sábado, 22 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | O sol e as sombras

 

 

Na natureza existem tão poucas cores quanto linhas, só existem o sol e as sombras. Dá-me um pedaço de carvão e eu te darei o quadro mais belo.

FRANCISCO DE GOYA

 

 

1.

 

O céu tangendo seus azuis para o calor do olhar.

Diferente da escuridão, quero voltar ao mesmo sítio

e abraçar o que antes estivera escondido.

As tribos separadas por nomes evocando deuses.

A língua secando ao sol convertendo palavras em totens.

Os primeiros animais se espalharam pela terra

e misteriosos alegraram os poços do esquecimento.

Quero amanhecer as diferenças sobre o espinhaço

orvalhado do tempo: as pétalas iluminadas do ser.

Risco o perfil de todas as formas à distância.

Quando os sentidos se afastaram entre si, estive

à espreita de cada fungo, bactéria, frase solta.

Auscultando a idade dos poros por onde o homem

alardeia seus cantos de ilusão e permanência.

 

2.

 

Eu disse ao primeiro: sossegue o sentido da flecha,

até que o alvo aprenda por onde as sombras passam.

O segundo distendeu o arco até que se confundisse

com o próprio corpo coberto de plumas e folhas.

Se acaso houvesse tempo para interrogar o terceiro

decerto saberíamos que seu disparo fora improvisado.

Como confiar em um deus criado pelo homem? Como

desatar o nó das tribos em suas vísceras de fé e medo?

Foram muitas as lápides escavadas à margem dos rios,

hordas migrando sob o sol pelo espinhaço do abismo,

delírios apaziguados com beberagens, reza e canto.

Sequer os loucos de cada aldeia intuíram o desatino.

As flechas zuniam alheias aos prantos dizimados.

Não houve fogo ou frio que retivesse a ira rasgada.

Os deuses jamais deram uma declaração à terra.

Jamais soubemos o peso excessivo de nossa confiança.

 

3.

 

A avó confabulava caraminholas por toda a aldeia.

Habitava um mundo surpreendido pela vitrola

dos vislumbres e o cajado silencioso da memória.

Seu riso vinha do mirante; o sofrimento, do berço.

Meninos e monos se revezavam em levar-lhe

a comida, lavar-lhe as partes, acatar-lhe os truques.

A avó extraviada do sábio rumor de sua alegria,

o canto de sua lâmpada desaparecendo, o verbo

evitando as escadas fortuitas de cada desastre.

As imagens contornam a temperatura do chá,

eu ainda escuto o sermão do acaso, imprudente

que fui com a vocação das sombras mais solícitas.

Com a avó perdemos todos um borrão apócrifo

que ensina como o dia recomeçar em si mesmo.

O mundo não é o que vemos gritando nas ruas,

mas aquele que se acocora sofrido dentro de nós.

 

4.

 

As cidades se entreolham, maquiando suas dores.

Os reinos cresceram tortuosos, altares à míngua.

As nove casas foram chamadas a identificar a queda.

Trouxeram consigo um farnel de cal e bênção,

como se a ilusão voltasse a modelar todas as almas.

Novo saldo de impertinência acumulando poeira.

Paradigma gasto dos dias mais escuros lembrados

com a moenda dos sacrifícios ainda suja e quente.

Os filhos arrastando seus grilhões, o olhar turvo,

repetindo suadas ameaças de fuga de outras eras.

Cenário descascado como um tempero da memória.

Rostos revirados como folhas colhidas pelo acaso.

Como arapucas e carapuças, um cento de mágoas.

Na primeira das casas uma figura picava as sombras.

Logo se via um balde de cinzas na soleira vizinha.

As nove casas cerziam o retábulo de seus feitiços.

A opulência antecipa a maldade ⎼ ouvimos a víbora

soletrando as asas de um mosquito antes de tê-lo.

 

5.

 

O verbo é um cocar, um ídolo disfarçado,

um medo de sangrar até o esquecimento.

O verbo não quer ser investigado por ira,

tramoia, farpas, milagres ou confidências.

