quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]


Tudo no mundo parece ter uma aversão natural à representação como fato real
FLORIANO MARTINS

 

1998

CLAUDIO WILLER

A poesia e sua rebelião total

 


Terá uma decepção quem procurar o entretenimento ameno nas 300 páginas de Alma em Chamas (Fortaleza: Letra & Música, 1998), de Floriano Martins, poeta e incansável divulgador da literatura. No texto introdutório, ele avisa que não está aí para brincadeira. Declara-se à margem de uma literatura contemporânea que vai da previsibilidade dos versos arrebanhadores de prêmios, dísticos, soluços, rimários, primor xerográfico, à preguiça mental evidenciada pelo epigrama dominical e à presunção do hai-kai. Não quer nada do que está na moda ou que seja modismo: que não se esperem dele experimentos formalistas, nem epigramas engraçados.

Se Alma em Chamas vier a frustrar leitores inadvertidos, não será por seus defeitos, mas por suas qualidades. Essa mescla de devaneio e exatidão, nas palavras do autor, é opaca pela espessura; sombria pela seriedade; enfática, reiterativa, pela gravidade do que diz; complexa por ser, entre outras coisas, poesia sobre poesia, espelhando a erudição do autor. O conjunto de dezenas de trechos, alternadamente versificados e em prosa, dividido em sete partes, é, na verdade, um só poema. A família literária à qual pertence é a dos autores, no século XX, de poemas extensos, que procuraram restaurar a épica e recuperar um cosmos, uma totalidade. As grandes obras inconclusas, inventários de derrotas, como Altazor, do chileno Vicente Huidobro, e Invenção de Orfeu, do nosso Jorge de Lima, aos quais Floriano se refere explicitamente, e talvez os Cantos de Ezra Pound ou Wasteland de T. S. Eliot. As epopeias sem final feliz, nas quais Ulisses não retorna a Ítaca. Textos descontínuos, fragmentários, alguns com estrutura de colagem, modalidade visual eleita por Floriano Martins.

Para não deixar dúvidas sobre seus propósitos, inicia o livro com um poema longo comentando a esquartejamento de Sebastian, o protagonista da peça De repente, no último verão, de Tennessee Williams. Contudo, a uma dada altura, não é mais desse anti-herói ausente que ele fala, mas de cenas e personagens da Divina Comédia. Revela-se a amplitude do que pretende, aonde quer chegar: a todo lugar, a lugar algum. Assume a tarefa de escrever um livro impossível: o da personificação da morte. Por isso, dissolve-se na matéria de suas metáforas, / misturado à visão do livro findo inacabado.

Crítica não é catalogar autores. Interessa, mais que localizá-los em alguma topografia literária, mostrar, no plano da análise formal ou da indicação de conteúdos, o que os diferencia e lhes confere sentido. Mas um tema inevitável, evocado pelo próprio Floriano Martins, é sua afinidade com a escrita barroca, a estética do excesso, na definição de Severo Sarduy. No entanto, se tomarmos o barroco como beletrismo, expressão do Século de Ouro espanhol, ele se apresenta como autor de outra coisa, a escrita de um século de sombras.

É possível avançar nas definições negativas, do que Floriano Martins não é, com o que não tem a ver. Correlatamente, pode-se identificá-lo a uma complexa teia de autores, da antiguidade a contemporâneos brasileiros, com destaque para o romantismo iniciador de Hölderlin e Blake, e uma constelação de ibero-americanos, abordados no recente Escritura Conquistada (1998) e outras de suas obras. Tais afinidades são indicadas em epígrafes, dedicatórias e alusões. À luz das palavras de René Char / saímos a recolher versos. Integram um sangradouro de palimpsestos, em uma relação sempre intertextual, nunca paródica. Ele procura, não o distanciamento crítico da paródia, mas a recuperação e resgate, em uma metáfora de um diálogo com o leitor, cujos termos têm que girar ao redor de questões essenciais: em que tempo ocorre o verso? De onde provém todo o mal da poesia?

