de identidade do que deveria ser o auditório da Escola das Marrecas e vejo agora que por instantes caímos em outra fatia espacial, um teatrinho com seu público histérico, naturalmente se sentindo enganado pela confusão entre gato e lebre. Creio que foi justamente ao assoar o nariz que Zuca Sardan desmoronou uma realidade e outra se pôs em seu lugar. Talvez agora o Arauto tenha refeito a ordem destrambelhada. Isto nos leva a crer que a lógica está sempre por um fio, que os alunos do Colégio Prutuca devem aprender que a verdade, ao contrário da mentira, é o que se deseja ouvir, e não o que de fato ocorre. O mesmo se passa com a ordem ou qualquer outro sistema tubular de apreensão de bens e costumes.

 

ZUCA SARDAN

A Lógica é uma velha Governanta severíssima, que nos quer fazer todos rezarem por sua cartilha, e está sempre do lado dos grandes batalhões. Seu filho Progresso já nos pregou boas peças. Subconscientemente, Dona Randyra e Doutor Pastilha conseguem manter Dona Lógica fora do Colégio Prutuca. Se fossem defender-se conscientemente, Dona Lógica já teria tomado o comando do Prutuca. Navegando nas suas Caravelas, os Prutucas deixavam a Lógica no porto.

 

FLORIANO MARTINS

O porto não via nisso grande negócio, por meses a fio tinha que acomodar entre suas cordas e barris os retalhos encardidos da Lógica, que atazanava a vida das tripulações em terra. O oceano é um canto de sereia, uma terra prometida que se enrola toda na linha do horizonte. Os fios do crepúsculo atiçam as veias dessa senhora que adora se prostituir quando alguém dá por sua falta. As caravelas deixaram para trás suas réplicas em tamanho original, onde os marujos se escondem pelas noites disputadas entre cartas e rum. O Colégio Prutuca possui duas rotas de navegação: uma que se estende pelas bordas do planeta e avança com a fúria das corredeiras, e uma outra que se infiltra nas torres e corredores, zombando com o inconsciente seletivo sempre que este se atreve a corrigir as rondas do conhecimento.

 

ZUCA SARDAN

El Rey Dom Joaquim teve então a genial a ideia de mandar a Lógica empacotada para França e Alemanha, onde ela fez um sucesso absoluto na Sorbonne e na Universidade de Berlim, consultada e adulada pelos maiores filósofos e cientistas daqueles tempos, e até hoje segue na Rita Parada. Desde então ela nunca mais voltou para Portugal ou para o Brasil.

 

BEDEL

(Surdina para o Arauto.) E agora, Arauto, começamos a baixar a cortina?…

 

ARAUTO

Precisamos achar um disco com uma música triunfal para tocar enquanto a cortina estiver caindo. Veja se acha por aí um com a 9ª Sinfonia do Beethoven…

 

FLORIANO MARTINS

Desde quando entramos aqui na Escola das Marrecas, para esta conferência-automática, que soubemos que experimentaríamos um loop temporal do qual só teríamos uma única chance de escapar. Uma senha disfarçada em algo que até aqui desconhecemos seria a forma possível de desativar seu mecanismo. Como quem soletra alguns pequenos vícios, trouxemos na algibeira invisível esses dois cabrestos e suas palhaçadas: Bedel e Arauto. O primeiro deles possui uma fixação por cortinas, e só lhe interessa fechar as portas, por vezes até mesmo antes de se desvendar o interior dos vislumbres. Já o Arauto, este só se realiza ao inventar cenários incompatíveis com os mistérios investigados. Um falsifica rótulos; o outro, tramelas. E nisto tanto se assemelham com a realidade que nós dois corremos o risco de ser devorados pelo joguete teórico de seus ardis. Mas Zuca, antes de nossa chegada, veja que sorte, o diretor geral do Colégio Putruca mandou para a lavanderia todas as cortinas do auditório. Graças a ele soubemos que outra das questões clássicas dos exames anuais era: as cortinas encerram o que viram ou descerram o que não viram?

 

ZUCA SARDAN

Questão dificílima… o Arauto, distinto e discreto, diz que as cortinas dos melhores teatros encerram o que viram. E o Bedel, falastrão irresponsável, acha que elas descerram o que não viram, para gáudio dos bons safados e alertas malandros.

 

FLORIANO MARTINS

No entanto, o que se vê nem sempre é o que de fato está no lugar da visão. A miragem é um truque barato da verdade que se quer descoberta. Basta que o Bedel se passe por Arauto ou vice-versa, e logo confirmamos que a ilusão é uma cimitarra cega, esquecida em um baú dos templários, que protege uma história que certamente se passou de outro modo. Quem terá mesmo descoberto a América? Quantos barris de rum ainda hoje estão enterrados em terras caribenhas?

 

ZUCA SARDAN

Quem descobriu a América foi um mascate sírio-libanês, que veio vender espanadores e rádios-de-pilha para os amerabas, a preços de liquidação.

 

FLORIANO MARTINS

Interpelado sobre o assunto o adivinho Rubaiatinho Vega não pestanejou ao afirmar que os espanadores eram feitos com penas do abutre-barbudo dos Açores que, renascidos como a gloriosa Fênix, da poeira mítica de nosso solo, abriram as suas asas sobre o monte Pascoal, espalhando fome e miséria pelo infinito das gerações, garantindo assim a sobrevida de seus sucessores, os urubus-de-cabeça-preta.

 

ZUCA SARDAN

Belíssima parábola, engajada, em louvor das espécies ameaçadas que sabem se defender. Os urubus-de-cabeça-preta mostraram que tudo é possível, havendo perseverança. Doutor Roskoff escreveu um longo tratado de 27 volumes, para provar que os urubus-de-cabeça preta são descendentes da gloriosa Fênix.

 

FLORIANO MARTINS

No volume dedicado às singularidades peçonhentas que tinham como principais predadores justamente os urubus-de-cabeça-preta, Wols Roskoff recolhe depoimentos de figuras negroides que viram como eram preparados os ninhos de centopeias em cavidades abertas em lombos de animais, um truque das aves de rapina que assim preparavam um alimento dentro de outro. Essa teoria ajudou a desvendar os mistérios da dupla identidade de muitas espécies.

 

ZUCA SARDAN

Arauto e Bedel fumam cigarro e bebem cerveja por trás da cortina, e de vez em quando dão uma espiada pela fresta...

 

BEDEL

E agora, Arauto, achas que o Wols Roskoff aparecerá, para explicar ao público sua teoria da dupla identidade de muitas espécies?

 

ARAUTO

Se avisarem ao Doutor Roskoff que sua teoria está sendo objeto de tão grande atenção… seguramente aparecerá aqui em poucos minutos com um malão de rodas repleto de seus tratados… e nunca mais sairemos daqui… a não ser… que haja uma revolta comandada pelo Doutor Pastilha.

 

BEDEL

A Revolta do Pastilha?… Creio que no Colégio me ensinaram isso, mas não me lembro direito como foi…

 

FLORIANO MARTINS

Nem de longe a direção do Colégio deixaria voltar a seu território o desordeiro Roskoff que, apesar da disciplina invejável em seu método de pesquisa e organização de uma extensa obra reflexiva, tem verdadeiro frisson pela bagunça, desavenças intelectuais e incitação às revoltas estudantis. Dentre elas, claro, a mais famosa é a do Pastilha, que dizem ter sido influência de Wols no currículo manchado do Douto Pastilha. O Colégio desde então destituiu por completo a doutrina do livre pensamento que tantos desassossegos trouxe para sua rotina eclesiástica. Na época dessa célebre revolta, Zuca, eras do quadro docente da escola ou não? Conta-nos um pouco o que se passou e logo falarei da teoria da dupla identidade.

 

ZUCA SARDAN

A revolta, na realidade, foi uma briga dos alunos do Colégio Prutuca contra os ginasiais do Lyceo Pytanga. Uma espécie de réplica da batalha final da famosa guerra da roceira e ignara Sparta, no caso o Colégio Prutuca, contra a erudita e refinada Athenas, no caso, logicamente, o Lyceo Pytanga. Reytor Finel, eminente pacifista, que foi consagrado na Conferência da Paz de Amsterdam, quando foi intitulado pelo Príncipe de Nassau de O Papagaio de Amsterdam, em razão de sua loquaz erudição, teve foto publicada no famoso vespertino Telegraaaph – com três a, para diferençá-lo do Telegraaph, um periódico rival, após batalha jurídica sobre direitos autorais do título até então idêntico, dos dois afamados vespertinos. O artigo era de primeira página, com vários pontos de exclamação. Reitor Finel, embora sagaz conhecedor do grego e do latim, escorrega um pouco no batavo, de que os erres carregadíssimos lhe dão dor de garganta. Assim, embora certamente fosse artigo de merecido elogio, estava praticamente ilegível para nosso articulado Papagaio de Amsterdam. Dona Randyra, porém, insiste em que o Colégio Prutuca é mais moderno do que o esclerosado Lyceo Pytanga, porque o Reytor ficou atrasado na História Contemporânea, e nada sabe, por exemplo, da gloriosa alunissagem do foguete estadunidense, quando eles, alunos do Colégio Prutuca, plantaram a bandeira nacional no solo da Lua. Isso é coisa que todos alunos do Colégio Prutuca sabem, mas não se gabam, com sua discrição espartana. Mas, e os frajolas escolares do Lyceo Pytanga? Ainda estão estudando a História de Napoleão… Os estudos, no entanto, param quando Napoleão se prepara para entrar em Moscou.

 

FLORIANO MARTINS

Quando a Torre Louca foi erguida, o mundo já dava por bastante evidente o atraso humanístico do Lyceo Pytanga, que não só havia repudiado as teorias de Wols Roskoff, como dois de seus eminentes professores havia movido uma sórdida campanha sobre a bombástica conferência deste intitulada “Como a história chega ao fim”, em que prova que a queda dos contextos sociais se deu por não aceitarem que no íntimo seriam sensuais seus mais relevantes contextos. Roskoff defendia ardentemente que a felicidade só encontra caminho na escuridão através das relações sexuais. A grande revolução social buscada de todas as partes só alcançaria êxito com a imprecisão provocativa dos festejos anatômicos. Os mais atrevidos saiam pelas ruas exibindo cartazes onde se lia Tudo no mundo é sexo ou A vida é uma festa. Uma parte dessa quermesse de ousadias foi apropriada pelo Colégio Prutuca, mais progressista, mesmo assim com alguns estribilhos invertidos. Somente as partes devem ser copiadas tornou-se o apotegma preferido dessa nova ordem do conhecimento. De modo que a escola orgiástica foi acusada de estupidez orquestral, e teve decretada sua expulsão da grade curricular. Foi nessa mesma época que Wols Roskoff ampliou a sua teoria da dupla identidade, em que descrevia o modo como os corpos de distintas famílias animais se sobrepunham – priorizando o encontro entre predadores e vítimas, e não os concertos amorosos – mesclando as identidades, sem que uma ocupasse lugar da outra, antes criando um híbrido em que as mais perigosas e incompletas rotas eram traçadas. Roskoff também fora acusado de não apresentar sustentação para seus disparates, porém ele argumentava que ao dar exemplos estaria regulando o assunto, livrando-o de seu repertório amplo de experimentos. A situação piorou quando ele deu nova conferência, “Sobre os microfones remendados”, onde fazia a plateia entender que estava sendo conduzida ao abismo, por efeito de indução, onde a história a todo instante era retorcida e viciada em duas ou três frases torpes.

 

ZUCA SARDAN

Doutor Wols Roskoff é um personagem polêmico. Foi visitar Doutor Zig Froyd, e o sábio austríaco, após breve conversa, pigarreou discretamente…

 

ZIG FROYD

Prezado Doutor Roskoff, vossa Libido pirou, e vossa Esfinge quer trepar com todo mundo. Deveis vos submeter a uma psicanálise intensiva, com a máxima urgência. Estais em avançado estado de alienação mental. Sendo vós um brilhante colega, proponho-me a psicanalisá-lo gratuitamente. Não há tempo a perder.

 

WOLS ROSKOFF

(Levanta-se digno, bota chapéu, empunha a bengala.) Prezado Doutor Froyd, malgrado vossa genialidade, o Tempo passa… vossa Psicanálise vai-se tornando demodê e ultrapassada. A Revolução da Liberação da Libido já está em avançado processo. Vossa Psicanálise não conseguiu se libertar da repressão moral burguesa. E a revolução marxista-leninista tampouco. Não contam, mas acreditam que a Religião e Bons Costumes servem para conter a população numa certa disciplina, até que se imponha a moral operária. Agora, preciso partir. Tenho outros importantes compromissos marcados. Até mais ver.

 

ZIG FREUD

(Apertando o botão da campainha.) Meu mordomo virá acompanhá-lo. Meus melhores augúrios para uma frutífera e agradável estada em Viena. (Entra o Mordomo chinês Fong Pó, faz respeitosa carambola, e conduz Doutor Roskoff. Saem os rumo ao elevador. Sete minutos depois, Zig Froyd aperta o botão da campainha, aparece o chinês, e perfaz nova e original carambola.) Pois então, Fong Pó, e Doutor Roskoff?

 

FONG PÓ

Muito amave e convessadô. Deu-me de presente, autoglafado, seu livlo de sakanage.

 

FLORIANO MARTINS

A verdade é que a perfumaria libidinosa de Zig Freud não contava com a prescrição, os frasquinhos sequer referiam a data de validade, assim que a clientela foi dando, com o tempo, pela perda de efeito daquelas essências, xiringavam mais e mais o conteúdo das garrafinhas e a tal revolução sexual mais parecia haver chegado ao fim.

 

FONG PÓ

Sô Dotô, queu faz com esse estoque de frasquinhos de libido que ainda estão encaixotados na despensa?

 

ZIG FREUD

Não tenho mais idade para atender aos ditames do tempo e suas charadas de pé-quebrado. Consulte o Lô Pradinho, peça a ele que refaça rótulos e embalagens, nosso spray agora será utilizado para remover furúnculos. Vamos batizá-lo de Flor de Abcessos, que tal? E diga ao Pradinho que não me cobre nada, pois ainda me deves portentosos favores, por haver guardado segredo dos crimes de sua irmã e das vezes que ele mesmo estuprou a criada tailandesa.

 

FLORIANO MARTINS

A decisão coincidiu com a invasão no mercado dos antidepressivos que deram o tiro de misericórdia na libido. De um modo ou outro, Zig Freud saiu vitorioso, como sempre acontece com os mais astutos patifes da história. Hoje o desejo foi completamente canalizado para o consumo de marcas de ocasião. O Colégio Prutuca até agradece, uma vez que o sexo voltou a ser mecânica de reprodução.

 

ZUCA SARDAN

A mecânica da reprodução, como diz Doutor Gambetta, deve ser mantida, para garantirmos a renovação do proletariado. Quanto à renovação da classe empresarial, se os próprios empresários não a garantirem, jovens proletários, alugando ternos chiques na loja do Rolhas, se infiltrarão discretamente na Elite, e começarão a assumir postos cada vez mais elevados.

 

FLORIANO MARTINS

As casas lotéricas, as escolas de teledramaturgia e as regras eletivas definidas pelo Tribunal das Cadeiras Vazias têm sido associados intrépidos das jornadas evangélicas e sua estratégia de desmoralização da classe intelectual e infiltração do dogma da sacolinha.