Não há verbo no céu ou deus na terra.

Todas as formas são dissidentes, sombras

que um dia planejam ser a mais soberana

de todas as feridas, um cardume silenciado,

o busto ambíguo de um deus finito, carranca

com que me anuncias a partição do reino.

Rebentamos a vida creditando valores

ao horizonte e à geografia dos devaneios.

Nada nos impede de consultar a dissidência.

Por vezes o verbo não faz sentido algum.

 

6.

 

Os primeiros ritos trouxeram consigo o esqueleto do infinito.

Um estirão de montanhas bem paridas produzindo alimento

para um sortimento variado de fomes de corpo e alma.

Era importante não esquecer o que se estava construindo,

dar conta dos truques musculares de cada forma encontrada.

Quando uma árvore rir deve saber que está debaixo do céu.

Cabe ao arquiteto, ao rabiscar uma esquina, tocar seus lados,

de modo que as sombras e a chuva saibam como ir e vir.

Ouvimos cada objeto sussurrar suas querências, a visão

de um traje mágico que envolve tudo aquilo que nos cerca.

Quando as estações começam a se multiplicar em nós,

o interior de toda existência tece sua escritura própria.

Os ritos sobem pelos avessos da criação até que alcancem

outra sabedoria que dê forma ao que foi esquecido.

 

7.

 

Manhã cedinho as nuvens saem para pescar.

Os pássaros se abrigam das zarabatanas da chuva.

Três oradores substituem o sol em seus assuntos.

O que antes era morte certa a avó soube perpetuar.

Sem o agravante das rezas nenhuma árvore renasceu.

Toda a floresta parecia não respirar de tão quieta.

As pedras flutuam e ninguém sabe quem sou.

Uma avalanche de olhares preserva o nome da avó.

Tesouros prescritos se escondem por trás

de uma música crescida enquanto capinamos

a razão de estarmos aqui.

Eu me arrepio diante dos planos do dia.

Minha sombra é uma estranha para mim.

Mesmo assim lhe agradeço quando me vem trazer comida.

 

8.

 

O espelho a quem confesso meu nome.

Excesso de estações que o ano não suporta.

Os lábios rasgados de um símbolo a outro.

Véus da cegueira, respostas sem brevidade,

comidas frias desde que a noite se disfarce

em soslaios e serpentes, vamos para o alto.

Ali contamos as sombras, o mundo ao revés,

corpos contra a corredeira, coisas ruins…

Árvores amontoadas sem terra, formigas

cantarolando em vidros sujos, lugar nenhum.

Somos sete penumbras entrando em novo sol.

Uma causa derretida pelo truque de outra

que não se refez antes de devolver seu motivo

àquela cujos ganhos eram dados mordidos.

 

9.

 

Rabisco o nome santo da metamorfose.

Colecionei suas hóstias até o último escárnio da alegoria.

As implicações do verbo são as mesmas

do abismo planejado pelos deuses tutelares.

O desejo é compatível com toda sorte de impiedade.

Murmúrio viciado em anagramas,

teia refeita por vislumbres,

trapézio esquecido de seus ângulos.

Saltérios fora de órbita, com uma melodia transcrita

de modo que ninguém a acompanhe.

Eu sou a pedra do reino em sua última ladainha,

antes que as trevas solucem e o homem aja

como se não soubesse mais amanhecer.

 

10.

 

O lugar de ser de cada letra,

a oração convertida em pérola

que nos decifra em fatias:

não morra, ressuscite ou siga

alguém pela terceira vez.

Sempre vão nos matar.

O mundo é uma fábula,

até que nos descobrimos

o personagem de sua saga.

Eu me vi muito pobre ao chegar,

recebido por casas flutuantes

e mandados de felicidade.

Incerto em minhas recusas,

desconhecendo a própria morte.

Dizem que agora, o que somos,

é uma taça guardada no armário,

e desde ali vemos desaparecer

entre grandezas e subterfúgios,

o mundo resignado à poeira,

em números que não o ressuscitam.

A imagem não acompanha a música

com que se despede de nós:

Esta é a única obra. Escutem seu nome.

