Na natureza existem tão poucas cores quanto
linhas, só existem o sol e as sombras. Dá-me um pedaço de carvão e eu te darei
o quadro mais belo.
FRANCISCO DE GOYA
1.
O
céu tangendo seus azuis para o calor do olhar.
Diferente
da escuridão, quero voltar ao mesmo sítio
e
abraçar o que antes estivera escondido.
As
tribos separadas por nomes evocando deuses.
A
língua secando ao sol convertendo palavras em totens.
Os
primeiros animais se espalharam pela terra
e
misteriosos alegraram os poços do esquecimento.
Quero
amanhecer as diferenças sobre o espinhaço
orvalhado
do tempo: as pétalas iluminadas do ser.
Risco
o perfil de todas as formas à distância.
Quando
os sentidos se afastaram entre si, estive
à
espreita de cada fungo, bactéria, frase solta.
Auscultando
a idade dos poros por onde o homem
alardeia
seus cantos de ilusão e permanência.
2.
Eu
disse ao primeiro: sossegue o sentido da flecha,
até
que o alvo aprenda por onde as sombras passam.
O
segundo distendeu o arco até que se confundisse
com
o próprio corpo coberto de plumas e folhas.
Se
acaso houvesse tempo para interrogar o terceiro
decerto
saberíamos que seu disparo fora improvisado.
Como
confiar em um deus criado pelo homem? Como
desatar
o nó das tribos em suas vísceras de fé e medo?
Foram
muitas as lápides escavadas à margem dos rios,
hordas
migrando sob o sol pelo espinhaço do abismo,
delírios
apaziguados com beberagens, reza e canto.
Sequer
os loucos de cada aldeia intuíram o desatino.
As
flechas zuniam alheias aos prantos dizimados.
Não
houve fogo ou frio que retivesse a ira rasgada.
Os
deuses jamais deram uma declaração à terra.
Jamais
soubemos o peso excessivo de nossa confiança.
3.
A
avó confabulava caraminholas por toda a aldeia.
Habitava
um mundo surpreendido pela vitrola
dos
vislumbres e o cajado silencioso da memória.
Seu
riso vinha do mirante; o sofrimento, do berço.
Meninos
e monos se revezavam em levar-lhe
a
comida, lavar-lhe as partes, acatar-lhe os truques.
A
avó extraviada do sábio rumor de sua alegria,
o
canto de sua lâmpada desaparecendo, o verbo
evitando
as escadas fortuitas de cada desastre.
⎼ As imagens contornam a temperatura do chá,
eu ainda escuto o
sermão do acaso, imprudente
que fui com a
vocação das sombras mais solícitas.
Com
a avó perdemos todos um borrão apócrifo
que
ensina como o dia recomeçar em si mesmo.
O
mundo não é o que vemos gritando nas ruas,
mas
aquele que se acocora sofrido dentro de nós.
4.
As cidades se entreolham, maquiando
suas dores.
Os reinos cresceram tortuosos, altares
à míngua.
As nove casas foram chamadas a
identificar a queda.
Trouxeram consigo um farnel de cal e
bênção,
como se a ilusão voltasse a modelar
todas as almas.
Novo saldo de impertinência acumulando
poeira.
Paradigma gasto dos dias mais escuros
lembrados
com a moenda dos sacrifícios ainda
suja e quente.
Os filhos arrastando seus grilhões, o
olhar turvo,
repetindo suadas ameaças de fuga de
outras eras.
Cenário descascado como um tempero da
memória.
Rostos revirados como folhas colhidas
pelo acaso.
Como arapucas e carapuças, um cento de
mágoas.
Na primeira das casas uma figura
picava as sombras.
Logo se via um balde de cinzas na
soleira vizinha.
As nove casas cerziam o retábulo de
seus feitiços.
⎼ A
opulência antecipa a maldade ⎼ ouvimos a víbora
soletrando as asas de um mosquito
antes de tê-lo.
5.
O
verbo é um cocar, um ídolo disfarçado,
um
medo de sangrar até o esquecimento.
O
verbo não quer ser investigado por ira,
tramoia,
farpas, milagres ou confidências.
Não
há verbo no céu ou deus na terra.
