quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | O livro desmedido de William Blake

 

A imagem do fogo se move dentro dos limites da paisagem.

Suas ondulações confundem a visão. Talvez dela se afaste

ou a leve consigo para outro sítio ausente de minha percepção.

O mundo é o que eu imagino ou o que me é dado pelo devaneio?

 

1831 | O BLASFEMO

 

O pintor e escultor Frederick Tatham foi um discípulo de William Blake. De íntimo convívio com ele, após sua morte abrigou a viúva Catherine, como empregada da casa. Com ela dividiu a guarda do espólio de Blake do qual tratou de assenhorear-se quando morre Catherine, mesma época em que conhece o pregador presbiteriano Edward Irving, cuja ortodoxia levaria Tatham a considerar blasfema a obra de seu mestre. Em face disto, parcialmente a destruiu, vendendo o que lhe restou, por necessidade, graças ao que a memória de Blake em algo se preserva.

 

FREDERICK TATHAM ⎼ Darei ao fogo o que somente a ele cabe castigar. Ao fogo e à manifestação de todas as línguas que sabem discernir entre o impróprio e o valor inestimável do que nos honra a existência devota. Não há como forjar a inocência ou a experiência. O mundo é o que nos permite a compreensão de Deus. Cada vocábulo de nossa vida é uma doação. Existimos para fortalecer o coração do Senhor.

Vejo agora que a obra de Blake trai essa bênção divina que lhe foi dada desde muito jovem. Blake foi um pregador da dissidência, da ante-devoção carismática, um apóstolo da perversão erótica que destrói todos os cânones divinos.

Não importa que tenha dito que não há utilidade em seus manuscritos. O Senhor me ordena livrar o mundo de seu pecado. Blake não deve existir. E disto não me arrependo.

 

1835 | ENCARNAÇÃO DE CATHERINE SOPHIA

 

Filha de um jardineiro, eu nasci em abril de 1762. Minha vida jamais teria se cruzado com a do senhor Blake se ele não tivesse atravessado a margem do rio Tâmisa para se recuperar de um amor que lhe havia abatido. Tenho muito presente em minha vida o instante em que ele me disse que me amava pelo simples fato de que eu havia me apiedado de seu sofrimento amoroso. O senhor Blake sempre foi um anjo predestinado. Nós nos casamos rapidamente, eu então não sabia ler ou escrever, de modo que na igreja assinei um papel apenas com um x. Tudo o que aprendi na vida me foi ensinado por ele. Eu lhe devo tudo e sei que preenchi seus dias com a minha dedicação incondicional. Não tivemos filhos e este foi o único desconforto nosso, ao ponto em que ele por vezes insistiu em ter conosco outra mulher apenas para que lhe pudesse dar um filho. Eu sei que ele defendia o amor livre de um homem com várias mulheres, porém sempre me respeitou e muito lhe considero também por isto. Eu não privei muito de sua companhia, porque ele passava a maior parte do tempo em estado paradisíaco, ausente do mundo, porém em suas últimas palavras, ao morrer, no momento em que me desenhava o rosto, reconheceu que sempre fui um anjo para ele.

Quando o personagem de Enitharmon surgiu, há um entendimento de que eu o inspirei, o que seria uma idealização da imaginação criadora se expandindo além dos instintos afetivos em busca de uma concretização carnal do amor. O senhor Blake então seria Los, o meu profeta eterno, e eu seria uma vez mais a sua sombra de prazer, como me descreveu em um de seus livros. Quando morreu, eu lhe permaneci fiel companheira. Recolhida à casa de um de seus discípulos, Frederick Tatham, fui trabalhar como governanta e segui colorindo e vendendo as obras de meu anjo. Em vida eu o ajudei a cuidar das finanças e trabalhamos juntos, ensinada que fui a imprimir e colorir suas gravuras.

Quando morri Frederick nos desapontou de várias maneiras, a começar pela afirmação de que o senhor Blake lhe havia tornado herdeiro único de suas obras. Convertido a uma religião hipócrita ⎼ meu amor sempre me ensinou que todas as religiões são uma só e que não se pode acreditar em nenhuma que queira existir em isolado ou se considere superior às demais ⎼, passou a considerar profanos aqueles escritos e desenhos, e parcialmente os destruiu. São criminosas as chamas ateadas sobre a quase totalidade dos escritos e rascunhos de um livro como Os quatro Zoas. Este homem não merece clemência, onde quer que esteja.

Graças ao meu William aprendi que a expulsão do homem do Paraíso não reflete a transgressão de uma lei divina, mas antes o seu estabelecimento. É a lei que expatria o homem.

 

1828 | CATHERINE SOPHIA

 

Ele me fez cair em seus braços sem que a noite suspeitasse

do acaso. As lágrimas criam mundos em miniaturas.

Ele se alimenta da inocência do abismo e este recolhe

suas flores de lótus como um reflexo de que a inocência

lhe confidencia a planta de acesso à beleza mais voraz.

Eu dei a William a orfandade de seus abismos e letras.

Eu o inspirei a adentrar uma realidade propensa ao desvario.

Fui sua pérola líquida, esteio de argumentos transparentes,

cascata de luzes fantásticas, o ponto em que ele não sentia

sequer a urgência de estar vivo. Bem ali, naquele arvoredo,

na penumbra do impronunciável, ele se desfez em mim.

Tenho comigo um bilhete em que declara apressadamente

seu temor de não estar a falar comigo. Desde os tempos

da escrita, do devaneio, da criação. Desde a silente física

dos prelúdios e a química dos lamentos. Eu jamais fui

duas mulheres para ele, embora em mim fossem muitas

as vozes a se confundir. Sua imaginação sempre se alimentou

de si mesma, com suas visões e o ditado incessante do amor.

