A imagem do fogo se
move dentro dos limites da paisagem.
Suas ondulações
confundem a visão. Talvez dela se afaste
ou a leve consigo para
outro sítio ausente de minha percepção.
O mundo é o que eu
imagino ou o que me é dado pelo devaneio?
1831 | O BLASFEMO
O
pintor e escultor Frederick Tatham foi um discípulo de William Blake. De íntimo
convívio com ele, após sua morte abrigou a viúva Catherine, como empregada da
casa. Com ela dividiu a guarda do espólio de Blake do qual tratou de
assenhorear-se quando morre Catherine, mesma época em que conhece o pregador
presbiteriano Edward Irving, cuja ortodoxia levaria Tatham a considerar
blasfema a obra de seu mestre. Em face disto, parcialmente a destruiu, vendendo
o que lhe restou, por necessidade, graças ao que a memória de Blake em algo se
preserva.
FREDERICK TATHAM ⎼ Darei ao fogo o que somente a ele
cabe castigar. Ao fogo e à manifestação de todas as línguas que sabem discernir
entre o impróprio e o valor inestimável do que nos honra a existência devota.
Não há como forjar a inocência ou a experiência. O mundo é o que nos permite a
compreensão de Deus. Cada vocábulo de nossa vida é uma doação. Existimos para
fortalecer o coração do Senhor.
Vejo agora que a obra de Blake trai
essa bênção divina que lhe foi dada desde muito jovem. Blake foi um pregador da
dissidência, da ante-devoção carismática, um apóstolo da perversão erótica que
destrói todos os cânones divinos.
Não importa que tenha dito que não
há utilidade em seus manuscritos. O Senhor me ordena livrar o mundo de seu
pecado. Blake não deve existir. E disto não me arrependo.
1835 | ENCARNAÇÃO DE
CATHERINE SOPHIA
Filha
de um jardineiro, eu nasci em abril de 1762. Minha vida jamais teria se cruzado
com a do senhor Blake se ele não tivesse atravessado a margem do rio Tâmisa
para se recuperar de um amor que lhe havia abatido. Tenho muito presente em
minha vida o instante em que ele me disse que me amava pelo simples fato de que
eu havia me apiedado de seu sofrimento amoroso. O senhor Blake sempre foi um
anjo predestinado. Nós nos casamos rapidamente, eu então não sabia ler ou
escrever, de modo que na igreja assinei um papel apenas com um x. Tudo o que
aprendi na vida me foi ensinado por ele. Eu lhe devo tudo e sei que preenchi
seus dias com a minha dedicação incondicional. Não tivemos filhos e este foi o
único desconforto nosso, ao ponto em que ele por vezes insistiu em ter conosco
outra mulher apenas para que lhe pudesse dar um filho. Eu sei que ele defendia
o amor livre de um homem com várias mulheres, porém sempre me respeitou e muito
lhe considero também por isto. Eu não privei muito de sua companhia, porque ele
passava a maior parte do tempo em estado paradisíaco, ausente do mundo, porém
em suas últimas palavras, ao morrer, no momento em que me desenhava o rosto,
reconheceu que sempre fui um anjo para ele.
Quando o personagem de Enitharmon
surgiu, há um entendimento de que eu o inspirei, o que seria uma idealização da
imaginação criadora se expandindo além dos instintos afetivos em busca de uma
concretização carnal do amor. O senhor Blake então seria Los, o meu profeta
eterno, e eu seria uma vez mais a sua sombra de prazer, como me descreveu em um
de seus livros. Quando morreu, eu lhe permaneci fiel companheira. Recolhida à
casa de um de seus discípulos, Frederick Tatham, fui trabalhar como governanta
e segui colorindo e vendendo as obras de meu anjo. Em vida eu o ajudei a cuidar
das finanças e trabalhamos juntos, ensinada que fui a imprimir e colorir suas
gravuras.
Quando morri Frederick nos
desapontou de várias maneiras, a começar pela afirmação de que o senhor Blake
lhe havia tornado herdeiro único de suas obras. Convertido a uma religião
hipócrita ⎼ meu
amor sempre me ensinou que todas as religiões são uma só e que não se pode
acreditar em nenhuma que queira existir em isolado ou se considere superior às
demais ⎼,
passou a considerar profanos aqueles escritos e desenhos, e parcialmente os
destruiu. São criminosas as chamas ateadas sobre a quase totalidade dos
escritos e rascunhos de um livro como Os
quatro Zoas. Este homem não merece clemência, onde quer que esteja.
Graças ao meu William aprendi que a
expulsão do homem do Paraíso não reflete a transgressão de uma lei divina, mas
antes o seu estabelecimento. É a lei que expatria o homem.
1828
| CATHERINE SOPHIA
Ele me fez cair em seus braços sem
que a noite suspeitasse
do acaso. As lágrimas criam mundos
em miniaturas.
Ele se alimenta da inocência do abismo
e este recolhe
suas flores de lótus como um reflexo
de que a inocência
lhe confidencia a planta de acesso à
beleza mais voraz.
Eu dei a William a orfandade de seus
abismos e letras.
Eu o inspirei a adentrar uma
realidade propensa ao desvario.
Fui sua pérola líquida, esteio de
argumentos transparentes,
cascata de luzes fantásticas, o
ponto em que ele não sentia
sequer a urgência de estar vivo. Bem
ali, naquele arvoredo,
na penumbra do impronunciável, ele
se desfez em mim.
Tenho comigo um bilhete em que
declara apressadamente
seu temor de não estar a falar
comigo. Desde os tempos
da escrita, do devaneio, da criação.
Desde a silente física
dos prelúdios e a química dos
lamentos. Eu jamais fui
duas mulheres para ele, embora em
mim fossem muitas
as vozes a se confundir. Sua
imaginação sempre se alimentou
de si mesma, com suas visões e o
ditado incessante do amor.