 

ZUCA SARDAN

Pois é, havendo nossa sociedade perdido o Farol luminoso do Doutor Froyd, que liderava a progressiva liberação da Libido dentro dos limites do decoro da Elite… ficamos nós de espectadores, tanto faz se a favor ou contra, face ao Caos Orgiástico, com os desafios da Pós-Modernidade na Sacanagem sem parâmetros inicialmente propugnada por Doutor Roskoff. Mas, ironias do Destino, Wols foi superado
pela esbodeação sexual que tomou conta do Planeta. E os volumosos tratados da chamada Roskoffosia hoje vegetam nas prateleiras de fundo dos sebos mais modestos, ao lado de livros usados de HQ super-eróticos, com belas mulheres quase nuas em poses provocantes para os visoleitores… em histórias de Meta-sacanagem, para um novo público plurissexual que nem sabe e nem quer saber de quem seja o Doutor Roskoff, e não abrem sequer aqueles seus bolorentos tratados de língua empolada e que não têm nenhuma ilustração, uma torração de saco monumental, vendidos hoje ao peso de papel usado.

 

FLORIANO MARTINS

Em meio a esse vendaval de descalabros, ninguém poderia suspeitar que viéssemos ao menos a refletir um pouco sobre a condição macaqueada de nossa cultura graças a um livro ditado por alguém que jamais soube ler ou escrever. Quando as línguas já haviam se convertido em guetos de impossível inter-relação, e o planeta se via devorado por um esperanto de uma centena de palavras que se repetiam descaradamente variando significados ao vento da ocasião, justo neste periclitante momento, Astor Quemedera reúne três amigos que aceitaram escrever seus relatos autobiográfico e surge assim O frasco das veleidades, suas observações da decadência de uma época onde os idiomas perderam o viço e a cultura – agora de missas & massas – tornou-se uma emboscada para fritar o cérebro daqueles que ainda insistiam no valor sagrado do indivíduo.

 

ZUCA SARDAN

Descoberta a esparrela da Serpente, e expulsos Adão e Eva do Paraíso, que se encontrava em Pindorama, como demonstrou o Doutor Pastilha, os bichos foram rapidamente abandonando o Paraíso, e só ficou o Papagaio, puxando papo com o Arcanjo Sentinela, que, isolado naquele matagal amazônico, prazerosamente conversava com o Papagaio… E assim o Papagaio foi o único bicho, que até hoje, ainda sabe falar.

 

FLORIANO MARTINS

E hoje fala um melhor português do que todos os ilustres afivelados do Colégio Prutuca. Levaria uma vida folgada, entre suas incontáveis conquistas com as galinhas das feiras e velórios, não fosse um destempero que lhe acometeu a alma ao deixar cair no chão a caixinha onde guardava em arranjo cronológico as plumas de todas elas, troféu invejável de seus amores galináceos. Com o objeto despencando no chão as peninhas se espalharam por toda parte e é como se, de súbito, toda a sua biografia embaralhasse as páginas manuscritas. O pobre Papagaio ainda fala, porém não mais lhe apetece sequer olhar para um poleiro.

 

ZUCA SARDAN

Como parou de falar o Papagaio… seu dono, um Chofer de caminhão que o levava em suas viagens para ter com quem conversar, vendeu-o por uns reles cobres, a um trapeiro, durante uma parada, num posto de gasolina.

 

FLORIANO MARTINS

Esta súbita mudança de cenário ocasionou uma verdadeira alteração de significado da própria vida, Salazar, o Papagaio, reconheceu no trapeiro o seu guia espiritual. Passou a acreditar em coisas do fim do mundo e mesmo que tenha emudecido descobriu um modo de eletrizar as pessoas convencendo-as de que algo se aproximava e levaria consigo toda a vida no planeta. Alê Justino foi o nome de batismo que Salazar deu ao boneco de ventríloquo com que lhe presenteara Salazar. Algo inusitado um mudo e seu boneco falante, mas a vida a essa altura tornara a fé um imperativo, por mais disfarçada de loucura ela se apresentasse. No que se desentendiam os dois, Salazar e Justino, era justamente no que diz respeito ao aclamado fim do mundo.

 

JUSTINO

Não pode haver um fim do mundo generalizado, pois o fim das coisas é um conceito individual, e até mesmo em cada pessoa ele sofre alteração. Deste modo, há infinitos fins de mundo, e o próprio mundo difere de um para outro de seus habitantes.

 

SALAZAR

Mas que raios de confusão estás fazendo, seu pasto de cupins, é de uma metáfora que se trata, uma alegoria que aponta na direção de um término de sentido, as coisas deixam de ser como pensamos, e nós mesmos deixamos de ser o que acreditávamos ser.

 

FLORIANO MARTINS

O Chofer de caminhão talvez tenha dado a Salazar uma nova razão de ser, um boneco de ventríloquo que possuía livre-arbítrio costurado em sua cabeça. Alê Justino parece ter sido uma vingança daquelas galinhas todas que caíram no bico de Salazar.

 

ZUCA SARDAN

Papagaio Salazar tem sua imagem projetada para a Posteridade, aparecendo ao ombro do Almirante Vasco da Gama, vendo-se ao fundo, no lusco-fusco, as belíssimas tetas de Thétis, a deliciosa Nereida do Gama. O afresco, na parede dos fundos do Bar Caravela, tem autoria contestada, uns dizem que seria do Victor Hugo; outros, mais patrióticos, afirmam que é do Victor Meirelles, o genial pintor da Primeira Missa do Brasil.

 

FLORIANO MARTINS

As pequenas mechas de uma civilização à deriva radicam nessas dúvidas de quem pintou a Bartira, quem surrupiou a bandeira, quem escondeu em um dos baús de miçangas o sextante imperial. Para muitos, essas proezas eram nosso dote de alta molecagem indígena; para outros, os primeiros granulados das prevaricações que se alastrariam por toda a terra pátria.

 

ZUCA SARDAN

Acho que o Brasil nasceu de uma mistura originalíssima de três raças com mitos milenares completamente diferentes, e que criaram esse misterioso e imprevisto poço sem fundo, onde esses três mythos coletivos são obrigados a conviver numas parcerias e arrumações que nós, na superfície, sabemos que existem, e que até inconscientemente utilizamos, mas não sabemos como se entendem, e ajeitam suas contradições, e nem os Três Mythos querem que saibamos, para que não comecemos a querer ordená-los e… progredirmos, segundo as ideias iluministas agnósticas em que o Doutor Pastilha se esmera.

 

FLORIANO MARTINS

Os três mitos efêmeros consagrados ao Lugar Nenhum, por onde as terras se alongam e se contorcem, com suas espeluncas e vapores descarnados. O grande Vazio de raças envelhecidas na poeira dos pecados e estações. Tanto esses mitos se misturaram que já não se reconhecem do outro lado do labirinto. À sombra do fim dos tempos sempre enlaçamos novas arrumações que nos fazem retornar ao catecismo original. Desenterramos um aparelhinho capaz de acidentar os polos. No centro do país construímos uma caixa onde amontoamos todos os fardos da história. Olhando do alto podemos ver a quilha emborcada das caravelas, estatuetas do candomblé, os requebros de Jandira, ossuário de pequenos martírios, os olhos desterrados da graúna. Tudo ali amolece e se embrulha e quando metemos a mão colhemos ao acaso o símbolo de uma nova gestação. Sempre a mesma praga ilusória, o mesmo quinhão de desculpas, a mesma cama onde nos enfiamos todos para uma última oração carnal antes da caixa ser fechada e reaberta.

 

SINEIRO

Será que desafinamos por todos os poros e jogamos ao mar as nossas ilusões de um povo que jamais caiu em si?

 

ZUCA SARDAN

Se o Povo não cair jamais em si… segue tudo como dantes, o que é mais provável. E tanto melhor. Sobretudo se não caírem em cima de nós. Até agora escapamos porque não somos subversivos, mas somente um poucochito desbocados. O Marechal Ferrolho nada tem contra nós. Mas imagine se a Revolução Marxista Popular ganhasse!… O que faríamos nós?… Ler Marx?… Que suplício de Sisypho!… Ao chegar às últimas páginas, já teríamos esquecido o começo!… E o Lênin? Poderíamos ler as páginas esportivas da Pravda… Mas isso não satisfaria ao Conselho de Reeducação Popular. Teríamos de ler todos os tratados de Lênin e fazer um teste de Conhecimentos Básicos do Materialismo Dialético. E só poderíamos sair do Internato de Reeducação quando passássemos no exame. Parece que Confúcio, após ter vários de seus bustos quebrados, finalmente conseguiu… Mas nós, o que faríamos no Internato?… Talvez tocar umas rumbas!… Rumbas Cubanas!… Nas maracas!… e um pouquito de rum… com uns pasteizinhos da China… Chaca-Chaca-Chaca…

 

SINEIRO

Pior do que antes de finalizar a leitura de um livro haver esquecido como ele começa é ir aos poucos descobrindo que não se encontram o passado da leitura com a leitura do passado.

 

FLORIANO MARTINS

A ideia de um livro que vai perdendo propósito na medida em que é lido, porém mesmo assim nos sentimos forçados a ir até a última página, onde se supõe esteja guardada a chave para um novo mundo. O protagonista de nossa epopeia é filho de Jeová e Iemanjá, e escondeu seus santinhos no interior do busto sobrevivente de Confúcio e um retratinho da Cobra Norato.

 

SINEIRO

Depois foram todos chorar na fonte dos três poderes…

 

FLORIANO MARTINS

Na prova de religião, o desafio maior estava na decisão a ser tomada, se a primeira missa teria sido rezada em favor da cama ou do mosquetão. Uns tiros para o alto e os lençóis ao chão.

 

ZUCA SARDAN

(Voltando ao palco, de pasta, chapéu e bengala, que coloca ao lado e ao espaldar da cadeira, e distribui sobre a mesa umas tantas folhas garatujadas, pluma de asa da graúna, tinteiro, rádio-galena, e ajeita o pincenez.) Pois é, minhas cenouras e barões achinelados, cá tendes o vosso fiel conselheiro de volta, para alertar-vos dos perigos meteorológicos e geológicos, furacões e incêndios vorazes destruindo metrópoles e florestas, além de chuvas diluviais que carregam casas e caminhões de cambulhada, enquanto o furo polar não pára de se alagar e aprofundar… tudo isso numa aceleração vertiginosa, enquanto os micropatas seguem festivamente matando milhões de pessoas em todas as cidades do Globo. Isso no Mundo Physico. No Mundo Metaphysico, Frei Feijão telefonou pra São Belarmindo, um santinho modesto, que não aparece em nenhuma folhinha de calendário, mas que é bem esperto e sabe das coisas profanas e divinas. Ouçamo-los falar no meu rádio-galena, que ora ligo aos gramofones do auditório.

 

FREI FEIJÃO

(Discando o telefo, tric-tric-tra-truc… BRINNNGGG!!!) Alô, SÃO Belarmindo, como vai, meu Santinho?…

 

SÃO BELARMINO

Alô, meu bom afilhado Feijão!… Por melhor que seja o Arroz, sem Feijão não há Feijoada!…

 

FREI FEIJÃO

Mas comé cossenhor adivinhou quera eu ao telefon?… Fez um pequeno milagre?…

 

SÃO BELARMINO

Não foi preciso, Jãozinho, tua voz roufenha é inconfundível… As beatas para os teus sermões devem usar rolhas…

 

FREI FEIJÃO

Realmente, São Belarmino, elas não soltam um pio… Como o Senhor sacou que elas botam rolha na boca?…

 

SÃO BELARMINO

Elas as botam nos ouvidos, Janjão… Até a próxima, rapaz. Preciso sair. Xaaau!… (Plofft!!)

 

FLORIANO MARTINS

Mas era só isso? Os alardes patafísicos que intrigaram Cama & Mosquetão continuam sendo desprezados pelo Clero, sequer tocam no assunto. Enquanto isto as rádios alardeiam que o mundo pode acabar a qualquer instante, e que os fiéis devem ficar em casa desenhando cenas apocalípticas, segundo o evangelho de Frei Feijão. Desse modo, o mundo acaba antes do fim.

 

ZUCA SARDAN

O Mundo não acaba antes do fim, porque o FIM também será comercializado no Comércio Global, atingindo preços faraônicos nos mais famosos Leilões Internacionais.

 

FLORIANO MARTINS

Evidente que a ideia de um loop temporal clássico motivado por preceitos metafísicos não vingou e o mesmo acabou sendo absorvido pelo Grande Capital. Claro, claro, o que esperar de uma gente que comercializa santinhos e seringas descartáveis! Assim é que nem mesmo precisamos fechar os olhos para cair naquela espécie de circular dos infernos, moviola dos presságios magnéticos, e zoom: de volta aos exames do Colégio Prutuca, cuja intrigante questão de hoje é saber como eliminar a água nadada na medida em que damos braçadas na lagoa.

 

ZUCA SARDAN

Difícil pergunta… Não creio que nenhum dos alunos saberá responder. Doutor Pastilha está exagerando na severidade. Enquanto isso o Arcanjo Arnoldo pousa no teto do Colégio Prutuca, com uma Trombeta!... Virá certamente anunciar o Juízo Final. Dona Cremilda, professora de Theologia viu o comportamento suspeito Arcanjo, e resolveu avisar Doutor Pastilha.

 

DOUTOR PASTILHA

Um Arcanjo no telhado, Dona Cremilda? Melhor avisar nosso Bedel, para que suba lá em cima e pergunte-lhe o que está afinal querendo aprontar…

 

FLORIANO MARTINS

Não creio que os arcanjos revelem seus segredos. As mais inconvenientes trapaças que eles costumam fazer escorrer pelas calhas ou quando aguardam de soslaio para provocar topadas nos passantes, nada disto teria efeito se revelado antecipadamente.

 

BEDEL

Seu Arcanjo, desce daí oh moleque sorrateiro. Entre lá pela cozinha que vou te dar um suco e os bolinhos de Madame Gervásia.

 

ARCANJO

Já me falaram tão mal desses bolinhos que prefiro comer os matinhos que nasceram aqui entre as telhas. Porém se queres algo fazer por mim, agradeceria um emprego de jardineiro.

 

FLORIANO MARTINS

Não disse. E mesmo o que o teria levado a sair do jardim celeste, é algo que jamais saberemos. Mas acho que ele poderia cuidar bem das flores terrenais, incluindo as meninas da lavanderia. E ainda podemos fazer com que nos prepare um novo carteado de arcanos maiores, pois aquele que Frei Dalí doou ao Colégio já está se desmanchando todo de velho.

 

ZUCA SARDAN

Aí está a chave do Mystério!!! O Arcanjo no telhado é o mesmo que expulsou Adão e Eva do Paraíso, e lá passou um tempo para não deixar malandros e vagabundos entrarem!… Mas… durante sua estada no Jardim edênico, aprendeu e se encantou com a arte da jardinagem!…

 

FLORIANO MARTINS

A chave do Mystério costuma abrir as mais inesperadas portas. Em uma dessas vezes, em um quartinho de fundos na lavanderia do Colégio Protuca demos de cara com nosso bom Sineiro festejando sandices com duas belas morenas.

 

SINEIRO

A culpa foi dos pacotinhos de amendoim que encontramos em uma das prateleiras do velho armário.

 

FLORIANO MARTINS

As morenas riam por toda a pele e nem uma gota de vergonha pingou de seu olhar levado. Mas havia algo de verdade naquela desculpa esfarrapada: o chão estava tomado de saquinhos secos de amendoim. Em todas as dependências do Colégio Prutuca sempre se podia encontrar o propósito original que tão bem definia aquela casa do saber: não se pode desperdiçar um grão de curiosidade, sob pena das ervas daninhas ocuparem os cérebros estudantis.

 

Madame Gervásia entrou no palco com uma bandejinha com chá verde e seus famosos bolinhos de gengibre. Os palestrantes se entreolharam sem saber como evitar aqueles petiscos. A velhota pesava tanto que mais se arrastava, em seu excesso de roupa, do que propriamente andava. Algum parentesco com crocodilo ela devia ter. Doutor Pastilha disfarçou uma descuidada traquinagem com uma bengala que levou ao chão a bandeja. Entraram em cena as duas morenas que o Sineiro havia batizado de Dalila e Denira, postas de quatro no chão limpando a bagunça aprontada pelo Doutor Pastilha que afanara a bengala zuquiana, e agora distraidamente vasculhava o interior da saia de Denira. A conferência estava interrompida por alguns momentos.

