I – ABISMANTO
LUVNIS
argolas de espera
me arrastam
ou somos nós que as
arrastamos? criamos estes aros?
me solto do não
saber do abandono para cair
no falso que
invento todo esse tempo
e as pequenas
formas do cotidiano que a gente não percebe
e que estão por
aí tão leves vozes ao vento
a noite amiúda os
truques de nossa busca
ou somos nós que
nos despistamos?
ao mastigar a
engrenagem dos ecos
deixamos que
soletrem em nosso íntimo as imagens
que reservamos às
ilusões mais comuns
a noite sussurra
como uma lâmina em minha pele
e me desvio do real
para te encontrar
iniciando as formas
grifando os
pronomes diante dos verbos
não sou maiúscula me
desfaço dos pontos e vírgulas
e me atiro no poço
que a paixão enche
de querer de busca de sede de pressa
de dor de cabeça de naipes de coisa indecifrável
de inédito dito exorbitado demandamos
a farsa da lua que
mostra algo outro
o perspectivo
impostor das sombras
o embuste de nossos
corpos distantes
trabalhamos árduos
para sermos a antera desta
ilusão e as
pequenas formas do cotidiano que a gente não percebe
e que estão
por aí tão leves gota de suor de espera
de indagação se
derramando nas teclas do pensado
e trago a tua voz
para dentro da noite
para o centro da
trama em que tudo se esquece
deixo tuas palavras
crescerem no interior desse mundo perdido
o corpo descarnado
da memória
a luz esmagada
pelas sombras
as janelas
retorcidas impedindo que qualquer coisa entre ou saia
trago a tua voz
para que se revire toda
como a pedra
inflamada de suores negros
e ouço o silêncio
aflito dos móveis pela casa inteira
deixo a voz silabar
vultos nos espelhos
não quero escutar a
distância de nossos corpos
mas as raias da
palma da mão coberta de palavras
sublinhando seu
peso nas fendas do que criamos
colho a solidão de
cada sala vazia
para desenhá-la no
vaso sobre a cômoda do que não
se faz necessário
ou para ruminá-la
com os aros os ecos o silêncio a distância
é preciso continuar
dilatando os poros na pele das horas
resgatar as
pálpebras fechadas ante o sentir
e deixar de flagrar
no espelho a vida de um reflexo de lâmpada
acesa na calçada
que continuou indiferente
minha pele se
destaca assim abrindo
um lírio dentro da noite
e vou buscar um
novo sítio para a mobília extraviada
intuindo o cheiro
com que se revelam as novas sobras do vivido
essa miudeza com
que por vezes esquecemos de celebrar o instante
quantas vezes o
verbo quer ir e vir de uma face a outra do abismo?
quantas vezes
dizemos às pequenas formas do cotidiano
que não se ausentem
de si?
FALHANDRAS
um a um os objetos foram
desaprendendo suas formas
compondo um esqueleto invisível em que novas sombras se
traduzem
o vento intimida
a ideia que fazemos do tempo
tudo dentro da casa se
esgueira como se tateasse outro mapa de enredos
nada mais se
reconhece como a composição do lugar
eu mesmo sou estrangeiro buscando entender esta nova cartografia
e fugir deste interior limítrofe procurando minhas fronteiras
minha falange no meio do dia das pessoas do trabalho
da família descobrir as falhas que me acertam
que me dirimem que me denegam que me refazem
as falhas que carrego e as que colho
no equívoco do jogo
das cenas das
quais faço parte e das outras que me apresentam
em palcos
improvisados na fímbria das tragédias íntimas
as sobras do lar a memória desfolhada o baile de fantasmas
louças esvoaçantes
que atuam como bailarinas loucas
o armário desabando
em conflitos
o instinto
desfiando antigas visões por cômodos que se multiplicam
trama de portas que
sussurram ao ritmo convulsivo das luzes
parentes mortos solidão destroçada por mais solidão
meu corpo
tropeçando na falta que sente de tudo
este corpo
estrangeiro que não reconhece o vazio de sua nova morada
e desespera ao
encontrar janelas fora de lugar com paisagens que nunca estiveram aqui
ALMAVAGAVA
o teu olhar
rascunhava um estranho destino na pele de meu sonho carvão aflito por repetidas
noites incompreendido
mensagem a
expulsar-me do sítio em que me encontrava preso nas geometrias dos nossos
soluços silenciosos
dos sinônimos
retorcidos nas linhas verticais do passado tu me entregaste as retas que nunca
fizeram
parte de mim e sim
das grades do teu abandonar-me
e quanto mais
esboças a ausência de teus pequenos truques eu me deixo atrair por esses
recursos famélicos do dia
a linha falaz do
horizonte por trás das ruínas urbanas
a corredeira metálica
das ansiedades a catedral do
silêncio suspensa em pleno centro do nada
e por mais que
tente sair de ti ali te encontras uma vez mais como uma incógnita que não se
esgota
acidente a represar
minha alegria de viver
e por mais que eu não
me entregue ao reverso do cotidiano
à correnteza que desloca as demandas intrínsecas foram invertidos os nossos papéis somos um os traços do outro
e criamos o outro dentro de nós
com os meros rabiscos que os olhos extraem do amálgama da realidade
o mercúrio que separa o ouro da areia separa a alma que vaga
na sola dos pés sonâmbulos
embora gasto o mecanismo
não encerra sua jornada buscar
as pegadas mais profundas e a riqueza do carvão sobre uma folha de dia claro
NUDISFORME
eu quis te esquecer e não estavas dentro de nada que me lembrasse de
mim
a vida eu a fui levando para bem longe e por ali não retornavas a parte
alguma
quando me pus a minerar a memória destroçada descobri que há muito
não significavas nada em minha vida não havia senão vazio
em muitos lugares a que fui levado pensando em ti
deixar-te foi um navegar sem âncora mar adentro
que te desfez no interior dos encontros fortuitos nas calçadas nas
filas dos supermercados
dos bancos no meado dos sábados na velocidade dos ônibus das ruas
e das cidades despojadas de tua imagem fragmentada silenciada pelos
murmúrios dos passantes reclamando de pedregulhos e buracos dessa época
e pombos cagando em cabeças inocentes e culpadas em pleno horário de
almoço
não significavas nada
nem a lembrança fugaz de uma ereção ou a surpresa da chuva imbecil
molhando-me os sapatos meu rosto distorcido na água
meus olhos alagados da secura trazida pelo outro lado das paredes
que as pessoas carregam consigo esbarrando em mim desconfiança e disfarce
a vitrine ensopada
de estilhaços líquidos do que fomos em outros tempos
a lembrança roçando
em minha pele uns últimos conflitos e pronto
o dia recomeçava
como se jamais houvesse reconhecido uma sombra tua descorada na esquina
até as letras por
onde anteriormente se podia vislumbrar um nome se desfazem a cada olhar pousado
nelas
o que fica de um
amor quando acaba cumpre o estranho desígnio de descompor o mundo que habitou
já não sei quem és
nem mesmo na silhueta errante do esquecimento
SUSPIRANÇA
jamais soube que
nome dar à vegetação do silêncio estendida diante de si permitindo que o
caminho ao mar lhe oferecesse uma provável resposta
por vezes rabiscava
na areia umas primeiras tentativas de esquecer o tempo
e o tempo se
expandia sob suas pegadas acesas
o nome que
pretendia escrever não cabia na areia
gotejava solidão das letras desencontradas
como insetos que
houvessem perdido as asas
vaga-lumes sem rumo apagados como segredos no azinhavre das
tentativas que vêm e vão
segredos esquecidos
na ferrugem dos pêndulos jamais
soube lidar com a imensidão da folhagem que recolhia como uma relíquia
e a transformava em
imprevisível queda no salto do
louva-a-deus no instante do perigo
atingir o
desconhecido repentino as
ciladas que os anseios iminentes criam
conforme o
avanço incerto de cada um de nós
jamais soube lidar
com a linguagem da
névoa nas primeiras palavras do amanhecer
na qual o tempo lhe
recalcava como um nome na areia breve
mas por um momento infenso às línguas ininterruptas do silêncio e do
efêmero
nada poderia fazer
pelas luzes queimadas em seu íntimo
nem mesmo mudando o
tempo dos verbos sangrando antes
da ferida soluçando sem motivo
aparente saltando da ponte antes
de sua construção
a memória queima em
cima do telhado sem saber como descer
um prato de
lentilhas o beijo no rosto da
filha o emprego na padaria não importa quem tenha sido um dia quem venha a ser ou quem nunca seja
jamais soube dar
nome a suas emoções caiadas no chumbo das horas
expostas na
epiderme dos gestos
restava-me rabiscar
no indumento das folhas o mapa que poderia desvendar os segredos de cada
desencontro das letras
PASSAGUADA
a imagem do homem
inerte em cima da ponte aferrava-se ao fino esverdeado do rio constantemente
passando
percorrendo seu
caminho prescrito seguindo sem arrependimento
sem retorno sem carregá-la consigo despedindo-se dela logo
do outro lado da
ponte a imagem continuava ali turva torta tácita
o homem continuava
ali estático o rio continuava ali transitando
a ponte continuava
ali atravessando os pensamentos passavam percorriam seu caminho indefinido sem arrependimento
retornando carregando vultos inomináveis despedindo-se e resgatando
um céu talvez
impróprio não encontrava solução para tamanha inércia
começam a surgir
então as primeiras margens do vazio
anotações em tecido
quase invisível minúcias ainda de pouco crédito nas vértebras
da tarde
uma quebra de vozes
que percebem naquela imagem um risco menor de desapego
não não está ali como quem busca algum
mecanismo de punição
quer apenas
silêncio povoar o esqueleto do
silêncio com as figuras minúsculas
das últimas
descobertas que fez de si mesmo distinguir
o transitório no
crespo da correnteza a fala dos
murmúrios brilhando nos reflexos
o imanente da
imagem fixa no deslocamento daquilo que passa
saber dos pequenos
rebuliços da água das
transformações que o atravessam
que o movimentam saber que é o rio que cria as
raízes flutuantes na imagem do homem
prendendo-o àquilo
que o transpõe
soletrar essa
aprendizagem como quem recobra os mais insondáveis personagens
em irreconhecível
gaveta entulhada de fotos sem nome
uma visão ondulante
enredo em
descompasso com o que ainda pode lhe significar a vida
trama sagaz de
ondulações quantos ainda ousará
ser antes que o rio
se converta em
imagem do que teve diante de si e perdeu?
quantos ainda
restarão quando as margens forem tragadas por esse mistério
e não houver mais
ponte de onde possa contemplar seu naufrágio?