 

11.

 

Por que não trazes para nosso leito

algo que não seja teu nascimento?

Quando começo a buscar teu nome no rio

cascalhos se multiplicam em formas inesperadas.

Somos três ou quatro amigos insuspeitos,

metidos em instrumentos que aceleram o vislumbre.

O horizonte é uma árvore com mil galhos

partidos pelo excessivo peso dos pássaros.

Quem desapareceu dos nomes transcritos como uma fábula?

Eu fui teu animal preferido.

A perpetuidade de teu gozo como uma flauta afinada pelo riso.

Os netos se reproduzem como uma vocação.

A terra é impiedosa na tessitura de seus túmulos.

A quem recomendo entrar e sair de cena?

Àquele que não creia em minhas palavras.

 

12.

 

A noite saltando pela cumeeira das casas.

A vida é outra coisa que ainda vamos contar.

Indagados pela colheita do espanto,

os sócios permanecem em silêncio,

descascam suas pedras, osso por osso,

como se a tempestade viesse para a ceia.

Os mensageiros sabem até onde levar o rio.

Os ventos tomam aulas com os morcegos.

Cascalhos ocultam em si grandes montanhas.

Se vamos ressuscitar é melhor que saibam

o que me disse outro dia cabisbaixo o outono:

não há como lembrar o que fomos até aqui.

Talvez tenhamos que incendiar rios, inundar

casas e levar toda uma vida ocupados

em escavar fundo nossa miserável aparência.

 

13.

 

Tudo vibra nos rastros que a trilha soletra,

como um pecado temperado na areia

ou a expressão da queda ao ressurgir no olhar

de quem se esforça por esquecê-la.

Os ocupantes do horizonte são austeros

com aqueles que presumem a humanidade

represada em seu espírito.

Impossível aclarar o infinito.

Sete são os pecados encomendados.

Quase nenhuma a chance de escaparmos

com vida de seus precipícios entalhados

na fermentação do ser.

Três vezes bebi a mesma água da solidão.

O destino mascado como uma carne

visitada pelo sol. Os deuses confabulam conscientes

de que jamais retornaremos ao primeiro pecado.

 

14.

 

Seus ossos esperaram por mim

até que a árvore se pusesse a chorar.

Dois sábios suspeitavam dos crimes

atenuados nas rugas de sua caveira.

O que teria frutificado este corpo?

Quantas filhas anotamos até que a matéria

se torne um minério improdutivo?

A quem lamentamos quando o tempo

simplesmente se esvai?

As pedras desconhecem o nome do pai,

do filho e do espírito santo.

Uma perna levemente erguida,

a saliva fustigando o acaso,

o amor contestando a verdade,

um prato de almas para a caveira eterna,

e outro para quem não sabe

reclamar seus males.

O desejo carece de equilíbrio.

Não me peçam que jure.

Apenas saibam: não fui eu.

 

15.

 

Duas vezes fui vencido antes que me dessem os filhos

o testemunho de seus invernos longe de casa.

Duas vezes enterrei meu destino como um animal

foragido de sua natureza.

Iam e vinham as missões como mulheres sem queixas.

Eu me vestia com suas peles e acreditava regressar ao lar.

O fogo é uma mecha de conselhos que se apoderam

da solidão: escárnio de luz em que se costura a ilusão.

Os filhos se foram um dia e eu jamais me recuperei

de suas palavras perdidas.

 

16.

 

As aparências dividem o número de mortos

sobre a esteira rolante dos acontecimentos.

O erário caminha por outro fio de espólio.

Madruga teus corpos na saliva de cada fogo

com que queres refazer as penas e atavios.

Apóstolos relutam ante a deformação do ser.

Elimina a vergonha da dupla face do descuido.

O mundo crê firmemente que é possível

construir uma residência para que o infortúnio

nos livre de suas penitências mais vorazes.

O meu arrependimento está previsto em lei.

Não batam à porta de minha casa duas vezes.

 

17.

 

Os primeiros adivinhos cuidaram

para que nada fosse mudado de lugar.