 

ZUCA SARDAN

Muito bem, Doutor Pastilha, agora passa-me de volta a bengala… e completa o exame do recheio da saia de Denira com a mão direita, enquanto seguras com a mão sinistra a borda da saia… E volta depois para a mesa para que assim prossigamos a Conferência já tantas vezes interrompida.

 

FLORIANO MARTINS

O mundo é refeito incansavelmente. As bananas depois de comidas retornam aos cachos nos bananais. O sangue retorna ao rio interior dos assassinados. O clima sobe e desce por todas as entranhas do planeta como sinal de uma gangorra cósmica que nem mesmo o homem consegue inutilizar. As luzes feridas pela escuridão acendem um secreto pavio e voltam a brilhar. Loop, reencarnação, magia, estes são os diapasões que permitem a humanidade saltar de uma catástrofe a outra. Nos exames do Colégio Prutuca continuam firmes as questões metafísicas como prova de que Deus e o Diabo seguem se intercalando nos papéis de Sancho & Quixote por toda a eternidade. Uma delas exige distinguir o miolo do pudor do pão seco do temor.

 

ZUCA SARDAN

A Balança do eterno Equilíbrio deve ser mantida sempre, mesmo com pesos de um quilo de oitocentas gramas. Da luta dos contrários nasce a grande harmonia. Nunca se banha duas vezes no mesmo rio, nem com o mesmo sabão. A Lua emagrece, fica preta, depois torna a engordar, fica branca. E o Sol gosta das quatro. E mais ainda da ruiva, que não entra no Calendário.

 

FLORIANO MARTINS

Os calendários, até mesmo as folhinhas das oficinas mecânicas na periferia da galáxia, vivem escondendo luas e pedaços de queijo, talvez dos ratos que mesmo abandonando as caravelas a elas retornam para desbravar novas ilhas. Só o pastel de Belém é que não consegue um lugar para garantir o eterno retorno. Quando se despedaçam na boca das cabrochas jamais suas partículas destroçadas voltam a se juntar para perpetuar a espécie. Deve ser a tal exceção sem a qual não há regra que se ponha de pé.

 

ZUCA SARDAN

Uma regra, para ser boa, precisa ter exceções. O número ideal de exceções é o sete. O grande defeito das línguas artificiais é que elas não têm exceção. São como autômatos, com gestos bem sincopados, mas desajeitados, sem graça. Precisávamos de um gênio que inventasse um dado de sete lados. O sétimo lado poderia ser menor, e diferente dos tradicionais seis lados quadrados. Já andei tentando inventar esse dado de sete lados, mas ainda não consegui. Tem de ser um dado de uma maneira especial, que não interfira no bom funcionamento desta pequena maravilha multimilenar. Talvez cortando uma de suas arestas? Teríamos então a face de um pequeno triângulo equilátero, cortando três das faces quadradas (por ex. as faces 1, 2, e 4), e equilibrando todas as seis faces quadradas.

 

FLORIANO MARTINS

Este é um problema quase sem solução, e digo que é quase porque, de outro modo não haveria solução, ou melhor, sem exceção a solução é impossível e um dado impossível é uma exceção sem solução. É preciso inventar um ângulo para onde direcionar o sétimo lado. Curiosa a predileção de João, o evangelista, pelo número sete, e, no entanto, ele jamais pensou em um dado de sete lado, o que faz com que falte melhor perspectiva em sua visão do caos. João imaginou um mundo em que todas as catástrofes corressem para um centro e este centro era Deus. E o desastre era movido pelo Arrependimento, um árduo defensor do dado de seis lados. Por absoluta falta de desprendimento, o Apocalipse se tornou a mais enfadonha das catástrofes, junto ela, a catástrofe-mãe.

 

ZUCA SARDAN

O sétimo lado do Apocalipse é oculto. O poema não pode ser considerado uma epopeia, porque não se trata de uma História do Passado, mas sim do Futuro. Todas as outras Profecias são referentes de um passado… do presente de quando foram realmente escritas, tais as profecias de Daniel, que são referentes a um tempo do futuro, mas este tempo do futuro é de um passado recente, escrito após o suposto tempo futuro, agora também passado e profetizado. No Apocalipse há uma técnica de flashback, em que passado (real) e futuro (profetizado) se revezam, num estilo cinematográfico, de modo a levar a ação de um passado real a um futuro profetizado, que jamais poderá ser comprovado e negado, visto tratar-se do Fim dos Tempos.

 

FLORIANO MARTINS

Viciado em selos, castiçais e serpentes, é também, como dizes, a negação da exceção, pois nada ali pode ser comprovadamente excedido ou tergiversado. Seus símbolos são o universo do impensável. Ninguém se atreve a vive-los senão como maldição. Será sempre uma profecia indesejável. Por isto o Chanceler Prutuca baniu tal livro da biblioteca do Colégio. Segundo ele, o que sempre pretendeu dar a seus alunos foi uma perspectiva múltipla dos tempos, e não a abominação da existência que, escavando, é o que resulta das páginas do livro de João. Aliás, as dúvidas são imensas de que teria sido o evangelista a escrever tais páginas.

 

ZUCA SARDAN

Pois é… melhor escrever Profecias do Passado, tais as do Pseudo Daniel. São mais seguras do que as que se arriscam a dar palpites sobre um futuro que nunca se sabe o que vai afinal aprontar… Assim agora, por exemplo, parece que a Natureza finalmente perdeu a paciência com nossa Civilização. Vírus Covid Micropata Coroca, microscópico, mas espertíssimo, matando milhões, tanto entre os países subdesenvolvidos, quanto entre as grandes Potências. E Furacões e tempestades de uma fúria inaudita arrasando tudo que esteja em sua passagem. Enquanto isso... festivos multimilionários fazem turismo sideral, se divertindo no espaço colossal.

 

FLORIANO MARTINS

Uma das últimas boutades do Cego Borges previa justamente que chegaria um dia em que os historiadores não conseguiriam mais prever o passado.

 

SINEIRO

Olhem bem, a plateia se inquieta, vidas futuras não movem moinho, o ingresso que cobramos tem prazo de validade, mais alguns minutos e teremos que encerrar nosso encontro. Por que não voltamos aos exames de final de ano do nosso Colégio? Os alunos gostam de saber a opinião de nossos doutos convidados acerca das questões encrenqueiras que lhe foram ministradas, do tipo: tanto evoluiu a biociência que já se perdeu a conta dos cães criados em laboratórios. Curioso paradoxo: a identidade insubornável do ser humano foi transferida para os animais.

 

ZUCA SARDAN

Prezadas e Cavaqueiros da nossa Fiel Galera, passo a palavra ao eminente Doutor Pastilha, Lente de Grau do Colégio Prutuca.

 

DOUTOR PASTILHA

Para obviar a trabalheira das correções de prova, no dia do exame chamo um a uma toda a molecada, cada um se levanta, quando chamado, e procura fazer cara inteligente; e concedo então a nota segundo a aparência e pose de cada aluno. E digo, ao final, à turma: Na sociedade mais vale parecer inteligente e dinâmico, do que ter conhecimento com cara de palerma.

 

FLORIANO MARTINS

Foram esses os dias de glória dessa já tão célebre casa do saber. A descoberta de que o ensino não é o dogma do conhecimento, porém a distração eficaz que permita a verdade nos surpreender. Chanceler Prutuca foi um precursor das lições de ostracismo, livrando seus alunos de uma cultura mesolítica de mês e mesa bem passados. As mudanças climáticas do prazer pelas descobertas não devem mais se dar em face das temperaturas ou das cartilhas de bom comportamento. Segundo ele o conhecimento deve ser produtivo e a disciplina é o segredo do avanço civilizacional.

 

ARCANJO

Já vi um céu inteiro despencar desse palanque.

 

ZUCA SARDAN

O rádio-sucupira acende seu olho mágico, solta uns estalos e agora começa a falar…

 

RÁDIO

Aproveitando um curto-circuito que escureceu o auditório, o jacaré da Quinta do Ouvidor, entra sorrateiramente no Auditório, se enfia embaixo da mesa, e mete uma botina do Doutor Pastilha.

 

JACARÉ PASTILHA

Se há algum problema de comunicação em nosso tempo é que os isolantes se atrapalham com as vozes que devem anular. Fica aquela história de alguém clamar por um santo e o diabo pousar no terreiro. Quando Madame Gervásia abre sua cozinha para a chegada quinzenal dos fornecedores, o capim já tem florido, a macieira já havia enganado Adão, os potes de geleia se esconderam nas caixas de doce de marmelo. Com tudo fora de lugar, ninguém se entendia com alguém e vice-versa. Nosso plano foi bem feito e o mundo agora terá que cavar seu próprio fim, pois os manuais evangélicos foram reimpressos como receitas de tortas de alfenim e bolos de amendoim.

 

ARCANJO

Já vi uma cama bem grande receber todas as raças.

 

JACARÉ PASTILHA

Na sua Arca, Seu Noé também recebeu todas as raças. Todos se comportaram bem, do Avestruz à Zebra… Seu Noé dava comida e bebida a todos e também a todas, umas aves de Portugal, que não levam acento circunflexo. Infelizmente, o casal de Dinossauros era gigantesco, qualquer um do casal era maior que a Arca. Não houve meio de enfiá-los a bordo. Tiveram de vir do lado de fora. Seu Noé aprontou uma coleira com corda para o Dinossauro e outra para a Dinossaura, e o casal vinha nadando, acompanhando a Arca. Mas o Temporal em vez de diminuir, aumentou, e os pobres Dinossauros acabaram morrendo enforcados nas respectivas coleiras. Seu Noé ficou desesperado, sentindo-se culpado do acidente fatal ao amável casal. Passou então a beber… Havia trazido para a viagem uma arca gigantesca empanturrada de garrafas de rum. Assim que, aos poucos foi esquecendo do triste acidente… Não obstante, seguiu bebendo cada vez mais… o Rum Pandora era o preferido na Babilônia.

 

SINEIRO

Talvez seja hora de pedir aos notáveis convidados que se inspirem na boa memória que têm de nosso Colégio e exponham suas últimas palavras, fechando essa nossa conferência-automática, pois segundo percebi no banheiro feminino, algumas damas estão ansiosas por um convívio maior com o Jacaré Pastilha, por mais que estejam cientes de que se trata de pastiche.

 

ZUCA SARDAN

Minhas Cenouras e Penhores, antes de encerrarmos esta Conferência, aproveito a oportunidade para agradecer-vos o contínuo apoio que nos ofereceis décadas a fora…

 

PLATEIA

Fora!!! Foooooora!!!! Velho faraó reacionááárioooo!!! Volta pro sarkophago!!! Foooooooooooooooooooooraaa!!!

 

ZUCA SARDAN

Muito grato por vossos entusiásticos aplausos!!! As raríssimas vaias de alguns abestados vêm testemunhar a sinceridade de vosso tradicional apoio!… Sois, bem o sabeis, a elite das plateias mais chiques, conforme atesta a presença do temporariamente deposto Rei Rigoberto, e Rainha Birgolina, do antigo Reino das Galochas… (vívidos aplausos da plateia) Rei Rigoberto, do camarote-mor, sempre acompanha, com um binóculo de hipódromo, as correrias de nosso Camelódromo. Muito grato. E agora, passo a palavra ao Doutor Florio, nosso alerta empresário, diretor e teatrólogo surrepataphysico.

 

FLORIANO MARTINS

Há muito as estrelas já despencaram todas do firmamento e se riem de nós com nossos sapatos eletrificados. Aqueles que contam as distâncias nos dedos mal desconfiam que estão por um fio no cardápio das catástrofes. O tempo soletra suas alegorias gastas e não sabe mais imitar sequer velhas hienas com seus risos desbotados e a palmilha gasta de tanto percorrer uma paisagem de folhetins. A plateia engole a seco o chafariz de areia dos melhores prantos derramados sobre os restos de tantas fábulas encardidas. As histórias contadas são um consolo de cínicos, um regozijo de viúvas de desdentadas raposas.

 

PLATEIA

Salve grande mestre das sabedorias hipocondríacas!!! Ave negra de olhos infinitos!

 

FLORIANO MARTINS

Viu só, Doutor Pastilha, como a glória pode ser um conjuro. (Novamente se dirigindo à plateia.) Que todos se levantem que é preciso tornar inesquecível a nossa saída.

 

A plateia inteira fica de pé com as mãos em uma aleluia inacreditável. Os dois convidados se despedem e deixam o recinto. Lá fora mal se escuta quando um dizia ao outro: – Por um momento pensei que isso não fosse acabar nunca!

 

CODA IMPACIENTE

(Sardanelo & Martinico já se encontram no camarim)

 

A noite perdurava lá fora e uns gatos pardos insultavam a escuridão, zombeteiros como se trocadilhassem um dos muitos jograis do purgatório:

 

DOC FLOYD

As carapuças eram ajustadas a pedido do Marquês e delas cuidava Esmeralda, a moçoila dourada, cedida ao Purgatório por Frei Feijão após a morte do Corcunda da Lapela Sixtina. Além de boa costura Esmeralda as deixava com um laço hábil de onde cabeça alguma poderia arrepender-se e escapar...

 

FREI FEIJÃO

O Marquês de Sales é um vil sálico-porquista. Fez das piores num Fabulário Porquinhol, quando escapei por pouco de ser aprisionado no seu sinistro castelo, em que organizava satânicas orgias… Acabou, por fim, após 777 infâmias, aprisionado na Bastilha.

 

DOC FLOYD

Em velhos papiros e rolos nada higiênicos foi lavrada a obra que é o espelho antecipado de nosso mundo de prevaricações. Como a época rangia limitada pelos cartéis da nobreza, não deram por conta que as suas infâmias eram uma certeira previsão do século XX, tão escanchado no próprio ego que não atinou para o caudal de reiterações de suas novenas profanas. E agora este XXI que é o próprio renascimento da Bastilha a céu aberto.

 

FREI FEIJÃO

As atuais porcalhadas desenfreadas não diminuem a importância dos pioneiros esbodeamentos do Marquês de Sales, que ele legou em bela coleção encadernada, de herança espiritual pra pornocracia industrializada do Século XXI, diligentemente atuante na televisão, já na programação vespertina, sabiamente misturada com números esportivos, culinários, infantis, sociais, políticos e culturais, e noticiário pormenorizado de crimes variados, de que as cenas sangrentas são apreciado quitute para atrair a atração do programa de permeio a filmes de pornografia mais primária, destinada às classes mais desfavorecidas.

 

SAPO CANAL

Uma noite as quatro Cassandras fizeram seguidas funções na pracinha do Majestic. Quadro cadeiras a toda prova e o mundaréu se coçando com os relatos de toda sorte de luxúria. Uma noite de martírios, açoites e banhos dourados. Uma das Cassandras, mais afoita, foi buscar na plateia a brilhosa pataca de seus gozos. Com a sua bundona de quermesse engolia todos os varões e gargalhava como uma possessa. A Cassandra mais jovem dava lições de como o prazer pode ser constante. Enquanto as duas outras recolhiam as roupas do público e improvisavam um coral.

 

DUENHA DOLORES

Ay!… que belhessa…

 

ASTROGILDO

Es berdad, Duenha Dolores…

 

SAPO CANAL

E choravam de rir enquanto regiam a cantoria.