Ele me criou dentro de seus braços.
Eu jamais quis ir
a lugar algum. A sua inocência me
deu toda a razão de ser.
ARREDORES
DE 1765
1.
Blake em seu passeio matinal pelos campos nas redondezas da casa dos pais. Em
uma árvore o surpreende um grupo de anjos. Reconhece um deles em um galho mais
alto. Ao regressar à casa cuida de desenhar a cena. Indagado pelo pai afirma
tratar-se de Ezequiel.
JAMES
BLAKE ⎼
William, não deves nunca mentir.
WILLIAM BLAKE ⎼ Há semanas que os vejo, pai, e hoje
reconheci Ezequiel. Não me disse uma palavra, porém sei que era ele.
2.
Sequência de imagens: Blake desenhando suas visões; agarrado a alguns livros,
aprendendo sozinho a ler e escrever; indo a sebos comprar livros e gravuras;
copiando-as, em casa. O pai admirado um dia o leva a frequentar o atelier de um
gravador.
WILLIAM BLAKE ⎼ Por sete anos, eu copiei os mais
distintos mestres, ao mesmo tempo em que desenhava estátuas e efígies
sepulcrais.
3.
Pequena conversa entre Blake e seu maestro de gravura:
WILLIAM BLAKE ⎼ Em uma vida tomada pela criação os
erros se reproduzem na mesma escala dos acertos. Por vezes não excedemos o
sítio das adivinhações. Criar é entregar-se à voragem da existência.
JAMES BASIRE ⎼ Cuida para que o ofício não corroa
a tua percepção.
WILLIAM BLAKE ⎼ Os meus dias estão certos. Desde
que vi Jesus e seus apóstolos compreendi que todos temos que nascer para uma
segunda vida. Este será o meu evangelho.
NO ATELIER DE JAMES
BASIRE | COPIANDO OS MESTRES
Eu
vi os teus olhos caídos em mim.
A
tua árvore destinada ao mistério.
O
milagre cotidiano de estar aqui
no
instante em que te posso evocar.
E
que sejas mais de um, pois jamais
nós
iremos apenas a um único outro.
Não
há distinção entre a verdade
e
o milagre. A minha inocência
agora
me faz ver que as opiniões
são
fontes de um sufrágio eterno.
Eu
estou aqui.
Não há como saber com
que frequência nos reproduzimos.
A realidade é uma
espécie de reino dos desmentidos.
Basta pensarmos na
astúcia de quem encarcera a história.
Os nossos primeiros
valores nos cercam de eternidade.
A realidade não
costuma passar de um instante.
Eu te ausento de
tudo. Eu sou a ausência mais plena.
Eu sou o inferno
aconchegado em teus braços.
O abraço dos céus,
emaranhado de não estar em parte alguma.
Eu fui o primeiro a
compreender que lugar ocupo no abismo.
Estou pronto para
reconhecer os motivos de tantas aparições.
1782 | PRESSENTIMENTOS
A
inocência fixa no horizonte uma turvação de imagens que rompem o atrativo da
lógica. Blake conhece Catherine e logo se casa com ela. Ele a ensina a ler e
escrever, bem como a lidar com gravura e aquarela.
CATHERINE ⎼ Meu amor, o que vens fazendo se
encontra acima de meus sentidos.
WILLIAM BLAKE ⎼ Desde a morte de meu irmão que o
vejo a me guiar por outros labirintos.
CATHERINE
⎼ As tuas visões te pertencem.
WILLIAM BLAKE ⎼ Nós pertencemos ao mundo. As
instruções mais preciosas são aquelas que nos põem em contato com o
pressentimento. Nossas mãos escrevem as linhas reveladoras do que somos.
CATHERINE ⎼ As tuas visões são uma dádiva. O
mundo anseia por ouvir a tua voz.
WILLIAM BLAKE ⎼ Sabes que está escrito que não
posso viver sem cumprir meu dever, que consiste em acumular tesouros no céu.
CATHERINE
⎼ Mas também acumulas tesouros em
mim.
WILLIAM BLAKE ⎼ Não te esqueças, Kate, que a
soberba do pavão real é a glória de Deus.
CATHERINE ⎼ Não me importa a cólera, a nudez, o
excesso de entendimento. Já me deste à luz, meu anjo. Também o inacreditável é
uma imagem da verdade.
WILLIAM BLAKE ⎼ Não tenho outra manhã em minha vida
que não sejas tu.
CATHERINE ⎼ Somos os nossos provérbios: exuberância
é beleza.
A
ÚLTIMA INOCÊNCIA
A noite cumpria os
detalhes imprevistos de cada instante.
Certas luzes
excitadas erguiam tanto as pernas que mais
pareciam lutar contra
a agudez de uma dor insuspeita.
O horizonte não se
limita à confiança de quem o contempla.
A astúcia soletra o
pregão da fé. A dúvida debulha
seus motivos
insepultos. O dia me vem de cada domínio
que identifico, como
alguém que se escraviza a si mesmo.
A luz delata a
paisagem? A noite é uma enfermaria da alma?
Quanto temos que
destruir até que a eternidade recupere
suas energias? Tanto
quanto o bem, o mal nunca soube
o que fazer de si. O
espelho sempre foi a grande tormenta.
Sempre buscamos o
outro na margem errada desse rio
de ilusões. Os erros
são uma indecifrável verdade a esmo.
Que me ponham a
ferros e o abismo não me roubará
a porção de mim
mesmo, traída ou não, que acreditou
na inocência como uma
última quimera. Meus provérbios
caíram por terra
quando parte de minha inquietude foi
destruída pelo filho
mais amado. A eternidade não suporta
as obras do tempo. Os
mortos constituíram uma aliança
de injúrias. O
orgulho não tem mais vergonha alguma
de seu mórbido
espectro. A exuberância tornou-se feia.