O sol lapidando suas esculturas:

espigas que evocassem grandes animais.

Antes que as escadas construídas

confiassem aos céus ocultas figuras,

deuses rateavam as hortas do destino.

Três rostos flutuando sem que fossem

identificados por nome ou vulto.

Talvez um dia tenham sido tigres,

malabaristas ou um último enigma.

A noite regurgita antigos guardiões.

As formas se despem no encalço das sombras.

As hortaliças alimentam a manada perdida

de nossas impiedosas ilusões.

 

18.

 

De passagem por toda parte foram sempre três.

O frio entalhado nos ossos, o sol anexado à pele,

o desejo devastado nos sete mapas das trevas.

Sempre três, de passagem por todos os ritos.

A água profanada da sede, a carne apodrecida

antes da fome, o amor dividido nos sete reinos.

Três sombras difamando o tear das origens.

Com olhos enevoados, três aguaceiros sagazes.

Sem reconhecer o próprio perfil, sempre três.

De passagem com suas máscaras emplumadas,

faziam sexo com nossas mães, mulheres e filhas,

e riam do caudal de aflição com que nos ungiam.

Não houve compaixão durante o trajeto da pedra.

Suas três figuras esculpidas nos sentenciaram dor

e tormento, tufos de areia dentro e fora do mar,

suplício confundindo o que somos, horas mortas.

No dia em que se foram nos pusemos a rezar,

desabrigados de tanta dor, por outras três mais.

 

19.

 

Por entre as dobras as formas se fortalecem,

mistério mascado por desmaios e mergulhos.

Grandeza composta pelo milagre da imitação,

meu corpo entregue ao teu, para que seja

a árvore que nos protege da fome imprevista.

O que fazer com a casa adormecida no alto?

O homem cavou rápido e descobriu uma pedra

que imita todas as formas e a todos convence.

Fez dela seu argumento de céu e sepultura.

À sua volta traçou um perímetro que não permite

visita ou oração, uma trégua, para que o mundo

volte a ser a expressão incontestável da cópia.

 

20.

 

Quantas são as perdas soterradas

sob o olhar ilegível do filho?

Quatro ou cinco casas invadidas

antes que o rio desviasse o curso

do abismo que julgávamos nosso.

Uma pedra no nome e o caminho se desfaz.

Não encontro mais quem busco

na outra metade exposta do acaso.

Quem furta a mensagem e soterra

sua ausência com piolhos indecisos?

Quantas vezes aqui estive a narrar

a biografia selvagem das pedras

que se recusaram a mascar

o arenito de seus próprios sonhos?

Não contem quanto pode uma vida

se repetir em cada um de nós.

 

21.

 

Agora diremos que o mundo foi esquecido,

quando a dor mais sofre em sua nova morada.

Os deuses não se repetem. Somos sempre

os mesmos atraídos por seu mistério oculto.

Prepara um cantil de sonhos para cruzar o dia.

Copia todas as formas tangíveis de anonimato.

Que ninguém perceba a que tribo pertences.

O mundo é um sequestro da própria identidade.

 

22.

 

De que lado estamos quando estamos todos juntos?

Ao compartilhar a resina das estações ou adorar

o sangue de todas as sombras devotas atraídas,

de que lado estamos quando deus algum nos descrê?

Se não é verdade que fomos feitos para a dúvida,

com quantas pausas alimentamos a confiança mútua?

Quantas lástimas creditamos ao indisfarçável gozo

de pousar em todas as árvores não importa a fruta?

Somos atraídos pela vertigem ou pela harmonia?

Vamos deixando que cada um rasgue seu caminho

⎼ os trens, os gatos, o átomo, a inveja, as sutilezas ⎼,

que toda forma, cedo ou tarde, venha comer aqui.

Nos assemelhamos à grande roca do destino,

em que a existência humana engole todas as cifras

do que lhe parecia ser sonho, ilusão, desejo ⎼ porém,

quando estamos todos juntos, de que lado estamos?

 

23.