Ele me criou dentro de seus braços. Eu jamais quis ir

a lugar algum. A sua inocência me deu toda a razão de ser.

 

ARREDORES DE 1765

 

1. Blake em seu passeio matinal pelos campos nas redondezas da casa dos pais. Em uma árvore o surpreende um grupo de anjos. Reconhece um deles em um galho mais alto. Ao regressar à casa cuida de desenhar a cena. Indagado pelo pai afirma tratar-se de Ezequiel.

 

JAMES BLAKE ⎼ William, não deves nunca mentir.

 

WILLIAM BLAKE ⎼ Há semanas que os vejo, pai, e hoje reconheci Ezequiel. Não me disse uma palavra, porém sei que era ele.

 

2. Sequência de imagens: Blake desenhando suas visões; agarrado a alguns livros, aprendendo sozinho a ler e escrever; indo a sebos comprar livros e gravuras; copiando-as, em casa. O pai admirado um dia o leva a frequentar o atelier de um gravador.

 

WILLIAM BLAKE ⎼ Por sete anos, eu copiei os mais distintos mestres, ao mesmo tempo em que desenhava estátuas e efígies sepulcrais.

 

3. Pequena conversa entre Blake e seu maestro de gravura:

 

WILLIAM BLAKE ⎼ Em uma vida tomada pela criação os erros se reproduzem na mesma escala dos acertos. Por vezes não excedemos o sítio das adivinhações. Criar é entregar-se à voragem da existência.

 

JAMES BASIRE ⎼ Cuida para que o ofício não corroa a tua percepção.

 

WILLIAM BLAKE ⎼ Os meus dias estão certos. Desde que vi Jesus e seus apóstolos compreendi que todos temos que nascer para uma segunda vida. Este será o meu evangelho.

 

NO ATELIER DE JAMES BASIRE | COPIANDO OS MESTRES

 

Eu vi os teus olhos caídos em mim.

A tua árvore destinada ao mistério.

O milagre cotidiano de estar aqui

no instante em que te posso evocar.

E que sejas mais de um, pois jamais

nós iremos apenas a um único outro.

Não há distinção entre a verdade

e o milagre. A minha inocência

agora me faz ver que as opiniões

são fontes de um sufrágio eterno.

Eu estou aqui.

Não há como saber com que frequência nos reproduzimos.

A realidade é uma espécie de reino dos desmentidos.

Basta pensarmos na astúcia de quem encarcera a história.

Os nossos primeiros valores nos cercam de eternidade.

A realidade não costuma passar de um instante.

Eu te ausento de tudo. Eu sou a ausência mais plena.

Eu sou o inferno aconchegado em teus braços.

O abraço dos céus, emaranhado de não estar em parte alguma.

Eu fui o primeiro a compreender que lugar ocupo no abismo.

Estou pronto para reconhecer os motivos de tantas aparições.

 

1782 | PRESSENTIMENTOS

 

A inocência fixa no horizonte uma turvação de imagens que rompem o atrativo da lógica. Blake conhece Catherine e logo se casa com ela. Ele a ensina a ler e escrever, bem como a lidar com gravura e aquarela.

 

CATHERINE ⎼ Meu amor, o que vens fazendo se encontra acima de meus sentidos.

 

WILLIAM BLAKE ⎼ Desde a morte de meu irmão que o vejo a me guiar por outros labirintos.

 

CATHERINE ⎼ As tuas visões te pertencem.

 

WILLIAM BLAKE ⎼ Nós pertencemos ao mundo. As instruções mais preciosas são aquelas que nos põem em contato com o pressentimento. Nossas mãos escrevem as linhas reveladoras do que somos.

 

CATHERINE ⎼ As tuas visões são uma dádiva. O mundo anseia por ouvir a tua voz.

 

WILLIAM BLAKE ⎼ Sabes que está escrito que não posso viver sem cumprir meu dever, que consiste em acumular tesouros no céu.

 

CATHERINE ⎼ Mas também acumulas tesouros em mim.

 

WILLIAM BLAKE ⎼ Não te esqueças, Kate, que a soberba do pavão real é a glória de Deus.

 

CATHERINE ⎼ Não me importa a cólera, a nudez, o excesso de entendimento. Já me deste à luz, meu anjo. Também o inacreditável é uma imagem da verdade.

 

WILLIAM BLAKE ⎼ Não tenho outra manhã em minha vida que não sejas tu.

 

CATHERINE ⎼ Somos os nossos provérbios: exuberância é beleza.

 

A ÚLTIMA INOCÊNCIA

 

A noite cumpria os detalhes imprevistos de cada instante.

Certas luzes excitadas erguiam tanto as pernas que mais

pareciam lutar contra a agudez de uma dor insuspeita.

O horizonte não se limita à confiança de quem o contempla.

A astúcia soletra o pregão da fé. A dúvida debulha

seus motivos insepultos. O dia me vem de cada domínio

que identifico, como alguém que se escraviza a si mesmo.

A luz delata a paisagem? A noite é uma enfermaria da alma?

 

Quanto temos que destruir até que a eternidade recupere

suas energias? Tanto quanto o bem, o mal nunca soube

o que fazer de si. O espelho sempre foi a grande tormenta.

Sempre buscamos o outro na margem errada desse rio

de ilusões. Os erros são uma indecifrável verdade a esmo.

