NENHUMA VOZ CABE
NO SILÊNCIO DE OUTRA
O
mundo costuma ser apenas isto, o que imaginamos dele. Há uma versão que talvez
seja mais comum: como o aceitamos. Ou quando os diabos desaparecem e temos que parir
no vácuo. De onde recriamos o mundo perdido? Ou como floreamos a terra
devastada? Para contar contigo eu tenho que me desfazer de muitas coisas em
mim. Será sempre assim? Não haverá um momento em que seremos apenas um, e toda
a sutileza do mundo não irá além de um inferno recriado? Perambulei por ruelas
sem fim, queria te encontrar de qualquer modo, os fragmentos de uma realidade
que não teríamos jamais como defini-la. Era para ser apenas isto? Uma noite
contigo, eu iria embora e não te veria jamais? O inferno por vezes sonha com
uma perenidade que nega seu revés. Nunca espero nada de ti, mas sei que um dia
o céu será a terra devastada.
A MELODIA DAS CORDAS DE FAITH BACON
Que as luzes pegassem fogo era um sonho infantil. Quando as
luzes são poucas é preciso ampliar sua ação sobre os tons opacos da existência.
Por vezes as luzes queimam em nosso íntimo. Uma luz ali na esquina pode ser o
convite a um mundo melhor discernido. Mas quando chegamos lá a desolação mostra
suas dores. Ninguém quer cruzar a melancolia do outro. A languidez de uma luz
pode nos devorar lentamente. Como alguém que acorda no meio de um pesadelo e
não reconhece a noite em que está dormindo. Nossos gritos atingem os corredores
de casas onde jamais moramos. Os gritos e as luzes se confundem. Entre a
misantropia e a euforia deve haver um portal que nos leva ao sótão de uma casa
imaginária. Um desvão de inquietude cuja perturbação maior é provocar a
presença de muitas sombras em nosso íntimo. Quem pode criar uma noite em meio
aos acordes dissonantes da própria alma? Muitas luzes não compreendem a
dimensão do incêndio. Muitas querem simplesmente amanhecer ou voltar para casa.
Uma metáfora confusa em muitos casos alimentada pela vertigem, pelo diapasão
sangrento de um corpo fora da pauta. As cordas de um piano não enforcam mais do
que a obra. Era preciso um fogo cantando até o fim, como um coro. Até que os
meus seios se abrissem como uma janela e os bastidores não acreditassem em si
mesmos.
A MEMÓRIA RETALHADA DE SYLVIA PLATH
É provável que ela tenha deixado sobre a mesa as migalhas de
um verso que se perdeu com a dor de sua partida. Sempre que recordo o que ela
disse de seu pai – que deveria tê-lo morto se ele não tivesse morrido tão cedo
–, sinto-me ainda mais seu cúmplice, por igual sentimento. Não há uma técnica
possível para converter morte em vida. Em dado momento, dispus todos os meus
versos em prosa. Como truques que se escondem nas epígrafes consentidas. Talvez
se deva escrever uma biografia de esboços, os planos selvagens que nos
perseguem. Talvez um diário, com suas sombras assustadoras. Ou usar o pincel
para ocultar presságios em uma máscara mortuária. Os nossos sonhos se
ramificavam como uma árvore acima dos pés. No fundo, o que mais tememos é a
superfície vazia, a porcelana que não sabemos preencher com nossos traços
sanguíneos. Com todos os seus pontos imprescindíveis extintos, o corpo se
transforma em uma cordilheira enrugada. Nem mesmo um deserto ali se pode
cultivar. Quando a memória se despede de nós, perdemos a fina sensibilidade do olho educado – como queria Goethe – para
ver os retalhos de nossa imaginação.
A MORTE DE UM VELHO DITADO
Os dias acabaram ali. Eu me desfiz de todo um plano físico. Queria
transferir estima, afinidade, reconhecimento de que o mundo pode ainda caminhar
ao modo de crença de cada um de nós. Quando somos crianças acreditamos em um
mundo que supera quaisquer males. Uma vez conversando com Molly Brodak, ela me
disse: narrativas simplistas não podem
ser tão facilmente colocadas sobre os acontecimentos confusos e imprevisíveis
do mundo real. Segundo ela, a escuridão deve estar pronta para nós, e não o
contrário. Eu não sei quantas vezes esquecemos a joia de nossa formação, o impossível
exato instante em que nos convertemos na morada do que ouvimos dizer. Qualquer
uma de nós não deveria mais estar aqui. Os versos se revezam. Inventam uma dor
própria, como se a luz de Rabelais fosse apenas um filho piromaníaco de
Beethoven. Ninguém escapa de seu cárcere imaginário. Talvez eu seja a única dor
suportável enquanto os corpos caem. Nada como a matéria perdendo seus corpos. A
memória mudando de formas para adaptar-se a novos milagres. Era assim. Os que
se matam e aqueles que acreditam que a vida possui um encargo de perenidade que
pode nos salvar a todos.