TREVILOCUS
a casa está perdida
dentro deles como um bosque
naufragado
vasculham a
extensão da queda à procura de motivos
escadaria de sombras que
leva de uma dúvida a outra
da última vez que
se foram dali era outra a perspectiva da memória
a infância lançava
as propostas do futuro no assoalho reluzente
as brincadeiras
cresciam como as roupas que perdiam
folhas secas caídas adubando a vivência
o buraco na meia
porque o dedão do pé era a lesma
espiando do caracol
a distância a ser percorrida
e corriam em volta
da casa o miolo as abelhas zunindo ao néctar das
primeiras descobertas
cada um carrega a
sua casa dentro de si a casa
construída de invento e vivido
de medo e luz
acendida de brincadeiras monstros embaixo da cama e leite
fervido
a casa por um tempo
esquecida no álbum de fotografias
revelada em cinzas ressurgida
após o incêndio de 1970
pequenos vultos
ainda percorriam seus vazios o
conhecimento do fogo na própria pele
calor de maravilhas sutilezas tremeluzindo
era um era dois era
três a magia pendida no varal a alegria florescendo
um dia não se sabe
como a casa foi esmaecendo até ser beijada pelo invisível
tentam resgatá-la
no meio do bosque labiríntico
das incertezas
crescidas que sempre invadem nossa vida
vislumbram arbustos
gigantescos engolindo o telhado as paredes as portas as janelas
tentam encontrar
novamente a casa no meio dos
galhos grossos e finos
que se alastram e
emaranham no ar confundido visões
tentam reconstruir
a casa dos escombros das perdas dos equívocos
e não conseguem
senti-la dentro deles como a
concha no fundo do aquário
como o espectro que
vagueia pelo vazio onde antes a tábua corrida conduzia de um cômodo a outro e
agora as cinzas são recolhidas pelo vento em ângulos absurdos
quase todas as
cores se foram a luz é com um
pranto cego
algumas vozes ainda
percorrem o íntimo de poucas fotografias
os enormes tanques
de criação de peixes no quintal o
quarto escuro com seus guardados misteriosos o olhar ainda mais enigmático da
chica gorda mascando fumo enquanto punha a queimar as castanhas talvez por ali a casa comece a
ressuscitar
pelas curvas dos
afazeres domésticos o cheiro de
milho cozinhando os insetos
circundando risadas e frases talvez
por ali pela fresta da porta
fechada e as coisas dos adultos
reservadas para o momento propício
talvez por ali
comece a ressuscitar a casa que cada um carrega dentro de si submersa no mar da memória ou no
fundo do poço
onde os fantasmas
enjaulados aparecem com cara de palhaço e o eco de gargalhadas cínicas anula o
canto das sirenes elas que
sempre chegam apertando a campainha
vendendo cosméticos e distribuindo o mapa do paraíso a duas
estações de metrô
mais cedo ou mais
tarde a casa emerge
ou naufraga dentro
dela ou simplesmente se entrega à corredeira dos próprios dilemas
como um ofertório à
obsessão desatada da ressurreição
CIRKUS
eu não esqueci o
teu nome quando estavas dentro da pedra
o catálogo de
vertigens encontrado à deriva com outros pertences anônimos
truques rascunhados
como se o mundo não passasse de um cenário
a valise invisível
de teus caprichos química de
ilusões solfejo de ardis
sinto ainda teu
corpo passando pelo meu como uma
alegoria extraviada uma febre
plantada um bandido reinando no
acaso de meus dias mais suspeitos
roubando meu equilíbrio
a recordação dos
bem sucedidos malabarismos
teu corpo como uma
imprevisível oscilação no alto do trapézio inúmeras vezes ensaiamos a queda no
meio da tormenta contorcida dos nossos anseios
do salto da
aventura que buscamos caímos nos braços firmes do ilusório teci a minha rede de segurança
dos fios de palavra cuspidos pela tua expectativa
mas foi desfeita
pelas garras do rotineiro pela
faca de sol lançada dos confins desta época
e sempre que isso
acontecia eu reacendia o teu anel de fogo para circundar o meu querer
enrijecido
roda da fortuna esfera de vertigens globo ocular do abismo
por onde passas teu
corpo estremece dentro do meu com suas contorções de despenhadeiros dentro de
uma garrafa porém quando busco
teu beijo ele já está na outra margem
vislumbro as
sombras que vão se multiplicando por todo o picadeiro
quando refazes a
máscara converto os lenços manchados nas mais inocentes pombas da noite
teu corpo se enche
de aplausos o meu desfia o
silêncio como um novelo encontrado na jaula do tigre
amanhã estaremos
desfalecidos para a matinal desfalecidos
para a urgência daquilo que seja o antônimo da libido ignoraremos tudo o que é infenso à
excitação e mais uma vez o
despertar
recomeçar o
espetáculo com os poros
dilatados entraremos novamente em cena
teu corpo me
ensinará ainda mais os truques do instinto aperfeiçoará o ofício das minhas mãos
sedentas
ora vamos rir dos
nossos tombos fulgor de farsas
ora nos
entregaremos à arriscada seriedade das manobras e penetrarei
no profundo úmido quente estreito momento da tesura
onde nossos corpos
são as duas feras atravessando o círculo de fogo
flutuando
petrificadas na memória reaprendendo
seus nomes desaparecendo no
fundo falso da próxima cena
CORTINAVIS
ela prepara o fio o óleo as sementes azuladas o afago da névoa os sinais de que seu corpo o deseja
enquanto dure seu estoque de horizontes
ele a reconhece em cada sombra
suspende os véus no
ponto mais alto instrui o vento
a não deixar de ser brando rabisca
os primeiros traços da nudez
os contornos
nítidos da entrega desenha as
formas do ombro do dorso das pernas
sem mencionar o
intervalo das mãos que caem
leves pela planície da epiderme o
que antecipa a ventania quente de um verão entrando pela janela e alcança o voo breve das cortinas
transparentes
por onde a
claridade atravessa e pousa na
margem da descoberta sobre os
lençóis
ela tem um frasco
de vertigens com aromas do
próprio corpo ele sussurra
palavras como serpentes deslizantes pelas ondulações da cama
o calor que vem do
exterior e abocanha o ambiente se confunde com a melodia da transpiração de
ambos
ela transcreve no
espelho todo um mapa de excitações
ele começa a decifrar-lhe o estojo de abismos
antes que o furtivo
tome conta das fronteiras e o
vazio chegue falando de coisas banais despistando o final da página antes que o depois venha com a
simples atitude de levantar-se e ir embora
a porta entreaberta
como uma boca sem palavras recuperar
as roupas já doloridas jogadas no chão duro
cães latem na vizinhança arruínam o eco dos gemidos
ao tocar-lhe o
corpo ela despista toda a nostalgia de outras noites e faz com que o quarto abrigue apenas
um iluminado ramo de gozos
quando ele a
penetra um enxame de horizontes infesta aquelas paredes
o esvoaçar das
cortinas é como uma caligrafia das delícias
ela desfia o enredo ele apura as tintas ela soletra as carícias ele enternece os pincéis a noite aprende a ler em seus corpos
as sílabas
tangíveis do êxtase
MILACORUM
eu não esqueci o
seu nome mas toda vez que ele me
visita parece ser outro
ao partir deixa
sempre para trás duas ou três sombras
sem que as mesmas se reconheçam lado a lado
herdei ou cultivei já
não cabe diferença uma
multidão delas a cada aparição sua
e com elas venho
tecendo uma morada cujo endereço jamais se conclui
e que me
deixa enroscada nas estacas das palafitas de minhas recordações
a água no pescoço o gosto de lama que me entra pela
boca
é então que me
desfaço de paredes finas telhas
rachadas madeiras fracas
para me ver
construindo logo em seguida a
fortaleza algo que o vento dos enganos não derrube com três sopros de realidade
forro as paredes
com o lume silente das chegadas
com o murmúrio das
paragens nos cantos e no
teto a cassiopeia sorri mostrando os dentes cintilantes é então que me desfaço da
vaidade
dos remansos
desgastados e dos feixes de claridade
e vou buscar outro lugar onde refazer o casulo do meu recomeço
mito ou constelação as águas invadem cada uma das casas
por onde passo procriam a
ferrugem em um ninho de grilhões
iludo o meu outro esquecido nas dobras do tempo
vastidão de
penumbras espelho meu corpo para que me possuas pangeia redimida que volta a
formar-se à nossa volta
ainda não
esquecemos os nomes porém quanto
mais nos repetimos mais nos desconhecemos
avultamos uma
geografia de degredos há muito
não somos mais homem e mulher
há muito não somos
ninguém apenas a miragem de uma placa indicando continuação
e nos encolhemos nas batidas do martelo cravando os
liames das semanas
um anfíbio assustado procurando proteção debaixo de enredos
interrompidos com o eco dos
refrãos soando no alto das torres que se desfazem tão logo tocam o céu
retalhos de asas utensílios
cegos mobília descorada
os nomes permanecem espalhados pelos abismos da casa mascando o salitre da espera
LUNÍSSONO
quando a pusemos
dentro da caixa estava envolta em silêncio e mistério o corpo delicado parecia uma miniatura de como a imagináramos
a pele era como um
rio em sua fluidez constante
porque a levamos
dali é algo que ainda hoje nos inquieta
em seu lugar brotou a hera
escalando as vigas da realidade virtual
agora naquele
canto a luz transborda imagens tortas o dia inteiro mescladas à umidade das salivas
germinadas pelas imutáveis angústias onde definidamente nossos elos se
incendeiam porque somos sempre
uma cadeia de salmos uma
corrente de conflitos
laços perdidos em
nosso íntimo trancafiados os
temores e as coragens quebradiças
sombra cintilante a da morte imprevisível
que paira
provisória distante da planície atordoando-nos o murmúrio da
lua na pupila das montanhas
enquanto um pesado fio de cabelo divide o espaço entre pronomes
como se fôssemos um
brinquedo pequeno quase
imperceptível sutilíssimo na reduzida colheita de desassombros
o mistério ali
permanece guardado como uma joia
lacrado em soberbo sigilo
sem que as tintas o deformem
espelho refletindo
a própria solidão
e o caráter da
ilusão que pusemos do lado de fora da caixa
outro corpo talhado na
delicada madeira do sonho e da memória
o tempo naufragado
no olho do pássaro a escada
repleta de curvas para melhor uso de seus degraus o piano impossível nas dobras do
lençol ela toda ela como um raio que nos levasse de um
tempo a outro
a branca pepita que
ao tocar nos desafia a deixar de ser o que somos
LAMPADARIUM
selva ateada por
todo o corpo sibilante selva com
seu lamento disfarçado de ardis
visões deixadas
para trás como vitrais esquecidos
profetas com seus verbos esculpidos em sombras
para onde vamos com
tantas dores inquietas? quantas
lâmpadas escutamos gemendo enquanto a escuridão se refaz?