Nada mais é
demasiado, exceto o equívoco. Eu creio no fato.
Não há metáfora que realoque
a tormenta do espírito.
Ainda vejo como
Catherine confiou a Frederick as minhas
crianças. Aquele que
não honra uma herança desesperará
em vida. O que
bastará à morte para que eu exista, senão
desejar-me
ardentemente. O fogo crê apenas na destruição.
1793 | A CRIAÇÃO
Devo criar um mundo
ou me deixar sujeitar pelo de outrem.
O homem não me
interessa como uma peça isolada no tablado ou como um simulacro de suas
ansiedades. Não quero saber da palavra que não transgrida o ato que a
representa.
O amor é o único
evangelho eterno. Um Deus que não ame a si mesmo jamais fará bem a quem o siga.
Quem cria não pode
ser devorado pela tristeza.
Não há sabedoria
longe da persistência na loucura.
A eternidade me
comove, tão sensível a cada letra que gravo na pele do tempo.
Eu não creio no
engenho precário dos sofismas ou na verdade apalavrada pelo hedonismo.
O amor é a evidência
capaz de substituir a si mesma pela descoberta do outro. A restituição da
humanidade a seu estágio capital de correspondência e entrega.
A palavra e a imagem
não se revelam como malícia e ardil. Elas se fundem em uma lei ulterior:
revelação de que o mundo existe muito além do visível.
Rir ou gozar, são
apenas dois credos sufocados pela abstinência de um desejo maior: deixar-se
fecundar pelo mundo.
Não me contenhas,
mundo, que não me privo à tua inundação.
A cautela é a morte
da imaginação.
Eu ouço o verbo. O
verbo necessita caminhar. O adjetivo é uma cisterna irrespirável que acumula
tragédia em seu umbigo.
Não há dores
acumuladas na lapela. O que rompe o coração é a única matéria possível de
narrar a expansão do ser.
Os meus estados de
transe não me confundem. Ajudam a temperar a ideia que tenho de um mundo em que
apenas o espírito pode enriquecer-se de si o suficiente para expandir-se na forma
de uma humanidade.
O espírito é a soma
de seus infinitos.
À luz não lhe falta
razão nunca.
Eu descrevi um mundo
soterrado pelas pedras da ganância. Um sol que amava apenas a própria órbita.
Os espíritos cativos de uma revolução empenhada em criar ruínas.
A tirania é o pecado
de desejar o mundo apenas para si, a visão de um lugar cego que reflita a norma
e não a utopia.
As almas decaíram
pela objetividade do mistério.
O piano pode se
embriagar independente de seu músico.
Eu não separo dia e
noite em minha vida. Estarei aqui a todo instante anotando o que me é dado, o
que percebo, o que convive com minhas dúvidas.
LAPELAS
NA FLOR
O primeiro homem eu
criarei agora.
As mesas acumuladas
na vertigem do olhar.
O mistério rodeado de
trombetas.
Nenhum profeta é
eterno, por mais que se confunda
com a joalheria de
nossas ansiedades.
Sendo maravilhoso ou
funesto,
o desejo será sempre
movediço.
Eu desço à
profundidade das inquietudes,
ao reino indolente de
tantas ilusões.
Ali identifico a tua
silhueta,
em todas as
vicissitudes copiadas.
Estes são os
registros da miragem tangível.
O mundo como o
habitamos.
O império, a divisão,
as artes, a angústia.
Como um rol
pressuposto de modos de viver.
Se acaso há um
inimigo em linha,
então o inimigo somos
todos nós.
Não há núpcias antes
que o baralho esteja completo.
Nenhuma ordem haverá
de garanti-lo:
seja a arte, a
ciência ou a religião.
O primeiro homem deve
saber
que o seu evangelho é
o da regeneração.
BLAKE
CANTANDO AO CRIAR
Eu
me ponho a cantar enquanto a vida se arrasta por veias humanas. Humildade
transparece hipocrisia. Generalizar é abrigar a fealdade espúria. Deus não nos
ensina tanto quanto nossos próprios passos. Eros não teme seus erros. Eu vejo
como o mundo se desvanece em disfarces. O homem é uma súplica de si mesmo.
BLAKE
CANTANDO SEUS POEMAS
Ele cantava os poemas
como se ouvisse a voz do espírito,
as imagens anunciando
uma selva de sentidos, a terra
amanhecendo no dorso
de cada palavra, o ritmo buscando
semelhança nas
sombras, nos raios do canto, imagens
que se aproximam
ansiosas por velhas conexões,
imagens cantadas como
um espasmo do instinto.
Blake cantava como se
desejasse que a razão lhe desabitasse.
Queria seus filhos
amáveis, bem vestidos de ânimo
como um braseiro
incessante. A vida flamejante que se atrevia
a renascer a todo
instante, ardendo de si mesma,
tecendo as fibras de
uma simetria impensável.
Blake cantava como se
em cada uma de suas árvores
residisse uma nova
morada do ser. Ao final de cada dia
a Deus pedia que as
roubasse, para que assim pudessem voltar
a vê-los de outro
modo na trilha de uma essência inquieta.
1778 | MINERAÇÃO
ESPARSA
1.
Na abadia de Westminster foram inúmeras as visões enquanto esboçava seus
desenhos.
A
arquitetura gloriosa das formas expressa as raízes da alma humana como um livro
antigo apreendido na árvore tirânica do corpo amado. A humanidade se reproduz
por um pacto incessante de morbidezes. Até mesmo o amor a Deus é sujeição.