 

CORAL

Se atreva seu bacurau a comer no meu cercado

Logo um chute na pança o fará perder a fome

Não venha cantar de galo nas dobras de meu terreiro

Ou seus bagos no jantar servirei a qualquer um

 

ASTROGILDO

[para Duenha Dolores]

Bagos, que lo sepa, son los del toro muerto en arena, que se los comen después…

 

DUENHA DOLORES

¿Después… de qué, Don Astrogildo?…

 

ASTROGILDO

Después de muerto, por supuesto, Duenha Dolores…

 

DUENHA DOLORES

Pero ahora me ha dado ganas de probar sus huevones, aunque sean fuera del cuerpo…

 

ASTROGILDO

No me venga con eso, que la Muerte anda por ahí, en su caballo pateando la tierra.

 

SAPO CANAL

A terra arada pela Morte tem um gosto sofismático, parece ser um pasto cozinhado e temperado com sutilezas de espíritos decaídos. Dizem que os defensores da terra plana são o melhor adubo para as fanfarras dessa assombrosa senhora.

 

MARQUÊS

[finalmente, porém apenas a silhueta desenhada em uma parede do canto] Ah mas quanto espero um dia enrabar essa donzela, morta ou viva, não me importa, desde que seja a dona Morte.

 

ASTROGILDO

Por piedade, Doc Floyd, este guinhol está sem cabo nem rabo, nem mais sequer cortina, já despedaçada no guinhol anterior… sem pé, nem cabeça, nem chifres, só lhe sobraram quiçá, os bagos, se não forem os do touro de Madrid... morto na arena, como um bravo…

 

DUENHA DOLORES

Nem os bagos, Dom Astrogildo, do touro sobraram, que foram comidos no banquete do Alcaide Bermudez de Madrid.

 

DOC FLOYD

As coisas no Purgatório costumam ser assim, a eternidade a banho-maria, volte um século depois e ainda não está no ponto, há sempre alguém cozinhando o pato da memória. Tampouco no Purgatório não tem cortina, pois as coisas não possuem princípio ou fim, só esse esqueleto do abismo, sustentado em uma moral esfarinhada que amolece o tutano de qualquer um. Por isto a Morte passa ao largo, vez que outra observa se alguma alma veio parar aqui por engano. Talvez por isto o Marquês tenha escolhido como palco de ensaio de suas firulas dramáticas. Outra coisa que no Purgatório não acontece nunca: a desistência da morada, a entrega do cargo, o arrependimento. Quem vem dar aqui fica como um peru em círculo de giz. Ninguém se livra do Purgatório.

 

FREI FEIJÃO

Marquês de Sade só melhorou ao fim da vida, confinado ao Hospício de Charenton, onde o Diretor, gentilíssimo, insistia que fizesse teatro para os seus inquilinos dementes… num palquinho improvisado do fundo do salão de refeições. O Marquês, malgrado já estar meio gagá e alquebrado por sua vida quase toda passada em variadas masmorras… tocado pela gentileza do Diretor, aceitou comovido… e fez umas pecinhas alegres e piedosas, que foram rejeitadas pela Posteridade, sempre ávida de suas porcalhadas, elevadas à categoria de Obras Primas da Humanidade.

 

O DIRETOR

Mesmo com a morte do Marquês nossos hóspedes seguem compondo seus jograis, algumas picarescas histórias do baú de seus desejos reprimidos. Anselmo Lacarte chegou aqui imerso em grande crise mental, lacrado em seu universo íntimo, mal abria a boca para alimento e medicação. O Marquês lhe deu um papel de destaque como a cortina de suas pecinhas. Anselmo então subia e baixava com esmero, marcando o princípio e o fim das porcalhadas.

 

AS SETE TRAGÉDIAS DE SARDANELO & MARTINICO

 

1 TRAGÉDIA DO ANÃO GIGANTE, NO THEATRO PORKOFF



 

SARDANELO

Realmente um inexplicável fenômeno… Vou telefonar pro Doutor Galeno…

 

MARTINICO

Sim, telefona, pede a ele intervenção urgente, preciso ser internado…

 

RÁDIO MECULATRA

(em mais um de seus furos imprecisos)

 

DIÁLOGO TELEPHONICO DE PLATÃO COM DOUTOR GALENO

RÁDIO

Sardanelo convenceu Platão, mestre supino dos diálogos, a convencer o Doutor Galeno.

 

PLATÃO

Alô, Doutor Galeno, falei com Florivaldo, ele está de acordo em ser internado.

 

GALENO

Poizé, Sardanelo, mas se eu o internar no Sanatório Grinalda, ele vai enlouquecer todos os que já estão remediados, após décadas de penoso tratamento…

 

SARDANELO

Mas se eles já estão remediados, o Senhor poderá soltá-los…

 

GALENO

Neste mundo de dementes globalizados?? Serão trucidados.

 

Rapidamente um cenário é improvisado, a quartinha no centro da mesa, dois copos de alumínio, a bodega de Clepto Cabroso está preparada para tudo:

 

MARTINICO

Não há como retornar à realidade, reino dos ditames, flagelo dos diálogos, o próprio Pratão só não se encontra internado no Grinalda graças a Galeno que o contratou como assessor de mazelas do espírito. Sardanelo, melhor não insistir, assim acabam te internando e ficaremos sem os nossos diálogos…

 

SARDANELO

Se me internarem, escreverei minhas Memórias do Cárcere.

 

MARTINICO

Enquanto planejas tuas memórias eu sigo escrevendo meu romance, a casa ardilosa das sete malucas…

 

SARDANELO

Falta o Anão.

O Anão e as Sete Malucas.

 

MARTINICO

É um anão gigante e tem no lugar do rosto uma mancha confusa.

 

SARDANELO

Foi esse horrível Anão Gigante que enlouqueceu as Sete Damas.

 

MARTINICO

Cada uma delas foi isolada em uma sala de interrogatório onde o anão gigante perambula pela fragilizada consciência das sete damas.

 

SARDANELO

Um drama psico-policial. O anão-gigante diz que foi aluno do Doutor Sigismindo Froyd.

 

MARTINICO

Ao abrir a porta da sala surge um olho do anão gigante e com ele o imperativo de que elas contem seus segredos…

 

SARDANELO

O terrível nitzsxeniano Imperrativus Kategorrikus… No Collàgio Prutuca, Doutor Pastilha oferece, a partir da semana que vem, um curso intensivo sobre o Imperrativus Kategorrikus do Doktor Nitzxe, com substancial abatimento de preço para sacerdotes, e militares que venham em grupo, que serão considerados como família numerosa.

 

MARTINICO

A verdade é que as corças jamais se livraram da maldição que lhes impôs suas patas de bronze. Hércules vagou pela terra um ano inteiro, esperando encontrar ao final desse tempo, a pomada de louro prometida pelo doutor Pastilha…

 

SARDANELO

Doutor Pastilha, no seu curso de Mythologia no Collàgio Prutuca, distribui a pomada de louro para os grandes heróis de Grécia e de Roma… E, certamente, Hércules receberá sua merecida latinha da miraculosa pomada, mercê de mui meritórios esfor3os em cumprir à risca seus Doze Trabalhos estafantes e perigosos… Já era pra tê-la recebido, mas se embrenhou pelo mato atrás do centauro Neso, que tentava seduzir a esposa do Herói, raptando-a em sua garupa, sob o pretexto de mostrar-lhe os recantos mais propícios do frondoso bosque.

 

MARTINICO

A esposa do herói, segundo narra um folheto de cordel, foi resgatada da garupa do centauro por um bando de faunos que afiavam seus cascos no solo pedregoso do Bosque de Frondas. Chegando lá Hércules, que do outro lado da história era conhecido por Héracles -, a amada já estava a salvo e Neso havia sido enxotado do bosque. Famoso por suas realizações mitológicas, Hércules não podia revelar que não fora ele a salvar Samíramis, seu amor quase único, de modo que os faunos concederam ao corpulento semideus a lenda daquele resgate heroico.


SARDANELO

Aí está!… Os faunos também tinham seus dias de aprontarem suas belas ações. Poderíamos concluir dizendo, como moral desta fábula: Nunca se sabe de que moita o coelho vai sair. E os Faunos, tampouco, nunca se sabe o que vão aprontar.

 

MARTINICO

As moitas agradecem os aplausos…

 

SARDANELO

A cortina plaaaaaaaafffffttttt

 

MARTINICO

O diabo dessa cortina é que não merece mais a menor confiança, outra noite se trancou com duas mantas em um armário e ali dentro fez a festa.

 

SARDANELO

São justamente os temores de Doutor Pastilha. Ele tem a impressão de que as peças por trás da cortina são bem mais empestadas que as porcalhadas do Marquês de Sade.

 

MARTINICO

Volta-e-mexe a confusão se instala e o decrépito desse marquês engole a maçã da fábula que não lhe causa o menor efeito. Rapunzel o recolhe em sua cabana suspensa e os dois ali se contorcem de glosas e motes.

 

SARDANELO

Doutor Pastilha, preocupado, desconfia que o pérfido marquês tenha surrupiado sua latinha das famosas Pastilhas do Doutor Galeno, de um poder assombroso, mata os micropatas Coroca, lombrigas e piolhos, levanta até defunto, como foi o caso do Faraó Micherinos, que tomando três pastilhas antes de morrer, depois de enfaixado e colocado no sarkófago, conseguiu, durante o velório, ficar ereto, bradou palavrões no sarkófago, furou a tampa e voltou a reinar por várias décadas. O assunto foi abafado pelas autoridades civis e militares.

 

MARTINICO

Algumas bolorentas pastilhas foram encontradas atrás das pernas de um armário desarrumado onde as meninas de Micherinos guardavam seus paninhos quentes. As noites no velório eram uma fantasia lúbrica onde os defuntos eretos se deixavam cavalgar pelas lavadeiras do império que logo se descobriam eram uns travecos bem arrumadinhos. A realeza era mestre em comprar o silêncio dos congressistas, de modo que o marquês seguia desfiando seu rosário libidinoso e faturando nas vendas dos livrinhos por toda parte…

 

SARDANELO

O Anão Gigante é um flagelo digno de Ghengis Khan. Seu criador, Dok Frakastel, é um gênio louco, queria criar a raça de Humanoides a serviço da Humanidade e inventou este colossal psicopata Anão Gigante!… Doutor Frakastel, um herético iluminista, insistiu em criar essa raça de autômatos de inteligência racional, para o que, em seu laboratório, capta a força dos relâmpagos para utilizá-la na Criação da Vida!!!… um louco herético que, por incompetência, poderá destruir a Humanidade. Foi ele, aliás, o desastrado criador do Vírus Coroca, um vírus que, ele próprio inofensivo, iria destruir todos os vírus fatais das diversas moléstias transmissíveis que martirizam quem possam infectar. E agora... que adianta prender Doutor Frakastel?…

 

MARTINICO

Talvez o melhor a fazer com esse farrapo seria infectá-lo com o Coroca e deixá-lo à míngua sem direito a hospital, vagando pelas ruas onde as pessoas até poderiam lhe apedrejar, mas certamente não fariam. Este é mais um daqueles casos em que a criatura pode vir a livrar-se de seu criador e refazer o seu mundo. Improvável qualquer cópia de presságio, mas a vontade popular é mesmo que todos os padecimentos devem cair sobre os costados desse doutor do caos.

 

SARDANELO

Sempre tem gente para adorar os mentecaptos genocidas. Trata-se de um ataque de sardo-mazorquismo coletivo que pode englobar toda uma nação. Ou todo o planeta. Quem não aderir, será massacrado pelos fiéis sardo-mazorquistas, galvanizados pelo Louco Destrutor. Falta agora ver se Doutor Frakastel tem o mesmo tipo de poder hipnótico, para empulhar toda uma Nação… e aí então, começará tudo de novo…

 

MARTINICO

Até começaríamos tudo de novo, desde que não fosse por aquele famigerado bolero. Ou talvez não começássemos para não correr o risco de ter de ouvi-lo como trilha sonora da resistência de Pindorama. O Clube de Caça aos Corvos adotaria uma versão cabaré da música e gravaria um vídeo pastelão usando todas as cores de pele à disposição no estoque da Granja Raposão. O Renascimento por vezes não passa de uma nova versão do Inferno.

 

SARDANELO

Só haverá democracia racial quando as galinhas pretas botarem ovos brancos, e as galinhas brancas botarem ovos pretos. Y así pasan los dias… chaca-chaca-chaca…

 

MARTINICO

Acho que se poderia fazer uma boa publicidade com esse troca-troca. Mas dá uma olhada, lá vem de novo aquela cortina desmiolada. Do jeito como vem aos frangalhos, levou uma surra das mantas no armário. Aposto que ela vai nos pedir um trocado.

 

SARDANELO

Cortina que pertenceu ao French-Cancan onde La Goulue dançava e o Lautrec tomava seu absyntho… Uma preciosidade histórica… Vale uma fortuna!… Nosso theatro é coisa fina…


MARTINICO

A mesma com que embalamos a réplica do Trem Carthago, famoso por seu trajeto impossível, de Fracaleza a Pequinho. Isto muito antes da saga serial do Trem das Neves. Agora ela será o Fiat Breu dessa nossa pequena evocação das misérias humanas assoladas pela Anão Gigante do Collàgio Prutuca.

 

SARDANELO
O Anão Gigante Quasimodo é o pior aluno do Collàgio Prutuca. Só obedece ao Doutor Pastilha. Mas… volta e meia foge pr’aprontar maldades. Seu sonho era justamente viajar no Trem Carthago, e trabalhar de lanterninha no saudoso Cine Azteka.

 

MARTINICO

Sonho deposto, pois acabou enfurnado com dieta de pá e carvão, alimentando as fornalhas da Boca Grande. Dizem que foi punido ao ser pego com a mão na botija, ou melhor, com o pinto no melaço, violentando as aldeãs mais jovens. Teve um olho arrancado e mancava de uma perna. Seu breve romance com Esmeralda findou quando ela descobriu no major Temístocles um modo de eliminar suas sentenças por falar com uma cabra em praça pública e ludibriar a todos oferecendo um lugar ao céu em troca de algumas patacas. Quando Esmeralda se foi o Anão Gigante ficou tão completamente desolado que até mesmo o papel que lhe deram de interrogador das sete damas em uma narrativa folhetinesca foi um completo fracasso, e fez com que ele desaparecesse antes de concluir a tarefa.

 

SARDANELO

Aí está, parece que agora a cortina pode ir caindo, lentamente, ao som de uma fuga de Baco, ao piano, tocada por Frei Feijão.

 

MARTINICO

Bem caidinha…

 

2 TRAGÉDIA DE MELENA BADROSKA, FORA DO PALCO



 

SARDANELO

Segundo alguns pensadores esotéricos, os construtores das Pyrâmides, Atântidas, possuidores de grande sabedoria, eram habitantes duma ilha-continente que sofreu um súbito terremoto e sumiu. A esta teoria se refere o Platão. Melena Badroska acreditava na Atlântida, mas a colocava em Mato Grosso. O arqueólogo Fawcett então famoso por várias descobertas na África, tinha crença total na tese de Dona Melena, e conseguiu apoio financeiro pruma colossal expedição que acabou se perdendo na floresta e só poucos lograram sobreviver milagrosamente, entre eles o próprio Fawcet que não desistiu de seu plano de descobrir a Atlântida em Mato Grosso. Mas face ao desastre da primeira expedição, que custou uma fortuna fabulosa aos patrocinadores, não encontrou mais apoio nenhum. Então… resolveu fazer a expedição, sem recursos, na companhia de seu filho adolescente e de um também adolescente amigo do filho. Sumiram os três na floresta e nunca mais foram vistos. A ilha estaria a meio-caminho entre a Euroáfrica e a América do Sul.