teus passos acendem
as pegadas no jardim de cheiros úmidos de pele
a que distância
estás de mim? o candeeiro da madrugada acende o branco da
lua
um chumaço de seda
cai da haste das horas maduras movem-se
as pequenas labaredas no dorso dos cavalos de papel trazem boas mensagens de ti? o fumo esverdeado das
promessas sobe os outubros e alumia o pó da noite
nos estábulos dos
sonhos desembesta o delirante cavalgar da ansiedade
quantas vezes
minhas asas hão de derreter? quantas
vezes ainda terei de ser Ícaro ou a mariposa errante até pousar meu corpo na
terra macia da tua vigília?
a percussão dos
gemidos em nossas vértebras celebra a paisagem que começa a tomar forma
mundo visível do
desejo corpos escrevendo-se no
calor das luzes fábula recostada
em tua silhueta
lâminas que avançam
no preparo das delícias quantas
noites consumidas no despenhadeiro de tuas ancas? quantos estábulos construídos para o
repouso de tua cavalgada?
agita-se a selva
dilatando o enigma das tempestades
juntos tateamos a idade do fogo e a rota da seda impressa em teu ventre
deixemos apagadas
as lamparinas azuis da aurora
que vem cobrar a rapidez do ir-se
deixemos apenas
sussurrando os relâmpagos e as viagens por eles traçadas em nosso olhar
deixemos os ovos
tateando a antiguidade do voo um
povoado de casebres vislumbrados no íntimo das brasas uma orquestra de labirinto
por onde passas com
tuas mãos por onde passo com as
minhas
CASULANIMUS
descortinamos a
sombra avulsa que mastiga o sol faminta
por entre os monturos da tarde surge
nas vértebras do tempo uma nuvem de abismos
estática da agonia
que não se comunica com seus vultos abandonados
feixe de evasivas o pavor diante da pilha de cenários
vazios a cidade regurgitando a
própria memória como último recurso para evitar a asfixia mas o cansaço reveste os corpos de
desamparo e as esculturas
perambulam pelas galerias sem ninguém
no chão o ruído de
madeira reclama as tiras das frestas que atam as cenas germinando lentas diáfanas tendo que relutar
contra o espaço
desabitado dos cenários recolhem o movimento imperceptível dos
sentimentos
nos fios das
travessias emaranhados como um
casulo na curva da clavícula tecemos
nossa ausência com as fibras das garoas finas
caída nas costas do
crepúsculo são corpos que mudam
de lugar cruzam as artérias de um mundo desolado
enlutam os cabides
gastos pela melancolia escrevem
os nomes trocados para confundir a dor
há muito que reúnem
as estações para pequenos tragos na madrugada quando revivem as imagens desfeitas e destacam passagens incongruentes da
narrativa de suas vidas incomuns
sedimentando
desvios nos fósseis da ressonância urbana
as pernas
sonâmbulas dos sonhos no branco do teto deixam marcas longas e frágeis de
nervos de folha desgastada de verão devoram as
cicatrizes rudimentares de umas poucas utopias que rastejam por monturos cartazes aniquilados detritos surpresos orquestração de misérias
fomos descortinando
a pele dos desgastes tateavas um
palimpsesto aqui eu mascava uma
imagem putrefata ali a memória
não alcançava o dia seguinte
perdemos a história
já não sabemos em
que tempo conjugar os verbos
MIRADEIRO
quando a noite
desmaia sobre teu corpo com suas
asas úmidas abrigando uma fonte vigilante de miragens os lençóis se dissolvem como bosques
devorados por esfinges famintas
a gravidade se
liquefaz em murmúrios os ventos
gritam como pernas pintando a paisagem
nossos olhares abocanhando uma instalação de horizontes que se
multiplicam quanto mais são caçados por tua língua
as visões progridem
como seios lambidos pela noite no
ínfimo tremor das pálpebras abertas não nos arrisquemos ao outro lado da
margem
onde o horror
do reverso da seda flutua sobre o campo suspenso dos trancos
e as ondas
esbranquiçadas de fadiga se quebram nas ancas do farol vesgo tu querias me mostrar
a quietude das
tempestades e o lume das distâncias cegas mas também o mar é cheio
de vicissitudes e as
demandas bolinam alhures
na cadência e nos
formatos das espumas noturnas a pele arde exposta sob a duvidança escura no limo das rochas
de onde estamos
podemos mirar a alienação nos anseios calados dentro das bocas afogadas de muito
sal e tempo perdido
rumamos à
direção oposta em busca dos flamejantes tatos
as margens suspiram
ante o bailado de engalfinhadas sombras
a vizinhança do abismo é um truque da linguagem que não quer revelar
seus planos
trafegamos pelo
espinhaço da paisagem que se abre aos nossos passos como a visão de uma estação
sem pausa
beija-me antes que
o lábio assuma outra forma toca-me
antes que o corpo se converta em estátua soletre-me antes que o verbo se ocupe
de outras correntes marítimas
se ocupe do mármore da
mudez talhado nos talantes ressequidos as sépalas da
tua mão sustentam incólumes
a rosa das carícias e os anéis dos lagos aquietados alargam-se
nos dedos da vivência delineamos
o longínquo derradeiro no olho
do intervalo que
medeia entre um e outro pouso da mão aberta no ventre da madrugada
MUSISCINTO
o sol negro
guardado dentro da esquadria de janela nenhuma tire-o dali e é o sol posto gira e a agulha sobre os finos caminhos
circulares
de terra
inexistente a andança da música
percorre crepúsculos e orvalhos de jacintos e um sopro de pretérito fresco
movimenta o ar
no museu das
antigas invenções os objetos se eternizam como tudo que fica preso na teia
transparente do resgatável se
fôssemos esticar e unir todas as faixas dos discos que existiam quantos mundos
envolveríamos?
quantos medos se
afrouxariam? se me
cingires com todas as músicas que amaste qual o tamanho do imago para me sustentar?
quantas presilhas
na pele do encanto? e o braseiro
do imaginário a desafiar a anatomia de teu ventre as luas emocionadas com o pingente
com que disfarças tuas vertigens
a música
que vem da gruta
escavada sem que a noite percebesse
a ventania com sua língua inspiradora
o dínamo que começa
a cantar sem os moinhos das
claves terias que mastigar os vidros quebrados de mensagens nunca lidas
o sinete dos bons
momentos estampa nos refrãos das estações a correnteza das melodias
inesquecíveis que preservaste dentro de teus calçados mais usados as melodias que reservaste para a
hora do avanço sobre o ébano
a luz entrecortada
que se derrama em teu coração pequena
fábula a retocar os lábios de sua moral entrevista silêncio antes que o sol negro se
refaça
ensino o teu lápis
a compor novas frases enquanto soletras em meus seios os vultos que encarnam a
melodia de teus sonhos
escava o teu nome
profundo eu saberei como jamais
esquecê-lo
meu hálito freme os
pelos de orfeu no antebraço das
calmarias dormem as sirenas
guardei as
orquestras dentro do caracol do meu ouvido e as cigarras carregam as guitarras guizalhadas
na trompa de eustáquio
por onde se vá nos
refazemos a cada nova composição que nos colore e camufla
deusa de
escamas deus das migalhas música
imersa em um labirinto de metamorfoses
por onde passamos
as ruas estão repletas de milagres
MANHÃNÇAS
debaixo das unhas
do dia há restos do ontem no
bolso direito da camisa guardo o ruído das maçanetas das portas se abrindo
faz bem ao coração um xale de hamádrias ajuda as flores a se sentirem sagradas e o esconderijo
da cesta cheia de maçãs mordidas pelo pecado encontra-se no fundo de um armário
de madeira maciça na casa de uma desconhecida
ao lado do vidro de
aplausos em conserva trazidos de
uma antiga peça teatral foi
abri-lo e um corpo de baile invadir a sala derramando-se pelas prateleiras cada um dos corpos como que saídos de
uma árvore
um bosque sendo
montado a partir de seus fragmentos
membros saltitantes silhuetas
encorpadas a perfeição austera
dos sexos
o meu desejo
contagiado pelos murmúrios que dialogavam entre si
abismados com a
realidade repentina diante dos olhos ainda se entregando à dramaturgia das
mudanças
no chão as peles
descascadas são as farsas caídas que se refazem a cada papel ensaiado e nas letras dos títulos o ingresso à
verossimilhança libélulas
brilhantes sobrevoando os cabelos fartos do enredo
como as manhãs
dípteras que rondam a fruteira e os insetos coloridos dançantes debaixo das
axilas das dafnes um coro de
ninfas esvoaçando os ramos de teu mistério o capinzal guarda uma tigela de
incontáveis vertentes
renomeio os
temperos para que o milagre não se perca enquanto vestes uma nudez que soletra
todos os voos eu me aproximo
sorrateiro de sombras que são túnicas de um espanto que se renova a cada
movimento de tuas ancas
FULVORECER
lá onde as almas
das folhas caídas nos olhos abertos do outono se juntam e se transformam
no murmúrio fulvo
que as tardes de sol espalham com o vento macio
na memória o tempo
fragiliza demais a tua imagem quebradiça fina transparente
tenho medo de me
lembrar e espatifar não como
terra não como pedra não como chama
como te escreve o
relógio de areia traçando os
rastros da velocidade dos grãos amadurecidos
lá onde a selva
líquida floresce no interior de seus ramos ressequidos e se prepara
para as perguntas
flamejantes da fábula que começo a intuir
na memória o espaço
se retempera com ângulos insuspeitos e um oratório de vertigens
anuncia o caminho
no labirinto que deixaste desenhado em meu olhar
escrevo teu nome em
meu caderno de rasuras uma sílaba em cada página
ouro de espelhos teatro de vísceras chave vulcânica tudo a teus pés como um colégio misterioso
e a premonição de
tuas vozes
lá onde as nozes se
quebram e os pensamentos se soltam das hastes a pele ferrugem dos espinhos
enrola-se
com a chegada da
noite sem íris onde as promessas
se esmaecem
sob o poder da
despedida que nasce em cada coisa nova
não como pássaro não
como névoa não como ruína de papilhos
como te ameaça o
grito das horas os ponteiros
circulando os anéis dos algarismos
o pretérito ruminando
alvorecer e
vestígios até a gosma de um
filete de trilha brilhar no girar da fechadura
abrindo outras
respostas outros soslaios outros vislumbres
silêncio que