As referências mais produtivas para interpretar Floriano Martins vêm de uma área de sobreposição entre filosofia e poesia que integrar a herança romântica. Obriga a citar Hölderlin, sobre os poetas em um tempo de carência; e Heidegger, por sua vez referindo-se a Hölderlin, sobre a poesia e a condição humana em um tempo sem deuses, no mundo dessacralizado. O sentido de Alma em Chamas fica mais claro no poema intitulado Séc. XX: secretas ruínas, no qual a história é designada como algo virtual, ilusão. Alude, assim, ao ensaio de Walter Benjamin sobre um quadro de Klee, no qual há um anjo que parece querer afastar-se de algo a que ele contempla. O que o anjo contempla são ruínas, acumulação de escombros: o que chamamos de Progresso é a tempestade que o impele.

Alma em Chamas refere-se também à descida aos infernos de Orfeu, patrono dos poetas. Mas é uma viagem sem volta, errância pelo subterrâneo. Nela, encontra sombras indistintas da unidade perdida, algo que não existe mais, que já se perdeu. Uma saída, assinalada por boa parte da literatura moderna, principalmente pelo surrealismo, está em Eros, na reintegração ao todo através da união amorosa. É dita em versos como estes: teu corpo e o meu caindo sobre o mundo: / noite saqueada por uma caravana de relâmpagos. Contudo, nunca deixa de nos lembrar, desde o início do livro, que Eros e Tanatos caminham juntos; que Dioniso, regente do êxtase, é também um deus devorador.

Seria correto, mas redutor, ver Floriano Martins como autor de uma crítica de fundo metafísico e romântico à sociedade burguesa. Seu empreendimento é mais radica: volta-se contra o tempo e os limites da condição humana. É a rebelião total. Por isso, já abre o livro proclamando-se inspirado em William Blake, o poeta-profeta herético, expoente dessa rebeldia.

 

 

1999

JULIA OTXOA

La filosofía poética de Floriano Martins

 


A través del poeta suizo cubano Rodolfo Hasler, he podido leer Alma en Chamas, del poeta brasileño Floriano Martins (Fortaleza, 1957), autor de extensa obra en el campo de la poesía, el ensayo, la traducción y las Artes plásticas. Entre sus libros se encuentran entre otros los poemarios El amor por las palabras (1982), Las contradicciones terribles (1987), Cenizas del Sol (1991), Tumultúmulos (1994); siendo algunos de sus ensayos El corazón del infinito (1993), Escritura Conquistada (1998), El comienzo de la búsqueda (Escritura surrealista en América Latina) (1998).

Alma en Llamas (Fortaleza: Letra & Música, 1998) reúne poemas escritos entre 1991 y 1998; el libro, ilustrado con collages del propio autor, está dividido en varias partes que aún de distinta concepción y cronología permanecen unidas por un hilo conductor claro: estoica visión de la existencia plena de melancolía: La otra punta del hombre; Aula de pintura; Pruebas finales; Los miserables tormentos del lenguaje y las seducciones del infierno…; Columnas Circulares; y una parte final, Notas de acceso, recopilación de textos que estudiosos de su obra han realizado sobre él.

Al leer Alma en llamas tuve la sensación de haberme encontrado con una obra sorprendente, de una inusitada calidad, no solo por la magnífica capacidad del autor para conseguir del lenguaje una hondísima expresión lírica, sino también por la lucidez intelectual vertida en ese ideario implacable y crítico con la cultura y el modo de pensar contemporáneo que empapa toda la obra.

 

Noche en sus harapos implacables

[…]

Rosa encanecida en sus vértigos sublimes

 

Estos dos fragmentos pertenecen al largo poema ontológico con el que comienza el libro La otra punta del hombre. ¡Cómo no identificarse con esa bellísima expresión fuertemente evocadora, con ese verso hondamente trágico que define la condición humana! ¡Cómo no verse reflejado en estos impresionantes versos, en esa extrema fragilidad humana que el dibuja con desbordado lenguaje metafórico interrogándose en los espejismos del pensamiento! del lenguaje! de la historia! Su poesía es pasión insurrecta, construcción lapidaria en ricas imágenes surrealistas.