 

MARTINICO

Isto causou imensa inveja aos pelasgos, bem como aos fenícios e os caraíbas. A terra teria hoje outra feição não fosse o custo excessivo da primeira expedição que impossibilitou seu desdobramento, uma vez descoberto onde ficava o norte das bússolas arrematadas em leilões na Cananéia. Dona Melena colecionava picos de montanhas e brumas caluniadas. Era danada e recebia a todos com taças presenteadas por Baal. Dizem que no quintal de sua casa mantinha um bezerro de ouro cujo leite era usado na iniciação do verdadeiro druidismo. Mas não se sabe, pois dela se dizia muita coisa. O poeta André Breton quando ali esteve a confundiu com a condessa de Diam Diam e, botando os pés pelas mãos, bradou a vinho pequeno que fora Asterix quem colonizou a terra.

 

SARDANELO

Melena Badroska tem o seu charme russo. Ela e o Coronel Orson na moto-com-barqueta, ela ia na barqueta, ele pilotando, ela teosofista, ele budista, tinham um charme misterioso.

 

MARTINICO

Um coronel budista é das coisas mais díspares que pode existir no mundo, pois a lâmina de sua espada atinge o plexo solar de toda e qualquer meditação. Mas Melena via ali outros motivos, curiosa por alguém que a levasse rio acima, pelas recônditas tribos dos pentateucos e dos druidas esquecidos. A caminho ela fazia cócegas em seu coronel que, perdendo o comando da moto-com-barqueta, a fazia serpentear dentro do rio. Ela ria e o chamava de meu querubim.

 

SARDANELO

Duas extraordinárias figuras. Mas havia ainda o pequeno hindu, um rapazinho tipo Sabbuh, adotado pela Melena, para cumprir extraordinárias façanhas, tais subtrair mandalas de pagodes milenares, ou vender elixires do Coronel, e sempre pronto a cumprir as mais extravagantes missões…

 

MARTINICO

Sabbuz, como era chamado, era capaz de passar uma noite inteira ao relento contando quantas vezes os grilos faziam amor no outono, enquanto caíam até mesmo as folhas do calendário, e mais depressa ainda o tempo parecia passar. Um dia, enquanto remexia em seu dedão expurgando um ninho de bicho-de-pé, Sabbuz levantou a cabeça e viu passar pela varanda uma pequena e saltitante sombra, atrás da qual saiu correndo e (até onde se sabe) nunca mais voltou…

 

SARDANELO

Melena chorou borbotões. E o Coronel virou duas garrafas de Rhum Moleca.

 

MARTINICO

O espírito de Sabbuz sempre veio visitar o intrépido casal: seja nas mesas brancas de dona Melena ou nas garrafas do Coronel.

 

SARDANELO

É verdade… e sempre Melena afirmava que ela era virgem… Havia casado antes, mas só porque recebera mensagem astral que se deveria casar com determinado cavalheiro. E na noite de núpcias ele tentou violá-la, mas ela se defendeu com uma cimitarra. Desde então, nunca mais se viram. E ela manteve seu sagrado voto de virgindade que fizera à Deusa Ísis. Mas, e com o Coronel Orson? Uma amizade budística… e olhava para ele, que, impávido, suspirava, alisava as grisalhas barbas e emborcava seu copo de Rhum Moleca, o melhor do Caribe… (Encomende-o pela Internet ao Bazar Beirute, de Zeus Zalim)

 

MARTINICO

Quando as noites pulavam

de um lado para outro

tentando escapar dos dias,

Melena bebericava seu licor

de malva com berinjela.

O coronel pensava: quem sabe

dessa vez Lenica me dá

seu maior segredo! Ela,

No entanto, lhe diz com olhar

misterioso: Diga um verso bem

bonito, diga adeus e vá embora.

 

SARDANELO

Coronel Orson pensativo soltou densa fumaceira de seu cachimbo, mas não disse verso algum. Saiu em silêncio, montou na sua moto, arrancou, e se foi, ao luar, estrada afora.

 

MARTINICO

A estrada serpenteava

pelo luar de estribilho.

Aproveitando a ausência

de seu talentoso amante,

Melena comeu num instante

um naco de paçoca e milho.

Depois seus olhos revirava

em busca de nova ciência.

Seu coronel estrada afora

só quis saber de ir embora.

 

SARDANELO

Melena, diz para sua gata: O Coronel Orson pensa que me escapa… há mais de dez anos que nos conhecemos, e ele nem desconfia… Com tanta inocência… vai entrar direto no Nirvana…

 

MARTINICO

E o júbilo ficou de fora da cena, assim como a pimenta não entrou na panqueca. Melena sabia que as melhores receitas são aquelas que improvisam a falta de um de seus componentes. Porém o velho Orson subia e descia os morros em sua motoca, extraditando o calor que nascia em suas virilhas. Quantas dessas flores do desperdício nasceram no pomar daquela parelha! Quanto sangue derramado dentro de cada coração!

 

3 SUBMARINO MARELO, A TRAGÉDIA NO FUNDO DO MAR



 

PAPAGAIO PIRALDO

(sottovoce) Estamos a bordo do Submarino Marelo do Capitão Pirelli. Entra na cabine-mor o marujo Grilo Seco, e procura reanimar o Chefe, que está em grave crise de depressão, ameaçando se suicidar explodindo o Submarino dum tiro hara-kiri … com torpedo virado às avessas.

 

GRILO SECO

Curta as carpas do dia, Capitão Pirelli… Por boas que sejam as entrevistas, não podem ser comparadas com nossas sereias. Curta as carpas do dia…

 

CAPITÃO

Pois vamos às carpas do dia, com fritas e vinho.

 

PAPAGAIO

(sottovoce) Saiu o Grilo Seco… esse mal fedido puxa-saco … a mim não me engana. Fui papagaio do Doutor Xalaxar, conheço as manhas de chancelaria.

 

CAPITÃO

Vou ligar o rádio para saber se já há notícias sobre meu suicídio. A imprensa, neste século 21, sabe de tudo na véspera. Giro o botão e… PLAFF!!! PREK!!! KAPUT!!! Fooong …

 

RADIO

A rádio Cacimba da Glória abre seus microfones para o tão esperado encontro entre Sardanelo e Martinico, em especial porque não sabem exatamente sobre o que vão conversar. Por outro lado, ainda não temos notícias frescas do iminente suicídio do Capitão Pimenta no seu submarino. Já expedimos para o local o repórter-escafandrista Gastone para ir colher os últimos bafos do tresloucado Capitão antes que ele cumpra o seu fatal destino. Gastone tem grande experiência em entrevistar proto-suicidas poucos minutos antes de seu gesto treslocado e fatal. Gastone leva um microfone dentro de seu capacete. Nosso genial repórter-escafandrista já entrevistou o Sargeant Pepper e todos os Beatles a bordo do famoso Yellow Submarine. Era uma nave super-psicodélica, a mais espetacular do Planeta, nada a ver com essa fedida lata velha do Capitão Pirelli.

 

GASTONE

Alô ouvintas e ouvintos da vossa fiel Rádio Cacimba, da ilha Brocoió, a melhor emissora do País, ora transmitindo do fundo do mar para todo o litoral, da Lagoa dos Patos até o Aracaju… Eis que o marujo Grilo me abriu a porta e já estou dentro do submarino. Tenho o prazer de entrevistar, o renomado oceanografista Giuseppe Cascavelli, despedido da Sarbonne, e hoje trabalhando de contramestre do Capitão Pirelli. Diga-me lá, Doutor Cascavelli qualquer coisa sobre o iminente hara-kiri naval do heroico Capitão Pimenta, em prol do aprimoramento da nossa sociedade de elite …

 

CASCAVELLI

Ou a elite da nossa sociedade?…

 

GASTONE

Qual é a diferença, Doutor Cascavelli?…

 

CASCAVELLI

Entre o ovo da galinha e a galinha do ovo?…

 

GASTONE

Ora, pare lá de ensebar, homem! Está bem que as diferenças definem melhor o mundo do que as igualdades, estas sim, um rolo mais indecifrável do que aqueles do mar Mortinho da Silva. Mas minha questão é sobre o iminente suicídio do Capitão Pirelli.

 

CASCAVELLI
Essa questão do suicídio do Capitão, só será grave se houver uma quebra de hierarquia a bordo do submarino Marelo A hierarquia é a Lei Suprema do Cosmos. Sem hierarquia começa a bagunça de se meterem uns safados marujos contra o Capitão Pirelli. Nossos torpedos, por exemplo, são os maiores furadores dos transatlânticos de luxo, e os marujos vivem a querer se imiscuir no meio das belas hawaianas.

 

CAPITÃO PIRELLI

(entra, com sua bela voz cantante de tenor dramático) O cravo brigou com a rosa … debaixo da … da?… plec! plec!… enfim, continue, Cascavelli!…

 

CASCAVELLI
Primorosa declamação, Capitão Pirelli!… Tendes uma tonalidade profunda e melancólica, que lembra a de Dante, recitando a Divina Commedia!… (discretamente enxugo, com lenço de brim, uma furtí…valá crimaaa …) Coff-Coff-Coff!!… Perdoem-se se me engasguei da emoção… mas voltemos à vaca velha… Quanto à briga do cravo com a Rosa, talvez saiba alguma novidade o informadíssimo locutor Gastone, este novo astro ascendente na plêiade de locutores da Rádio Cacimba!…

 

GASTONE

Capitão Pirelli, oh, Bravo dos Bravos!!! Para quando, afinal, o vosso heroico suicídio? Já vamos atrasados com o programa …

 

PIRELLI

A vaca-marinha não deixou sobrar um bigode de camarão. Há muito nossos marujos me acusam de girar manivelas que nos levam cada vez mais fundos, ficamos no fundo do oceano, roçando a barriga do submarino na areia do fundo, girando-girando. Dois marujos já foram beber o vinho salgado de Netuno no cemitério submarinho, lançados pelo tubo de escape. Dia desses teremos que fazer rifa de nossos aparelhos de som. Tudo porque não conseguimos mais acertar com as preferências da Rita Parada. Esse, Gastone, espero que seja nosso último vexame. Grilo Seco, meu assistente, já vem trazendo minha cicuta e notícias de que Sardanelo e Martinico poderão estar conosco ainda nesta última viagem. Virão por batiscafo.

 

GRILO SECO

(entra, rodopiando na ponta do dedo a bandeja) Cá está sua cicuta, meu Capitão, e seu cálice do Xerez Era una Vez.

 

CAPITÃO

Meu xerez impagável sempre me pede uma sereia em cuja cauda sedosa eu possa deixar correr o meu palpite contra os males do infortúnio. Grilo, cadê ela, aquela Justine que me atendeu outra noite. Vem correndo, vem ligeiro, meu canapé florido… Ah como aquela noite teve seu dia de boa prosa. Tenho pensado em me aposentar, Grilo. Já puxei a caneta, mas desanimei com o que ela me mostrou. Aqui ao menos a gente ainda tem essas sereias, o xerez e umas viagens pelas profundezas marinhas, para fazer aquelas entrevistas horrendas…

 

GRILO SECO

Curta as carpas do dia, Capitão Pirelli… Por boas que sejam as entrevistas, não se podem comparar com essas sereias. Curta as carpas do dia…

 

CAPITÃO

Eu bem as curtia, porém agora me sinto um pouco funesto. Cadê o meu chá de algas? Ou talvez eu deva consultar o oráculo da perna quebrada, quem sabe ele me diz qual a menos dolorida forma de suicídio. Não quero sofrer mais essa dor ao me desapegar dessa carcaça combalida. Por precaução ponho no bolso uma fotinha de meu submarino, para os dias de saudade…

 

GASTONE

Mas acaso já não tens tudo premeditado, Capitão?

 

CAPITÃO

A vida pode até gostar de uma arrumação de espantos, mas com a morte é diferente. Ela prefere que tudo seja um atolado de surpresas.

 

GASTONE

Mas afinal, o senhor vai ou não vai se matar?

 

CAPITÃO

Ah as notícias hoje em dia, querem logo saber como o inesperado se sente e invadem o jogo de cartas do acaso para inquerir sobre o momento preciso em que ele atenderá o chamado de suas vítimas! Graças às notícias o mundo perdeu o impacto de seus gestos impensados.

 

GASTONE

A rádio Cacimba da Glória sempre se orgulha de manter a sua fiel audiência informada de tudo antes mesmo que ocorra.

 

CAPITÃO

Pois essa tal falcatrua de acidentes tornou a realidade o menos aprazível dos estados da alma.

 

CASCAVELLI

(precipita-se ao órgão espremido nos fundilhos do submarino) Sebastian Bach!… Para um final grandioso da… Tragédia Submarina!… E agora… sento-me solene na banqueta diante do painel de comando do órgão milenar, com teclas, alavancas e botões… e após esbater as abas da casaca, ergo os braços, e agito as mãos magras e agito os dedos aduncos tentaculares… lançando sombras de aranhas e morcegos e … FROOOOMMMMMM FONNNN FONNNNNNNNNNN!… Ah, diga-me se não está digno de um gran finaleFANN NON FROOOOMMMMMM FONNNN FONNNNNNNNNNN!… As teclas começam a despetalar de alegria, aquela alegria trágica que põe o mundo de ponta-cabeça. Gira-gira, carrapeta azul! (a cortina em seu aveludado púrpura solta-se de seus cordames e envolve Cascevelli.) A realidade naufraga nas mãos da melodia…

 

4 DAS EIRAS E BEIRAS, UMA TRAGÉDIA DOS MUNDOS ESQUECIDOS



 

João Texugo, especialista em buracos, por vezes se deslocava de uma reserva indígena para outra fazendo as vezes de tropeiro, guia de armeiros empenhados em fazer fortuna à custa de tacapes e flechas de ponta de sílex. Em uma área de pastos de kambiwás, na serra negra pernambucana, João Texugo amotinava mistérios que muitos diziam não passar de pura invenção, um trote, farsa endiabrada, recurso que ele percebeu causar polvorosa suficiente, como uma cortina de fumaça, enquanto ele roubava as cuias lenhosas com que atravessava o país, indo vendê-las nos pampas como relíquias de uma tribo inexistente e dizimada. O Chefe do bando de tropeiros, Capitão Furabuxo, reúne seus cangaceiros para apresentar o novo Plano de Ação. Carbuxim, seu fiel escudeiro, é o mais atento.

 

FURABUXO

Vamos aproveitar das velhacarias e badulaques de Texugo e vende-las a turistas e mascates… Ele tem um baú colossal empilhado de arrobas de badulaques que ele não consegue vender. Então, para escaparmos dos jagunços da polícia, que se nos pegam vão querer fuçar nosso precioso paiol de drogas, santos ocos e relíquias… O plano é escondermos todo nosso botim debaixo das tralhas do Texugo, que não vai perceber nada, e, sempre que precisarmos vamos lá durante sua ausência, e trazemos apenas poucas coisas para vendermos, e quando acabar o estoque que guardávamos, tornamos a ir buscar novo material nos fundos do baú do Texugo, e o paspalho nada vai perceber.

 

CARBUXIM

(se coçando de tanto rir) Esse Texugo não sabe o que lhe espera. Ele tem mesmo cara de paspalho, embora por aí o mundo esteja repleto de salafras com cara de virgens arrependidas. Talvez por sermos daqui, mas como alguém pode se deixar engabelar por essas cuias mofadas que ele vende lá nos pampas. Não será nos pântanos? Talvez a tribo das palafitas ou mesmo a hoje rara gente das monções, as velhas ratazanas da lagoa dos gamburás, não seja essa a clientela do diabo jocoso. Seja como for, eu vi em seu esconderijo uns baús cujos fundos falsos podem ser o lugar ideal para nosso botim.

 

FORABUXO

Vá lá, Carbuxim, e enfie nesses fundos uma primeira soma de latas de sardinha e pentes de osso de tartaruga, as peças menos valiosas de nosso estoque, para um primeiro teste.