estamos aprendendo a ser
e o tempo não sabe
o que fazer com nosso segredo quando a madeira estala no meio da palavra
HABITALMA
a minha casa começa
dentro de teu ser quando a tua
ausência de tudo anota uns versos e são como um pomar de desejos a maçã repleta de mitos o bosque de ouro
com a sombra gasta
dos inimigos o reino que ainda
não se formou
eu tenho o teu nome
rascunhado em minha alma e sei não
serás outra até que te deites sob meu corpo até que o calendário lunar decifre a
ondulação de teu mistério
enquanto isso me
movo no meio do cardume de solidão
no sussurro dolente da cidade que me recria na quina das novas
tentativas
nos andares
frenéticos da busca inchada das fauces oscilam as falsas propagandas da
felicidade mastigo a carne dura
da espera
somo as cascas
queimadas da monotonia pita de
cigarros pisoteados nas esquinas
consumido sôfrego o
fumo e te aguardo no umbral do
gineceu nos carpelos dos lírios rosas da minha clara ânsia escavo tuas roupas à procura de um
sinal
um truque do
instinto acervo secreto de
miragens
a minha casa começa
no quarto escuro de tua ausência
a palavra a
repetir-se até que surjas em meio ao nada mantra lascivo que esculpe tua nudez
em minerais inesperados
o que ouvimos ao
longe é o salto de um sítio a outro
deslocamento de vertigens
a tua imagem
projetada em diversos precipícios como uma engrenagem de sílabas traquinas
por onde passas
espelhos refazem o cenário ardente do vidro teus lábios nunca estão
onde os procuro não há espaço em branco na parede
viva da minha letra de onde ecoa
incessante o grito do meu caminhar
da aventura para estar próxima de
ti
sigo colecionando
as farpas das estações enfiadas na minha
pele
a caligrafia do
absurdo percorre o dorso do amanhã
entregando-me as páginas sem as tuas queixas com a indiferença das marcas
tranquilas do caracol
a minha casa começa
no âmago da saudade para
terminar na ponta dos meus pelos
no limite do meu corpo lasso estendido nos teus rastros indeléveis dentro de mim
bem ali onde o
tempo aprimora suas agulhas beijo
tua geografia visionária
ANIMARES
eu beijo a febre da
noite e teu nome resplende ali escrito
há tempos não o vejo como agora
detalho suas cores
na paleta da memória já tivemos
de tudo na pele da ilusão
o mundo jamais
evitou refazer-se em nosso abraço
orgasmo florido ambição
estradeira uma curiosa refeição
de abismos
saímos juntos a
tomar aulas de metamorfose tu
somos eu
e somos o berro das
águas caindo das montanhas o
suor da manhã nas matas despertas a cascata de fogo na
pele da memória
ruminamos o tempo
dentro do útero dos tijolos no
pasto das nuvens vagamos em busca de escadas suculentas mascamos trilhas gordas
na boca do geodo
germina a saliva dos cristais e
no quarto o elísio passa a língua seca na crina do assoalho encharcado de
guias
somos a cuia e a
enchente do desejo os perfis que se acumulam como um
bosque decidido a nos proteger das dores irreparáveis
relva cósmica ânforas da alegria livros anímicos em que o amor pode
ser relido
eu beijo os teus
pés em pleno voo e as sombras aladas se multiplicam até que a vastidão ecoe o
que viemos saber
tão encravado em
nossos papéis avulsos desgarrado
das soleiras preso na fita
de mel
palavras feito
moscas no verão de ventilador
ligado babando vento nas hélices
nos papéis
espalhados acrescidos das viagens oníricas do fogo do barco da corda
do rastro de
desejos adocicados dos laivos das chuvas nas veias dos
muros no fofo do lodo no meio das páginas a
lúcula luzida transpiração
granulada das matizes dos cacos
guardada no frasco
de elixir derramamos brechas e
frestas no corpo do existir na
plumagem furta-cor com que os tremores que sentimos se refazem no labirinto anotado nas ranhuras da
pele
eu beijo o
santuário de vultos e sua saliva vulcânica a pedra que transpira e levita a tua casa suspensa repleta de sons
que brotam de um baile agitado de espelhos
o teu nome começa
então a pressentir-se a qualquer
momento um de nós o dirá
MASCARALVO
a noite e o
problema confinado jogo de
despistar o solitário
noite de sexo sem a
coroa de estrelas não te
conhecem as cigarras o bafo
quente das sombras macias
somente as silhuetas dirimidas no breu dissolvidas as cores do dia na saliva da boca
para dizer que tudo
se esvai mas permanece este
delírio
arrancar a ilusão
do duro das paredes
buscar as amarras o equilíbrio das gotas de chuva no
limiar do arame na ponta dos
espinhos
minto carnavais e
feriados noite de sexo sem a
purpurina vermelha sem a pérola
branca
o estranho gosto do amor na boca amanhecida com atraso
lençóis rachados
como os lábios do deserto de teu olhar
contrariar a roupa ao vesti-la
gemidos entranhados entre a meia e o sapato não te vás não me sigas
o sol se retrai
indeciso sobre o disfarce que usará
a janela se
espreguiça com um gato decalcado em suas vértebras
o mundo não vai a
parte alguma nem sei ao certo
quem és
rumino as penumbras
dos gestos e algo quebra a casca fina da manhã gelada onde as primeiras luzes surgem indiferentes inventam o cotidiano no gargalo dos
recintos
imperturbável na
hora do despertar
nascem os
corredores de reflexos matizes
promissoras e lembranças viajantes que vagueiam no vasto do dia que vem sem ti
e precisamente onde
não estás recupero o que houve de melhor entre nós
e o faço entornando
a jarra de felicidade com que sei que nada voltará a se dar
AVELUME
seiva adentro o teu
corpo desmatava a vertigem uma
chuva de móbiles como lágrimas suspensas
tu me apontavas as
sacadas azuis onde víamos estranhos animais
nossos corpos nus
refletiam o cenário como um jogo de cristais embaralhando tempo e espaço
neste momento eu me
gabava de possuir todas as jornadas das luzes as revoluções das palavras na minha
boca
as reviravoltas das
cores no olhar das paisagens pacíficas
julgava a descoberta do negro e do branco em tudo o que eu via
e regulava a
intensidade do destino sonhava
com os fios das horas caindo sobre os ombros do futuro
as pinturas naïf da
infância apareciam expostas no meio das minhas relíquias e os acidentes do
silêncio não envolviam minhas mãos
a liberdade tinha
cheiro de terra e bronze e impregnava as minhas narinas como as de um cavalo
noturno
como a garoa
temperando a madrugada antes que o dia reconhecesse sua marcha imperativa
um sorriso afoito
golpeava tua respiração tecia
uma oração de sigilos no bosque de teu ventre
relicário de uma
fauna inimaginável a céu aberto sem que ainda soubéssemos o paradeiro
de nossas inquietudes
livres no interior
dos ninhos nos espaços em branco
da grafia nas distorções dos
corpos como imagens de kertész
dispostas em algum
momento da nossa desfiguração desenrolamos
quintais feito a língua das janelas de boca aberta
escapamos sem
querer das patas do onírico de
repente como o derreter da cera na saliva da vela
de repente sobre a
noite emborcas o teu corpo repleto de pequenas astúcias sem saber por onde nasce a escrita
afoita de sua pele eu te celebro
não importa em que parte de mim estejas
qual seja o voo que tomas a caminho de mitla
pequena luz do
mundo que se espatifa rindo contra tempo e espaço permaneces como uma pincelada única
na tez da eternidade nos lábios
do horizonte
na têmpera abismada
de meu olhar
II –
BUIAGU
ITAQUATIARAS
as pedras ruminam
em meio ao desgaste de suas peles
as contas furtivas
engolidas pelos bueiros sussurram uma solidão ácida o bairro mal respira quando a noite
se aproxima a ferrugem
do silêncio masca
os passos apressados de alguns personagens
deixados em
indevida cena o desconhecido
fareja os tornozelos
e a correria
germina tropeços é preciso criar os
braços
que se esticam e
abraçam proteger o lume é preciso se deixar
envolver pelos
fiapos de alívio no ninho de algodão
e guardar a moeda
encontrada na calçada são
máscaras escuras
os rostos que
passam também os que te miram com
ínvios olhos
de corrente são
olhos grudados na fuligem que emana dos bueiros
e testemunham a
névoa encardida em seu declínio contaminado pela
aspereza dos passos sem que ninguém se reconheça no
próprio
destino as poucas luzes indecisas recriminam
em silêncio o que
ainda é possível a
visão reter as luzes carregam a
escuridão
nas bordas dos
brilhos distante o ruído abafado
das asas
os corvos
recolhidos guardando segredos da placa arrancada
na esquina inevitável deparar em algum momento
com as ciladas das
curvas em algum momento no meio
da inocência das
mariposas ao redor das lâmpadas
a quietude forjada
pendurada nas janelas e portas do
outro lado
da rua tu mesmo
desenhando o grafitti dos teus erros
ocultos
nas linhas das mãos na quiromancia da noite
quando o reverso da
passagem é o letreiro luminoso piscando
o mau contato o imperfeito contato tremeluzindo as
falhas
os acertos as falhas os acertos as falhas os
acertos
inúmeras vezes
até que desabes
para dentro de tua noite insondável
YAMÍ-AITI
sobre a mesa
pedaços de viagem no reverso da paisagem as veias
que pulsam uma
ligeira impressão tatuada de selos
trazem notícias
reduzidas e a caligrafia
abreviada no espaço
limitado o úmero
envernizado de um javali a
miniatura de um
didgeridoo um colar de sementes gastas pelas
ardilezas da fé
partituras do acaso
trazidas para casa empoeiradas
nas prateleiras
mais altas do
esquecimento poemas que recusam
o culto
da escritura estão ali a mesa terá que narrar outra vertigem
e buscam as
distâncias para ingeri-las nas palavras
presas
no
quadrado nas fronteiras do exótico trazem a cara
dos
monumentos as estampas
arquitetônicas da História
a
iconografia de um momento a
rapidez da mensagem enviando lembranças fugazes pétalas extraviadas do mistério
a mesa embaralha as
estações em um concerto singular
dos tambores luzes atracadas em uma floresta de
assobios
anagramas capazes
de dar outra forma ao mundo
escolho o teu nome
e nele abrigo a minha alma emancipada
abrigo
as rolhas dos
vinhos antigos exalando o aroma rubro estes
pedaços de dentes
de oliveiras também tão antigas