La poesía de Floriano Martins es filosofía poética, incesante búsqueda, diálogo a la intemperie entre la vida y la muerte, sin saber al cabo sobre el cambiante escenario del tiempo, quien es quien ante la calavera. Vida y muerte fusionadas en un solo anhelo, en un solo rostro bellísimo y terrible:

 

la presencia de cenizas en el alma de todo árbol que crece.

 

Su poesía trata de las contradicciones en las que se debate el pensamiento contemporáneo, la soledad, la conciencia múltiple del yo, lo fronterizo, el fragmento como visión del mundo, el fracaso de las grandes corrientes doctrinales etc., etc.

Síntesis intelectual y lírica. Arrebatado lenguaje poético, similar a aquel que la filósofa María Zambrano bautizara con el nombre de razón poética, esa esencial fusión entre el pensamiento y la sensibilidad lírica.

Ese primer poema del libro La otra punta del hombre insiste en un tono de profunda derrota elegiaca, el narrador se duele, rebelándose ante la impotencia de la condición humana, descarnada indefensión pensándose en el tiempo.

 

El hombre es la condena del ser

 

Escombros de la propia inocencia, todo es inocencia, bosque de mierda inocente en las llaves secretas de su pantano, espejos musgosos, toda aparición es fulminante, proscrito el verdor del musgo, la alquimia del deseo, sobre la mesa los muertos, el ímpetu de Dios, los espacios de su mutación.

 

La otra punta del hombre resulta declaración de principios del corpus estético de Alma en Llamas. Todos los poemas que siguen son constatación de esa desolación.

Otra de las partes más impactantes del libro es sin duda la titulada Los tormentos miserables del lenguaje y las seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus y Lozna. En este conjunto de poemas con grandes posibilidades para la representación teatral, el autor, tomando como materia poética el encendido, y tormentoso diálogo amoroso entre Barbus y Lozna viaja a profundidad a la noche del alma humana, hacia ese complejo universo de atracciones y deseos, soledades y ruinas, abismos y levitaciones. Extraña atracción por lo terrible.

Lo oscuro en mí te ama, parece decir constantemente Barbus a Lozna. Contexto gótico para el amor, la melancolía y la soledad. Sucesión de espejismos nuestras pasiones son un paisaje interminable de contradicciones. Amor identificado con el abismo, la belleza y lo mórbido. La seducción. La muerte comparece con el rostro de la amada, pero Los miserables tormentos del lenguaje… es además un cuestionamiento del propio hecho poético, una profunda reflexión sobre la capacidad expresiva del lenguaje.

Esa disonante relación de los amantes es metáfora de esa otra convivencia con el lenguaje, descenso o vuelo a tumba abierta con las palabras y sus potencialidades expresivas. El autor y la obra. Deseo y desengaño. Incapacidad de alcanzar la comunicación, la fusion con la amada, la union entre signo y significado. La vida y la literatura. ¿Historias paralelas?

 

¿La poesía es una catástrofe compartida?

¿La poesía es una forma posible de vida o de muerte?

 

Lozna, nombre de muerta: Innumerable: por alguna razón dejas caer en mi destino ese funeral, el misterio granítico de tu ausencia es Tanatos, una sombra mortal que rasga mis versos. Por alguna razon una torre de silencios avanza hasta la asfixia proverbial de mi soledad. Quieres retirarme de la circulación, profanado amor, con tu nombre de cenizas y tus papeles en desuso. Solo por ti los sobresaltos por nadie más, las perfectas diferencias de haber perdido los pasos.

 

¿En que se parece el amor a la muerte?

 

Requerimiento y espanto, impotencia para entender los hechos del amor. Vivir como respiración en la oscuridad, sintiendo como laberinto a Lozna y su ilegible distancia. Versos levantando acta sepulcral de la ausencia, pero también versos de fuego arrasador, de la pasión más sublime como paisaje confundido de pérdidas, tal vez el único espacio habitable para los amantes. El centro del vértigo como centro del mundo.

 

El amor es también una balanza de insignificados. A su izquierda las tensiones del paraíso, a la derecha los siervos del infierno. ¿De dónde viene el dolor? Encontramos nuestros actos tan viciados de quejumbres que la felicidad es desesperación.