 

Que me ponham a ferros e o abismo não me roubará

a porção de mim mesmo, traída ou não, que acreditou

na inocência como uma última quimera. Meus provérbios

caíram por terra quando parte de minha inquietude foi

destruída pelo filho mais amado. A eternidade não suporta

as obras do tempo. Os mortos constituíram uma aliança

de injúrias. O orgulho não tem mais vergonha alguma

de seu mórbido espectro. A exuberância tornou-se feia.

 

Nada mais é demasiado, exceto o equívoco. Eu creio no fato.

Não há metáfora que realoque a tormenta do espírito.

Ainda vejo como Catherine confiou a Frederick as minhas

crianças. Aquele que não honra uma herança desesperará

em vida. O que bastará à morte para que eu exista, senão

desejar-me ardentemente. O fogo crê apenas na destruição.

 

1793 | A CRIAÇÃO

 

Devo criar um mundo ou me deixar sujeitar pelo de outrem.

O homem não me interessa como uma peça isolada no tablado ou como um simulacro de suas ansiedades. Não quero saber da palavra que não transgrida o ato que a representa.

O amor é o único evangelho eterno. Um Deus que não ame a si mesmo jamais fará bem a quem o siga.

Quem cria não pode ser devorado pela tristeza.

Não há sabedoria longe da persistência na loucura.

A eternidade me comove, tão sensível a cada letra que gravo na pele do tempo.

Eu não creio no engenho precário dos sofismas ou na verdade apalavrada pelo hedonismo.

O amor é a evidência capaz de substituir a si mesma pela descoberta do outro. A restituição da humanidade a seu estágio capital de correspondência e entrega.

A palavra e a imagem não se revelam como malícia e ardil. Elas se fundem em uma lei ulterior: revelação de que o mundo existe muito além do visível.

Rir ou gozar, são apenas dois credos sufocados pela abstinência de um desejo maior: deixar-se fecundar pelo mundo.

Não me contenhas, mundo, que não me privo à tua inundação.

A cautela é a morte da imaginação.

Eu ouço o verbo. O verbo necessita caminhar. O adjetivo é uma cisterna irrespirável que acumula tragédia em seu umbigo.

Não há dores acumuladas na lapela. O que rompe o coração é a única matéria possível de narrar a expansão do ser.

Os meus estados de transe não me confundem. Ajudam a temperar a ideia que tenho de um mundo em que apenas o espírito pode enriquecer-se de si o suficiente para expandir-se na forma de uma humanidade.

O espírito é a soma de seus infinitos.

À luz não lhe falta razão nunca.

Eu descrevi um mundo soterrado pelas pedras da ganância. Um sol que amava apenas a própria órbita. Os espíritos cativos de uma revolução empenhada em criar ruínas.

A tirania é o pecado de desejar o mundo apenas para si, a visão de um lugar cego que reflita a norma e não a utopia.

As almas decaíram pela objetividade do mistério.

O piano pode se embriagar independente de seu músico.

Eu não separo dia e noite em minha vida. Estarei aqui a todo instante anotando o que me é dado, o que percebo, o que convive com minhas dúvidas.

 

LAPELAS NA FLOR

 

O primeiro homem eu criarei agora.

As mesas acumuladas na vertigem do olhar.

O mistério rodeado de trombetas.

Nenhum profeta é eterno, por mais que se confunda

com a joalheria de nossas ansiedades.

Sendo maravilhoso ou funesto,

o desejo será sempre movediço.

Eu desço à profundidade das inquietudes,

ao reino indolente de tantas ilusões.

Ali identifico a tua silhueta,

em todas as vicissitudes copiadas.

Estes são os registros da miragem tangível.

O mundo como o habitamos.

O império, a divisão, as artes, a angústia.

Como um rol pressuposto de modos de viver.

Se acaso há um inimigo em linha,

então o inimigo somos todos nós.

Não há núpcias antes que o baralho esteja completo.

Nenhuma ordem haverá de garanti-lo:

seja a arte, a ciência ou a religião.

O primeiro homem deve saber

que o seu evangelho é o da regeneração.

 

BLAKE CANTANDO AO CRIAR

 

Eu me ponho a cantar enquanto a vida se arrasta por veias humanas. Humildade transparece hipocrisia. Generalizar é abrigar a fealdade espúria. Deus não nos ensina tanto quanto nossos próprios passos. Eros não teme seus erros. Eu vejo como o mundo se desvanece em disfarces. O homem é uma súplica de si mesmo.

 

BLAKE CANTANDO SEUS POEMAS

 

Ele cantava os poemas como se ouvisse a voz do espírito,

as imagens anunciando uma selva de sentidos, a terra

amanhecendo no dorso de cada palavra, o ritmo buscando

semelhança nas sombras, nos raios do canto, imagens

que se aproximam ansiosas por velhas conexões,

imagens cantadas como um espasmo do instinto.

Blake cantava como se desejasse que a razão lhe desabitasse.

Queria seus filhos amáveis, bem vestidos de ânimo

como um braseiro incessante. A vida flamejante que se atrevia

a renascer a todo instante, ardendo de si mesma,

tecendo as fibras de uma simetria impensável.

Blake cantava como se em cada uma de suas árvores

residisse uma nova morada do ser. Ao final de cada dia

a Deus pedia que as roubasse, para que assim pudessem voltar

a vê-los de outro modo na trilha de uma essência inquieta.

 

1778 | MINERAÇÃO ESPARSA

 

1. Na abadia de Westminster foram inúmeras as visões enquanto esboçava seus desenhos.

 

A arquitetura gloriosa das formas expressa as raízes da alma humana como um livro antigo apreendido na árvore tirânica do corpo amado. A humanidade se reproduz por um pacto incessante de morbidezes. Até mesmo o amor a Deus é sujeição. Quando um homem abraça sua mulher uma maldição sempre os petrifica.