 

[Mudança de cena]

 

ARAUTO ABELARDO

(bate o bastão) PAFF-PAFF-PAFF!!! Siii-lênnn-cio!!! Estamos agora… onde mesmo??? Ah!!! Sim, estamos de volta à palhoça do… do… como se chama mesmo? Esqueci o nome do trambiqueiro… Enfim, diga lá, Bedel …


BEDEL
O trapeiro chama-se… João Texugo, um incompetente, sua palhoça é um pardieiro, onde pelo menos ele não consegue achar nada, e leva então outra coisa.

 

Mudança de cena: de volta à palhoça do Texugo. Ele arruma umas pequenas caixas velhas com alguns tacapes, lacra tudo e mete a mão numa cumbuca repleta de pontas de flechas, revolve tudo com satisfação criminal.

 

JOÃO TEXUGO

Desta vez consegui reunir uma boa feira. Se eu pego a barca Bacião e com ela cruzo o Atlântico farei um bolso farto em terras portugas… [Falava sozinho quando alguém bate à porta de sua caverna. Ao abrir, sem que reconheça quem ali está, indaga:] Quem vem dar em minhas terras?

 

CARBUXIM

Sou discípulo de kambiwás, em meu assentamento muito se fala de seus feitos arqueológicos, que ninguém no mundo fareja melhor um tesouro – dizem – do que o grande Texugo.

 

JOÃO TEXUGO

Que isto seja verdade, é coisa que não me importuna. Posso encontrar lagartixas congeladas sob a casca de árvores e decifrar em seu buxo papelotes com pistas para botins milenares.

 

CARBUXIM

Não carece de se gabar, pois sua fama corre ligeira. O que procuro pode ser de boa monta suficiente para nós dois. Certa vez um Caçarola, que vivia da venda de pequenos delitos, me trouxe uma caixeta em cujo interior encontrei, coladas ao fundo, umas folhas enxovalhadas contendo uns escritos que nada me dizem, mas que devem certamente conter informações sobre algum tesouro. Se o mestre Texugo decifrar essas folhas, não precisará mais ludibriar os pampeiros.

 

JOÃO TEXUGO

Não faço nada por precisão, mas sim por diversão. Vamos ver o que me dizem essas folhas. [Passa a vista num rasante.] Cá escrito está: a pátria chora seu besta seu bosta seu busto …

 

CARBUXIM

Seu besta, seu bosta é o rosquel da tua velha, velho safado, já te passo a peixeira…

 

JOÃO TEXUGO

Tenha calma, Carbuxim!, eu só estava lendo o que estava escrito!!! Quem sabe poderá nos dizer se as galinhas do vizinho botam mais ovos que as minhas?

 

CARBUXIM
Tens galinhas, Texugo?


JOÃO TEXUGO

Tão só uma velha d’angola, bota ovo preto e um só por semana, na sexta-feira. E gosta de sentar num pinico de alguidar, que eu trouxe das terras do muito além.

 

[Mudança de cena]

 

ARAUTO ABELARDO

(risca o chão com o bastão) SHINNN-SHHHI-ZÁSS!!! Não é que o diabo do trapeiro está tomando conversa com o Carbuxim! Acho que assim ele acaba ganhando confiança e de uma hora para outra enfia as peças do Furabuxo no fundo falso das sacolas…


BEDEL
Não são sacolas, e sim umas caixas amarronzadas. Se o truque der certo teremos pela primeira vez a trapaça de um tesouro dentro de outro. Como as verdades que andam contando por aí, que a gente desfia e dentro delas encontra outras tantas, algumas em desacordo, aí fica difícil saber com quantos atalhos se faz um caminho novo.

 

Mudança de cena: Furabuxo conta seus dobrões, lustrando alguns com uma boa cuspida e uma passada de mangas de seu camisão. Sabrina Leitosa ajoelhada a seu lado conta outros mistérios dentro da roupa do amante.

 

FURABUXO

Sabrina, assim um dia vamos ter umas posses tão crescidas que a ilha toda virá nos ver, ai minha ratazana de salão.

 

SABRINA LEITOSA

Diz assim não, meu buxo, que eu me arrepio todinha, e boto meus talismãs por toda a casa, para que não saias mais de mim.

 

PRODUTOR SABUGO

(olhando por trás da cortina) Está uma be-le-za!!! Romântico-porno-sentimental!!! Vamos pra Rita Parada!!! Vamos ganhar o Moscardo do ano!!! Se ela deixar ele regar as plantinhas na varanda, aí o arraso é total.

 

Foi dizer isto e o Bedel entrou no salão, coxeando apressado, resfolegante:

 

BEDEL

Olha só, Carbuxim acaba de passar um cabogra do alto mar de sua aventura de espião atrapalhado. Tem uma frase direta que diz (soletra): amanhã a mina na mala. Logo abaixo há uns rabiscos que não sei do que se trata. (entrega a missiva a Furabuxo)

 

FURABUXO

Esses rabiscos são os códigos da mensagem, seu apalermado. A frase está bem clara. Carbuxim chega amanhã e vem me trazendo os mapas do tesouro.

 

RÁDIO GAMBÁ

Essas são as últimas notícias que temos, minhas queridas ouvintes… usem óleo de timbira Moema, para manter seus móveis brilhantes e faceiros … e vocês, meus caros ouvintes, prefiram Cerveja Cabrocha, espuma e gostosura… goze bebendo e contemplando os rótulos, na frente a Cabrocha se requebra faceira, e te mostra o linguão… e no rótulo da traseira … rodopie a garrafa, que você vai ver qualquer coisa!… Progresso, Saúde e… Carnaval!!! …

 

Graças à intromissão dessa emissão radiofônica, os milagres da radiestesia voltaram aos circuitos e centenas de cartas foram se apinhando à porta da estação, sem falar nas ligações e teletros que chegavam de toda sorte de lugar. Dizem que isto acontece quando se está no caminho certo. Furabuxo fez de tudo para ludibriar João Texugo, porém deste só conseguiu que tornasse invisível diante de seus olhos.

 

JOÃO TEXUGO

Eu criaria toda a desordem necessária para que a vida se fizesse indispensável, para que a grande obra respirasse um universo inteiro a cada página revirada. Tudo isto sem necessitar caminhar sobre as águas ou por a cozinhar o ovo primordial. Os mistérios da terra não seriam os mesmos sem a cerveja Cabrocha e menos ainda sem os arrebitados jogos das ancas de Luzia Trigueira, que me ensinou a ler as iluminuras de meu próprio corpo quando me banhava a pele no óleo de timbira Moema. Eu me tornei o seu móvel predileto e ia com ela a toda parte. Ela me tinha como o sapo preferido de suas brochuras de magia. Um sapo iniciado na fotossíntese de seus gemidos. Até o dia em que o impiedoso Furabuxo, a quem confiei o segredo de meus tesouros com furos, escondeu em minha caverna umas embiricicas de pedras falsas e relatos falaciosos atribuídos a Pitágoras. Quando lhe procurei me disse que tudo não passava de uma brincadeira de Platão, que queria ver até que ponto uma joia se mantinha dentro de outra, que uma história sobreviveria contada como parte de outra, pedindo-me que não o julgasse como sofista ou salafrário, que tudo o que ele pretendia é ver passar um corpo por dentro de outro.


RÁDIO SUCUPIRA

Ai, meu Ouvinte, este vosso velho e fiel aparelho Rádio, feito de sucupira autêntica, e olho mágico verde, que te sempre ajudou a bem sintonizar a estação da Rádio Gambá, que tanto aprecias, mercê de suas novelas engajadas nos Direitos Humanos, a Democracia Liberal e o Comércio Internacional, e a novelinha das oito, safada, sem eiras nem beiras, que te trazia um pouco de sacanagem libertária para os Direitos Humanos de todos os sexos… Ai!… estou esbofado… minhas válvulas estão gastas de ouvir e de ouvir falar este jeca João Texugo e os outros jecas que falam sem parar, e tu que os ouves embevecido, oh Leitor, ou Leitora?… Já estou quase cego, meu olho mágico já cansou de tanto s’alumiar para que procures teus programas, Ai! que já me compraste velho, embora cumpridor, no Bazar do Baltazar, este mascate sírio-libanês que só vende porcaria, salvo eu, uma preciosidade esquecida … mas assim é o Destino implacável, e sinto que esta noite me acabo… paff-poff-poff… baixe a cortina, meu Ouvinte, não quero que me vejam … Poff… traquejando… PAFF … nos mo… ment … RACATRAPAFF-CAPONGAAAAAAAAAAAAAAAA!!! …

 

CARBUXIM

(do lado de fora do prédio alugado onde funcionava a Rádio Gambá, conversando com Furabuxo) Eu bem disse que não deveríamos exagerar nas falas do Texugo. Agora pronto, ficamos sem ter como transmitir nossas ideias.

 

FURABUXO

Mas era tão simples, embutir os apetrechos de nossa revolução nos teréns de Texugo e pegar carona de sua distribuição… Com isto teríamos mais e mais simpatizantes de nossa causa.

 

CARBUXIM

Sim, mas exageramos na dose, e deixamos o gatuno cavernoso ganhar o microfone que de outro modo jamais teria. Já não se pode confiar em ninguém nessa porca vida. E agora, o que fazemos?

 

FURABUXO

Nada. Não fazemos nada. Ficamos aqui, torcendo pela chegada de um próximo inquilino. Quem sabe não alugue o ponto uma boa senhora com suas prateleiras de hortifrutigranjeiros onde possamos embutir novos truques…

 

CARBUXIM

Assim? Sem cortina?

 

FURABUXO

Sem nada. É só aguardar.

 

5 FURTIVA LÁGRIMA, A TRAGÉDIA DA CORTINA CARMEZIM



 

MARTINICO

Nunca mais eu tinha ouvido falar do Thomaz Fraska.

 

SARDANELO

Acho que o Thomaz Fraska é o único de seu grupo que os vizinhos conheciam. Os demais foram morrendo sem que ninguém percebesse… Há umas cortinas de invisibilidade que envolvem algumas pessoas … Elas vão se evaporando e sumindo sem que ninguém dê conta.

 

MARTINICO

As cortinas de invisibilidade são uma invenção nacional que foram exportadas para alguns lugares tão ou mais terríveis do que as terras d'Além Mar, por sinal terras que jamais quiseram saber dos mares além da vista curta…

 

ARAUTO

É pra baixar a cortina?… Muito bem: Um-Dois- e…

 

CORTINA

Espere um pouco, Arauto, não muito depressa …

 

BEDEL

Estou trazendo a bandeja com o champanhe envenenado.

 

MARTINICO

As trombetas anunciavam a noite inteira onde os corpos foram desovados, mas a rádio patrulha chegando lá encontrava a cena devidamente limpa, invisível mesmo.

 

SARDANELO

A Quadrilha do Pavão é de nível internacional. O serviço de limpeza é de uma eficácia extraordinária.

 

MARTINICO

Com o tempo passaram a se superar, limpando cenas que ainda não haviam sido comprometidas. Sumiam com os presuntos antes mesmo do crime. Isto acabou irritando o sindicato do crime, pois se tornou patente que as mortes eram dispensáveis, o importante era que a cena sempre estivesse imaculada, como se nada…

 

ARAUTO

O pior é que com o sumiço dos cadáveres das vítimas, não poderemos fazer nosso projetado guinhol-policial. Não há crime sem cadáver, e muito menos romance policial sem crime nem cadáver, e nem sequer detetive. Já vamos no 5° ato e não houve nenhum crime, não apareceu nenhum cadáver, e nenhum detetive sequer telefonou. Só papo furado …

 

PÚBLICO

[Enfurecido.] FOOOOOORAAAA!!! Guinhol de BOOOOOSTAAAA!!! Arauto de Meeerrrdaaaaa!!! FOOOOOOOOOOORAAAAAAAAAA!!!

 

BEDEL

[Sottovoce, pro Arauto.] E que faço eu com o garrafão de cerveja envenenada?…

 

ARAUTO

[Furtiva lágrima.) Passa… sniff-sniff… pra esse público ignaro e cruel … sniff… sniff …

 

CORTINA

Um guinhol policial sem crime, é muito mais imprevisto e sofisticado … que tal chamá-lo de… Cortina Carmezim?…

 

PÚBLICO

[Possesso.] Cai, Cortina de Bosta!!! Cai, Fresca Carmezim!!! Cai, seu Filó do Salim!!!

 

MARTINICO

Já não é a primeira vez que essa exaltação carnavalesca se instala em nosso teatro. O público inocente entra em cena extrapolando sua indignação sem perceber que está sendo ludibriado. Este é o verdadeiro eixo nervoso do drama, causar esse frisson ilusório em que todas as partes se consideram integradas à fábula. Xô, realidade! O recado está dado. Ninguém te quer em nosso palco…

 

BEDEL

Aí está, Arauto … Martinico disse bem. Pensavas que o mundo fosse de groselha… e agora ?…

 
ARAUTO

Agora… dá-me desse champanhe envenenado … numa taça de cristal… neste mundo abestado e grosseirão, não me interessa mais viver.

 

BEDEL

Com Biscoitos Madalena?…

 

PÚBLICO

Muito bem!!! Boa ideia!!! Bebe o champanhe envenenado, paspalho!!! MOOOOOORRREEEEE!!!

 

ARAUTO

Ah! É assim ?… pois este prazer não vos dou. Não beberei o Champanhe envenenado. Viverei pra vos irritarrr, ignaros paspalhos!!!

 

BEDEL

Mas come ao menos as bolachas, Arauto, e o que trago não é Champanhe envenenado, mas Cerveja Preta, bem geladinha…

 

ARAUTO

Agora bebo a Cerveja, e a seguir darei uma mijada na plateia …. Glu-Glu-Glu … Mas que gosto esquisito, Bedel !…

 

BEDEL

É da cicuta, Arauto!…

 

ARAUTO

Mas… disseste que era o Champanhe que estava envenenado…

 

BEDEL

O Champanhe, certamente… Mas… a Cerveja também.

 

Cai o Arauto em estertores, e o Bedel o arrasta pros bastidores… Retorna rápido pro palco, e diz ao público:

 

BEDEL

Pronto, respeitável público. Tivestes o assassinato, no último ato. E agora, licencinha …

 

Sai o Bedel cabriolando, e puxa a corda, geme a Cortina… e de repente:


CORTINA

[Cai.) PLAFFFFFFFFTTTTTTTTTTTT!!! Desate jeito não dá, o maldito me pegou desprevenida outra vez. Quem diria que fosse este o meu fim!

 

BEDEL

Olha a presunção, Cortina de brechó. O fim é de nosso Guignol. E vê se te cala. É o fim, mesmo. Pronto.

 

CORTINA

Arre!

 

6 CAI-NÃO-CAI – UMA TRAGÉDIA NA PRATELEIRA



 

O pacotinho inquieto parecia querer saltar da mesa da sala, quando dele se aproxima Sardanelo e indaga a sua cabrocha bamba Martinoka:

 

SARDANELO

O que diabos é isto em minha mesa, ‘tinoka?

 

MARTINOKA

Parece ser um livro, mas o bicho está vivo! Foi um tal de Katapiolho, contramestre de seu amigo, aquele barbudo amalucado, o Martinico.

 

SARDANELO

[Abrindo o pacote relutante em aquietar-se em suas mãos.] Pega ali a minha bengala, talvez eu tenha que bater nesse pacote.

 

MARTINOKA

[Correndo busca a bengala com cabeça de rinoceronte de dr. Sardanelo, quando de dentro do pacote salta um livro fininho com capa dura e letras parecendo em chamas no título curioso: Diário da Sapa Sulamita, uma compilação de textos apócrifos preparada por Martinico Faruco.] Eita que o danado só falta agora falar… O Senhor falou que é uma copulação de textos?