¿Cómo hacer para tocar a una amada inaccesible? No hay insulto, pero sí espanto. El silencio estremecido que Barbus quiere descubrir en el rostro modelado del cadáver de su amante, es el mismo cenit de su propia existencia. Los elementos esenciales que firman el carácter de las pasiones. Es una idea fija.

 

Todo en Alma en Llamas es lenguaje reflejando la dualidad de la existencia: la apariencia y lo otro, la nieve y el desierto, el éxtasis y las ruinas. Símbolo y vanguardia en un lenguaje de honda comunicación lírica. El Surrealismo de Floriano Martins es surrealismo metafísico, crítico con su tiempo. Poemas para el gran teatro del mundo. Melancólica poética amotinada en interrogantes, meditación del ser dentro de la caverna platónica, las sombras reflejándose en otras sombras…

 

Los encuentros con la muerte toman al hombre por el centro lo que no debería ser posible, un fantasma bajo el sol es un teatro mucho más singular por lo despreciable. La muerte es otra.

 

En la búsqueda de lo absoluto vivir se convierte en delirio. Vivir en poesía es aceptar el riesgo. En la fiebre es alcanzada la lucidez. Hágase en mí la palabra que nombre lo que ahora siento poseerme con más fuerza que yo mismo.

 

En el camino del abismo la palabra indaga sus letras ¿qué busca aquella que cae sobre sí misma? El poeta cae de sus metáforas. Ensayamos el enigma común de la situación, el lugar, porque no podemos soportarnos en el peso de las cosas que en nosotros se preparan. Jamás ignoramos el espectáculo de nuestras ruinas, distinto escenario donde el hombre actúa… Libro descompuesto en repeticiones. Hamlet encharcado de ilusiones. Habrá siempre allí algo imposible de seguir.

 

Se diría que gran parte de la existencia es para Floriano Martins una gran puesta en escena de esperpentos goyescos, todo lo existente convertido en enigma. Nuestro pensamiento lo sostienen espejismos. Tan solo proyección de las cosas sobre nuestros aturdidos ojos, bien podría no existir el mundo y ser todo espejo, pura invención de nuestra necesidades y deseos. Tal vez nada se salve en esta lapidaria y apasionada dialéctica trágica, salvo ese incesante y arriesgado vivir en poesía. Y esa bendita capacidad del propio autor para traducir en belleza la narración de cuanto ocurre.

 

 

1998

IVAN JUNQUEIRA

Os tormentos da linguagem

 


Não são poucos os poetas que, por serem bilíngues ou por razões que se diriam estratégicas, escreveram em outras línguas que não a sua. Assim o fizeram Pessoa, Eliot, Rilke, Brodsky, Moro, Huidobro e até mesmo o nosso Manuel Bandeira, que, tradutor soberbo, jamais conseguiu verter para o português nenhum dos versos que escreveu em francês. É esse o caso de Floriano Martins em Los tormentos miserables del lenguaje y las seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus & Lozna, título de inequívoco sabor quevediano, mas que de Quevedo nada tem, mesmo porque não foi essa a intenção do autor. A intenção é bem outra e, sem dúvida, justificada por sabermos todos ser muito pouco o que sobrevive de quase tudo o que se circunscreve ao gueto da língua portuguesa. E estranha que assim seja, já que o português, além de língua culta, é a sexta mais falada no mundo. No caso de Floriano Martins- talvez nosso maior especialista em poesia hispano-americana-, a opção foi claramente estratégica, ou seja, buscar maior difusão de sua poesia em âmbito hispânico e, como disse uma vez Huidobro, furtar-se a certos vícios de linguagem e alcançar assim maior simplicidade na expressão poética. Outro importante detalhe: essa prática nada tem, pelo menos em Floriano Martins, de contumaz ou obsessiva, o que o situa em posição contrária à do bilíngue cabal ou por fatalidade, como é o caso do romancista carioca Per Johns, que se move muito à vontade em pelo menos duas línguas: a portuguesa e a dinamarquesa. E no caso deste último o impasse se torna amiúde dramático, como ele próprio observa numa das passagens metalinguísticas de As aves de Cassandra: O arraigado é um com sua língua. O bilíngue é dois e nenhum.