como os meus
desejos nas crostas
das rochas não seguiste os
sinais criaste
as alamedas de
redes carregadas de vestígios e tralhas
abandonaste as
iniciais há dias em que o sol
arranha as telhas
e
as nuvens não cospem sombra tive que me
desfazer
dos
originais me obrigar a nascer da
testa do sereno
para te rever no
estilete da longínqua aventura enterrando
os
percursos nos poros abertos da terra
lacrando a perspectiva
de
regresso a cada sítio toda uma
coleção de labirintos manuscritos
se contorcendo no fogo rotas
dissipadas
agora terás que
desenhar um outro selo antes que
a pedra
se gaste e a noite desconheça seu ninho
ATAIRU
o peso caído do
alto da estante em forma de
grifo de pedra veio
quase voando ao passar pelas prateleiras ia
identificando
a
zoologia da casa a salamandra com
olhos de fogo cuja metade
do
corpo era ainda a semente de uma árvore panamenha
as
minúsculas tartarugas de osso movendo a
cabeça
como
que atraídas pela queda do
morcego inerte carregando
o
escuro da noite estática na ponta dos dentes descubro que
trago a descoberta do novo mundo dentro de mim mesmo como dentro da
resina fóssil e desta sala prenha de tranqueiras descubro as espécies diferentes nas
várias máscaras da minha face
as palavras
trazidas de longe embalsamadas no interior de um diário
ao lado do
geconídeo peruano sobre a mesa com
as patas
abertas como se agarrar na liberdade fosse
uma oferta simples
das
circunstâncias são muitos os vestígios
que se extraem do fundo
das
redes tecidas pelas nossas mãos de manhãs e folhas
de cinzas emaranhados de fios de seda e arames
colmeias invisíveis
cuja trilha sonora era a única prova de sua
existência um mar de anêmonas de cristal totens esculpidos
em bagaços de coco horas ali lendo um mundo novo tangido
pela própria
queda capivaras de barro lhamas de
cobre
serpentes de palhas
de bananeira o verbo vem comer
na mão
do mistério mascar as fronteiras do papel seguir expedições
nas linhas sinuosas
do âmbar na manifestação de
frases
pulverizadas o sol vem preparar a pele da
vegetação recém
descoberta o olho amanhecendo em cada figura
metamorfoseada
pela vertigem os nomes vão se espreguiçando como um
murmúrio
de cores e
sons entrelaçados a viagem vai
ficando mais íntima
de si mesma
AMOPIRA
a praça era um
ponto no meio da frase mas
continuava no centro
da cidade digitada
pelo frenético nesta manhã os
pães na padaria
tinham cheiro
fresco de sonhos esquecidos quantos
foram
engolidos pelo
negro da barba de cronos? passantes falam ao
celular
com pessoas invisíveis a canção will it make it easier on you
now? you got someone to blame you say one love
one life it's one need in the night one love o estranho vulto não
para de dublar a
voz que germina do fone de ouvido
a claridade
tem som de freios
de automóveis gralhas de
buzinas
tudo cheira mal a fumaça escura dos peidos dos ônibus
e
parece a toda hora mudar de lugar
quem segura o menino
nas
mãos? a boneca suja descabelada
sem braços
e alguém se perde
nos ruídos mecânicos da manhã
deixo a mim mesmo
sem reconhecer quem me habita
a frase era
um porto no meio do
abismo cena dilatada pelo desejo
de não estar
ali uma vida
batendo na porta um coração
desfeito em chamadas
anônimas sem
retorno um vespeiro de dores comuns
arrebentando
cada minuto como o
ranger do assoalho em uma velha casa
abandonada na
esquina inconfundível da praça
mas é surpreendente
como no meio da parafernália nascem minhas
correntes de carne
e sangue veias e artérias que me atam
ao presente ao órgão que pulsa se revira o feto dentro
do útero expulsa o sorriso metálico dos dias na boca
das janelas dos
carros no congestionamento sou
eu que vivo
ou sou eu o vivido
pela cidade que respira pelos meus pulmões
acinzentados? não são os meus olhos
que descosturam os
fios elétricos no meio dos pedaços de céu
entre edifícios cactáceas sou apenas um latino-americano
se equilibrando nas
quatro patas do carnaval querendo
ser
acolhido pelo mundo
sem a rebelião da larva no casulo
a espuma
multiplicada em
falências do desejo o fetiche
declinando
suas últimas visões os vislumbres do desgaste entortando
mais do que simples
canos e placas metálicas nas galerias de arte
a cidade está por
um fio e todos se amontoam em filas de ilusão
no coração da praça
todos somos latino-americanos confiscados
pela balbúrdia a célula aguda da solidão os nós cegos
nos cadarços da
culpa a fé convertida em uma
orgia de pin-ups
metrópoles com
caras de multidão milhões de caras misturadas
montadas no pescoço
da pressa dentro dos táxis
cortando
caminhos
encarecidos os números rolam rolam rolam rolam rolam
rolam rolam estaciono na rebaixada do crepúsculo
fosco baço
sujo surdo não sou o bico de um ponteiro perdido na
porta
giratória (ou sou) na entrada de um prédio onde o ar
condicionado
refresca os meus infernos as
marcas secas de suores e cobiças na camisa mapeiam continentes vestidos de
modernidade
e
competência confusas a multidão
de códigos que não se alteram diante de nada exceto quando a conveniência pousa
em
seus ombros a tez corroída pelo vazio
as prateleiras
da
angústia repletas de drágeas vencidas
velhos pecados pichados em paredes aflitas próximo à floricultura eu pareço ser o único atento a
toda essa aceleração contínua do estático
eu com meus
olhos perfurados pela paisagem cinza
eu quente
como o enigma que
guardo no bolso do casaco pétalas de pó
cores lassas me desfiguram me desfiguro retalhado por meus
anseios temendo jamais poder sair daqui e te
ofertar a solidão despojada de seus conflitos
KABARU
no céu da
segunda-feira por entre as nuvens grafite
uma cara de cavalo
cinza surgia as longas crinas ao
vento
arrastava fiapos de
azul escuro não sei de onde
vinha o ruído
das ferraduras se das patas
invisíveis ou se das
horas no limiar
da soleira marcando os deveres ou se do cheiro
ferruginoso e duro
do trânsito da
claridade se fortalecendo
um
alucinado tropel
de fantasmas
desfigurava a paisagem encalhada na memória
penumbra refeita ao
toque de cascos bordas carcomidas
não sei de onde vinha
o cheiro de feno beliscando minhas narinas
a tempestade de
areia devorando os rastros tão faminta quanto
a minha busca de
respostas
cavalgando
as primeiras horas quando
a semana aparece
como um pasto
cheio
de buracos e protuberâncias
mesmo quando lá no
adiante o capim é verde
e parece que é
possível viver de lineamentos pular as cercas
das querelas encontrar o
descampado nas dobras das mentiras
os dados de açúcar
caídos dentro do copo de
café com leite
são isentos de
números significa
não haver as marcas nem da sorte nem do azar no movimento da sina e da sela mas requer
firmeza
o manejo das rédeas das feras que atravessam as
colorações
os pontos de luz
dispostos no espinhaço do horizonte como
o violino sem
trastes o deserto sem bússola eu tenho que vagar
à procura de um
espanto quando surgem tuas vozes eu rezo para
que sejas tu mesma
e não um unicórnio banhado de sangue
no céu um
inventário de vislumbres na
terra a respiração ofegante
do milagre a gama de
confusão escolhida pelos deuses que preferem
as
flutuações
dentro da bola de vidro dormem as esquinas violetas
e
os dentes brancos do papel vazio porque o trote soa na
aorta das
pedras no talo oco da flauta de pã e nas minhas patas de fogo
passeando
sobre a morte serena de sombras queimadas e nos meus
vultos
repetidos na história e no vácuo
repentino de uma
cavalgada
fugaz até o magma do enredo perdido em batalha entre
arvoredos
evocando uma lua imaginária a
prata do rio segue seu
curso
ulterior com sua mística
resfolegando
excitando
a nuca do abismo a pedra confusa
que ainda crê
no
passado a segunda-feira se repete no trote como um esgar
ARAÍBA
a
noite não chega enquanto as barcas não alçarem
as
velas negras e
deixarem o cais ainda que estalem
os
telhados ocres e
ardam as silhuetas das montanhas
ou
dos prédios em alguma cidade distante ou a tua própria
crepite na ponta do píer no ciano do lago mapourika não
importa
ela
não chega antes que as gaivotas ondulem com o azul
avermelhado
do céu
ou que o estalejar distraído da tarde se disfarce
em
olhares anônimos mascando as réstias de um erotismo sepulto
há
tempos
não importa a noite vai queimar ali
no templo em
ruínas
de seu próprio mito a noite não chega enquanto os pedaços
de
imagem navegarem na cara da tarde esperando as
lâmpadas
ferozes
abocanharem os recintos e calçadas um ranço de claridade
lançando
estilhaços de cores e contrastes nos olhos do vento ainda
que
os ruídos despertem as marcas sonolentas dos dentes-de-leão
ou
que os rosmarinus regressem
carregados de diminutos embrulhos
rosados não ela não chega antes que os beijos se
refaçam
em açúcar mascavo na boca dos furacões e um trevo
de
luzes subterrâneas que são a pintura de teus sonhos venha
me
dizer que não é impossível
morrer negar-se ou odiar
a
própria sombra no cristalino da noite que não virá a música
é
a possessão da alma eu não me disfarço de tuas dores tu não
és
o rodopio de meus dilemas
EÇARAIA
uma grande ilusão
sobre o corpo acidentado da cidade
como
um desastre
inacabado ou a contagem
interrompida de corpos
não codificados
havia um pedaço de mar aqui convertido em poça
agônica de óleo um
caule ressequido acompanhando a devastação
uma rocha vulcânica
flutuando por sobre os restos de miragens
e utopias pássaros
enegrecidos e pesados banhados de pântano
em plena superfície
salgada espumas que se dirimiram e em seu
lugar as marcas
amorfas da morte escura as gotas de
submundo
emergem no
recôncavo da pele marítima e
hades dá o seu arroto
repleto de nácar e
gorduroso há momentos em que a vida
sugere
não
caber em parte alguma estrebucha
como um corpo respingado de ácido
um cérebro liquefeito vidência
encarnada do abismo
a assinatura
corrosiva do desprezo pela própria existência
a humanidade acuada
relendo a trajetória de sua agonia
quem fere o fundo
da terra? quem extrai as entranhas escuras?