 

A pele ilude o fogo,

a sombra ilude o sol,

a dor ilude o ardil.

 

Meu nome ilude o teu passado,

a tua cama ilude o meu desejo,

as cinzas iludem qualquer morte.

 

Toda permanência um dia se esvai,

todo mito termina por evadir-se,

qualquer acaso um dia se torna previsível.

 

O nome queima sua sombra sem explicação,

a fábula reservou um capítulo à hipocrisia,

o horizonte se perde sem saber o que olhar.

 

Não temos fogo, não temos frio.

Não temos nome, não temos ilusão.

não temos sol, não temos sombra.

 

24.

 

A pedra cerzida na coxa do tempo,

a consulta atribuída ao acaso, um filho

que passou por aqui e não retornou…

Os cascalhos de um enigma corrente

se empilham em uma lixeira imaginária.

Jamais saímos daqui a parte alguma.

A sombra se esconde sob a paisagem,

o espírito se enamora do espelho,

o esqueleto tropeça em seus discos.

Tudo parece agir como uma relíquia.

Sem notas fiscais ou de pé de página.

O mundo se move como uma alegoria

de truques gastos e retrato embaçado.

Não importa quanto dissemos adeus.

Jamais nos livramos de nós mesmos.

 

25.

 

A grande casa divide o reino.

Nem todas as árvores ressuscitam.

Os animais sabem que a letra é um osso.

Há muito aguardamos um mensageiro

que nos traga uma folha de verdade.

A angústia está por aqui há tanto tempo

que desconfiamos tenha vindo de outra morada.

Esperamos pelo melhor, enquanto entalhamos

o pó de nosso sofrimento.

Por vezes o acaso demora a chegar.

 

26.

 

Agora o espinhaço do tempo

revela o barro de sua arquitetura.

Oito mensageiros percorrem

a cidade devorada por suas esquinas.

O vento se chama Palavra de Pé.

Renomeia seus oradores desaparecidos

e põe uma pedra de sal no ventre

de cada herança semeada sob o sol.

Até aqui não sabíamos que a morte

é uma confissão de tudo o que somos

e já não podemos fingir ou suportar.

 

27.

 

Deus das terras ofendidas, das montanhas abandonadas,

dos tributos que converteram o refúgio em tempestade.

Deus das flores rasgadas, das tribos afastadas de seus avós,

do pasto que perdeu suas sementes para outras esferas.

Em uma próxima geração ressurgem todos os erros.

O poderoso domínio da ansiedade não tarda muito,

nada o impede de converter vigias, arautos e carpideiras.

O dia é testemunho de um milagre humilhado,

de um pomar que não se reconhece em seus filhos,

de uma falsa viagem que nos reconforta por repetir-se.

Deus que a todo instante não se cansa de multiplicar-se,

deixemos um pouco de rastro em cada sofrimento,

para que não sejamos sempre as mesmas vítimas gastas.

 

28.

 

Dois céus corrigem o efeito das queimadas,

a cara feia e alargada dos gemidos da terra.

A angústia semeia novas manchas e fogos,

e dois outros céus gritam por mais mãos no tear.

A casa se ergue como uma conquista

sobre o lixo que não cessará sua pastagem.

A casa confessa os matizes de severos atos:

os ratos no reflexo da chaminé, a água febril

nas calhas da ilusão, o verme cobrindo o milharal.

As dores vigiam os planos do horizonte,

como se um tropel de piolhos rasgasse

uma trilha de jogos sangrentos na pele da noite.

Dois céus se preparam para uma nova afronta.

Toda a aldeia está soterrada pela infâmia.

Vomita a boca rasgada do tempo, o fogo

apavorado por tanto sangue sugado, a morte

contando os passos até que a piedade volte

a encarregar-se de nomes, números, ossos.

 

29.

 

A avó veio buscar comida, antes que o sol

parasse de latejar. O sangue da avó

não parava de chegar, e permanecia rascunhando

na pedra os animais do presságio.

A avó mantinha a cabeça sempre para frente,

e abençoava os farrapos que resistiam a apodrecer.