Todas
as formas são dissidentes, sombras
que
um dia planejam ser a mais soberana
de
todas as feridas, um cardume silenciado,
o
busto ambíguo de um deus finito, carranca
com
que me anuncias a partição do reino.
Rebentamos
a vida creditando valores
ao
horizonte e à geografia dos devaneios.
Nada
nos impede de consultar a dissidência.
Por
vezes o verbo não faz sentido algum.
6.
Os
primeiros ritos trouxeram consigo o esqueleto do infinito.
Um
estirão de montanhas bem paridas produzindo alimento
para
um sortimento variado de fomes de corpo e alma.
Era
importante não esquecer o que se estava construindo,
dar
conta dos truques musculares de cada forma encontrada.
Quando
uma árvore rir deve saber que está debaixo do céu.
Cabe
ao arquiteto, ao rabiscar uma esquina, tocar seus lados,
de
modo que as sombras e a chuva saibam como ir e vir.
Ouvimos
cada objeto sussurrar suas querências, a visão
de
um traje mágico que envolve tudo aquilo que nos cerca.
Quando
as estações começam a se multiplicar em nós,
o
interior de toda existência tece sua escritura própria.
Os
ritos sobem pelos avessos da criação até que alcancem
outra
sabedoria que dê forma ao que foi esquecido.
7.
Manhã
cedinho as nuvens saem para pescar.
Os
pássaros se abrigam das zarabatanas da chuva.
Três
oradores substituem o sol em seus assuntos.
O
que antes era morte certa a avó soube perpetuar.
Sem
o agravante das rezas nenhuma árvore renasceu.
Toda
a floresta parecia não respirar de tão quieta.
As
pedras flutuam e ninguém sabe quem sou.
Uma
avalanche de olhares preserva o nome da avó.
Tesouros
prescritos se escondem por trás
de
uma música crescida enquanto capinamos
a
razão de estarmos aqui.
Eu
me arrepio diante dos planos do dia.
Minha
sombra é uma estranha para mim.
Mesmo
assim lhe agradeço quando me vem trazer comida.
8.
O
espelho a quem confesso meu nome.
Excesso
de estações que o ano não suporta.
Os
lábios rasgados de um símbolo a outro.
Véus
da cegueira, respostas sem brevidade,
comidas
frias desde que a noite se disfarce
em
soslaios e serpentes, vamos para o alto.
Ali
contamos as sombras, o mundo ao revés,
corpos
contra a corredeira, coisas ruins…
Árvores
amontoadas sem terra, formigas
cantarolando
em vidros sujos, lugar nenhum.
Somos
sete penumbras entrando em novo sol.
Uma
causa derretida pelo truque de outra
que
não se refez antes de devolver seu motivo
àquela
cujos ganhos eram dados mordidos.
9.
Rabisco
o nome santo da metamorfose.
Colecionei
suas hóstias até o último escárnio da alegoria.
As
implicações do verbo são as mesmas
do
abismo planejado pelos deuses tutelares.
O
desejo é compatível com toda sorte de impiedade.
Murmúrio
viciado em anagramas,
teia
refeita por vislumbres,
trapézio
esquecido de seus ângulos.
Saltérios
fora de órbita, com uma melodia transcrita
de
modo que ninguém a acompanhe.
Eu
sou a pedra do reino em sua última ladainha,
antes
que as trevas solucem e o homem aja
como
se não soubesse mais amanhecer.
10.
O
lugar de ser de cada letra,
a
oração convertida em pérola
que
nos decifra em fatias:
não morra,
ressuscite ou siga
alguém pela
terceira vez.
Sempre
vão nos matar.
O
mundo é uma fábula,
até
que nos descobrimos
o
personagem de sua saga.
Eu
me vi muito pobre ao chegar,
recebido
por casas flutuantes
e
mandados de felicidade.
Incerto
em minhas recusas,
desconhecendo
a própria morte.
Dizem
que agora, o que somos,
é
uma taça guardada no armário,
e
desde ali vemos desaparecer
entre
grandezas e subterfúgios,
o
mundo resignado à poeira,
em
números que não o ressuscitam.
A
imagem não acompanha a música
com
que se despede de nós:
⎼ Esta é a única obra. Escutem seu nome.