quem constrói a
sobrevivência em cima de espumas?
as ondas
tossem o catarro
negro e pegajoso na areia e cabe
ao tempo
a tarefa da
transformação da permanente recriação das ostras
mineração
inesgotável de toda matéria decomposta
ao homem cabe
reinterpretar a desordem encontrar
seu duplo
estancar o desgaste
da própria alma o ar ainda corroído
pela alta
pressão da ruína
oceânica em meio ao vozerio aterrador que cobre
a cidade como o
banho ácido de seus códigos desencontrados
selva ilícita
devorando as últimas reservas de horizonte
tão escura como as
lágrimas subterrâneas das pedras
a flor
de enxofre o idioma secreto do óleo o acaso desencontrado
as reservas do
mundo gaguejando antes do fim por
aqui
recomeçamos sempre esquecidos os acidentes da grande
ilusão
YBYTÃTÃ
o verbo troçando
com o abismo os anjos surdos
espirram como os
demais o juízo final não atingiu os espelhos os amigos por mais
prestimosos um dia
se ausentam as dores remuneradas
tornam
a alegoria
inconfundível as máximas põe a paisagem intrigada
consigo mesma são como o sexto dedo da mão ou a guitarra
reduzida a cinco
cordas e rumina-se a morte
diária da luz na parede mas por um
acaso não é uma zona de vertigem o declínio das pálpebras denunciadas no
cansaço morno movimentando a tarde
e a constante recusa crespa da lentidão estes passos laterais do
azul adocicado no focinho dos lobos e dos minutos
momento de resgatar
as sâmaras caídas na trilha do ir-e-vir
sentar ao lado da
guardiã dos frutos secos no banco da correnteza
e olhar as tranças
das circunstâncias se soltar ou se atar
enganchar-
se nos cabelos do
presente a astúcia do horizonte
convocando
bordadeiras que
cantam enquanto trançam crepúsculos
e alheio a cada um
de nós progride o caudal dos mistérios
as senhas se
amontoam inúteis à porta do anfiteatro
despregadas
partes do corpo de
baile há muito não reconhecem o sol
as máximas empoçam
de sangue os sapatos esquecidos à entrada
um balbucio de
vísceras parece recordar as dores lancinantes
de um passado
mascado pelo vazio eu me perdi na
miscelânea
das miçangas e teço
a passadeira com o fio de Ariadne
enquanto as escadas
continuam subindo e descendo sem chegar
a lugar algum e as
portas caladas não mais babam a fresta de luz
no corredor
distraído apenas a pele exposta
alimenta os fatos
com
a arbitrariedade de sua entrega a cada cena
AMANAJÉ
tudo isto aconteceu
há muitos anos quando ainda
vivias
dentro de mim sem
que eu soubesse quantos um dia chegarias a ser
as tuas primeiras
formas eram tão diferentes que eu não saberia
como povoá-las eu simplesmente deixei que fosses
mudando e mudando até um ponto
em que não restasse
mais nada teu no jorro de cada expressão
e o silêncio
hircípede farejasse as fissuras das letras
a inflorescência
dos cactos o silêncio
caçando as mínimas
histórias germinadas dos olhares
e gestos agrestes
espalhados junco modesto no
campo do silabário
tu te refaz como a
calda da lagartixa as cabeças de
hidra
do nada cresce de
novo os dizeres móveis nas dunas
e nas porções no
meio do prato onde te alimentas
dos erros
que não pudeste
cometer oh pedra errante dos
sentidos
oh pavio
intumescido do abismo quimera
repleta
de acidentes
indecifráveis tudo isso
proliferou
como a relíquia
deformada de um mundo impossível
que fomos
arrancando de nós como tumores
e livres dos
buracos colhemos as luzes com as nossas mãos
e simplesmente
fomos dali sem mais nada a dizer
KWATIJAR
porque as armaduras
dos guerreiros chineses da dinastia tang
eram feitas de
papel em branco e voavam com os antônimos
da paz as cabeças decapitadas atravessavam o
rio a cavalo
os fios de cabelo
desgarrados voavam à montanha para falar
das mínimas coisas
que entrecortavam as trevas
e despejava-se em
cascata de mil pés montanha abaixo
confúcio deixava
cair o imaginário peso de madeira sobre suas anotações
porque os símbolos
se espatifavam ao crepúsculo a
memória
era uma louçaria
silenciosamente arruinada a
mudez crepitante
de um cenário de
sombras empaladas porque as
trevas
quando querem sabem
melhor do que nada guardar segredos
as escadarias de
jade se refazem cobertas da quebradiça geada
os corajosos
guerreiros – leves como flocos de neve – atravessavam
as aleias onde a
lua se derramava e li bai bebia sozinho
com sua sombra que
em vão o acompanhava as fibras
de cânhamo
diziam mais do que
apenas palavras bravias
defendiam o sono mais
profundo sobre a
almofada de seda enquanto as batalhas sangravam
confúcio
delicadamente insistia na lição dos bambus exausto
deslizava seus
dedos sobre o papiro cego o
arroz desabitado
a esperança
recolhendo as almas subjugadas a noite perdendo sua cor
porque a guerra
desconhece as próprias feridas sem
elas
jamais saberemos
quem somos qual a força do papel
dobrado?
o peso é mais leve
do que o coração sem dor e tão forte
como o veludo nas
cabeças das borboletas
porque a arma é a
palavra que ataca ou trégua ou faz descansar
as flores de
pessegueiro na mão aberta da terra
a quem confúcio
transcreveu os códigos de sua iluminação
onde a chuva
desmancha a força desfaz o papel
na lama
no barro que modula
o homem novamente destemido
como o inexpugnável
gafanhoto cantando no limiar do corrimão dourado
onde o poço se
limita e limita as estalagens da
luz as vértebras
de um enigma que se
estende por toda a paisagem
as escadas
imperativas da memória que nos levam de um ponto a outro
de tantas vidas que
enlaçamos às nossas como cipós
trepadeiras
e ramos
fluviais de uma floresta descarnada pela guerra
ARAIBA
a sombra liquefeita
da noite percorre meu corpo decifro
os sabores
que encontro em
cada relâmpago da memória as
pétalas ainda
sangrentas
guardando sigilo de gritos e horrores
eu beijo
os metais com que
te esquartejo a semente repleta
da alusões por
muito tempo cultivei o desespero sob minhas
córneas
recolhi as mentiras mofadas nas orações úmidas
e o zinabre da
chaleira de ontem andei trêmulo
como uma criança no
incêndio da tarde teu suplício
não amansou
a fera que se
entrega ao último ato humano apaguei
todos os vestígios
de Deus com a química ácida de minha
baba
cada pedaço de ti é
um pedaço de mim a medula que me
segurava
aberto o tórax de
onde arranco o miolo do pão mole
o coração da
minha morte tão
viva como o vermelho quente que jorra das rosas
e da veia dos
jambos no sinistro da noite o
teu sexo florido
como um abismo que
ressuscita revirar-te é como
reconhecer-me
a cada nova letra lábios expostos baile de rótulas
pavio de vísceras
desfiguro a minha
própria sombra evadida do espelho
e me excitam os
gritos de tua figura retalhada o
milagre da pele
quem sabe amanhã
quantos truques a tua vida rompida me ensinará
mas a vida não faz
sentido assim como os poemas que rondam por aí
o amor não faz
sentido assim como à fonte a sede não faz sentido
no quarto as tuas
partes espalhadas são as ilhas onde ancorei
e agora
naufrago ninguém me falou da cegueira
de dáfnis
das ciladas das
vaporosas efígies tomo emprestado do
crepúsculo
o brilho do teu
sangue que acaricia minhas mãos assassinas
entre elas a tua
cabeça livre com o peso das tempestades endógenas
e pensamentos
inacessíveis mergulho no
precipício mais absurdo
do delírio e ouço o
mover branco das nuvens ouço
como
se contorce o
caminho sussurra a seiva
petrificada ao esfarelar-se
atrevem-se a cantar
os bagaços de teus seios e ancas
em quantas eu te
fiz e ainda és única de que me
servem agora
tantas
hóstias? dentro da mala um corpo
preparado para a viagem
dos assombros que
florescem na face abaxial da existência
ajuntamento de
esporos funestos na pele do distúrbio
o devaneio
é apenas o avesso
da seda te morro realmente te morro
para não sentir
mais as ferroadas dos marimbondos
o veneno nas pontas
finas das flechas penetrando lentas a carne
macia das luzes por
debaixo da pele das redes nas varandas
na entrada do
prédio somente um olho eletrônico enxerga o fosso
do meu âmago e a
confissão das minhas jugulares
denunciadas por uma
lâmpada acesa ridícula na entrada do prédio
onde ainda pela
manhã esperei o acalanto das ondas
e as amoras frescas te morro realmente te morro
a cada vez que sais
de mim e aterrisso no pesadelo de tua ausência
e a memória respira
com dificuldade e rascunho com o
carvão
de tuas clavículas
a alma com que te imagino possuindo meu torpor
apaziguando meu
tormento para sempre
KAMAIURÁ
o corte no lábio de
onamastus de onde escorre o filete de mel vermelho
de um jabe no
amargo amassado das direções
a bala doce na boca
da criança vai pra lá e pra cá dentro da bochecha
os olhos negros do
sonho veem as mãos dentro das luvas gordas
dois marolos na
árvore que luta contra o vento
desferindo em
movimento curvo do punho o toque bruto das imagens oponentes
ou dos músculos da
limalha na linha de força no
campo das fraquezas cruzadas
a dor esquivando o
intervalo mais curto entre dois ganchos
a dor soletrando
o acaso desferido
de baixo para cima a dor
antevendo o equilíbrio desfigurado
a sombra não baixa
a guarda o reflexo do adversário
é um espelho embaçado