 

2. O poeta contestando a defesa de Joshua Reynolds de uma verdade geral.

 

Nenhum criador está acima de sua criatura. É uma lei natural: o destino do homem é o mesmo da elipse. Nem mesmo Deus repete suas orações a cada noite.

 

3. Sobre o amor livre.

 

Não há como guardar livros para um momento ideal de leitura. Ou nuvens para uma chuva mais propícia. A especulação é a erva daninha de uma vida livre. As instituições são um fracasso da convivência humana. Imaginemos um sindicato dos castores, uma arquidiocese das pedras brutas ou um livro de sementes postulado por elas mesmas contra o desmatamento. Não há tempos turbulentos. A turbulência é parte íntima de cada templo humano. Os amigos corporais são inimigos espirituais.

 

4. Ao ser contratado por William Hayley.

 

A arte da guerra não se dissocia dos credos ou dos grilhões. Os heróis não são evidências da realidade, e sim personagens plantados. Sem o comércio das almas o mundo não leva a cabo sua excentricidade de bruxas e conspirações. Há uma nova era a cada manifestação de inquietude, algo está sempre por vir. Porém o homem é tirânico, e raramente sobrevive a si mesmo.

 

PERCURSOS DA QUEDA

 

O verbo é uma queda. O verbo é uma cor. O verbo é um disfarce. Um sinal de movimento que pode exigir uma silenciosa vigilância. O verbo cobra pedágio por revelação de seus movimentos. O verbo não sabe a quem ama, a quem desafia. O verbo é uma pastagem de venenos. Qualquer imagem ali aventurada evidenciará outra e exigirá um teatro tormentoso que a justifique. Somos renovados pelo pensamento ou pela recordação? O passado ignora nosso desejo de sua incansável presença? A vida acaba por ser uma luxúria tediosa.

 

Não vamos a parte alguma. As leis existem em face de suas exceções. O mundo restrito da semelhança negociável. O generoso céu que não sabe onde reside o inferno. A evidência que rejeita os argumentos da imaginação.

 

A solitária intuição entranhando-se nas vertigens menos inexploradas. O verbo é uma escada encarcerada. O verbo é uma mala disposta a refazer a viagem. O verbo é uma esponja.

 

Um mito desgovernado.

 

1827 | UM DIA PARA MORRER

 

(Blake e suas últimas palavras a Catherine)

 

Kate, não chores. Mergulha tua existência de anjo na pena com que te desenho agora. Logo que o teu olhar seja a realidade da tinta entoaremos canções que serão a ponte de nossa essência. Sabes que eu sempre quis conhecer o lugar que nos reserva a morte. Desconheço que hóspedes seremos, porém intuo que mesmo na morte nenhum retrato se completa.

 

(Catherine e suas últimas palavras a Blake)

 

Estou indo a teu encontro, meu amor. Não falta muito tempo para nós. Creio, no entanto, que teus ensinamentos serão, no mínimo, esquecidos. Estamos cercados de variantes monárquicas, cada uma disposta a criar seu próprio efeito revolucionário. Eu te liberto de mim. Como Beatriz jamais libertaria Dante. Que sejas um anjo abençoado e não a casa sagrada onde não mora ninguém. A nossa morada comum foi a da liberdade acima de todos os desfalecimentos. Ninguém entenderá como nos criamos e recriamos em lâminas, ácidos, beijos e vislumbres. Jamais deixarás de ser Blake em mim.

 

(O túmulo)

 

Cada morte coleta suas páginas aparentemente dispersas e busca limitar os efeitos de um brilho peculiar com o qual jamais se identificará. A vida é generosa em sua escala de dissídios. A morte contratou um teatro de fantoches para lhe garantir perpetuidade. Quem é o implacável tirano: o que nos impõe a vida ou sua extinção? Como criar regras destinadas ao que não compreendemos? As tuas obras rebeldes podem ser enterradas contigo. Ninguém estará aqui amanhã. O teu túmulo deveria estar aquém do júbilo de tua memória. Porém o túmulo parece ser a única forma com que os mortos participam da vida.

 

(Um manuscrito)

 

Eu estou tomado de mortes. Os chamados sempre me quiseram converter, a morte por parcimônia, o credo da morte, seus experimentos todos. Jamais fui santo ou cientista ou poeta. Recordado como dissidente, não residi em recanto algum desses três sítios que sempre me foram um só. Os que venham a destruir, por falso altruísmo ou qualquer reserva fanática, entendam que a amizade não disseca o coração, que golpeia a si mesma à espera não de sepultar equívocos, mas antes de  surpreendê-los em outra via que não seja a da exploração de abismos e graças plenas. O mundo não acaba nunca. Para que possamos chorar por ele, sempre.

 

1827 | NO LEITO DE MORTE

 

A luz que me alcança em meu leito abre diante de mim um portão de minúcias.

Uma nuvem de lágrimas descreve as viagens secretas da Ilusão.

A forma que almejamos para as nossas profecias.

 

Uma acústica de sonhos que se reescrevem a cada noite.

Meu desejo de que o mundo nos guarde em seu acaso perene.

Somente o espontâneo está livre da destruição.

 

A luz move minha mão trêmula e desenha teu rosto, os deuses comungam resguardados por tua presença.

Cada mínimo traço possui a idade da imagem.

As árvores iniciadas no horizonte ainda hoje prosperam.

 

As aves reconhecem a geografia alquímica que seus voos conjugam.

Pedras de luz de uma vida sem aflições.

Uma criança cercada de mistério.