ÂNGULOS DE DIANE ARBUS
Não há pessoas comuns no mundo. Somos sempre levadas a crer
em uma rotina de prazeres ou dissabores. As dores propiciadas por fissuras na
carne, na alma, no tempo. Como se fosse o mesmo abismo. A faca que me corta, o
amor que me abandona, a distância que me separa do que desejo. O mundo é
impossível por outra razão e não por suas máscaras que sugerem o impenetrável.
O que nos separa não é a migração física. Os recursos de longo alcance não nos
trazem de volta para a casa perdida. Mudamos de endereço, idade ou filiação, e
não estamos nunca a salvo de nossa própria discórdia de tudo. As navalhas mais
afiadas não nos dão alternativa para um mundo de semelhantes. O amor talvez
seja o único mistério que pode revelar uma essência dupla. Porém se perde
diante da subversão do espírito. Tantas vezes fotografei corpos emendados, à
procura de identidade. Eu sempre me senti estranha em todos os cenários que me
interessaram como uma descoberta de mim mesma. Certamente busquei alguém a quem
não pude corresponder. As aberrações podem ser nossa única forma de contato com
as pessoas comuns. Eu fui uma imigrante da fotografia.
AREIAS DE GHAZALEH ALIZADEH
Por que tão cedo eu descobri a ilusão do mar enquanto um
peixe devorava a lua cheia e me ofuscava a ideia de um mundo que não fosse
apenas aquele que mastigava a minha visão? Areias não era tudo o que buscávamos
na pele flamejante de nossos romances? Um olho aberto e a paisagem permutando
seu mobiliário, as luzes criando sombras secretas, um beijo com que tanto
sonhei rebentar teu nome na noite insone. Nossos sonhos queimavam dentro
d’água. Eu te olhava sempre duas vezes, com as letras queimantes de teu desejo.
Desde cedo a certeza de que teria que soprar em teu ser até que o convertesse
na melodia de meus juízos refeitos. Eu te amei em cada roupa que suavas, porém
o que mais queria sempre foi girar a chave para abrir a porta, a fim de
entrar novamente em uma casa escura. Uma casa de areias, como um deserto que se abrisse para o meu desejo
de desvendá-lo. Não há uma descrição própria para o fim das coisas. Em muitos
casos o mundo simplesmente se esvai de si mesmo. Quem garante que haja um passo
em falso dedicado a tudo o que almejamos? Por vezes é simplesmente a natureza
repetindo nosso nome até que a moral perca a discussão de seus males.
ASILOS DE MADALENA O’BRIEN
A escuridão inquieta não deixava ver como seus passos
atravessavam paredes, cruzavam portas fechadas, saltavam de altas escadas. O
silêncio era um lençol rasgado pelas vozes de tantas crianças que não podíamos
contar. Sequer as podíamos ver. Quem trouxe o mal para a intimidade desses
cômodos sujos trouxe também, embora não o desejasse, as cartas do bem, que
mesmo espalhadas por toda parte podiam sugerir alguma precária resistência.
Todas as crianças nasceram e aprenderam a voar no mesmo dia. Desde então são
mantidas acorrentadas. Todas as crenças foram deixadas fora dos cubículos onde
elas se misturavam com as próprias fezes e ossos partidos. Um mundo atormentado
que os demais procuravam evitar. Estamos onde não há pais ou mães, nas páginas
escritas ao contrário de alguma profecia esquecida, no aterro putrefato onde as
almas são acumuladas antes mesmo que possam expiar suas culpas. As mãos
sangradas no grande vidro da demência. Todas somos ela, a pequena Madalena que
jamais nasceu, a mesma que percorria as artérias desses asilos açoitados por
crimes que nenhuma de nós soube evitar.