o corpo flexionado
como uma árvore vergando a paisagem
indago
a um invisível
árbitro quais serão as minhas chances
o adversário me
quer desmatado esticado no chão
sem o fogo nas narinas
sem as patas do leão
a dança curta de
pulos e desvios e combate que às vezes termina em abraço
os murros das ondas
no nariz molhado dos rochedos vencem pela insistência
pelo cansaço e os socos do tempo desatinam o
calendário ou
simplesmente dobram
a cor inexpugnável dos metais
o tempo que por
vezes parece chegar com atraso beliscando a carne
saturada de golpes o castelo embaralhado
lambendo as
cicatrizes do despenhadeiro durante a queda
meus olhos como as
luas invisíveis de um planeta vermelho
as visões
desconjuntadas
perdendo a noção de esquivas e ataques
procuro
a mim mesmo entre
elas levantar-se e vencer os
golpes
levantar-se e
juntá-los nas fibras da musculatura estriada
nos fios que as moiras tecem e
fiam e cortam e formam
derrotas e vitórias uma rajada
de gritos e assovios julga
o inesperado a parábola não cessa para o derrotado a luta
não acaba nunca
YVATEKATY
os pés não me levam
ao pátio do colégio e o vento
não me empurra
violento contra a parede da igreja
eu te vi passar por
mim e não falei das longas caminhadas
à margem do ciano
leitoso dos campos suspensos
das corridas nas
auréolas das ruas depois que as
máquinas passaram
aspirando as
sarjetas sufocadas o espírito
carcomido
um pequeno empório
de almas destronadas que fui somando
na medida em que os
segredos da existência iam mudando de gaveta
meus olhos sentiam
um cheiro de morte anagramas
esfacelados
pedras eram perdas
no litígio das ansiedades
do mais ínfimo degrau brota o obstáculo para as rodas
as mãos giram o meu avançar sentado na
cadeira minha mente
são os meus passos e corro na envergadura dos
pensamentos
eu te vi passar por mim apressado e não cumprimentei
os reflexos nas vitrines tantas pernas se movimentam
digerindo as calçadas e a minha visão um pântano
mastigando a engrenagem as sílabas gastas de planos
que um dia sonhei teus passos minando da ausência dos
meus
sem que percebas o quanto nossas vidas se confundem
como reflexos de horas silenciosas um pote de vislumbres
tantas montanhas
colecionei areias percorri ciladas pulei
desembaracei
músicas agora minhas asas são
duas rodas
e minhas pernas
sustentam as raízes da imaginação
da correria que a
mente cria nas articulações do movimento
das pegadas sobre a
água as nuvens sobre a fina pele da geada
a brasa do orvalho em tudo selo meus pés redondos
e outros infinitos
alcanço em tudo permanece acesa
a certeza
de que a vida baila
nos céus não importa que chegues
primeiro
ou que já tenhas
ido enquanto eu ainda soletro as trilhas
que deixas como um
enigma aqui estarei o tempo recurvado
aprendendo a ser
outro a cada pausa de sua respiração
III –
LENDARQUIVESTANTE
DEZ
Deve-se
olhar para os entulhos da catástrofe com o pensamento voltado para as formas
belas que eles podem assumir na reconstrução.
ANÍBAL MACHADO
não importa onde tenha sido colocada a
porta uma vez aberta ela dará
sempre em outra parte o vento
batendo à entrada ou a chuva guardada em seu íntimo indícios da letra devorando a si
própria criando a partir do
vazio que acrescenta a seu nome e apaga as manchas secas das demoras as portas se esticam na busca
incessante da fuga e da prisão esse
dualismo armazenado nos ossos da madeira
as portas se alastram como
as grossas raízes das sombras que guardam todas as cores dentro do estômago a destruição é a outra forma de
construção a mais bruta e
irremediável onde até mesmo a
polpa branca e macia da maçã anoitece
o escuro da noite embranquece e emudece o silêncio das grandes avenidas
com os ruídos das sirenes na emergência de salvar a respiração das aldravas o que foi possível salvar jamais
evitou o pesadelo da perda a
tragédia não toma banho ou se prepara para dormir pode vir em silêncio sem que ninguém
a perceba e mesmo ao ir embora não deixa recordação alguma de seus detalhes por vezes não há nem mesmo o que
esquecer os escombros germinam o
coração da sola dos pés nus alguma
coisa sai da garganta e ilumina as ferramentas grávidas esperando a edificação
do que está em pé quem é que
habita debaixo da lâmpada queimada?
quem é que procura o fogo para vingar as cinzas e o carvão abandonados
no olhar do vento? o cimento do
pátio está ainda quente e o grasnar dos corvos assusta os filhotes de quintal
com intervalos de horta aromática crescendo ervas-cidreiras todos lutam por evitar o infortúnio e
não se encontram jamais por
vezes as dores nem sabem ao certo onde doer ninguém protege o outro do que está
por vir a destruição coleta seus
corpos como uma sucção implacável e se refaz com o sono dos leões de pedra com o equilíbrio da pita de cigarro no limiar do alpendre as formas
quebradas criam outras formas geradas pela aflição dos fragmentos enfraquecidos
e dormentes dos espaços entre os sarrafos de vírgulas e as nascentes entre o
desgaste das mãos e da cal na casca das amêndoas desperdiçadas alguém fala da abertura e da proteção
da gema nos treinos das transformações súbitas arqueadas nas coisas e nos
molares do tempo imolado em um altar de íntimos excessos o tempo senhor dos disfarces em suas mãos tudo regressa
transfigurado
NOVE
Não,
não fazia vermelho. Era quase noite e
estava ainda claro. Se pelo menos fosse vermelho...
CLARICE LISPECTOR
…você poderia ter partido arrastando os
chinelos de borracha e ignorado
os e-mails azuis na tela das janelas
mas o verde que plantou o muro ocre no terreno livre no final da cidade amanhece com cheiro de argila do barro do qual os homens foram
feitos e postos para secar no
sangue amarelado do sol naquela
época de esperar a alma crescer nos nossos olhos de urucum sonhávamos com o celeste no qual os
navios de nuvens passavam brancos
ou manchados de pó escuro das sombras chuvosas ainda não imaginávamos o ruído lima
das fábricas de saber-mais empacotados
com a pele da samaúma não
sabíamos das portas automáticas ou
dos painéis eletrônicos na entrada dos esconderijos ou a temperatura do ar condicionado
nos aeroportos sem o pouso das saúvas
buscávamos a turquesa onde se busca o pão para comer com a gordura da
manhã e aquela sensação de nunca
ter vivido isto antes um célere
queixume do tempo ao desfazer-se de alguns símbolos estropiados mundo acamado e sem teto digitando os
códigos de seus fantasmas feras
embalsamadas confinadas em urnas metálicas você poderia ter deixado a iluminação
precária como sempre ao invés de plantar lâmpadas de chama perpétua no olhar do
horizonte as lâminas
eletrificadas desfiguraram o corte
as dores se tornaram tão parciais que a morte perdeu gosto pelo
sacrifício mundo sem cor onde a
fertilidade se desencontra de seus reflexos naturais o tecido de que são feitas nossas
roupas foi dado de presente a um demônio que desconhece o significado das
formas as formigas agora terão
que adivinhar uma vez mais como recuperar a harmonia sem que a alma se petrifique
OITO
O
entusiasmo cria a diversidade a pluralidade a convergência a fertilíssima
contaminação. Comunica o fogo; sem gazua força múltiplas portas divinas.
MURILO MENDES
a cada noite eu refaço o teu ser em suas linhas é impossível contar
quantos fogos se equilibram o
espírito da chama penetra o olhar e ilumina tudo quanto estava oculto assim como me permites beber a tua
imagem eu rabisco em tuas sombras os planos de uma outra contaminação enigmas se reproduzem como fogos-fátuos e
guardas em teu íntimo os objetos de minha transformação os resíduos de ferro fundido delatando meus
artefatos artifícios para me
desviar da ferrugem e das manifestações mudas das coisas caladas vem comigo aos roteiros descritos nos
panfletos de viagem refazer as
mentiras mornas que se apagam rápidas na sentença do original e nas artimanhas
das chamas fugidias vem comigo eu me dissolvo em tua visão o inferno desaba sobre nossas
voragens inconclusas em seu tamanho natural as ruínas engordam como uma dieta de
lupas refazemos os planos para
um dia monótono em um jardim de gritos
com quem te comunicas quando o olho te escapa? onde buscas refúgio quando a
fronteira se perde no interior de um derrame? ainda que as escadas rolantes te
levem às alturas ou ao subterrâneo dos teus anseios transcritos com o formão na
tabuleta do passado esculpidos
no alabastro com o maço deixe-me
ser um marco feito da fragância do cedro que envolverá o teu quarto e impedirá
a lareira das coisas chatas de arderem sem fogo e sem fim quantos verbos derramados dentro de
cada estação? quantas fugas? quantas miragens? e a convergência se multiplicando a
cada noite enquanto eu refaço o teu ser
o mapa de reentrâncias silenciosas e o interior dos rochedos enquanto
choras a tua chuva ácida que torna ilegíveis os pergaminhos de antigos armazéns não há mais o que ocultar não há mais onde se esconder
SETE
Conduzidos
por um automóvel em meio ao trânsito e seus nós
O
taxista lia os pensamentos e sobre tudo isso o céu.