11.
Por
que não trazes para nosso leito
algo
que não seja teu nascimento?
Quando
começo a buscar teu nome no rio
cascalhos
se multiplicam em formas inesperadas.
Somos
três ou quatro amigos insuspeitos,
metidos
em instrumentos que aceleram o vislumbre.
O
horizonte é uma árvore com mil galhos
partidos
pelo excessivo peso dos pássaros.
Quem
desapareceu dos nomes transcritos como uma fábula?
Eu
fui teu animal preferido.
A
perpetuidade de teu gozo como uma flauta afinada pelo riso.
Os
netos se reproduzem como uma vocação.
A
terra é impiedosa na tessitura de seus túmulos.
A
quem recomendo entrar e sair de cena?
Àquele
que não creia em minhas palavras.
12.
A
noite saltando pela cumeeira das casas.
A
vida é outra coisa que ainda vamos contar.
Indagados
pela colheita do espanto,
os
sócios permanecem em silêncio,
descascam
suas pedras, osso por osso,
como
se a tempestade viesse para a ceia.
Os
mensageiros sabem até onde levar o rio.
Os
ventos tomam aulas com os morcegos.
Cascalhos
ocultam em si grandes montanhas.
Se
vamos ressuscitar é melhor que saibam
o
que me disse outro dia cabisbaixo o outono:
não
há como lembrar o que fomos até aqui.
Talvez
tenhamos que incendiar rios, inundar
casas
e levar toda uma vida ocupados
em
escavar fundo nossa miserável aparência.
13.
Tudo
vibra nos rastros que a trilha soletra,
como
um pecado temperado na areia
ou
a expressão da queda ao ressurgir no olhar
de
quem se esforça por esquecê-la.
Os
ocupantes do horizonte são austeros
com
aqueles que presumem a humanidade
represada
em seu espírito.
Impossível
aclarar o infinito.
Sete
são os pecados encomendados.
Quase
nenhuma a chance de escaparmos
com
vida de seus precipícios entalhados
na
fermentação do ser.
Três
vezes bebi a mesma água da solidão.
O
destino mascado como uma carne
visitada
pelo sol. Os deuses confabulam conscientes
de
que jamais retornaremos ao primeiro pecado.
14.
Seus
ossos esperaram por mim
até
que a árvore se pusesse a chorar.
Dois
sábios suspeitavam dos crimes
atenuados
nas rugas de sua caveira.
O
que teria frutificado este corpo?
Quantas
filhas anotamos até que a matéria
se
torne um minério improdutivo?
A
quem lamentamos quando o tempo
simplesmente
se esvai?
As
pedras desconhecem o nome do pai,
do
filho e do espírito santo.
Uma
perna levemente erguida,
a
saliva fustigando o acaso,
o
amor contestando a verdade,
um
prato de almas para a caveira eterna,
e
outro para quem não sabe
reclamar
seus males.
O
desejo carece de equilíbrio.
Não
me peçam que jure.
Apenas
saibam: não fui eu.
15.
Duas
vezes fui vencido antes que me dessem os filhos
o
testemunho de seus invernos longe de casa.
Duas
vezes enterrei meu destino como um animal
foragido
de sua natureza.
Iam
e vinham as missões como mulheres sem queixas.
Eu
me vestia com suas peles e acreditava regressar ao lar.
O
fogo é uma mecha de conselhos que se apoderam
da
solidão: escárnio de luz em que se costura a ilusão.
Os
filhos se foram um dia e eu jamais me recuperei
de
suas palavras perdidas.
16.
As
aparências dividem o número de mortos
sobre
a esteira rolante dos acontecimentos.
O
erário caminha por outro fio de espólio.
Madruga
teus corpos na saliva de cada fogo
com
que queres refazer as penas e atavios.
Apóstolos
relutam ante a deformação do ser.
Elimina
a vergonha da dupla face do descuido.
O
mundo crê firmemente que é possível
construir
uma residência para que o infortúnio
nos
livre de suas penitências mais vorazes.
O
meu arrependimento está previsto em lei.
Não
batam à porta de minha casa duas vezes.
17.
Os
primeiros adivinhos cuidaram
para
que nada fosse mudado de lugar.