 

O pequeno bote da angústia atracado em um ancoradouro de teias aguardando a chegada de alguém.

O breu se alimentando de uma garatuja de infortúnios.

A ansiedade sempre insiste em assinar um tratado com a dúvida.

 

A luz que me visita me ensina a morrer apenas em teus braços.

Aprendo a dieta de seu tempo inexato, como a última coordenada de um barco antes de entregar-se às rugas de uma corredeira.

A luz me chega filtrada por sua botânica incessante.

 

Decifro teu nome, Catherine, entalhado em cada pedra da arquitetura de minhas visões.

O rio não apascenta seu temperamento.

O mar não lhe deixa outro recurso senão a joia visionária.

 

Eu sou a multidão de tuas sombras, assim como fazes florescer em mim uma respiração devota do infinito.

Nós somos um abismo que descende de sua própria queda.

Nós somos o maior pecado da eternidade.

 

1827 | CONTINUO MORRENDO

 

Quando estive pronto para morrer eu sabia o significado da

morte. Mesmo morto a minha vida permaneceria a meu lado. Os meus erros foram a intransigência de uma alma dedicada ao vislumbre. Jamais estive em outra margem que não fosse aquela da essência humana. Eu pressenti as dores dos reis e dos deuses. As febres místicas. As dinastias religiosas. Oh Deus, que ainda jovem me cobriu de visões, eu pequei por transbordamento da imaginação. Porém as tuas escrituras foram a minha letra de ouro. O que queres negar em mim que já não seja o escárnio de tua presença no mundo? Acaso o céu também não abriga a origem de todos os males? Será apenas o inferno a se apropriar de nossa docilidade? Tens que me dizer tudo de outro modo. As tuas reticências não mais curam os apelos das almas mais expostas. A vida lacra um ninho de absurdos para servir como última cena.

 

1827 | BLAKE & CATHERINE

 

ELE ⎼ Eu quero muito que o desejo se apiede do homem.

 

ELA ⎼ O que me deixas para guardar-te a memória?

 

ELE ⎼ O meu estar contigo. Que sigas aprendendo outros idiomas, outras nuanças, para que completemos nossa missão. Eu não morro aqui. O mundo flutua à espera de quem o decifre.

 

ELA ⎼ A tua sombra seguirá comigo.

 

ELE ⎼ Não, Kate, a tua deve falar consigo e dar liberdade a uma nova eloquência.

 

ELA ⎼ Choro a tua morte e digo que te amarei sempre.

 

ELE ⎼ As evocações são apenas o princípio de um novo mundo. Nenhuma criação é ilimitada. Um dia virá alguém para nos dizer que todas as profecias são perecíveis. Somente o abismo é um mundo sem fim.

 

1826? | TRÊS CARTAS

 

1. A inquietude de William Blake refletia-se na profusão de uma obra extensa e dotada de uma voragem rara: buscar relevância em cada mínima projeção do humano em seu ambiente tangível, justificar o homem em cada ato, tateando as relações possíveis entre dois mundos, o sagrado e o profano. Em uma carta ao jornalista Henry Crabb Robinson, confessou que escreveu mais do que Rousseau ou Voltaire.

 

Não publicarei mais nada. Tenho escrito por ordem dos mais altos espíritos. Meu traço é uma extensão daquela palavra sagrada que se destina a iluminar o homem e seu tempo. Não creio em obra inacabada. Tudo o que fiz em minha vida é o que tratei, de algum modo, de tornar público. Finalizo a minha existência em mim mesmo. O que por ventura seja preservado pela eternidade não é decisão minha.

 

2. O entendimento de certa blasfêmia no contexto filosófico da obra de Blake vem do fato de que a sua visão de mundo não era a de um enviado religioso e sim de um poeta, empenhado a cotejar a relação entre todas as formas de oposição geradas pelo abismo entre dois mundos.

 

Não sou Deus ou mesmo um emissário seu. Escuto o que me dizem as vozes celestes, porém a minha persistência por não retocar os versos foi mais além do prejuízo estético. Por mais que misturemos os tempos o futuro não terá mesmo como intervir no passado. O que imagino será sempre distinto do que recordo. Eu quis dizer a todos nós que o erro, o pecado, o crime, mesmo o arrependimento, não são valores intrínsecos, que estão a cargo de um roteiro que não se satisfaz senão ao provar a fragilidade de nosso cuidado mais íntimo. Destino é uma falha do acaso. Destino é humilhação.

 

3. Blake gravou a própria vida em metal, fez-se personagem de sua escrita, imprimindo relevância ao modo como o homem participa da trajetória divina e vice-versa. A criação artística como uma declaração de princípios.

 

O homem jamais teve pudor algum de si mesmo. Onde começa o mundo? As minhas palavras não foram de conforto ou assimilação de algum modo de estar vivo. O homem não é nada se crê em uma divindade e não a contesta. Não há diálogo sem confronto.

 

A TRAMELA DAS FÓRMULAS

 

Não há santos humildes ou páginas desencontradas da história.

Uma histeria de aniquilados transforma em areia o tempo

regado pelas religiões. A pequena flor que alimenta a visão

humana discorre sobre suas agonias a cada trono deposto,

a cada minuta da fé como um instrumento da razão.

As dúvidas perfuram os olhos dos cegos. Até hoje

não encontrei nenhum motivo para estar aqui.

Ao rasgar a imagem do que almejamos representar,

que significado pode restar em cimentar altares vazios?

 

ESPELHO EM BRASA

 

A deusa se foi por entre os lábios, sem nada perdoar

ou receber as honras por seus rigores excessivos.

A deusa não cabe em receituário de orações.