DORA FERREIRA DA SILVA
e meus olhos se prendem no terço pendurado
no espelho retrovisor um pêndulo
de sim e não que se acumula a cada avanço e interrupção das coisas cotidianas a cidade em branco e preto como
querendo se livrar das berrantes ameaças da existência colorida da celeuma de slogans das bolhas de outdoors flutuando no
ar e desaparecendo e reaparecendo e
reaparecendo o motorista que me
entrega os desvios fala da neblina e da morte de uma pomba perdida debaixo das rodas negras e
silenciadas uma buzina e outra
simula o queixume do pássaro de quatro portas rolando vagaroso eu me esqueço quantas vezes estive
aqui interrogando os rasgos nas paredes sujas essas pichações na mortalha do
cotidiano rede de distúrbios de
uma cidade asfixiada onde pousam estranhos objetos que ninguém ousa identificar cédulas desgastadas pelos vícios enlace secreto de preservativos na
fadiga dos esgotos o fósforo
molhado dos falsetes uma orgia
subterrânea do precário as
imagens vão mascando o retrovisor embaçado
os rostos dos passantes são um chumaço diáfano como o algodão doce e o
amargo da pressa esbarrando nos ombros
a canção estrangeira não traduz a ferida da rua a lentidão desce em agosto pairando
sobre o concreto de onde os falos apontam para o alto e o motorista continua
falando da neblina da situação do ponto morto e dos repentes da
primeira marcha há muito que
essas vozes não revelam sequer uma agonia distinta desfeitas em monossílabos cruzam seus
anônimos destinos alheias aos postigos mais altos do vazio em que estão
internadas o táxi recita sua
jornada diária e meus olhos se prendem nos cabides invisíveis do céu
SEIS
Dentro
de mim só ficou mesmo a arte.
CÍCERO DIAS
as vestes debruçadas no lombo dos muros
fabulosos lemos ali a
interpretação singular dos jardins esvoaçantes na mente humana nenhum bilhete deixado pelo acaso nenhum símbolo que confirme que um
dia já estivemos aqui este é o
nosso primeiro encontro e a tradição ainda nos vê como a união de contrários um dia chegaremos ao um a mais que um a nenhum atraso chegaremos às dimensões das manobras
no momento dos anéis se juntarem e formarem o amparo dentro do estômago do sonho está cheio de
cenas intercaladas e despedaços de chão
um chão de falhas lapidadas como último recurso limbo engavetado até que se decifrem
os demais círculos do inferno ou o amanhã desove seus totens alados monturo de expectativas dentro de mim os muros debandam debulham as máscaras dos sonhos e se
desfazem feito polens de estrelas caídas pelos campos onde a tua presença corre flutua se enrosca nos meus cabelos nas minhas mãos na minha jugular atrelando-me a ti como a canga do tempo na memória e na
menagem como a soma de nossos
minérios a estação perene dos
ritos que se renovam enquanto trocam de roupa em pleno cenário destacamos as pétalas do roteiro
prontos para desenhar uma outra árvore
tu és o meu número silencioso
eu desapareço no fundo falso de teu espelho dentro de mim uma vastidão desfruta o
crescimento de seus despenhadeiros
CINCO
Nem tudo é épico e oitava-rima
pois muita coisa desabada
tem seu sorriso cotidiano
e uns dorsos suados, pés humanos.
JORGE DE
LIMA
cor de hortaliça veneno adocicado com aspartame mãos e rabo de macaco equilibrado na
haste da árvore genealógica nem tudo é
corrente sanguínea dourado de
fogo aroma de baunilha muita coisa ruge o mal cheiro do mofo exala o suor amanhecido do trabalho
mal pago carrega os chifres das
horas esquecidas e multiplica realidades fragmentadas no dorso das poças urina as suas marcas de território protege o ruído dos pés calçando
sandálias feitas com as farpas dos sonhos dos mortos os sonhos que sonhariam se ainda
estivessem olhando o movimento das páginas
ouvindo o papel se mexer
como uma cobra roubando o ovo no ninho
nódoas de outra prosa um
sobrado repleto de noites com suas goteiras suadas muita coisa tropeça no excesso de
convicção da gramática no
canteiro de obras de suas expressões falhadas com o requinte da alma humana
inocência fora de hora amores
pilhando o xerém das formas chapéus
se deixando corroer pela larva do pensamento celebra o tombo evoca o entalhe das frustrações traz para dentro de si as frestas da
ilusão aquele ponto do dramalhão
da existência em que só o desastre é épico
QUATRO
Se
você não divide, será que você tem alguma coisa?
JOÃO GUIMARÃES ROSA
da forma como tudo parece estranho à nossa
volta devemos ter regressado à realidade o tempo empilhado como a catástrofe
que não quisemos evitar luzes
empalidecendo ante um arrepio de sombras o cenário inteiro fora de lugar como se todos houvessem esquecido sua
fala sua marca sua cara sua marcha na multidão de multidões
ocas vazias se mexendo rápidas ilustradas com máscaras anônimas sorrindo o meio
sorriso da monalisa oferecendo fisionomias enigmáticas e mãos pequenas empório de acentos nas sílabas
erradas minérios desapontados
com a cotação de suas pepitas cavilosas
máquinas de implantar espantos das ruas
intempérie que mal sabia de si
um giro e a salvação da alma perde sentido outro e o desejo começa a
desprender-se do eu se
insistimos as letras mostram suas formas letais as formas do desfalque
TRÊS
É
crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela
despenco: pedra mórula ferida.
É
crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a
no livro da língua
HILDA
HILST
sobre a mesa são separados os grãos amargos descascados e a carne vermelha da tua voz
nutritiva como o sumo das tardanças mais desejadas aquelas que nos fazem esquecer a
ponta da flecha e afiam a do lápis
reescrever descansos e disfarces
esquecer a alça de tripa e metal socavar a irrealidade até que ela se
desencontre de si em meio a um lampejo de vísceras deitá-la na relva como um domingo
cativo de esboços a tua escrita
me ensina a viver entrecortado por despenhadeiros a todo instante teclo em teu livro
novas escaramuças por dentro do espírito como quem mantém o abismo em seus
limites percorro jaulas
suspensas nos fios de luzes me
agarro na cauda das pipas dos meninos vadios para descobrir que o céu possui a
direção das viagens e que as
lutas são plantadas na terra ou no cimento onde a dureza gera os desafios
amarelados pelos anos soltos e
as letras amiudadas pela espera soletram suas inquietudes mais verbosas um alfabeto de escamas aturde o
espinhaço das mesmas pipas escarcéu
de vultos pincelando a paisagem nada
me alcança a vida se desata
buscando interpretar-me o espírito
nela despenco como uma sílaba multiplicada e me
desmancho em um rio de páginas
DOIS
e
viajar viajando
o
lombo de teus chãos e tuas águas
é meu
destino
chegar
chegando
GERARDO MELLO MOURÃO
uma pequena
parada e o rastro não nos trouxe de volta a nenhuma origem eu me perguntei quando começou a
florescer a moldura de tua alma quantos
de nós saíram a comprar bugigangas e a noite não soube mais distinguir entre a
beleza e o perigo rodeado de
abismo eu indaguei a teus sonhos como evitar que eles se repitam exaustivamente
sob a copa de meus lençóis e a resposta veio aderir no abdômen como os socos dos ponteiros no
relógio gago eu queria não ter
que esperar na fila que as
coisas fossem mais fluentes que tivessem o acesso das saídas de
emergências sem bloqueios mas também sem o desespero soltas abertas escapável o susto da perda o voo sai
atrasado por causa da névoa gosma
transparente das nuvens que cegam o horizonte azul é meu destino carregar carregando as
bagagens cheias de peles as
minhas peles que me vestem desvestindo e revestindo dos teus percursos o homem esquecido de si ao apagar a
luz no hangar de seus sonhos as
viagens ficam para trás com suas chaminés engasgadas e um tremor que vem dos
ossos guichês eletrônicos
ofertam novas rotas incessantemente
se confundem mar e sertão o
destino com seus disfarces abundantes
suas estradas enlaçadas suas
balizas invisíveis me leva
levando leve ao começo de tua boca
passo com as passagens das distâncias entre mim e as portas giratórias os carrosséis das
paisagens passageiras circulam à minha volta te refazem nos painéis de propagandas
iluminadas eu te vejo antes de
ir te vejo antes de chegar e quanto mais nos vemos indo e vindo
a origem de tudo se desfaz e
somos apenas nós a viajar viajando no lombo das chegadas
UM
Saber que há tudo.
E mover-se em meio
a milhões e milhões
de formas raras
secretas, duras.
Eis aí meu canto.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
lugares que não saem do lugar onde tudo é cheio de tudo e sufoca de
tantas coisas que não procuro os
sussurros das saudades inelutáveis dentro das conchas abertas e profundas deuses desconhecidos que tocam a
campainha para tomar um café e ouvir músicas antigas na caixa do correio prospectos de
hotéis suspensos no azul impalpável passo pelos barcos encalhados no ontem quando os leitos dos rios se secam
sugados pelos cascos dos meus sonhos sedentos é verdade que te reconhecerei nos
reflexos das vitrines em alguma
trajetória na margem da calçada ou do cais ou do aeroporto no final da plataforma de metrô seus olhos sem encontrar os meus nos
declives das esperas debaixo do
chão onde guardei os trajetos das buscas infindáveis é quase certo que um dia nos
reconheceremos em feiras imprevisíveis
o mercado de máscaras com suas ações baratas as rimas gastas da memória a madeira carcomida da arquitetura de
nossos sonhos lugares que
persistem encalhados em planos irrealizados como feras empalhadas ou sementes que
desistiram de seus frutos hematomas
confabulando em leitos sombrios sob viadutos ou galpões de velhas fábricas as ruas emporcalhadas de cédulas
vencidas pela usura meu coração
rangendo um último sinal te
buscando te buscando mas queremos a fuga o rufo das asas do jacurutu quando o
dia despenca a sua luz branca feito leite fervido osso de plástico pó de nuvem fria envelope de carta sem endereço mover-se nas fissuras das côdeas entre os fios de cabelos da solidão nas linhas que os filetes de chuva
arranham no vidro da janela e na retina do desejo para desvendar os segredos
mais óbvios que por serem tão óbvios permanecem ocultos esquecidos na cara dos nossos pais no aperto de mão no encontro marcado no meio da praça
repicada de revoada de pombos e gente caminhando e falando gente formando lugares e arquiteturas formando trabalho formando hora de almoço e salários formando prisões invisíveis e
liberdades limitadas atrás das grades de costelas gente formando gente encontrando-se e estranhando-se repelindo-se e atraindo-se eis aí o nosso silêncio o mundo entulhado devastado de formas secretas eis aí o prato de cinzas e o
candelabro de vultos eis aí o
nosso último fio de navalha eis
aí o nosso mais inquieto silêncio
∞
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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