Quando um homem abraça sua mulher uma maldição sempre os petrifica.
2.
O poeta contestando a defesa de Joshua Reynolds de uma verdade geral.
Nenhum
criador está acima de sua criatura. É uma lei natural: o destino do homem é o
mesmo da elipse. Nem mesmo Deus repete suas orações a cada noite.
3.
Sobre o amor livre.
Não
há como guardar livros para um momento ideal de leitura. Ou nuvens para uma
chuva mais propícia. A especulação é a erva daninha de uma vida livre. As
instituições são um fracasso da convivência humana. Imaginemos um sindicato dos
castores, uma arquidiocese das pedras brutas ou um livro de sementes postulado
por elas mesmas contra o desmatamento. Não há tempos turbulentos. A turbulência
é parte íntima de cada templo humano. Os amigos corporais são inimigos
espirituais.
4.
Ao ser contratado por William Hayley.
A
arte da guerra não se dissocia dos credos ou dos grilhões. Os heróis não são
evidências da realidade, e sim personagens plantados. Sem o comércio das almas
o mundo não leva a cabo sua excentricidade de bruxas e conspirações. Há uma
nova era a cada manifestação de inquietude, algo está sempre por vir. Porém o
homem é tirânico, e raramente sobrevive a si mesmo.
PERCURSOS
DA QUEDA
O
verbo é uma queda. O verbo é uma cor. O verbo é um disfarce. Um sinal de
movimento que pode exigir uma silenciosa vigilância. O verbo cobra pedágio por
revelação de seus movimentos. O verbo não sabe a quem ama, a quem desafia. O
verbo é uma pastagem de venenos. Qualquer imagem ali aventurada evidenciará
outra e exigirá um teatro tormentoso que a justifique. Somos renovados pelo
pensamento ou pela recordação? O passado ignora nosso desejo de sua incansável
presença? A vida acaba por ser uma luxúria tediosa.
Não
vamos a parte alguma. As leis existem em face de suas exceções. O mundo
restrito da semelhança negociável. O generoso céu que não sabe onde reside o
inferno. A evidência que rejeita os argumentos da imaginação.
A
solitária intuição entranhando-se nas vertigens menos inexploradas. O verbo é
uma escada encarcerada. O verbo é uma mala disposta a refazer a viagem. O verbo
é uma esponja.
Um
mito desgovernado.
1827 | UM DIA PARA
MORRER
(Blake
e suas últimas palavras a Catherine)
Kate,
não chores. Mergulha tua existência de anjo na pena com que te desenho agora.
Logo que o teu olhar seja a realidade da tinta entoaremos canções que serão a
ponte de nossa essência. Sabes que eu sempre quis conhecer o lugar que nos
reserva a morte. Desconheço que hóspedes seremos, porém intuo que mesmo na
morte nenhum retrato se completa.
(Catherine
e suas últimas palavras a Blake)
Estou
indo a teu encontro, meu amor. Não falta muito tempo para nós. Creio, no
entanto, que teus ensinamentos serão, no mínimo, esquecidos. Estamos cercados
de variantes monárquicas, cada uma disposta a criar seu próprio efeito revolucionário.
Eu te liberto de mim. Como Beatriz jamais libertaria Dante. Que sejas um anjo
abençoado e não a casa sagrada onde não mora ninguém. A nossa morada comum foi
a da liberdade acima de todos os desfalecimentos. Ninguém entenderá como nos
criamos e recriamos em lâminas, ácidos, beijos e vislumbres. Jamais deixarás de
ser Blake em mim.
(O
túmulo)
Cada
morte coleta suas páginas aparentemente dispersas e busca limitar os efeitos de
um brilho peculiar com o qual jamais se identificará. A vida é generosa em sua
escala de dissídios. A morte contratou um teatro de fantoches para lhe garantir
perpetuidade. Quem é o implacável tirano: o que nos impõe a vida ou sua
extinção? Como criar regras destinadas ao que não compreendemos? As tuas obras
rebeldes podem ser enterradas contigo. Ninguém estará aqui amanhã. O teu túmulo
deveria estar aquém do júbilo de tua memória. Porém o túmulo parece ser a única
forma com que os mortos participam da vida.
(Um
manuscrito)
Eu
estou tomado de mortes. Os chamados sempre me quiseram converter, a morte por
parcimônia, o credo da morte, seus experimentos todos. Jamais fui santo ou
cientista ou poeta. Recordado como dissidente, não residi em recanto algum
desses três sítios que sempre me foram um só. Os que venham a destruir, por falso
altruísmo ou qualquer reserva fanática, entendam que a amizade não disseca o
coração, que golpeia a si mesma à espera não de sepultar equívocos, mas antes
de surpreendê-los em outra via que não
seja a da exploração de abismos e graças plenas. O mundo não acaba nunca. Para
que possamos chorar por ele, sempre.
1827
| NO LEITO DE MORTE
A luz que me alcança
em meu leito abre diante de mim um portão de minúcias.
Uma nuvem de lágrimas
descreve as viagens secretas da Ilusão.
A forma que almejamos
para as nossas profecias.
Uma acústica de
sonhos que se reescrevem a cada noite.
Meu desejo de que o
mundo nos guarde em seu acaso perene.
Somente o espontâneo
está livre da destruição.
A luz move minha mão
trêmula e desenha teu rosto, os deuses comungam resguardados por tua presença.
Cada mínimo traço
possui a idade da imagem.
As árvores iniciadas
no horizonte ainda hoje prosperam.
As aves reconhecem a
geografia alquímica que seus voos conjugam.
Pedras de luz de uma
vida sem aflições.
Uma criança cercada
de mistério.
O pequeno bote da
angústia atracado em um ancoradouro de teias aguardando a chegada de alguém.