O inferno é benevolente com a virtude.

O vulto divino é um fracasso em suas transparências.

O inferno tem um estoque de demônios para o caso

de um mundo mais imperfeito do que o imaginado.

Glória a Deus, nas alturas do inferno por ele mesmo criado.

As malícias ignoradas, os crimes adiados, as volúpias forjadas…

O mundo cai por terra por tão pouco, a todo instante.

Como haver um poeta para a astúcia de cada desequilíbrio?

Ninguém no mundo jamais confiou em si mesmo.

A deusa escapuliu dali, desconfiada de tantos arrependimentos.

 

ANOTAÇÕES AUTOBIOGRÁFICAS

 

Nasci em novembro de 1757. Meus pais eram fabricantes de meias. Desde criança as visões foram o meu dote incomum. Aos quatro anos gritei diante de uma janela ao ver ali impresso o rosto de Jesus. Os pais não acreditaram e, por sugestão de minha mãe, acabei me desmentindo para evitar apanhar de meu pai. Aos 11 anos voltei a ser visitado por outra visão, desta vez uma árvore repleta de anjos com asas reluzentes como estrelas. Entre todas elas a que mais me cativou foi a visão do funeral de uma fada, seu corpo pousado em uma pétala de rosa. Minha vida sempre cercada de anjos. Logo que comecei a escrever meus cantos, essas figuras se apresentam dominando as imagens, conversam comigo, me levam consigo por um mundo espantoso de luzes e magia.

Quando fiz 15 anos, já desenhava e escrevia, meu pai me inscreve no atelier de gravura de James Basire. Por sete anos me ponho a copiar a obra de grandes mestres e também a esboçar minhas próprias ideias. Fascinado pela obra de Da Vinci, Rafael, Miguel Angelo, ao mesmo tempo em que me atraem os desenhos góticos que se repetiam com frequência em túmulos e estatuária da Abadia de Westminster. Esta combinação de milagres da criação definiram as minúcias essenciais do que realizei em toda a minha vida.

Em 1779 fui admitido como gravador da Royal Academy School, onde se realizou minha primeira exposição, aos 23 anos. Nesta mesma academia fiz cinco outras individuais. E graças a ela eu me tornei um gravador com atuação no mercado de anúncios, embora a crítica jamais tenha reconhecido o valor de meu trabalho.

Estes foram os anos em que tive o meu único desencanto amoroso, algo que por sorte foi definitivamente apagado de minha memória ao conhecer Catherine, com quem acabei me casando em 1782. Apesar de ter o mesmo nome de minha mãe, o que nela me tocou com a força de um pressentimento foi a certeza de uma predestinação. Catherine era filha de um modesto jardineiro, não tinha instrução alguma, e me conheceu em um momento doloroso de desventura amorosa e solidão moral. Eu a ensinei a ler e escrever, assim como a arte da gravura e a colorir meus desenhos.

Estes primeiros anos de vida com Catherine coincidem com a morte de meu irmão mais novo, Robert, com quem montamos um atelier em um bairro popular. Nós três juntos levamos uma vida bem fértil combinando criação, afinidades e alegria de viver. Quando se vai Robert, em 1787, é imenso o vazio que sua morte escava em minha alma. Menos de um ano depois, sou visitado por seu espírito que me ensina a técnica de mesclar poema e imagem em uma mesma prancha de metal. Eu não seria nada sem a morte de meu irmão e sem a presença física de minha mulher. Eu sou filho de ambos.

Os meus primeiros experimentos seguindo as orientações de meu irmão se contrastam entre si como as duas faces de uma mesma moeda. As canções da Inocência estão ambientadas em minhas visões angelicais, com sua crença na natureza humana, presságios, imagens oníricas. Cinco anos depois, quando publico As canções da Experiência, a revolução francesa havia ensurdecido aquele jovem que escutava o inocente chamado do cordeiro. Tudo o que eu via diante de mim era um mundo de terror, a visão de uma terra devastada pela descrença, de uma noite destroçada por disfarces agônicos. Meus anjos se tornaram tigres. Ao escrever o último poema deste livro eu já havia perdido a minha inocência.

 

A crueldade tem Coração Humano

e a Inveja um Humano Rosto;

o Terror a Humana Forma Divina

e o Segredo as Vestes Humanas.

 

Este era o fruto atual de minhas visões. O horizonte caótico das expectativas sociais se alimentando do preconceito religioso e da miséria filosófica. Não era possível observar o mundo senão pela lente de uma alegoria, ao mesmo tempo em que esta jamais salvaria o homem dos destroços de seus equívocos. O que eventualmente nos distancia do restante reino animal é que não podemos viver somente para nós mesmos, para a fabulosa soberania da espécie humana sobre as demais. E tanto levamos esta sobeja a sério que nos tornamos superiores a nós mesmos, ao estabelecer uma classe de valores que dignificam uns e subordinam outros. O homem é uma espécie rara de contradição na natureza. E seu pecado mais grave foi haver inventado a religião como uma forma de dissuadir a humanidade de sua essência comum incondicional.

Por vinte anos pude realizar meus trabalhos graças a interesses de patrocinadores que confiaram em minha dedicação também a algumas sugestões suas. Todos os seguidores de uma seita são tão escravos quanto soldados em campos de batalha ou em regimes militares. Fui acusado como sedicioso e lunático por pensar assim. Político ou religioso, o poder jamais aceitará ser contestado. Não sou profeta de nada. A humanidade perdura em suas trevas, sempre dedicada às facilidades do caos.