O
sol lapidando suas esculturas:
espigas
que evocassem grandes animais.
Antes
que as escadas construídas
confiassem
aos céus ocultas figuras,
deuses
rateavam as hortas do destino.
Três
rostos flutuando sem que fossem
identificados
por nome ou vulto.
Talvez
um dia tenham sido tigres,
malabaristas
ou um último enigma.
A
noite regurgita antigos guardiões.
As
formas se despem no encalço das sombras.
As
hortaliças alimentam a manada perdida
de
nossas impiedosas ilusões.
18.
De passagem por toda parte foram
sempre três.
O frio entalhado nos ossos, o sol
anexado à pele,
o desejo devastado nos sete mapas das
trevas.
Sempre três, de passagem por todos os
ritos.
A água profanada da sede, a carne
apodrecida
antes da fome, o amor dividido nos
sete reinos.
Três sombras difamando o tear das
origens.
Com olhos enevoados, três aguaceiros
sagazes.
Sem reconhecer o próprio perfil,
sempre três.
De passagem com suas máscaras
emplumadas,
faziam sexo com nossas mães, mulheres
e filhas,
e riam do caudal de aflição com que
nos ungiam.
Não houve compaixão durante o trajeto
da pedra.
Suas três figuras esculpidas nos
sentenciaram dor
e tormento, tufos de areia dentro e
fora do mar,
suplício confundindo o que somos,
horas mortas.
No dia em que se foram nos pusemos a
rezar,
desabrigados de tanta dor, por outras
três mais.
19.
Por
entre as dobras as formas se fortalecem,
mistério
mascado por desmaios e mergulhos.
Grandeza
composta pelo milagre da imitação,
meu
corpo entregue ao teu, para que seja
a
árvore que nos protege da fome imprevista.
O
que fazer com a casa adormecida no alto?
O
homem cavou rápido e descobriu uma pedra
que
imita todas as formas e a todos convence.
Fez
dela seu argumento de céu e sepultura.
À
sua volta traçou um perímetro que não permite
visita
ou oração, uma trégua, para que o mundo
volte
a ser a expressão incontestável da cópia.
20.
Quantas
são as perdas soterradas
sob
o olhar ilegível do filho?
Quatro
ou cinco casas invadidas
antes
que o rio desviasse o curso
do
abismo que julgávamos nosso.
Uma
pedra no nome e o caminho se desfaz.
Não
encontro mais quem busco
na
outra metade exposta do acaso.
Quem
furta a mensagem e soterra
sua
ausência com piolhos indecisos?
Quantas
vezes aqui estive a narrar
a
biografia selvagem das pedras
que
se recusaram a mascar
o
arenito de seus próprios sonhos?
Não
contem quanto pode uma vida
se
repetir em cada um de nós.
21.
Agora
diremos que o mundo foi esquecido,
quando
a dor mais sofre em sua nova morada.
Os
deuses não se repetem. Somos sempre
os
mesmos atraídos por seu mistério oculto.
Prepara
um cantil de sonhos para cruzar o dia.
Copia
todas as formas tangíveis de anonimato.
Que
ninguém perceba a que tribo pertences.
O
mundo é um sequestro da própria identidade.
22.
De
que lado estamos quando estamos todos juntos?
Ao
compartilhar a resina das estações ou adorar
o
sangue de todas as sombras devotas atraídas,
de
que lado estamos quando deus algum nos descrê?
Se
não é verdade que fomos feitos para a dúvida,
com
quantas pausas alimentamos a confiança mútua?
Quantas
lástimas creditamos ao indisfarçável gozo
de
pousar em todas as árvores não importa a fruta?
Somos
atraídos pela vertigem ou pela harmonia?
Vamos
deixando que cada um rasgue seu caminho
⎼ os trens, os
gatos, o átomo, a inveja, as sutilezas ⎼,
que
toda forma, cedo ou tarde, venha comer aqui.
Nos
assemelhamos à grande roca do destino,
em
que a existência humana engole todas as cifras
do
que lhe parecia ser sonho, ilusão, desejo ⎼ porém,
quando
estamos todos juntos, de que lado estamos?
23.
A
pele ilude o fogo,
a
sombra ilude o sol,
a
dor ilude o ardil.