O breu se alimentando
de uma garatuja de infortúnios.
A ansiedade sempre
insiste em assinar um tratado com a dúvida.
A luz que me visita
me ensina a morrer apenas em teus braços.
Aprendo a dieta de
seu tempo inexato, como a última coordenada de um barco antes de entregar-se às
rugas de uma corredeira.
A luz me chega
filtrada por sua botânica incessante.
Decifro teu nome,
Catherine, entalhado em cada pedra da arquitetura de minhas visões.
O rio não apascenta
seu temperamento.
O mar não lhe deixa
outro recurso senão a joia visionária.
Eu sou a multidão de
tuas sombras, assim como fazes florescer em mim uma respiração devota do
infinito.
Nós somos um abismo
que descende de sua própria queda.
Nós somos o maior
pecado da eternidade.
1827 | CONTINUO
MORRENDO
Quando
estive pronto para morrer eu sabia o significado da
morte.
Mesmo morto a minha vida permaneceria a meu lado. Os meus erros foram a
intransigência de uma alma dedicada ao vislumbre. Jamais estive em outra margem
que não fosse aquela da essência humana. Eu pressenti as dores dos reis e dos
deuses. As febres místicas. As dinastias religiosas. Oh Deus, que ainda jovem
me cobriu de visões, eu pequei por transbordamento da imaginação. Porém as tuas
escrituras foram a minha letra de ouro. O que queres negar em mim que já não
seja o escárnio de tua presença no mundo? Acaso o céu também não abriga a
origem de todos os males? Será apenas o inferno a se apropriar de nossa
docilidade? Tens que me dizer tudo de outro modo. As tuas reticências não mais
curam os apelos das almas mais expostas. A vida lacra um ninho de absurdos para
servir como última cena.
1827 | BLAKE &
CATHERINE
ELE ⎼ Eu quero muito que o desejo se
apiede do homem.
ELA
⎼ O que me deixas para guardar-te a
memória?
ELE ⎼ O meu estar contigo. Que sigas
aprendendo outros idiomas, outras nuanças, para que completemos nossa missão.
Eu não morro aqui. O mundo flutua à espera de quem o decifre.
ELA
⎼ A tua sombra seguirá comigo.
ELE ⎼ Não, Kate, a tua deve falar consigo
e dar liberdade a uma nova eloquência.
ELA
⎼ Choro a tua morte e digo que te
amarei sempre.
ELE ⎼ As evocações são apenas o princípio
de um novo mundo. Nenhuma criação é ilimitada. Um dia virá alguém para nos
dizer que todas as profecias são perecíveis. Somente o abismo é um mundo sem
fim.
1826? | TRÊS CARTAS
1.
A inquietude de William Blake refletia-se na profusão de uma obra extensa e
dotada de uma voragem rara: buscar relevância em cada mínima projeção do humano
em seu ambiente tangível, justificar o homem em cada ato, tateando as relações
possíveis entre dois mundos, o sagrado e o profano. Em uma carta ao jornalista
Henry Crabb Robinson, confessou que escreveu mais do que Rousseau ou Voltaire.
⎼ Não publicarei mais nada. Tenho
escrito por ordem dos mais altos espíritos. Meu traço é uma extensão daquela
palavra sagrada que se destina a iluminar o homem e seu tempo. Não creio em
obra inacabada. Tudo o que fiz em minha vida é o que tratei, de algum modo, de
tornar público. Finalizo a minha existência em mim mesmo. O que por ventura
seja preservado pela eternidade não é decisão minha.
2.
O entendimento de certa blasfêmia no contexto filosófico da obra de Blake vem
do fato de que a sua visão de mundo não era a de um enviado religioso e sim de
um poeta, empenhado a cotejar a relação entre todas as formas de oposição
geradas pelo abismo entre dois mundos.
⎼ Não sou Deus ou mesmo um emissário
seu. Escuto o que me dizem as vozes celestes, porém a minha persistência por
não retocar os versos foi mais além do prejuízo estético. Por mais que
misturemos os tempos o futuro não terá mesmo como intervir no passado. O que
imagino será sempre distinto do que recordo. Eu quis dizer a todos nós que o
erro, o pecado, o crime, mesmo o arrependimento, não são valores intrínsecos,
que estão a cargo de um roteiro que não se satisfaz senão ao provar a
fragilidade de nosso cuidado mais íntimo. Destino é uma falha do acaso. Destino
é humilhação.
3.
Blake gravou a própria vida em metal, fez-se personagem de sua escrita,
imprimindo relevância ao modo como o homem participa da trajetória divina e
vice-versa. A criação artística como uma declaração de princípios.
⎼ O homem jamais teve pudor algum de
si mesmo. Onde começa o mundo? As minhas palavras não foram de conforto ou
assimilação de algum modo de estar vivo. O homem não é nada se crê em uma
divindade e não a contesta. Não há diálogo sem confronto.
A
TRAMELA DAS FÓRMULAS
Não há santos
humildes ou páginas desencontradas da história.
Uma histeria de
aniquilados transforma em areia o tempo
regado pelas
religiões. A pequena flor que alimenta a visão
humana discorre sobre
suas agonias a cada trono deposto,
a cada minuta da fé
como um instrumento da razão.
As dúvidas perfuram
os olhos dos cegos. Até hoje
não encontrei nenhum
motivo para estar aqui.
Ao rasgar a imagem do
que almejamos representar,
que significado pode
restar em cimentar altares vazios?
ESPELHO
EM BRASA
A deusa se foi por
entre os lábios, sem nada perdoar
ou receber as honras
por seus rigores excessivos.
A deusa não cabe em
receituário de orações.
O inferno é
benevolente com a virtude.
O vulto divino é um
fracasso em suas transparências.