Eu disse muitas vezes que o homem somente se comunica com o Paraíso através da poesia, da pintura e da música. Eu creio que o homem se fez a si mesmo na condição de um criador, cujo destino é marcado pela percepção e não pela razão. O homem existe apenas para criar. Este é seu único evangelho. Na natureza existem tantas formas quanto as que eu posso conceber, tangíveis ou não. O que me aproximou de Jó ou Dante foi o entendimento de que a fraqueza espiritual do homem o leva a inventar tanto uma divinização autoritária de si mesmo quanto uma horda de seguidores. A vida humana é natural e sua incondicionalidade radica exclusivamente na fluidez dessa naturalidade.

Quando rascunhei os quatro Zoas imaginei um mundo em que pudéssemos recuperar a identidade original. Somos a obra labiríntica de todas as nossas ilusões e alusões, o que nos toca ver e desejar, criar e lembrar, explicar ou não. Somos frutos do amor e graças unicamente a ele todas as formas se unem, se fundem em uma só. Somente o amor ambienta nossas contradições. O amor é um traço unicamente humano. Os deuses não amam, assim como as lesmas ou os unicórnios.

Vivi uma época patrocinada por um horror sacrílego à Imaginação. Deus então se opunha a toda e qualquer visão espiritual. Não deveria mais ser aceito como senhor do amor e da bondade, mas como um filtro que estabelece a louvação como norma, em lugar da afinidade. Deus não era mais humano. Havia sido convertido em catedral e papiro. Eu fui culpado de me opor a meu tempo, em todas as suas limitações ⎼ por mim concebidas como tais, disseram ⎼, mas o que sempre tive em mente é que não há nada mais fundamental na vida do homem que não seja criar e criar e criar. Eis como devemos povoar o espectro da existência humana: com as nossas criações.

Assim surgiram personagens em meus escritos que se destacam pela discordância entre eles, firmando uma recusa frontal à ortodoxia. Eu busquei todas as vozes. Não apenas ouvi-las, porém encarná-las. Sempre quis saber como elas reagiriam dentro de mim. O mundo é a casa de todos, jamais poderemos impor a quem seja nossas convicções ou expectativas. Os séculos se amontoarão e o homem seguirá repetindo o mesmo erro.

Todas as janelas construídas como uma forma de nos conhecermos a nós próprios e às nossas possibilidades infinitas, serão tomadas por igual limitação, a de imposição de uma visão. Eu tive a minha vida pautada por uma sequência inesgotável de visões e jamais alguma delas se impôs diante de meus olhos como uma razão única. O homem sempre teve bondade em seu coração, porém sempre a rejeitou. Esta talvez seja a única carta do baralho existencial que eu jamais compreendi.

No dia 12 de agosto de 1827 eu morri. Eu não estava propriamente cantando sobre as coisas que via no céu. Cantei a minha vida inteira, ancorando meu devaneio em uma melodia. Tanto a imaginação quanto a razão carecem de ritmo. Catherine esteve comigo na hora de minha morte. Eu sempre contei com ela para que fosse meu infinito. Catherine é meu horizonte e sei que sobrevivo nela.

 

2016 | MEU ENCONTRO COM WILLIAM BLAKE

 

Que obscuro amor secreto pode vir a destruir a vida?

 

Meu corpo é minha alma. Minha alma, meu corpo. O mundo está coberto pela existência do que imagino. As visões mais divinas e a carne queimando por dentro, tudo está tomado pela dimensão de nossas eleições. Um verbo para cada desejo e a idade certa para cada movimento. A alegria não condena ninguém ao lodaçal dos enganos.

 

O que espera o homem ao adentrar a vida de uma mulher?

 

⎼ Dá-me o gozo para gozar, e o coração para expressar gratidão. A beleza me espera sempre o mais longe dos sepulcros. Malditos sejam os cantos que não criam novas incertezas. Malditas, sim, as vorazes núpcias que esmigalham a paixão, bem como o coro das funestas iguarias do contentamento. A deus algum é dado o direito de exigir a morte em vida.

 

Quais milagres te convencem de que os santos existem?

 

⎼ Soletra em meu corpo o teu reino atacado pela arrogância, procria em minha pele os estragos de uma colheita perdida. Não me condenes às lágrimas compassivas das masmorras ou me convertas às estrofes pestilentas de tuas crenças. Eu não existo. A minha vida não é propícia a religião alguma. Com os meus restos não erguerás nenhum mercado de almas.

 

Aonde nos leva a fome das virtudes, o pecado de sua gula?

 

⎼ Não sabemos em que bosque nos faz desaparecer a ilusão, a qual leito ou céu nos devolve a obsessão pelas virtudes. Não há como voltar a viver. Verbo algum se compadece de sua pronúncia em um teatro alheio a suas transgressões. Um amor não é o que se espera dele, e tanto resiste ao túmulo quanto mais se mostra um enigma convicto de si mesmo.

 

PÁGINAS APÓCRIFAS

 

A vida me escapa por entre os sulcos invisíveis da matéria.

Suas páginas me atravessam com o mesmo entusiasmo

com que aprendemos a extrair o milagre das sombras.

Quando a voz se ergue cria um mundo à beira do silêncio,

roça o precipício da compreensão, antes de avultar-lhe

a precedência. A voz se move como um prodígio

por entre a espessa treva fria de nossas crenças. A voz,

com seu intervalo de refúgios, o lacre de seus elementos

gravados para uma última revelação. A pedra da criação

lapida um coro nos arredores da voz, como uma matilha

de monstros desgarrados, com seus urros que proclamam

a sensualidade do caos. A noite transtornada nas igrejas da voz.