Ademais- e nesse passo o admite o próprio poeta-, toda a sua produção posterior a Tumultúmulos (1994) vinha padecendo de certo barroquismo, de uma cumulação metafórica que acabou por lhe engendrar, não uma solução, mas um labirinto no qual nenhum fio de Ariadne lhe poderia valer. E aqui, mais uma vez, se configura aquela opção estratégica a que há pouco aludimos. E a verdade é que toda a sua poesia ganha a partir de então um novo impulso. Na aventura hispânica de Los tormentos miserables se entrelaçam harmônica e organicamente a sensibilidade métrica, a forma fixa (no caso, a do soneto, ainda que algo atípico) e a prosa poética de largo fôlego, como desde sempre, aliás, cultivou o autor. É bom que se advirta, porém, que Los tormentos miserables não constituem um récueil poético, e sim um núcleo temático (ou problemático) que se esgalha em 46 fragmentos, ou outros tantos poemas, se assim o preferirem. É bem de ver, ademais, que o poema se inclui numa vertente algo rara da lírica brasileira: aquela que privilegia a poesia (e a metapoesia) do pensamento, como a exerceram entre nós Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima e, talvez mais do que qualquer outro, Dante Milano. Seria assim como a poesia da poesia, um áspero e pungente esforço de ascese, tal como o vemos no recente A via estreita, de Alexei Bueno. E aqui não há como escapar: toda essa práxis, que em boa hora enfrenta e afronta a banalidade e o metaludismo em que se converteu considerável parte de nossa poesia contemporânea, nos remete às matrizes seminais em que esplendem os nomes de Hölderlin, Novalis e Leopardi.

Por isso mesmo é que se vê, nos versos e entrelinhas de Los tormentos miserables, uma permanente oscilação entre o lírico e o trágico, vertentes por definição antagônicas entre si, mas que encontram, sobretudo em Leopardi, uma como que superação desse conflito ou, ao contrário, sua mais consumada cristalização. Não foi à toa, a propósito, que a ensaísta Helena Parente Cunha abordou a questão em O lírico e o trágico em Leopardi (1980), onde sustenta que a flutuação de um extremo a outro, da ilusão à desilusão e vice-versa, que movimenta a estrutura dos Canti, se estende à alternância do trágico e do lírico”. E essa alternância, tal como a vemos em Floriano Martins, nos leva a situar o conflito entre razão e sentimento sob o ângulo da abordagem a que se arriscou aquela ensaísta quando observa: o sentimento cria a ilusão do espaço lírico, que a razão demole no tempo trágico da desilusão. E é por isso talvez que, já no próprio título do livro, Floriano Martins nos remeta a las seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus & Lozna. Entende-se assim que, no fragmento 15, escreva o poeta:

 

¿De dónde viene el dolor? Nuestras acciones

están viciadas en tal orden de quejumbres

que la felicidad es una desesperación. Cada uno

habla de sí mismo, en nombre de su amor.

 

Como melhor se entende ainda quando, no fragmento seguinte, nos adverte:

 

Errante y Barbus, mi amor baja hasta el vacío, ¿pero

que es lo suyo en ese viaje redondo? Lo que fuimos

ya no somos. ¿Qué es lo mío sino la nada, el ilusorio?

 

Vê-se aqui que o amor se constrói e se destrói como naquela tríade hegeliana em que a maneira de ser do ser é deixar de ser o ser para vir a ser o nada e a maneira de ser do nada é deixar de ser o nada para passar a ser o ser. Já não o dizia Heráclito de Éfeso sete séculos antes da era cristã? E não o diz agora Floriano Martins quando conclui que lo que fuimos ya no somos?