 

SARDANELO
Eu não falei nada, Martinoka, sou um gramático, só leio textos sérios, a Pedra de Esmeralda, a Pedra Rosetta, o Upanishad … a Dama das Camélias

 

MARTINOKA
Esta não se sabe onde vai dar, porque já nasceu torta, antes se chamava Dama das Colmeias, mas não tinha jeito de dar bom mel, então a levaram para outras terras, lá pros sítios altos de Wenceslau Tupinambá. Durante algum tempo ficou conhecida como Dama das Tulipas, até que…

 

SARDANELO
Não tens mesmo juízo, Martinoka. Invades as páginas alheias e plantas tuas sementes lunáticas… Margarida Gautier já nasceu Dama das Camélias e nela se inspiraram até mesmo as mais puritanas jovens do século XIX.

 

MARTINOKA
Sei não, acho que ela tinha os tímpanos desnorteados e só por isto se enrabichou com o pianista Francisco Liszt.

 

RÁDIO BAKELITA

PAFF -KRAK-POOOOOFFF – E agora, vossa Rádio Bakelita, transmitindo diretamente de sua sede na ilha Fernão de Noronha … Com a palavra vosso repórter predileto, o sensacional Dyrceo!!!! Ele vai entrevistar para nossas assanhadas ouvintas e eruditos e sábios ouvintos… por telefone ligado ao cabo submarino, o famoso pianista Francisco Liszt!!! que está arrasando Paris!!! Superou os Bitles e os Rolestones na Rita Parada da Semana!!! Entra no ar, Dyrceo!!!


DYRCEO
Vou discar: plic-plic-plic-plic… Alô alô!!! Quem está no aparelho (roctrac trac)!! Alô, é o Senhor Liszt??? O Senhor está me ouvindo??? (tractroc poff)

 

LIZST

[Desajeitado com o aparelho no ouvido.] Ouço com zzt-tzz-zzt interferências agudas, um pinicado em meu ouvido, isto vai acabar com a minha genialidade auditiva, diga lá quem quer que seja, diga logo o que deseja…

 

DYRCEO

Tudo bem, Seu Francisco, não se preocupe com a audição … e repita cada manhã: Estou bem… cada dia ouço melhor… e o Beethoven só virou gênio da música… quando ficou mais surdo que uma porca.

 

LIZST

Isto prova que não retiramos a música daquilo que ouvimos e sim de uma fornada interior de mistérios. Tudo no mundo corre ao revés do que dele pensamos. A razão é uma placa de ferro à entrada de um salão abandonado, tudo em ruínas. O que se salva na vida é o que dela imaginamos.

 

DYRCEO

Ao que parece estás a compor a tua melhor sonata. E logo será a tua vez de também ser compreendido como um gênio da música…

 

LIZST

Pouco me importa que a vaca tussa, eu quero mesmo é rosetar… A galope na pedrinha mágica que nos leva a toda parte. Zump-zez-tchaco…

 

DYRCEO
Poderias viajar de Condor. Voando sobre o Monte Branco!… Teu prestígio e celebridade aumentariam ainda mais. Aquele rei amigo do Wagner, que adora fazer uns castelos deslumbrantes pendurados nas montanhas, à beira do precipício!… Ele poderia te oferecer um recital em um de seus castelos pendurados… e tu chegarias de Condor!... Que sensação!!!

 

LIZST

Pois é. A ideia voa bem, nem precisa de asas. Mas desde que tiraram o dó da escala, a música ficou saltando acordes, variando entre o engasgo e o soluço. Talvez se eu começasse a tocar pendurado eu me tornasse up-to-date, essa supimpa veneração pelo instante. E ao piano eu poderia acrescentar um coral assustado, de vozes penduradas.

 

DYRCEO
Comecei a fazer planos de produção, desde já me candidato a ser teu empresário…

 

ARAUTO

[Surdina.] Vou baixar a cortina em cima desse falastrão…

 

CORTINA

[Toda enroscada em um canto do palco.] Ainda não, ainda não. Tenho o script, Martinico Faruco ainda vai ler um trechinho do Diário da Sapa Sulamita, acompanhado pelo piano pendurado de Francisco Lizst. E vejo agora o detalhe da ousadia: eles vão se apresentar simulando voz e música. Nunca tivemos disso por aqui, nosso teatrinho vai ser o mais falado em toda a redondeza, uma nova dimensão do drama. Sossega o facho, Arauto, não vamos perder isso de modo algum.

 

DYRCEO
Eu mesmo já acertei com a cervejaria Caravaca e as lojas Pirandello de fantasias teatrais que serão nossos patrocinadores. E contamos a apresentação dos artistas feita por Dyrceo Penduricalho. Vai lá, Dy, é contigo, capricha:

 

BEDEL

[Entra.) Dyrceo, estás ficando muito pirado … Agora queres te entrevistar a ti próprio … aquelas tuas pastilhas de groselha estão carregadas de haxixe …

 

DYRCEO

Haxixe é bom pra tosse… Receita do Doutor Jatobá. Se existem autos da fé, por que não podem existir auto-entrevistas? … O Hamlet já fazia. É verdade que eu terei que encarnar a Dama das Orquídeas…

 

BEDEL

[Bruscamente interrompendo.) Mas não era das Camélias essa tal Dama?

 

DYRCEO

Nada como lidar com um Bedel retardado. A notável dama mudava sempre de sobrenome a depender do jardim onde se instalava. Foi na verdade uma grande biscateira de pólen, que sintetizava no fabrico de um simulacro do procurado pó de pirlimpimpim. Isto lhe trouxe grande fortuna e renome, porém quando descobriram o roubo dos componentes do pó ela teve que levar uma vida de fugas, e com isto veio a ideia de mudar o sobrenome a todo instante.

 

BEDEL

Está bem, acho que alguém já me havia contado essa bravata. Mas, e a auto-entrevista?

 

DYRCEO

A auto-entrevista, Bedel, é uma invenção de ... plec! plec!... um príncipe da Dinamarca!... elegantíssimo, que se chamava... plec! plec!...

 

BEDEL

Seria o... Sócrates?... Mas ele não era dinamarquês, Dyrceo ... Estás fazendo confusão ... Ele tomou cicuta pensando que fosse sopa de feijão.

 

DYRCEO

Não, este foi um grande erro na história do futebol, eu falo do príncipe Nico o Grande. De todos modos, eu posso fingir que me faço intrépidas perguntas, ao mesmo tempo em que movimento os lábios como se dera na jugular com as minhas respostas. A plateia, que não quer engolir esse trapo de sarjeta, esse bugalho de papo, faz cara de quem entendeu muito bem e até nos (me) surpreende com seus inesperados aplausos.

 

BEDEL

É boa. Mas mesmo assim ainda acho que falta algo.

 

CORTINA
Que tal eu dar umas evoluções tipo dança dos sete véus, sem odalisca?…

 

RÁDIO BAKELITA

Tudo devidamente documentado por nossas frequências moduladas, com a vantagem de não ter imagem, como forma de estímulo para que nossos ouvintes desenvolvam sua imaginação. Vai lá, Cortina, faz de conta que estás ouvindo a música…

 

7 O BOCADO ESQUECIDO – TRAGÉDIA NA BEIRA DO PRATO



 

MARTINICO

[Lendo o matutino Notícia Improvável.] Acabam de descobrir uma sereia com sete caudas.

 

SARDANELO

[Preparando sua salsicha matutina.] Por isso é que os marujos do Gama, no Canto IX, se atrapalharam…

 

MARTINICO

Era natural, pois uma cauda por vezes não dá mais do que um caldo, e essas sereias de nossa fábula se desfazem em múltiplos sumos que tardiamente os marujos do Gama descobriram ser alucinógenos.

 

SARDANELO

Mas descobriram tarde demais… A Caravela do Gama, com todos a bordo, já tinha partido da Ilha dos Amores, e se dirigia pressurosa para Lisboa, onde se daria enfim o X e último Canto da Epopeia. Vasco levando Thétis a bordo. Ela só desceu, enfim, na ilha da Madeira …

 

MARTINICO

A princípio toda gente pensava que essa Epopeia começava pelo final, até que um leitor mais sagaz descobriu que aquele X com se abria o livro não era a marca de um capítulo, mas sim o único sinal em um mapa invisível, logo na primeira página, que apontava um tesouro escondido em alguma inóspita ilha.

 

SARDANELO
Os árabes, os judeus e os hindus leem seus livros de trás pra frente. Os hindus também leem seus Upanishads de trás para frente. É mais agradável, os personagens vão ficando mais jovens, ao correr das páginas. E os problemas insolúveis vão aos poucos se desfazendo.

 

MARTINICO

Pois foi assim, sem encontrar lugar seguro a que chamar fim ou princípio que a Caravela do Gama singrou os mares de sua curiosidade, paginando aventuras que poderiam ser lidas em qualquer direção, pois nelas o tempo não contaminava o percurso. Aliás, até mesmo o espaço era uma barafunda sem direito a remendo.

 

SARDANELO

Daí o sucesso do Camões e do Vasco até hoje… tragédia e comédia rolam embrulhadas sem começo nem fim, aliás o livro começa no Canto 1 pelo fim, quando o Camões o apresenta prontinho ao Rei Sebastião e de repente, sem explicação, caímos dentro da caravela do Vasco, em pleno oceano. Camões usa uma técnica de corte e playback revolucionária.

 

MARTINICO

A realidade se desmantela toda tentando ser atual, porém ela mal consegue ser uma soma de retalhos do que se passou. Veja o gigantão do Rabelais expurgado dos entendimentos do humor negro do Surrealismo… A história sempre se engalfinha nas mesmas pernas. As pernas que Camões e Rabelais apresentaram ao mundo jamais foram empregadas para desbravar novos caminhos.

 

SARDANELO

Com a demora de empregá-los, os caminhos novos vão ficando cada vez mais velhos.

 

MARTINICO

Não era para ser assim, até que as estradas se desgovernaram de tal forma que nenhuma delas mais sabia onde ia dar.

 

Entra por um lado do palco os três sineiros do frade, fingindo galopar em invisíveis alazões. O primeiro deles é conhecido como Rato, e negocia com os mais preciosos artefatos, embora todos falsificados. O segundo atende por Bigurrilho, dizem que há muito esqueceu como fazia para tirar cavaco do pau. Coladinho atrás deles vinha Ateneu, que em tudo encontrava um jeito de dissociar as coisas entre si. O trio para no centro do palco e desce de suas montarias. Sardanelo e Martinico se entreolham como se duvidassem da cena.

 

RATO

[Tirando um pinico de ouro do meio dos penduricalhos brilhantes que tinha em seu corpo.] Ah com essa estrada cigana me deu uma vontade de fazer um pipizinho. Olhem para lá, bons pastores.

 

SARDANELO

[A Martinico.] Bons pastores? Nós?!!

 

BIGURRILHO

Vejam só essas árvores de papel, a paisagem parece toda de araque. Ou descobrimos onde está o tesouro da aldeia ou toco fogo em tudo.

 

ATENEU

Ainda não, Bigurrilho. Primeiro vamos nos divertir montando um teatrinho…

 

ARAUTO

[Irritado] Mas Bedel, cadê o Bocado Esquecido?

 

BEDEL

Que bocado esquecido, Arauto? Esqueces as coisas, e sou eu acaso que as vou relembrar?… Como era esse bocado esquecido?

 

ARAUTO

Se me lembrasse não te iria perguntar.

 

BEDEL

Se te esqueceste, Arnaldo… eu tampouco me lembro. Por que não baixas a cortina?

 

ARAUTO

Se a cortina cair, o Povão vai reclamar.

 

BEDEL

Vai reclamar de quê?, se do Bocado Esquecido ninguém pode se lembrar?

 

ARAUTO

Talvez tenhas razão, Bocácio… agora vai… puxo a manivela com força e…

 

BEDEL

…e o que? Já não me lembro o que era.

 

ARAUTO

A cortina, ora de derrubar a cortina no chão…

 

BEDEL

Nada disto. Aqui no script diz que ainda falta meia hora.

 

ARAUTO

Falta nada. Esse Bocado Esquecido começou a ficar esquisito, melhor esquecê-lo.

 

BEDEL

Mas podemos remendar. Corta o pedaço dos três reis magros e vamos em frente. Afinal, o público já pagou… e cá pra nós, pagou bem caro!

 

PÚBLICO

Acaba esse bate-boca, queremos o espetáculo!!!

 

BEDEL
Qual espetáculo? Do Bocado Esquecido ninguém mais se lembra. Parece que era coisa do Augusto Comte.

 
KEPLER

[Airoso se levanta.] Coisa do Augusto Comte não, mas sim do Manuel Kant. As órbitas planetárias são elípticas.

 

BEDEL

Era exatamente o que eu ia dizer!…

 

PÚBLICO
Você não disse Manuel Kant, você disse Augusto Comte.


BEDEL

[Querendo maneirar.] Ora, é quase a mesma coisa… O Kant é um beque do Vasco, que sempre chuta a bola pra eskanteio. E o Comte… é um busto augusto da Pátria.


PÚBLICO
Chega de papo furado, seu Bedel sofista. Queremos o Bocado Esquecido!!!


BEDEL

Quem sabe desse Bocado Esquecido é o Arauto. Perguntem a ele. Enquanto isso, peço licença para fazer pipi. [Sai às pressas.]

 

BALCÃO NOBRE

Pois então, Arauto, que venha agora o Bocado Esquecido!!!

 

POLEIRO FEROZ

O Bocado Esquecido!!! Queremos o Bocado Esquecido!!! Ou tacamos fogo no teatro!!!

 

ARAUTO

O Bocado Esquecido jamais foi cortado para ser lembrado. Desde o princípio a ideia era de escolher uma fatia desse estrupício de realidade para que ninguém se lembrasse dela. O que não é possível esquecer é justamente isto: que há coisas que não devem ser lembradas. O Bedel tem razão ao lembrar o Comte.

 

POLEIRO FEROZ

Ei rato de armário, não me vem de novo com essa de Kant lá que eu Comte cá. Foi tanta água que o Bedel tomou que deve estar se afogando na própria urina… Nós queremos o drama e não a trama.

 

ARAUTO

Pois é justamente o que nós vamos apresentar: A aldrava emperrada da filosofia de boteco. Grande espetáculo de costumes, merecedor das melhores vaias da corte.

 

BEDEL

[Voltando da mijada ajeitando a braguilha.] Não entrega ainda o ouro, Arauto. Vamos raspar o barro do andor e soprar o pó da ralé resmungona…


ARAUTO

[Surdina.] Dito e feito. Eu e Bedel raspamos o barro do andor e jogamos o pó nas fuças do poleiro.

 

BEDEL

[Surdina.] Muito bem, Arnaldo!… Mas agora deixemos a cortina ir baixando de mansinho… e nos evaporamos na ponta dos pés, antes que o Poleiro, passada a surpresa, resolva reagir e nos venha louca urrando … num pega-pra-capar!…

 

POLEIRO

Parasitas!!! Carrapatos!!! Pega Arauto e Bedel!!! Pega pra capaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaarrrrrrrrrrrrrrrrr!!!

 

BALCÃO NOBRE

BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!! BELÍSSIMO FINAAAAAALLLLLL!!! Finalmente uma peça desengonçada que já traz moralzinha engajadola que podemos aprovar para receber votos favoráveis da esquerda. BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!