O pai regendo a queda. A dor promulgada como uma chave

que se adapta às maldições. Volto a dizer que sim, era ele:

Milton. Com seu manancial incriado. A silhueta movediça

do primeiro profeta. Seu rosto esculpido no vidro

como um evangelho em desacordo com os próprios erros.

O que me queria dizer? A mutilação da voz ao percorrer

o reino das ilusões? Que os deuses almejam a representação

de nosso fracasso? Não importa. Ao trazer consigo os céus

de nossa discordância entalhou as pistas de um novo conflito.

 

PEQUENO DESASTRE DA SENSIBILIDADE

 

Eu dei a última volta no céu, buscando suas árvores refeitas. O céu possui uma técnica de conciliação que me impressiona. A tudo torna adequado, até mesmo sua fealdade é bela. Os céus mais tempestuosos são líricos. Qualquer artista sabe contrariar o que pensamos do inferno e dar-lhe um acento de inquestionável fascínio. Os céus permanecem intocáveis, sempre adequados, alheios à restauração. Toda forma de messianismo está baseada em um truque antitético que parte da representação do inferno como o sítio verdadeiro do mistério a ser vencido, mais do que simplesmente compreendido. Não somos nada quando entramos em julgamento com o céu. Cabe ao inferno retroceder. As escrituras sagradas são o ícone de uma era de iletrados. O céu possui um método de impressão que converte em beleza divina toda a matéria que o absorve. O inferno até hoje paga por haver reescrito sua própria imagem. Qual artista se assinaria com um nome impronunciável? Somos a emanação do céu ou do inferno?

 

CONTORNANDO JERUSALÉM

 

Espalhei escadas e abismos por todos os lados para melhor apoiar os corpos. A queda não é uma antecipação. Talvez não seja nem mesmo o desejo lacrado de permanência em algum duto de ventilação. O espaço não afiança os erros do tempo. Geralmente somos a supressão de algum entalhe que perdeu a ênfase. A experiência, no entanto, acaba se permitindo definir por uma tutela lógica. Se eu entorto uma colher com o olhar sou atração de circo. Se a colher está onde não posso vê-la, sou um caso científico. Para que haja uma versão militar a colher precisa se converter em um gatilho. Se nada for explicado, o fato pode ainda ser meramente estético. Desde que o Vaticano não se sinta ameaçado. O meu corpo foi se deformando em meio à indecisão sobre a data desse concílio impossível. Nada era tão simples nem haverá resposta para o ocorrido. A ciência e a religião jamais conseguiram entender a mecânica ilusória da criação. Somos uma ideia decaída do que um dia poderíamos vir a ser. Todas as forças se movimentam em direção ao inevitável. São uma representação do destino cujos apócrifos se perderam em nossa memória.

 

 

GÊNESE DE UM LIVRO DE TRUQUES

 

Ao receber em casa exemplar do livro Gog, de Giovanni Papini, de imediato após a primeira folheada saí com ele, sem nada planejar. Após um tempo impreciso caminhando dei de cara com um lugar chamado Mercado 153. Entrei e o simpático metre me informou que tinha Heineken original, holandesa. Aquele 153 me levou direto ao nove de sua decomposição, número que multiplicado se reproduz a si mesmo, de acordo com o princípio da adição mística. Um gole da geladíssima cerveja e, ao folhear novamente o livro, pedi ao metre que me conseguisse papel e caneta. Incalculável o tempo que levei a escrever, até que, sem que antes desse por conta, percebi que estava escrevendo de forma invertida, como se o manuscrito só pudesse ser revelado pelo uso de um espelho.  Surpreso e faminto, pedi um filé alto, mal passado, e voltei a folhear o livro de Papini, sem, no entanto, ler sequer uma frase. As manifestações espíritas se dão de incontáveis maneiras. Há aquelas que produzem estranhos ruídos ou que arrastam móveis pela casa; outras que materializam bilhetes ou fornecem pistas para que localizemos velhas tranqueiras domésticas ou mesmo alguns pequenos tesouros; há ainda aquelas em que ouvimos vozes ou somos tomados pelo espírito de alguém… Minha mãe e sua irmã vislumbravam formas humanas, chegando a identificá-las e conversar com elas. No meu caso não houve nada disto. Naquela manhã o que senti foi a presença invisível de William Blake, a delicada força de sua mão segurando a minha e simplesmente rascunhando notas e mais notas. Durante cinco ou seis vezes repeti aquele ritual. Retornava ao Mercado 153, sentava-me à mesma mesa, cerveja, filé, sem que nada faltasse. Sempre comigo o livro de Papini, mesmo sem abri-lo. No terceiro dia o metre indagou se eu era escritor. Para ele a minha visita era tão afetuosa quanto a de Blake para mim. A primeira cerveja eu tomava conversando com ele, curioso de tudo. O poeta inglês prosseguiu com seus manuscritos, e no quarto dia me apresentou Catherine, sua esposa, pedindo que eu também a deixasse escrever algo. Observo agora que nem mesmo quando as anotações se concluíram eu voltei a folhear o exemplar de Gog. Senti que havíamos finalizado aquele estranho rito quando me pus a desenhar o rosto de Blake e logo o meu próprio sobre ele. Não nos despedimos. Algo em mim estava ciente de que eu havia recebido um presente. Nossa relação com o mundo, visível ou não, se dá como a percepção de uma ponte, cujo entendimento da mecânica de comunicação de duas experiências é o que define nossa existência. Blake me descrevera fatos que não constam de suas diversas biografias. Somente uma semana depois é que comecei a ler Papini. Em algum momento fomos – Blake, Papini, eu – a misteriosa definição de três mundos: corpo, intelecto e espírito.



 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


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