BARCOS DE PENÉLOPE DELTA
Para muitos é possível entender que amanhã o mundo revire
suas páginas. Talvez o mais importante em uma vida seja reconhecer a origem de
suas lágrimas. A febre de uma noite atacada pela ventania, a pétala de uma
estima revigorante pelo acaso. As terras herdadas anunciadas pelo desamparo. A
língua apoiada nos diversos ramos do acaso. Alguns caminhos separados, os
ventríloquos com seus relacionamentos condenados e o amor devastado pelas
guerras. Os nomes sempre me pareceram uma modéstia do acaso, um jeito de,
segundo eles, estarmos em distintas situações, ambientes, fraudes elementares.
De algum modo, todos um dia caminhamos sobre as águas. O caminho de volta só se justifica pelo preço da glória. Graças a
essa sorrateira frase de um sapo em um livro de magia eu fui a sacerdotisa que
tornou profundo e científico o milagre. Os venenos associados à tristeza ou à
ausência de calor para receber novas formas de vida, são as pias batismais de
nomes que desconhecemos o caráter de suas horas lacradas e desamparadas. Um
barco talvez recolha nossa aflição em meio à tempestade, outro a ela se
antecipe, um terceiro não nos encontre mais. Nem mesmo quando nos misturamos à
agonia e planejamos o fim dos tempos, a morte nos revela o que acontece com a
intransigência de seus documentos.
DORA
CARRINGTON EM HARMONIOSA DISTÂNCIA
Quando acendíamos o candelabro para transcrever os enigmas de nossa
alma, algo sempre parecia nos dizer que um de nós não desceria mais dos
telhados daquela distância. Os beijos que saltavam do limiar de uma boca a
outra. Varandas simétricas com seus vícios elevados. Suas montanhas se
confundiam com uma paisagem orgíaca de corpos vazios. Escadas verdes, trevos
azuis, telhados descorados – uma fazenda de devaneios proibidos. Toda aquela
arte que o tempo acabou por dedicar ao comércio. Uma transição de infernos que
se multiplicavam cada vez que os tínhamos como próximos do fim. Seus nus
invadiam a memória e nos transportavam para outro mundo. Eu reclinei todas as
minhas amantes, como sinal de uma paixão orgulhosa de seu atrevimento. A
pintura me vez devota das canções de regresso, embora eu não tenha nunca
retornado a nenhuma das mulheres que fui. Quando os versos se convertem em
jardins, não há técnica que não possa ser imitada.
ESPELHOS DE CLARA BLOODGOOD
Em algum momento pensei: Quantas
vezes nos encontramos em escritos de outros tipos e épocas? Não é que
queiramos uma explicação. A suspeita que toma vinho conosco é que de algum modo
já estivemos em várias premências da realidade. O nome que o cartório registra
como sendo meu pode ser encontrado em outros arquivos. Os lugares que ocupo em
uma sociedade talvez apenas finjam engano de que os amores são por vezes feitos
de favores. Quantas de nós somos impostoras de uma urgência? Se nos debruçamos
no acaso, acabamos nos vendo aleitando um mistério impróprio. Ninguém nos
pergunta o que esperamos do fim de nossas vidas. Não sabemos quantas camas e
noites e delírios espelham a verdade de nossos corpos. Sempre estamos distantes
do que somos. Os crepúsculos encobertam as ilusões, as madrugadas os crimes.
Sempre que me vejo no espelho me digo que essa boca pode alcançar outro sinal
de beleza, mesmo que o mundo me enlouqueça e me leve a trocar o desejo de
permanecer em cena por um disparo que venha apenas a revelar angústias. Conheço
meus riscos. Os espelhos serão sempre cegos. Eu nunca voltarei à cena.
LIMITES
DE LAURIE DANN
Até hoje não sei quantas janelas pularam dentro de mim.
Quantas luzes desnortearam a escuridão em meu peito. Os céus abrigados em dores
esquecidas, quantos foram acuados em casas sombrias com seus móveis
desmontados, o mistério resumido em ridículas madeiras desaparecidas. Um dia o
fogo suspeitou de minhas paixões, o que os meus lábios sussurravam enquanto as
suas línguas vigiavam o meu entusiasmo. Eu sempre dizia a todos, com meu jeito
irônico: Não fui eu quem pôs chapéu nas
estátuas. Eu também me divertia com o alvoroço de todos ao descobrir peças
roubadas em uma loja aparecerem em outras. Quantas bonecas foram afogadas ou
vítimas de enforcamento – até mesmo as investigações eram sacrílegas. As fotos
pornográficas de um corpo com o rosto desfigurado. Eu começava a ornar o
santuário contando os passos que faltavam para a visita da eternidade. Jamais
fui uma iniciada, porém eu sabia ao pé da letra quantas coisas fizeram parte da
formação do universo. Não me sentia obrigada ao discernimento, mas reconhecia o
risco de exceder-me em precauções. Tudo aquilo que o céu anuncia acaba por nos
viciar em ilusões e empirismos. As janelas continuaram pulando dentro de mim.