Meu
nome ilude o teu passado,
a
tua cama ilude o meu desejo,
as
cinzas iludem qualquer morte.
Toda
permanência um dia se esvai,
todo
mito termina por evadir-se,
qualquer
acaso um dia se torna previsível.
O
nome queima sua sombra sem explicação,
a
fábula reservou um capítulo à hipocrisia,
o
horizonte se perde sem saber o que olhar.
Não
temos fogo, não temos frio.
Não
temos nome, não temos ilusão.
não
temos sol, não temos sombra.
24.
A
pedra cerzida na coxa do tempo,
a
consulta atribuída ao acaso, um filho
que
passou por aqui e não retornou…
Os
cascalhos de um enigma corrente
se
empilham em uma lixeira imaginária.
Jamais
saímos daqui a parte alguma.
A
sombra se esconde sob a paisagem,
o
espírito se enamora do espelho,
o
esqueleto tropeça em seus discos.
Tudo
parece agir como uma relíquia.
Sem
notas fiscais ou de pé de página.
O
mundo se move como uma alegoria
de
truques gastos e retrato embaçado.
Não
importa quanto dissemos adeus.
Jamais
nos livramos de nós mesmos.
25.
A
grande casa divide o reino.
Nem
todas as árvores ressuscitam.
Os
animais sabem que a letra é um osso.
Há
muito aguardamos um mensageiro
que
nos traga uma folha de verdade.
A
angústia está por aqui há tanto tempo
que
desconfiamos tenha vindo de outra morada.
Esperamos
pelo melhor, enquanto entalhamos
o
pó de nosso sofrimento.
Por
vezes o acaso demora a chegar.
26.
Agora
o espinhaço do tempo
revela
o barro de sua arquitetura.
Oito
mensageiros percorrem
a
cidade devorada por suas esquinas.
O
vento se chama Palavra de Pé.
Renomeia
seus oradores desaparecidos
e
põe uma pedra de sal no ventre
de
cada herança semeada sob o sol.
Até
aqui não sabíamos que a morte
é
uma confissão de tudo o que somos
e
já não podemos fingir ou suportar.
27.
Deus
das terras ofendidas, das montanhas abandonadas,
dos
tributos que converteram o refúgio em tempestade.
Deus
das flores rasgadas, das tribos afastadas de seus avós,
do
pasto que perdeu suas sementes para outras esferas.
Em
uma próxima geração ressurgem todos os erros.
O
poderoso domínio da ansiedade não tarda muito,
nada
o impede de converter vigias, arautos e carpideiras.
O
dia é testemunho de um milagre humilhado,
de
um pomar que não se reconhece em seus filhos,
de
uma falsa viagem que nos reconforta por repetir-se.
Deus
que a todo instante não se cansa de multiplicar-se,
deixemos
um pouco de rastro em cada sofrimento,
para
que não sejamos sempre as mesmas vítimas gastas.
28.
Dois
céus corrigem o efeito das queimadas,
a
cara feia e alargada dos gemidos da terra.
A
angústia semeia novas manchas e fogos,
e
dois outros céus gritam por mais mãos no tear.
A
casa se ergue como uma conquista
sobre
o lixo que não cessará sua pastagem.
A
casa confessa os matizes de severos atos:
os
ratos no reflexo da chaminé, a água febril
nas
calhas da ilusão, o verme cobrindo o milharal.
As
dores vigiam os planos do horizonte,
como
se um tropel de piolhos rasgasse
uma
trilha de jogos sangrentos na pele da noite.
Dois
céus se preparam para uma nova afronta.
Toda
a aldeia está soterrada pela infâmia.
Vomita
a boca rasgada do tempo, o fogo
apavorado
por tanto sangue sugado, a morte
contando
os passos até que a piedade volte
a
encarregar-se de nomes, números, ossos.
29.
A
avó veio buscar comida, antes que o sol
parasse
de latejar. O sangue da avó
não
parava de chegar, e permanecia rascunhando
na
pedra os animais do presságio.
A
avó mantinha a cabeça sempre para frente,
e
abençoava os farrapos que resistiam a apodrecer.