O inferno tem um
estoque de demônios para o caso
de um mundo mais
imperfeito do que o imaginado.
Glória a Deus, nas
alturas do inferno por ele mesmo criado.
As malícias
ignoradas, os crimes adiados, as volúpias forjadas…
O mundo cai por terra
por tão pouco, a todo instante.
Como haver um poeta
para a astúcia de cada desequilíbrio?
Ninguém no mundo
jamais confiou em si mesmo.
A deusa escapuliu
dali, desconfiada de tantos arrependimentos.
ANOTAÇÕES
AUTOBIOGRÁFICAS
Nasci
em novembro de 1757. Meus pais eram fabricantes de meias. Desde criança as
visões foram o meu dote incomum. Aos quatro anos gritei diante de uma janela ao
ver ali impresso o rosto de Jesus. Os pais não acreditaram e, por sugestão de minha
mãe, acabei me desmentindo para evitar apanhar de meu pai. Aos 11 anos voltei a
ser visitado por outra visão, desta vez uma árvore repleta de anjos com asas
reluzentes como estrelas. Entre todas elas a que mais me cativou foi a visão do
funeral de uma fada, seu corpo pousado em uma pétala de rosa. Minha vida sempre
cercada de anjos. Logo que comecei a escrever meus cantos, essas figuras se
apresentam dominando as imagens, conversam comigo, me levam consigo por um
mundo espantoso de luzes e magia.
Quando fiz 15 anos, já desenhava e
escrevia, meu pai me inscreve no atelier de gravura de James Basire. Por sete
anos me ponho a copiar a obra de grandes mestres e também a esboçar minhas
próprias ideias. Fascinado pela obra de Da Vinci, Rafael, Miguel Angelo, ao
mesmo tempo em que me atraem os desenhos góticos que se repetiam com frequência
em túmulos e estatuária da Abadia de Westminster. Esta combinação de milagres
da criação definiram as minúcias essenciais do que realizei em toda a minha
vida.
Em 1779 fui admitido como gravador
da Royal Academy School, onde se realizou minha primeira exposição, aos 23
anos. Nesta mesma academia fiz cinco outras individuais. E graças a ela eu me
tornei um gravador com atuação no mercado de anúncios, embora a crítica jamais
tenha reconhecido o valor de meu trabalho.
Estes foram os anos em que tive o
meu único desencanto amoroso, algo que por sorte foi definitivamente apagado de
minha memória ao conhecer Catherine, com quem acabei me casando em 1782. Apesar
de ter o mesmo nome de minha mãe, o que nela me tocou com a força de um
pressentimento foi a certeza de uma predestinação. Catherine era filha de um
modesto jardineiro, não tinha instrução alguma, e me conheceu em um momento
doloroso de desventura amorosa e solidão moral. Eu a ensinei a ler e escrever,
assim como a arte da gravura e a colorir meus desenhos.
Estes primeiros anos de vida com
Catherine coincidem com a morte de meu irmão mais novo, Robert, com quem
montamos um atelier em um bairro popular. Nós três juntos levamos uma vida bem
fértil combinando criação, afinidades e alegria de viver. Quando se vai Robert,
em 1787, é imenso o vazio que sua morte escava em minha alma. Menos de um ano
depois, sou visitado por seu espírito que me ensina a técnica de mesclar poema
e imagem em uma mesma prancha de metal. Eu não seria nada sem a morte de meu
irmão e sem a presença física de minha mulher. Eu sou filho de ambos.
Os meus primeiros experimentos
seguindo as orientações de meu irmão se contrastam entre si como as duas faces
de uma mesma moeda. As canções da
Inocência estão ambientadas em minhas visões angelicais, com sua crença na
natureza humana, presságios, imagens oníricas. Cinco anos depois, quando
publico As canções da Experiência, a
revolução francesa havia ensurdecido aquele jovem que escutava o inocente chamado do cordeiro. Tudo o
que eu via diante de mim era um mundo de terror, a visão de uma terra devastada
pela descrença, de uma noite destroçada por disfarces agônicos. Meus anjos se
tornaram tigres. Ao escrever o último poema deste livro eu já havia perdido a
minha inocência.
A
crueldade tem Coração Humano
e
a Inveja um Humano Rosto;
o
Terror a Humana Forma Divina
e
o Segredo as Vestes Humanas.
Este era o fruto atual de minhas
visões. O horizonte caótico das expectativas sociais se alimentando do
preconceito religioso e da miséria filosófica. Não era possível observar o
mundo senão pela lente de uma alegoria, ao mesmo tempo em que esta jamais
salvaria o homem dos destroços de seus equívocos. O que eventualmente nos distancia
do restante reino animal é que não podemos viver somente para nós mesmos, para
a fabulosa soberania da espécie humana sobre as demais. E tanto levamos esta
sobeja a sério que nos tornamos superiores a nós mesmos, ao estabelecer uma
classe de valores que dignificam uns e subordinam outros. O homem é uma espécie
rara de contradição na natureza. E seu pecado mais grave foi haver inventado a
religião como uma forma de dissuadir a humanidade de sua essência comum
incondicional.
Por vinte anos pude realizar meus
trabalhos graças a interesses de patrocinadores que confiaram em minha
dedicação também a algumas sugestões suas. Todos os seguidores de uma seita são
tão escravos quanto soldados em campos de batalha ou em regimes militares. Fui
acusado como sedicioso e lunático por pensar assim. Político ou religioso, o
poder jamais aceitará ser contestado. Não sou profeta de nada. A humanidade
perdura em suas trevas, sempre dedicada às facilidades do caos.