Algo devia ser feito e comecei a criar situações alheias à verdade permitida.
Todos deviam entender que tudo está
dentro de nós. Todo o conhecimento do mundo está contido em cada um de nós,
e somos as vítimas de uma fatalidade adquirida. Eu tinha mania de vida. Era
preciso impedir aquelas janelas todas. Eu tive muitos nomes e comecei a
preparar um modo de cada um desaparecer. Não queria ver as crianças caírem
mortas pelas ruas. Eu fui o único mal-estar que fez fervilhar o centro da
terra. Quis acabar com todas as janelas. Até que eu fosse a última a saltar.
MOTIVOS
DE TOVE DITLEVSEN
Quando as luzes deixaram de ranger a escuridão começou a
bater nas portas e forçar seu movimento. A imagem embriagava-se de estranhos
sons. Tove
Ditlevsen despertava de seus transes em meio a papéis manuscritos a lápis e
sangue. Suas vozes desconheciam a origem das roupas rasgadas sobre o chão. Seus
lamentos a transformavam, as dores queriam averiguar seus motivos. Mas quando
provocadas pelos rangidos inapeláveis das fechaduras, a agudeza daquelas
palavras líquidas, queimantes, era a silhueta confusa de seus vícios. A morte ocultava
seus dons mentais e a libertinagem, a flagrante aberração de suas máscaras. Eu sou um desses ardis com que desfiguro a
realidade – ela afirmava repetidamente ser esta a intenção de sua escrita.
Sua existência se multiplicava em várias e percorria páginas inesperadas de uma
autobiografia que começara a escrever em meio à dupla natureza amorosa do
álcool e do ópio. Com o tempo havia cedido a todos os lugares comuns do
despudor. Nenhum criador tem o direito de
ser caricatural ao ponto de evitar o assassinato de seus leitores. Suas
máximas eram a flor violentada das intoxicações emocionais. Seu filão era a
discrepância da moral. Tinha em sua alma o melhor que um biógrafo pode cavar no
interior de alguém. Sua paixão pelo desconforto era a maior de suas habilidades.
NOMES DE LUDMILA
As vozes que
ouvimos não podiam ter saído todas dos lábios de Ludmila. Talvez ela pudesse
imitar as velhas, crianças, outras mulheres. Porém algumas delas estavam além
do aceitável para uma garganta feminina. As escadas tinham um pacto com os
quadros nas paredes. A cada um corresponde um morto e o motivo de sua sina. As
vozes também sabiam imitar o silêncio e líamos os nomes daqueles demônios se
formando na névoa que percorria a sala. Ludmila nos apresentou o homem torto
que não parava de cantar e a canção torta espalhou migalhas de pão azedo por
toda a casa. Quem canta com ele enquanto à nossa frente vemos apenas Ludmila
sentada na cadeira marcando o tempo com seu pé no chão? Esta casa é triste e
sofre as dores de um abandono. Os espelhos vagam pela noite sem encontrar quem
lhes possa dizer algo. Uma janela esquecida aberta não conhece ninguém que lhe
queira adentrar. Os móveis que mudam de
lugar por toda a casa. As luzes definhando até a noite esquecer quem
é. Morrerei sem saber seu verdadeiro nome. O homem torto e seu sanduíche
de mofo.
– Vem pegar, Ludmila!
O LUGAR EXATO ONDE SE ENCONTRA ISABELLA BLOW
Um dia nasce com seus olhos. O abismo é compreendido como o
estojo de tintas com que ajustamos a vida à sua pigmentação melhor aplicada.