Um
dia ensinava canto às corujas. E logo
ressuscitava
o encanto das alegorias sacrificadas.
Treze
crianças continuavam dançando
enquanto
o mistério passava de mão em mão.
O
que a avó teria entalhado em sua face,
para
que dali não saíssemos jamais?
Que
engendro terá deixado passar sem antes
acentuar
seus fulgores na pedra de seu coração?
A
avó sempre nos dizia que o mundo precário
afugenta
os milagres e crê no perdão.
30.
Quatro
vezes dei constância aos ofícios
de
que não teremos jamais que regressar.
Os
semelhantes não disseram quantos,
simplesmente
se foram, desapareceram.
À
míngua não morreremos, sem espelho
ou
cinzas que testemunhem nossa dinastia.
Sobraram
tribos por contar, e cultos
que
não sabemos se hostis ou vulgares.
Os
filhos estão em quartos propícios
à
redoma para que lhes suture os sofrimentos.
Quantas
vezes dei constância aos sacrifícios
para
que se dissipem antes de toda colheita?
Não
convém fazer cópias do mesmo templo.
As
formas devem desaparecer dentro de nós
como
o acidente imperativo da permanência.
31.
Por
três provas do mesmo dia
a
árvore procurou terra onde melhor
enterrar
os restos de sua memória.
Não
soube com quem deixar a cabeça.
Com
sete mortes ninguém estranha mais castigo.
Estrondos
se ouviam da outra margem da noite.
Vozes
seguiam a tristeza por quatro caminhos.
Um
deles lamentou não dar em parte alguma.
Outro
cheirava a encruzilhada
e
por sua bênção nada amanhecia.
Não
havia tempo para consolar os acordes
entalados
em rudes instrumentos.
A
árvore rangia quando passava.
Por
três vislumbres da mesma cena
a
memória se desfazia de seu inútil cortejo.
32.
Morrer
de frio em nome de quem se ama
é
desconhecer as sementes do fogo.
Irrigar
os verbos que não se deixam enganar.
O
totem é tão triste quanto a língua constrita.
Os
vermes encharcados de maldição,
a
miséria humana retalhando a grandeza dos céus.
A
avó caminhou sobre seu próprio nome,
decidida
a desbastar o mistério de cada colheita.
Esquecemos
o nome dos lugares e as pedras
em
que os deuses foram lavados. A cada manhã
acordamos
nos braços de um desfiladeiro.
Os
deuses são monos, como sorrateiras
estátuas
escondidas no capim das montanhas.
Indispensável
dizer quantos nomes
foram
desconhecidos, narrar as dúvidas,
vestir
as algazarras, dizimar as trilhas
rastejantes
e todas as tribos do espelho.
Algo
degela o coração de cada mito desfeito,
dança
com as trevas modificadas, salta
de
um barro a outro em uma orgia de deuses,
feito
um alucinante vozerio de estatuetas.
O
que estivemos a dizer o tempo inteiro?
O
mito muda a língua,
a
língua vicia o truque,
o
truque é a linguagem dos deuses.
O
homem está sempre fora de lugar.
A
cada instante parece retornar ao ponto de partida,
horta
singular de prantos, colmeias da ilusão,
como
se houvesse desistido da existência,
ou
talvez ela não fosse mais do que um rio,
uma
metáfora perdida, um voto de silêncio.
33.
Nada
é imóvel nas quatro conchas da criação.
As
noites uivam feito um pulmão repleto de música.
Os
desertos caminham pelo espinhaço da terra.
Pequenos
demônios refletem seus atos na teia dos rios.
Raios
arriscam uma perna em toda alma em chamas.
Nada
modela o passado ou garimpa o futuro.
O
acaso supõe domínio completo sobre o homem.
Que
me tragam o sol com suas facas de ponta,
o
gorjeio das bússolas, as canções de ventre,
o
olhar rasgado das primeiras clareiras,
a
chuva roubada na boca das nuvens…
Cada
vez que nos reunimos para venerar ossos
ou
cozinhar feras íntimas, as dores tremulam
suas
contas ⎼ um alvoroço de
filhos ⎼, o rito
sofregamente
mudando seus filtros de lugar.
A
curiosidade lambe os beiços. Amanhecer é um ultraje.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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