 

POLEIRO

À esquerda da plateia ficam os parasitas… Essa é boa! E à direita? Ah sim, os carrapatos. Parasitas comunistas, carrapatos fascistas… Vamos jogar pedras nessa carniça… Depois capamos Bedel e Arauto… Zé do Poste, acende as luzes do teatro, vamos acabar com esse auto de inclemências, essa tragédia repicada de restos de comida. Toca fogo na cortina. Daqui ninguém sai. O teatro está com seus minutos contados. Tracatraca, prumz-crang, crapt-crapt-vazzt…

 

RÁDIO REX

Notícias de última hora: o fogo feroz envolveu o Theatro… Segundo o Chefe do pelotão de Bombeiros, Seu Genorr Netuno, com a falta d’água o melhor agora é rezar…

 

Caboclinhas românticas da assistência viram o Nero nu de lira e grinalda, tocando e recitando no topo do telhado em chamas … Sim, é verdade, agora o vemos…

 

NERO

[Nu, gordo e pálido, tangendo e lira e recitando.] Besameee… Besame muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuucho …

 

Os boleros são ainda melhores do que as valsas para despertar as furtivas lágrimas nas mocinhas da plateia que sonham com seus amores sorteados pelo acaso, pouco lhes importando que sejam carrapatos ou parasitas.

 

GENORR NETUNO

Vejam só, do que são capazes as lágrimas! O fogo está se dissipando…

 

FOGO FEROZ

Diante da voz desse canastrão até eu me ponho a chorar… E quando choro eu me apago todo…

 

 

PRESSÁGIO CAVILOSO

 

Pouco se sabe do que veremos a seguir. Ao que parece o Capitão Gin, em uma das paradas em terra do Vapor Bidon, dando uma vista displicente nas gravuras do Salão Dependente de Fumo… se depara com a “Tenebrosa Baleia Beluxa destroçando uma Nave da Marinha Britânica”, tela gigantesca e apócrifa, embora alguns críticos suspeitem tratar-se de uma das primeiras obras de Gilbertinho Turno… o bom Capitão toma um choque terrível, com essa premonitória visão do passado… A terra treme e surge essa historieta com ares vagamente familiares

 

ALGO NA TERRA AINDA TREME

 

Um sábio conselho: não tente ser anjo.

JOE DEACON

 

Quero agradecer pelo https sobre poesia e vida de Alfonsina Girardosia. Ela merecia um pequenino folheto, 36 páginas com uma de suas extraordinárias fotos, naquela atmosfera espanholíssima, onde podemos conversar com ela, e conhecê-la mais a fundo do que em uma biografia de 850 páginas. Do mesmo modo, dois ou três poemas dela, bem escolhidos, saberiam mostrar sua bela poesia. Nunca ninguém pensou em fazer uma cole3ÃO de folhetins de 36 pgs.

 

Acho que o mercado de livros fez apostas erradas em todas as direções. Ainda imagino que uma coleção de pequenos livros com breve apresentação e seleção de poemas seria de boa monta. Uma coleção que lançasse vários livros de cada vez e saísse com frequência regular. Mas creio ficamos longe disso.

 

Vou propor um romance histórico de 600 páginas reduzidas a um bilhete de 6 linhas. O gordo Maneco Flores acadêmico tem tudo, admiração total de seus pais, e vai levando na maciota uma tranquila vida universitária, até aos 40 anos, quando consegue o posto de assessor do Doutor Baltazar Mascaranhas, Catedrático de Língua Portuguesa na Universidade de Porto Velho. Compete ao Maneco Flores mensalmente preparar para o Mascaranhas um não-papel, de umas 9 folhas datilografadas espaço dois, a serem entregues à Dona Wanda (o que este mês ele fez via postal, por estar em tratamento médico em Barra Mansa), sobre um notável escritor, no momento injustamente esquecido pela Inteligentsia, Archimedes Beltrão, que teria participado da Inconfidência, sem haver porém acompanhado a fase decisiva da revolta, por estar na época em tratamento de uma pertinaz bronquite, em Barra Mansa, justamente. A situação está tensa, e Dona Cassandra, mãe de Maneco, passa-lhe por telefone alarmantes notícias, e aconselha Maneco a não voltar a Ouro Preto, e prosseguir seu não-papel em Barra Mansa.

 

As 9 linhas se baralharam com a queda de Maneco de sua Eletric Chair último modelo. Sua mãe, tão aplicada em sutilezas insuspeitas, deu-lhe a notícia em um teletro para a clínica em Barra Mansa. Maneco não se conteve em lágrimas de encharcar a tapeçaria do local. Seu maior arrependimento era justamente a sua teimosia, nunca desistir de uma frase solta que fosse e cuidar bem de todas as linhas viúvas. No fundo, seria ele o notável escritor e não aqueles todos, sobre quem aceitara escrever. O que fazer agora é algo que ele deixara para decidir amanhã, pois a essa hora da tarde na clínica em Barra Mansa costuma ser servidos deliciosos pastéis de camarão seguidos de um sorvete caseiro de manga. A vida sempre pode aguardar mais um pouco.

 

Enquanto isto, talvez até um pouco antes ou depois, afinal entre relutante e impertinente o tempo não se fixa em parte alguma, no Asilo Pelicano Garçon Garcez faz o que sempre fez: anotações sobre tudo o que se passa (mas há quem diga que seu caderno está repleto de coisas que não se passaram nunca) à volta.

 

GARÇON GARCEZ (pra Garçonette Suzette)

Olha, lá, Suzettte, na mesa 7, do nosso modelar Asilo Pelicano, o novo asilado Seu Maneco Flores, sentado ao selim de sua moto Eletric Sitting Bull de molas espirais e motor de 2 carburadores. Ele conversa com Capitão Gin – alcunhado de A garrafa falante, do Vapor Bidon, de 2 chaminés, e certeiro canhão francês de bolas de chumbo. Eles estão conversando sobre qualquer coisa secreta. Cheguemos um pouco mais perto para ouvirmos esse diálogo de Ciclopes da Modernidade…

 

MANECO

Vim cá para Barra Mansa para me transformar em um poeta de larga pança, e fama internacional.

 

GIN

Larga pança já está garantida, bem se vê. E os poemas? O senhor já começou?

 

MANECO

Ainda não. Por isso justamente vim para este famoso Asilo Pelicano, onde tantos gênios aqui ousaram libertar sua obra reprimida.

 

GIN

Sua mãe o reprime? Temos aqui o Doutor Marabu, discípulo predileto do Doutor Fole, o famoso curador do General Napalhone.

 

Um lapso repentino, e nisto é bom que se diga o tempo é de uma satânica esperteza. Quando menos se espera ela já está em outro lugar.

 

Expedito Limonho retocava as perucas do reino. Graças à simpatia oscilante da Rainha empalhava marrecos eruditos e coelhos com mania de perseguição. Ele foi trazido pelo Rei, de uma de suas idas habituais à Sardonha, onde mantinha uma amante Genoveva que, segundo os caprichos da época, era justamente uma prima de Expedito, então um conhecido comerciante de peles e que tinha por hobby a manufatura clássica de cativantes barganhas. Já em sua residência real, ele havia casualmente diluído em vinho um pedregulho esverdeado que encontrara no fundo do caixote de suas ferramentas. Dera então de provar à Rainha e assim a havia curado de suas quase diárias crises de epilepsia. Com isto, Expedito passou a frequentar a cama da Rainha e hoje Vossa Graça só tremia em suas mãos. Nosso herói encheu-se também de opinião e logo se intrometia nos problemas reais, o que de algum modo desagradava ao Rei que começava a suspeitar de suas idas e vindas aos aposentos da bela esposa.

 

Rei Bernoldo, para espantar suas dúvidas resolve então pedir ao Mago Berlin, que tem seu laboratório nos porões do Castelo, que invente uma poção que transforme o Expedito num papagaio falastrão mas… capado, por via de dúvidas.

 

MAGO

E das bolas do Papagaio, Rei Bernoldo, o que faço?

 

REI

Pinte-as de verde, que te quero verde.

 

MAGO

Não aconselho, meu Rei, porque essa máxima lorquiana foi empossada pela Rebulição dos Cabritos, o que daria ao Expedito uma aura de mártir dos desabrigados. Talvez, se o senhor me permite, fosse melhor enviar o papagaio em um tonel de piche, deixa-lo sair de lá com cara de graúna iletrada. Caso se ponha a reclamar será apenas mais uma das tantas vozes que apodrecem nos porões da realeza. A história sempre destinou tal calabouço para os insurgentes sem pai nem mãe.

 

REI

Por esta e outras razões é que manténs o teu cargo, meu bom Berlin. Estou de pleno acordo com tua maquiavélica proposta, desde que a graúna seja antes devidamente capada e seus bagos premonitoriamente pintados de verde-bandeira, e pregados no velho local dos antigos bagos do papagaio.


Nisto entra, com sua perifrástica mímica, o Valete Valentim, em uma espalhafatosa fantasia, com um copo na bandeja.

 

VALETE (pigarro)

…grm grm…

 

Rei e Astrólogo acintosamente não percebem o Valete, que passa a uma mímica mais radical: um espirro-rugido de leão.

 

VALETE

GRUAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA!!!

 

O súbito terrível rugido autêntico de leão assusta o pequeno Mago, que pula apavorado nos braços do Rei Bernoldo.

 

REI

Pois então agora, Valentim, pegue este Astrólogo cagão e o jogue pela janela.

 

VALETE

Na panela?

 

REI

Não era de todo má ideia, mas por enquanto melhor deixa-lo lá fora, quem sabe ainda encontramos para o tapado-cagão alguma serventia.

 

Valete cumpre sempre às riscas as ordens bem pedidas do Rei. Os dois se sentam e se articulam como se avaliassem um projeto de desterro para o Mago Berlin. Imperava a preocupação de como conseguir um bom estoque daquela mistura verde, pois do contrário voltariam à tona os ataques epiléticos da Rainha, justo agora quando se aproximam as festas em torno do torneio anual de Berrantes.

 

VALETE

No Hemistério Sul há uma famosa Cerveja Vaca Preta…

 

REI

Dizeres queres HemisFFFério Sul.

 

VALETE

Dizer-vos quero HemisTTTTTério Sul. Trata-se de um Arquipélado de uma só ilha perto do litoral britânico de que o Fog inglês entrando mar adentro engloba totalmente e o faz desaparecer. Graças a este fenômeno, de que as razões os cientistas não conseguiram ainda elucidar, o Fog é muito querido dos habitantes do Hemistério, porque quando os funcionários do Fisco aparecem, o Hemistério desaparece.

 

REI

Ora, deixemos essas questões do Fisco inglês, e voltemos ao cerne de nossa reunião plenária: qual afinal a consistência dessa Cerveja Vaca Preta?

 

VALETE

O Meu Rei alerta sempre acerta na mosca azul do problema. Justamente, Majestade, a cerveja é feita com boa dose de cogumelos pretos da Vaca Fiohzinha, mandada buscar em Uberlândia, a Terra do Úbere Destampado, que dá uma espuma leitosa de uma cor escura graças à aposição de boa dose não especificada dos substanciais cogumelos da Vaca Preta.

 

REI

E seus efeitos sobre as freguesas contumazes…

 

VALETE

As freguesas vão aos poucos ficando alegres, inofensivas, obedientes, risonhas…

 

REI

Muito bem. Encomendemos um estoque considerável. Reservemos boa metade para a Rainha, e o que sobrar que seja destinado às teimosas rebeldes campônias.

 

VALETE

E para os rebeldes campônios?

 

REI

Para eles, nada. Terão agora a felicidade no lar, e nos ficarão eternamente agradecidos.

 

VALETE

Mas o lar não é como o mar. O lar tem seus desgastes e a areia que lhe entope as narinas não se esvai com a sombra das marés.

 

O Valete Valentim saíra dali duvidando ainda se acaso não seria melhor jogar na panela aquele Mago papudinho. Onde já se viu tamanho atrevimento, futricar nos guardados carnudos da realeza, fazendo o Rei passar por trouxa dourado.

 

GIN (voz em off)

E nem um cafezinho para os amigos!…

 

VALETE (buscando a origem da voz)

Quem disse isto?

 

GIN (voz em off)

Aqui, olhe bem pra cá.

 

VALETE

Eu bem que havia reconhecido a voz da garrafa falante… Mas o que andas por aqui?

 

GIN (voz em off)

Ninguém precisa saber que eu estou aqui. O Mago desconfia de algo e teme por sua vida.

 

VALETE

Ora, mas se ele é o bracelete de ouro da Rainha e o fiel opinante real! Quem iria contra ele?

 

GIN (voz em off)

Nunca se sabe. Às vezes uma fila invisível se forma sob a janela do inquestionável. O certo é que o Mago guardará corpo oculto por algum tempo.

 

VALETE

E onde mesmo será esse lacre secreto atrás do qual ele se esconderá?

 

GIN (voz em off)

Ora, Valete, se isto a alguém revelo… deixará de ser secreto, como aliás é a moda de hoje: tudo acaba aparecendo na Internet. As Quimeras novas não são tão espertas quanto as Antigas, que eram secretíssimas… As novas são boquirrotas. Mas... têm as garras fortíssimas, e esfolam com feroz violência…

 

Levanta-se Gin, com ar compungido, vai até o canto da sala, junto à cortina carmesim, e aciona o fonógrafo. Evola-se, num trêmulo magistral, a voz de Caruso… ocupando todo o recinto. Cada investida de sua voz era como chegar de novo ao mundo. As ilhas voltavam a se abraçar, os continentes tremiam de sonhar com sua pangeia desfeita a pauladas regidas pelo Olimpo. Todas as árvores emendadas formavam uma só brisa e cantavam em coro acompanhando Caruso.

 

GIN (de volta à cena, mas já com um humor mais contido até mesmo em seu traje, gravatinha borboleta e luvas, sem mais nada)

As ordens do Olimpo fizeram o mundo tremer muitas vezes. Agora reclama-se das tempestades, da voracidade dos terremotos e desse despertar agônico dos vulcões. A terra está novamente reunindo suas sombras, refazendo a mais íntima geografia, e o homem parece não ter vez nesse seu manancial de desassossegos. Mas… esta gravura inglesa… diz: From Velox Ship’s Bow Captain Lufoldo Spinachs in Spanish the Whale Beluxa

 

VALETE (pálido)

Enquanto o Senhor lia o título, a Baleia deu uma trombada terrível no Vapor Velox, que afundou.

 

GIN (puxa o cachimbo do bolso, acende-o com isqueiro à gasolina, solta uma baforada, e torna a ler o título da gravura)

Baleia Beluxa Laughs at Sunset

(…solta uma longa baforada, com ar meditativo e melancólico, e sussurra)

Cosí Fan Tutte.

 

Recuperando-se do susto, ainda pálido, Capitão Gin balbucia: A Beluxa me persegue… sempre! É uma doida paixão… Valete, com cínico esgar, comenta em surdina: Dr. Freud, um vão humanista, não saberia sacar essa lacanagem de 2° grau.

 

GIN

Certamente nem o próprio Dr. Lacan, que bancava o lacana, mas… era muito carola… tampouco sacaria.

 

VALETE

Somente Doutor Xarkot, o psicólogo totêmico, saberia sacar esse tesão tabu, da infeliz Beluxa…

 

GIN

Por certo essa jornada não terá um final na esfera humana, e mesmo alguns de seus ossos, acidentalmente encontrados ao longo de milênios, alguns rancorosos, outros falaciosos como a gralha Al-Forrida que perdeu a ponta em Hollywood, jamais a técnica hoje ociosa do Carbono 14 poderia aceitar como argumento a simples queda da cortina. A Baleia Beluxa tão bem sabe disto que permanece afeita a toda tática de metamorfose, fazendo com que a terra trema muito além de suas decadentes convicções e a barbárie de suas frustrações.




 

 


ZUCA SARDAN (Brasil, 1933). Poeta, dramaturgo, desenhista, o mais eletrizante criador possuído pelo espírito da Patafísica no Brasil. Entre seus livros, estão: Aqueles papéis (poesia, 1975), Os mystérios (fábulas, 1979), Visões do bardo (graffitti, 1980), Ás de colete (poemas & desenhos, 1994). É autor, juntamente com Floriano Martins, de 8 peças de teatro automático, onde se destaca a trilogia O iluminismo é uma baleia (2016).


   

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

 

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