Não bastassem essas seducciones del infierno, cumpre denunciar ainda que as entranham os tormentos miserables del lenguaje, vale dizer: os tormentos da poesia. Pois o poema de Floriano Martins constrói e desconstrói também um discurso que se estrutura sob o signo da metalinguagem, como se vê em diversas de suas passagens. E tanto Barbus quanto Lozna são como emblemas tangíveis desse conflito:

 

Hacia el principio caminan todas las muertes. Eres el infierno de las transfiguraciones, un abismo de huesos abierto en tu desnudez de cortafuegos. Tu nombre es Lozna.

 

E logo adiante, no fragmento 10:

 

Lozna es una herida que no cicatriza: son palabras con que el tiempo quiere despedirse de nosotros. La lengua tocando la sal en su primero día de olvido, la oscuridad tomando el pulso de un alma sin regocijos.

 

E apesar de toda essa desolação leopardiana, os amantes dançam enquanto o mundo esplende em desastres, mientras el hombre no esperaba nada del hombre, mientras el asombro quedaba sólo. Mas a decepção avassaladora do trágico volta a subjugar a efusão lírica, como o atestam os dois últimos versos, ainda de cunho metalinguístico, do fragmento 15:

 

La mismíssima flor del mundo es siempre nada,

no hay pausa, solamente una palabra decepcionada.

 

Ainda assim, o poeta resiste às ameaças de esfacelamento da palavra, daquela mesma palavra de que nos fala T. S. Eliot no quinto movimento do primeiro de seus Quatro quartetos, quando escreve: As palavras se distendem, / Estalam e muita vez se quebram, sob a carga, / Sob a tensão, tropeçam, escorregam, perecem, / Apodrecem com a imprecisão. Também Floriano Martins ergue sua voz contra o exílio que a desterra, tal qual se lê no fragmento 22:

 

Hasta la humedad más profunda

del silencio buscaré la desterrada unidad del verbo,

bajo el limo de las asfixias, bajo la dimensión del exilio.

 

Dissemos no início que Los tormentos miserables é também um poema de abissal e dolorosa ascese. É que entre esses tormentos miserables del lenguaje e as seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus y Lozna interpõe-se, absoluta e inumerável, a presença da morte, que se insinua de fragmento em fragmento. Barbus e Lozna só poderão superá-la pela dinâmica da ascese, pois tudo em derredor sabe apenas a caducidade e a contingência terrenas. E não os socorre nenhuma crença religiosa, nem mesmo a nossa arraigada e tenaz fé cristã. Pelo menos é o que se conclui da leitura do fragmento 25, onde sentencia o poeta:

 

No se resuelve la historia en su repertorio

de agonias. El Calvario no es centro de nada.

 

E adiante, no fragmento seguinte:

 

Me gustaría

aceptar tus versiones de la muerte, pero tus versos hablan

de un paraíso perdido que es un emblema del horror

que vivimos. No hay la podredumbre del cuerpo ni una

trayectoria de ángeles. Los que piensan en la vida

deben entender que el dolor es parte de la misma alegría,

que no hay una tumba de turno ni felicidad prometida.

El centro del hombre es lo que hacemos de nosotros.

 

Ou seja, como o pretendia o sofista pré-socrático Protágoras de Abdera no século V a.C.: O homem é a medida de todas as coisas: das que são, enquanto são; e das que não são, enquanto não são. Se de um lado é lírico o amor de Barbus e Lozna, de outro é também trágico porque vive ao desamparo cósmico e sob o signo de uma luta que, aqui, sim, se confunde àquela agonia que Unamuno vislumbrou na resistência desse mundo cristão que, conquanto moribundo, não morre jamais. Barbus e Lozna vivem assim no limiar da morte, como também às portas da morte vive o poema inteiro. E a tal ponto é nessa condição que vive e fulgura o texto que o poeta será levado a perguntar, como o faz no fragmento 34: ¿Es la poesía una forma posible de la vida o de la muerte? O amor em ruínas de Barbus e Lozna, que não é una sagrada revelación, mas apenas a prueba del amor reconocida por Hölderlin, ilumina todavia toda a atormentada tessitura desse longo e pungente poema, um poema raro e quase solitário no panorama de nossa presente literatura, um poema em que o amor, para ser aceito e compreendido, desdenha das provas que o atestam. Ou como diz o próprio poeta:

 

No hay pruebas del amor: todo es risible en los argumentos.