Eu disse muitas vezes que o homem
somente se comunica com o Paraíso através da poesia, da pintura e da música. Eu
creio que o homem se fez a si mesmo na condição de um criador, cujo destino é
marcado pela percepção e não pela razão. O homem existe apenas para criar. Este
é seu único evangelho. Na natureza existem tantas formas quanto as que eu posso
conceber, tangíveis ou não. O que me aproximou de Jó ou Dante foi o
entendimento de que a fraqueza espiritual do homem o leva a inventar tanto uma
divinização autoritária de si mesmo quanto uma horda de seguidores. A vida
humana é natural e sua incondicionalidade radica exclusivamente na fluidez
dessa naturalidade.
Quando rascunhei os quatro Zoas
imaginei um mundo em que pudéssemos recuperar a identidade original. Somos a
obra labiríntica de todas as nossas ilusões e alusões, o que nos toca ver e
desejar, criar e lembrar, explicar ou não. Somos frutos do amor e graças
unicamente a ele todas as formas se unem, se fundem em uma só. Somente o amor
ambienta nossas contradições. O amor é um traço unicamente humano. Os deuses não
amam, assim como as lesmas ou os unicórnios.
Vivi uma época patrocinada por um
horror sacrílego à Imaginação. Deus então se opunha a toda e qualquer visão
espiritual. Não deveria mais ser aceito como senhor do amor e da bondade, mas
como um filtro que estabelece a louvação como norma, em lugar da afinidade.
Deus não era mais humano. Havia sido convertido em catedral e papiro. Eu fui
culpado de me opor a meu tempo, em todas as suas limitações ⎼ por mim concebidas como tais,
disseram ⎼, mas
o que sempre tive em mente é que não há nada mais fundamental na vida do homem
que não seja criar e criar e criar. Eis como devemos povoar o espectro da
existência humana: com as nossas criações.
Assim surgiram personagens em meus
escritos que se destacam pela discordância entre eles, firmando uma recusa
frontal à ortodoxia. Eu busquei todas as vozes. Não apenas ouvi-las, porém
encarná-las. Sempre quis saber como elas reagiriam dentro de mim. O mundo é a
casa de todos, jamais poderemos impor a quem seja nossas convicções ou
expectativas. Os séculos se amontoarão e o homem seguirá repetindo o mesmo
erro.
Todas as janelas construídas como
uma forma de nos conhecermos a nós próprios e às nossas possibilidades
infinitas, serão tomadas por igual limitação, a de imposição de uma visão. Eu
tive a minha vida pautada por uma sequência inesgotável de visões e jamais
alguma delas se impôs diante de meus olhos como uma razão única. O homem sempre
teve bondade em seu coração, porém sempre a rejeitou. Esta talvez seja a única
carta do baralho existencial que eu jamais compreendi.
No dia 12 de agosto de 1827 eu
morri. Eu não estava propriamente cantando sobre as coisas que via no céu.
Cantei a minha vida inteira, ancorando meu devaneio em uma melodia. Tanto a
imaginação quanto a razão carecem de ritmo. Catherine esteve comigo na hora de
minha morte. Eu sempre contei com ela para que fosse meu infinito. Catherine é
meu horizonte e sei que sobrevivo nela.
2016
| MEU ENCONTRO COM WILLIAM BLAKE
⎼ Que obscuro amor
secreto pode vir a destruir a vida?
⎼ Meu corpo é minha alma. Minha alma, meu corpo. O mundo
está coberto pela existência do que imagino. As visões mais divinas e a carne
queimando por dentro, tudo está tomado pela dimensão de nossas eleições. Um
verbo para cada desejo e a idade certa para cada movimento. A alegria não
condena ninguém ao lodaçal dos enganos.
⎼ O que espera o homem
ao adentrar a vida de uma mulher?
⎼ Dá-me o gozo para gozar, e o coração para
expressar gratidão. A beleza me espera sempre o mais longe dos sepulcros. Malditos sejam os cantos que não
criam novas incertezas. Malditas, sim, as vorazes núpcias que esmigalham a
paixão, bem como o coro das funestas iguarias do contentamento. A deus algum é
dado o direito de exigir a morte em vida.
⎼ Quais milagres te convencem de que os santos existem?
⎼ Soletra
em meu corpo o teu reino atacado pela arrogância, procria em minha pele os
estragos de uma colheita perdida. Não me condenes às lágrimas compassivas das
masmorras ou me convertas às estrofes pestilentas de tuas crenças. Eu não
existo. A minha vida não é propícia a religião alguma. Com os meus restos não
erguerás nenhum mercado de almas.
⎼ Aonde nos leva a fome das virtudes,
o pecado de sua gula?
⎼ Não
sabemos em que bosque nos faz desaparecer a ilusão, a qual leito ou céu nos
devolve a obsessão pelas virtudes. Não há como voltar a viver. Verbo algum se
compadece de sua pronúncia em um teatro alheio a suas transgressões. Um amor
não é o que se espera dele, e tanto resiste ao túmulo quanto mais se mostra um
enigma convicto de si mesmo.
PÁGINAS
APÓCRIFAS
A vida me escapa por
entre os sulcos invisíveis da matéria.
Suas páginas me
atravessam com o mesmo entusiasmo
com que aprendemos a
extrair o milagre das sombras.
Quando a voz se ergue
cria um mundo à beira do silêncio,
roça o precipício da
compreensão, antes de avultar-lhe
a precedência. A voz
se move como um prodígio
por entre a espessa
treva fria de nossas crenças. A voz,
com seu intervalo de
refúgios, o lacre de seus elementos
gravados para uma
última revelação. A pedra da criação
lapida um coro nos
arredores da voz, como uma matilha
de monstros
desgarrados, com seus urros que proclamam
a sensualidade do
caos. A noite transtornada nas igrejas da voz.