Máscaras, gestos, roteiros. Tudo como um modo de dizer ao dia que ele não pode
se limitar a uma flor ou fagulha ou desejo de morte. O dia é uma exploração do
impossível. Sempre acordei assim, com uma espécie de extravagância me mantendo
afastada da morte. Os meus decotes seduziram todos os corpos, de um modo que a
queda sempre foi o meu desafio. Eu mesma me declarei o extremo de mim mesma,
meu despenhadeiro de corpo e alma. Como alguém que provavelmente saiba
identificar a origem do inferno. Onde ir para o alto ou para baixo. Como os
verbos que desconhecem uma cor que seja alheia ao precipício. Também os verbos
nascem com seus olhos abismados. A vida quando ingerida nos deixa instável.
Viver pode ser tão tóxico quanto morrer. A morte é melhor solúvel em água. De
onde viemos, para onde vamos. É simplesmente uma passagem. Como uma noite
diluída em si mesma. Como uma suspeita que desfigurasse a dúvida. Como os olhos
do dia emprestado à agonia de suas noites. Na verdade, eu não fui a parte
alguma.
O TEATRO DE MARLIA HARDI
Os corpos se misturam e tudo o que vemos neles é o futuro do
bronze. Banhados em sangue e na crueza barrenta do solo, um dia assumirão
apenas os temas pictóricos. A arte não sabe onde perdeu seu estoque de pureza e
tranquilidade. As tintas da guerra, as letras da agonia, os sons da conversão
imposta. Somos todos refugiados de nós mesmos. Há um ponto em que ambição e
massacre se confundem. As ocupações se repetem ao ponto de o realismo
socialista haver sonhado com a destruição da arte. A escravidão sexual talvez
seja uma forma mais simplificada de ruína do ser. Como um jardim decorado por
gaiolas cantantes. Como a mensagem dissimulada do entusiasmo político. O estilo
de vida de uma humanidade que não se reconhece mais em si. De norte a sul, até
mesmo os insetos já estão conformados com a arte ao serviço do mercado. Os
deuses não perdem a encenação uma única noite, porém sempre deixam o teatro
antes do fim.
PERFEIÇÕES DE MADAME AUGUSTINE
Um dia os raios recuam e fazem o mundo aparecer de forma
revirada. Os deuses recitam uma invocação de pecados que não puderam ser
cometidos. Os tronos inferiores flutuam sob o olhar dos ventos e das ondas. Ela
não praguejava ou se sentia sozinha. Não conversava com suas vítimas em
decomposição ou guardava objetos de recordação. Não se sabia onde morava e, não
fosse por sua confissão escrita, jamais alguma investigação teria lhe
descoberto a existência. Foi minuciosa com suas sete chaves, sete flores
negras, sete direções que ia habitando por sete dias e uma única execução em cada
cidade. Quando o corpo era encontrado, com o pênis mutilado, deixado a seu
lado, últimas gotas de um sonífero barato em uma seringa, ela já havia tomado
outra estrada. Sua obsessão pelo sete a levou a traçar um mapa detalhista. Sete
etapas distintas de uma sutil aliança. Sete esferas ávidas de uma consciência
disforme. Sete vontades de um deus que a todo instante era outro. O símbolo não
era um raio, uma serpente, uma espada. A similitude dos crimes era
indecifrável. Dias depois, outra cidade, a representação esgotava-se em si
mesma. Nem mesmo um vidente anteciparia a precisão de seus passos. Madame
Augustine não era uma mulher solitária, melancólica, rebelde. Não padeceu
jamais de devaneios, fobias ou acessos de raiva. Quando a redação de um antigo
jornal de Rennes recebeu sua carta só foi possível considerar o caso pela
decantação dos detalhes, mapas tracejados, passagens de ônibus. Durante sete
anos ela havia percorrido quase todas as comunas francesas, castrado mais de
300 homens sem deixar o menor vestígio de vingança, dominação ou desafeto. As
últimas linhas de sua carta diziam: Sete
vezes a essência de um pecado pode ser o fruto de sua compreensão ou passo
seguinte para uma nova existência. Por sete vezes podemos imitar Deus sem que
ele perceba o erro de sua razão de ser. Um número qualquer pode ser a radiação
da totalidade humana. O sete apenas dá início ao fim dos tempos. As árvores
serão sempre sagradas. É preciso afastar o homem do que ele julga ser seu
desígnio supremo. Não me procurem. A partir de agora nem mesmo eu saberei quem
sou.