Um dia ensinava canto às corujas. E logo

ressuscitava o encanto das alegorias sacrificadas.

Treze crianças continuavam dançando

enquanto o mistério passava de mão em mão.

O que a avó teria entalhado em sua face,

para que dali não saíssemos jamais?

Que engendro terá deixado passar sem antes

acentuar seus fulgores na pedra de seu coração?

A avó sempre nos dizia que o mundo precário

afugenta os milagres e crê no perdão.

 

30.

 

Quatro vezes dei constância aos ofícios

de que não teremos jamais que regressar.

Os semelhantes não disseram quantos,

simplesmente se foram, desapareceram.

À míngua não morreremos, sem espelho

ou cinzas que testemunhem nossa dinastia.

Sobraram tribos por contar, e cultos

que não sabemos se hostis ou vulgares.

Os filhos estão em quartos propícios

à redoma para que lhes suture os sofrimentos.

Quantas vezes dei constância aos sacrifícios

para que se dissipem antes de toda colheita?

Não convém fazer cópias do mesmo templo.

As formas devem desaparecer dentro de nós

como o acidente imperativo da permanência.

 

31.

 

Por três provas do mesmo dia

a árvore procurou terra onde melhor

enterrar os restos de sua memória.

Não soube com quem deixar a cabeça.

Com sete mortes ninguém estranha mais castigo.

Estrondos se ouviam da outra margem da noite.

Vozes seguiam a tristeza por quatro caminhos.

Um deles lamentou não dar em parte alguma.

Outro cheirava a encruzilhada

e por sua bênção nada amanhecia.

Não havia tempo para consolar os acordes

entalados em rudes instrumentos.

A árvore rangia quando passava.

Por três vislumbres da mesma cena

a memória se desfazia de seu inútil cortejo.

 

32.

 

Morrer de frio em nome de quem se ama

é desconhecer as sementes do fogo.

Irrigar os verbos que não se deixam enganar.

O totem é tão triste quanto a língua constrita.

Os vermes encharcados de maldição,

a miséria humana retalhando a grandeza dos céus.

A avó caminhou sobre seu próprio nome,

decidida a desbastar o mistério de cada colheita.

Esquecemos o nome dos lugares e as pedras

em que os deuses foram lavados. A cada manhã

acordamos nos braços de um desfiladeiro.

Os deuses são monos, como sorrateiras

estátuas escondidas no capim das montanhas.

Indispensável dizer quantos nomes

foram desconhecidos, narrar as dúvidas,

vestir as algazarras, dizimar as trilhas

rastejantes e todas as tribos do espelho.

Algo degela o coração de cada mito desfeito,

dança com as trevas modificadas, salta

de um barro a outro em uma orgia de deuses,

feito um alucinante vozerio de estatuetas.

O que estivemos a dizer o tempo inteiro?

O mito muda a língua,

a língua vicia o truque,

o truque é a linguagem dos deuses.

O homem está sempre fora de lugar.

A cada instante parece retornar ao ponto de partida,

horta singular de prantos, colmeias da ilusão,

como se houvesse desistido da existência,

ou talvez ela não fosse mais do que um rio,

uma metáfora perdida, um voto de silêncio.

 

33.

 

Nada é imóvel nas quatro conchas da criação.

As noites uivam feito um pulmão repleto de música.

Os desertos caminham pelo espinhaço da terra.

Pequenos demônios refletem seus atos na teia dos rios.

Raios arriscam uma perna em toda alma em chamas.

Nada modela o passado ou garimpa o futuro.

O acaso supõe domínio completo sobre o homem.

Que me tragam o sol com suas facas de ponta,

o gorjeio das bússolas, as canções de ventre,

o olhar rasgado das primeiras clareiras,

a chuva roubada na boca das nuvens…

Cada vez que nos reunimos para venerar ossos

ou cozinhar feras íntimas, as dores tremulam

suas contas ⎼ um alvoroço de filhos ⎼, o rito

sofregamente mudando seus filtros de lugar.

A curiosidade lambe os beiços. Amanhecer é um ultraje.

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 



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