O pai regendo a
queda. A dor promulgada como uma chave
que se adapta às
maldições. Volto a dizer que sim, era ele:
Milton. Com seu
manancial incriado. A silhueta movediça
do primeiro profeta.
Seu rosto esculpido no vidro
como um evangelho em
desacordo com os próprios erros.
O que me queria
dizer? A mutilação da voz ao percorrer
o reino das ilusões?
Que os deuses almejam a representação
de nosso fracasso?
Não importa. Ao trazer consigo os céus
de nossa discordância
entalhou as pistas de um novo conflito.
PEQUENO
DESASTRE DA SENSIBILIDADE
Eu
dei a última volta no céu, buscando suas árvores refeitas. O céu possui uma
técnica de conciliação que me impressiona. A tudo torna adequado, até mesmo sua
fealdade é bela. Os céus mais tempestuosos são líricos. Qualquer artista sabe
contrariar o que pensamos do inferno e dar-lhe um acento de inquestionável
fascínio. Os céus permanecem intocáveis, sempre adequados, alheios à
restauração. Toda forma de messianismo está baseada em um truque antitético que
parte da representação do inferno como o sítio verdadeiro do mistério a ser
vencido, mais do que simplesmente compreendido. Não somos nada quando entramos
em julgamento com o céu. Cabe ao inferno retroceder. As escrituras sagradas são
o ícone de uma era de iletrados. O céu possui um método de impressão que
converte em beleza divina toda a matéria que o absorve. O inferno até hoje paga
por haver reescrito sua própria imagem. Qual artista se assinaria com um nome
impronunciável? Somos a emanação do céu ou do inferno?
CONTORNANDO
JERUSALÉM
Espalhei
escadas e abismos por todos os lados para melhor apoiar os corpos. A queda não
é uma antecipação. Talvez não seja nem mesmo o desejo lacrado de permanência em
algum duto de ventilação. O espaço não afiança os erros do tempo. Geralmente
somos a supressão de algum entalhe que perdeu a ênfase. A experiência, no
entanto, acaba se permitindo definir por uma tutela lógica. Se eu entorto uma
colher com o olhar sou atração de circo. Se a colher está onde não posso vê-la,
sou um caso científico. Para que haja uma versão militar a colher precisa se
converter em um gatilho. Se nada for explicado, o fato pode ainda ser meramente
estético. Desde que o Vaticano não se sinta ameaçado. O meu corpo foi se
deformando em meio à indecisão sobre a data desse concílio impossível. Nada era
tão simples nem haverá resposta para o ocorrido. A ciência e a religião jamais
conseguiram entender a mecânica ilusória da criação. Somos uma ideia decaída do
que um dia poderíamos vir a ser. Todas as forças se movimentam em direção ao
inevitável. São uma representação do destino cujos apócrifos se perderam em
nossa memória.
GÊNESE DE UM LIVRO DE TRUQUES
Ao
receber em casa exemplar do livro Gog,
de Giovanni Papini, de imediato após a primeira folheada saí com ele, sem nada
planejar. Após um tempo impreciso caminhando dei de cara com um lugar chamado
Mercado 153. Entrei e o simpático metre me informou que tinha Heineken
original, holandesa. Aquele 153 me levou direto ao nove de sua decomposição,
número que multiplicado se reproduz a si mesmo, de acordo com o princípio da
adição mística. Um gole da geladíssima cerveja e, ao folhear novamente o livro,
pedi ao metre que me conseguisse papel e caneta. Incalculável o tempo que levei
a escrever, até que, sem que antes desse por conta, percebi que estava
escrevendo de forma invertida, como se o manuscrito só pudesse ser revelado
pelo uso de um espelho. Surpreso e faminto,
pedi um filé alto, mal passado, e voltei a folhear o livro de Papini, sem, no
entanto, ler sequer uma frase. As manifestações espíritas se dão de incontáveis
maneiras. Há aquelas que produzem estranhos ruídos ou que arrastam móveis pela
casa; outras que materializam bilhetes ou fornecem pistas para que localizemos
velhas tranqueiras domésticas ou mesmo alguns pequenos tesouros; há ainda
aquelas em que ouvimos vozes ou somos tomados pelo espírito de alguém… Minha
mãe e sua irmã vislumbravam formas humanas, chegando a identificá-las e
conversar com elas. No meu caso não houve nada disto. Naquela manhã o que senti
foi a presença invisível de William Blake, a delicada força de sua mão
segurando a minha e simplesmente rascunhando notas e mais notas. Durante cinco
ou seis vezes repeti aquele ritual. Retornava ao Mercado 153, sentava-me à
mesma mesa, cerveja, filé, sem que nada faltasse. Sempre comigo o livro de
Papini, mesmo sem abri-lo. No terceiro dia o metre indagou se eu era escritor.
Para ele a minha visita era tão afetuosa quanto a de Blake para mim. A primeira
cerveja eu tomava conversando com ele, curioso de tudo. O poeta inglês
prosseguiu com seus manuscritos, e no quarto dia me apresentou Catherine, sua
esposa, pedindo que eu também a deixasse escrever algo. Observo agora que nem
mesmo quando as anotações se concluíram eu voltei a folhear o exemplar de Gog. Senti que havíamos finalizado
aquele estranho rito quando me pus a desenhar o rosto de Blake e logo o meu
próprio sobre ele. Não nos despedimos. Algo em mim estava ciente de que eu
havia recebido um presente. Nossa relação com o mundo, visível ou não, se dá
como a percepção de uma ponte, cujo entendimento da mecânica de comunicação de
duas experiências é o que define nossa existência. Blake me descrevera fatos
que não constam de suas diversas biografias. Somente uma semana depois é que
comecei a ler Papini. Em algum momento fomos – Blake, Papini, eu – a misteriosa
definição de três mundos: corpo, intelecto e espírito.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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