PONTES DE AUSTRA SKUJIŅA
Ela deixou a noite soprar até a última versão de suas farsas
retocadas. Uma delas repetia com desigual picardia: As florestas
sempre estiveram presentes no inventário de meus sonhos. Na prova ondulante de seus
dissabores algo perdia sabor. Uma noite deixou um orgasmo de luzes ofuscadas
deslizar pelas artérias de seu corpo. Queria ficar só para conceber uma última
personagem, Aline, frenética coreógrafa que rabiscava no ar com a ponta dos
dedos as cidades que chamava com o vento. O velho cais abandonado, o desespero
das luzes que haviam perdido o amor pela escuridão, a ponte dos ingleses,
paisagem tangida para um recanto esquecido. Como ela poderia ser tão só sem que
seus personagens se ocupassem das tintas que ela mesma misturava buscando
pernas murmurantes, braços de curta memória, o sangue que havia descoberto um
modo de borbulhar fora das veias? Um rio enterrado na fricção de seus males.
Não era a solidão. Quando a lemos adentramos com seus pássaros o murmúrio dos
tapumes e a cantoria das nuvens. Ela passou por nós com seu coração triste e os
olhos duros. Uma ponte nos separava dela e do resto do mundo. Não foi proscrita
ou possuída. Apenas uma ponte e a juventude de sua delicada coragem.
QUANDO A CORTINA CAI E AINDA SOU MAY BRROKYN
Escuto as vozes regidas pelo ácido, as sombras desfiguradas
descendo as escadas, uma noite orquestrada por vultos cobertos de terror. Nós
somos as dores submissas e as mentes desarrumadas. O mundo pode acabar mais
cedo do que as histórias que escrevemos. Uma de nós afirmava haver escrito a
carta encontrada no corpo de Helen Palmer: Eu não sabia se deveria me matar, incendiar a
casa ou simplesmente ir embora e me perder. A outra foi encontrada
nua sentada à beira de um lago repetindo um verso de Vachel Lindsay: Muitos anos deveriam se passar antes que
Satanás entrasse nela. Escuto essas queixas de épocas distintas, saídas da
boca de personagens que não se conheceram. Talvez eu mesma seja a autora de
tudo isto. Como os corpos de uma deusa inominável encontrados longe de tudo que
se possa imaginar. Quantas tragédias eu representei, quantos desesperos mortais
e aflições banais. Os manuscritos que não foram lidos. As pistas que deixei em
cada encenação do que seria meu último ato. A qualquer momento eu poderia
simplesmente copiar algumas linhas de Danijela Milic, ela existisse ou não: Coloquei fogo no oceano e ele ainda queima
como óleo em uma lamparina velha. Quem disse que você não pode queimar água?
Quem disse que a água não queima? Por que tenho marcas de queimadura sob os
olhos? Seria o mesmo que rascunhar os meus martírios almejados. Eu poderia
descrever a morte de tantos modos, antes mesmo que os pássaros se revoltassem
na mente de Molly Brodak, antes mesmo que ela desse pela conta de alguns versos
seus que roubei. Se tomamos a vida em sério tudo o que aprendemos é o cinismo.
Eu tive que ir e vir no tempo muitas vezes, preocupada em não imitar ninguém.
Desde menina sonhava em jamais ser identificada. Uma flor anônima em um jardim
perverso de representações.
SONO
PROFUNDO DE RADKA TONEFF
Eu quero que a cor
de teus olhos se espalhe por todo meu corpo, porém o silêncio há muito me
deixou e está sempre frio onde quer que eu me encontre. Algo não me deixa
escrever o que quero. As fotos que vejo sobre a mesa ninguém mais avista. As
janelas me olham como se eu estivesse perdida aqui dentro. Como se a casa não
fosse o que vimos, mas sim algo ocorrido há muito tempo. Eu trouxe uma lâmina
para apontar o lápis e cortar as folhas secas. Eu sabia que iríamos entrar em
alguma espécie de bosque. Jamais eu planejaria tocar fogo na casa ou
desfazer-me em obsessiva inanição. Não sangraria os pulsos ou saltaria de uma
altura qualquer. Talvez cantasse até que o último barco se fosse, que não
houvesse mais amores ao redor de meu corpo ou o sonho voltasse a ser natural.
Quantas vezes improvisamos as pausas que daríamos um dia, um piano recostado no
tempo que nos faltaria, as folhas, sempre elas, as árvores rondando as horas de
canto. A lua sempre foi uma amante difícil. Eu não poderia nunca entrar em casa
sozinha. Derramei uma a uma as minhas mentiras como se fossem uma papoula
imaginária.
UMA ÚLTIMA CORDA PARA SARAH KANE
Uma noite acordei assustada com o entusiasmo que me estava
cegando a beleza. Entre lágrimas disparei uma arma em meu rosto. A bala levou
consigo apenas meu encanto. Se temos alguma consciência do ser talvez ela se
chame ilusão. O devaneio é uma forma de beleza. A fealdade é o esconderijo de
uma energia anterior ao próprio nascimento. Somos ignorantes de nossas vidas
anteriores. A herança de tal rudeza nos faz perder o respeito pelos impulsos
contrários aos nossos motivos. Os sentidos líquidos, a razão de jogos amorosos,
a idade oculta das impressões. Uma noite será suficiente para desenredar esses
pesadelos anônimos? Talvez os desafios sejam uma farsa. O tiro que não me
matou, as drogas que foram ineficazes, a minha relutância em aceitar as farsas
da existência, quando elas mascavam o palco e se convertiam em realidade. A
violência da trama não é a mesma da vida lá fora, porque no escuro fílmico do
teatro nos deixamos iludir que, uma vez as luzes acesas, algo recupere a
normalidade. Talvez toda a tragédia ocorra em um quarto de hotel, talvez o
futuro seja constantemente interrompido por um novo conflito, talvez ninguém
possa nos dizer por que optamos pelo estupro anal ou o canibalismo. Somos
repugnantes e obscenos por natureza. Mas também somos assustadoramente belos.
Deverá haver uma evidência mais contundente? O que somos, afinal?
VISÕES DE IRMÃ EMÍLIA
Eu preciso gritar o seu nome, às vezes rasgá-lo na face de
Deus. Talvez beber um pouco mais dessa água sangrada na calha do abismo. O que
for do gosto do acaso para não perder as dores do conflito. Mesmo as botas
relutando em deixar rastros, os cadarços desfeitos. Ainda que as luzes
rascunhem na estrada seus votos de esquecimento. Não esquecer que a noite
tropeça em seus lamentos, e os passos aturdidos esfacelam o relógio do sol
riscado a giz na pracinha. As janelas não sabem mais conter o espanto diante das
cenas que não se deixam notar. Eu preciso esquecer os corpos abraçados aos
nossos como a fiação enroscada de um mundo desordenado. O bagulho dos sonhos,
os desejos lacrimejantes, os pulsos rotos. Quantas vezes um de nós poderia
recriminar a tempestade por haver arrastado consigo as esfinges e os
calendários. Nua eu estarei à tua espera,
para que me leves aonde bem queiras. O manuscrito sobre a mesa, em um
guardanapo amassado, denunciava o quanto Emília esteve acobertando o
crepúsculo, contando a idade perecível daquela imensidão de raios, a ira das
chuvas, o bosque afogado, seus cabelos cortados. Ela foi a única mulher a
renunciar ao oculto, em sua desilusão de corpos desamparados e a dicção de
sombras desvanecidas. Ela agora vagueia pelas visões transbordantes de tanto
enigma. Eu continuo a ler Yeats, desconhecendo se ela um dia regressará.
VOZES DE LIZ HOPKINS
Ninguém sabe
quantas vezes está perdido até que as pedras coincidam em peso e número
iluminando velhas palavras há muito escritas. Como os véus que escapam de uma
nudez para outra. Os lagartos com seus olhos atormentados pelas areias negras
de um deserto longe de casa. Quantas vezes as sombras recolhem suas navalhas
irônicas antes mesmo do último corte na jugular da memória. Graças a alguns
pequenos feitiços foi possível mudar de casarão o cárcere submerso em sangue e
lamentos. As dores escravas após a morte de Liz Hopkins tiveram o porão
saqueado e a vizinhança indignada roubando grilhões e instrumentos enferrujados
de tortura. Como fazer da própria vida a morada do inferno alheio? Impossível
dar alento a esse macabro extravio de humanidade. Liz sabia disto e em seus
últimos instantes esporádicos de sanidade preparou um chá com arsênico, porém a
morte só a queria eletrocutada semanas depois. O velho casarão do século XIX
reina no alto de um subúrbio até hoje, depredado e abandonado. Seu silêncio
devorado pelo matagal é ilusório. A aguda garganta de seus mortos ainda hoje é
ouvida até mesmo nos postais que a filha de um de seus escravos mandou imprimir.
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz caba no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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