 

 

1999

JORGE RODRÍGUEZ PADRÓN

Carta de recomendación

 


Mi imaginario del Brasil se repite en blanco y negro cinematográfico: solitarios sertões y angulosos rostros de cangaceiro, mirando con ojos inexcrutables… Imagen demasiado tópica, tal vez; pero es la que ahora regresa, en este rostro inquietante pero de noble cordialidad al mismo tiempo, de un escritor nacido en el más septentrional de los paralelos de aquel vasto territorio: Floriano Martins (1957), recluido en su Fortaleza (Edo. de Ceará), pero disgregado por todos los vientos y lenguas que configuran esa otra imagen de vigoroso y desbordado mestizaje con que Brasil me regala, a través de aquella visión del mito órfico, en medio de oleadas de ritmo y violencia escondida, de nuevo con el cine. Si Guimarães Rosa, también Jorge Amado. Sobre mi mesa, tres, cuatro libros de este joven, pero maduro escritor indesmayable, invencible, a quien me complazco en recomendar. Nunca acota el territorio de su obra; con derrochadora generosidad nos lo abre y regala a todos, para que convivamos con su entusiasmo: un banquete intelectual imposible de saborear si no es abandonándonos a la fuerza explosiva de los sentidos: fecundidad imparable; más que entusiasmo, una pasión de verdad lúcida.

Por la poesía, ante todo. Y, a través de ella, por el bullir de la palabra y su prodigiosa disgregación de sentidos. Pasión, luego, y no menor, por despejar interrogantes y abatir muros de recelo y torpe incomprensión que dificultan nuestro reconocimiento en la manquedad atlántica que nos prolonga en un doble viaje (encuentro, aceptación) tenazmente negado (o desfigurado) más que por las débiles convenciones políticas, con sus censurables componendas, por el recelo del poder literario o cultural, mucho más intransigente por el primero, parapetado tras un discurso cínico: su máscara más mentirosa. La mentira no figura ni en el código estético ni en el equipaje ético que sostienen la escritura desprendida y generosa de Floriano Martins. Digo, en su poesía, Alma em Chamas, como titula su obra reunida. ¿Alma suya, o más bien de la palabra que brinda ese aliento único, fervoroso? Nada de presunción narcisista, diálogo com o mundo […] fecundo em sua multiplicidade. Nada de enajenación y aislamiento (esa torpeza), reclamo de, y convivencia con, diversidades y diferencias, sean en la escritura, en la música, en la pintura: un palimpsesto por el que se persigue, a tientas, como en un bosque enmarañado, un sentido para la palabra que lo es, por ello, para la vida.

Y como en su poesía, en el oficio agudo de lector. Como hiciera Borges, Martins nunca se declara buen escritor, pero un buen lector sí, lo cual es más importante: ha recorrido de norte a sur el complejo mapa de la poesía iberoamericana, inquiriendo por sus más intrincadas razones (ejemplar, su Escritura Conquistada, diálogo suculento, otro banquete, con poetas de las dos tradiciones); se ha acercado, incluso, a nuestras pequeñas islas atlánticas de acá, leyendo con atención y amor y respeto a Agustín Espinosa, a Alonso Quesada, pero también a Luis Feria, a Manuel Padorno, a Lázaro Santa, a Eugenio Padorno o Andrés Sánchez Robayna. Lo tengo por uno de los nuestros; tanta clarividencia ha puesto en ese ejercicio, no en vano se sabe habitante de ese triángulo de espejos en donde nos reconocemos multiplicados. Hace muy poco, ha traducido-con soltura y delicadeza notables– una selección de poemas amorosos de García Lorca…

Pero también se vuelve sobre lo que le es más próximo: en su lectura de la poesía brasileña, acierta con el diagnóstico al resistirse a la convencional ordenación y a sus tópicos referentes (Oswald de Andrade, Carlos Drummond, João Cabral…), para decirnos que allí también son voces dignas de recordación José Alcides Pinto, José Santiago Naud, Ivan Junqueira, Uílcon Pereira, Sérgio Campos…; no disimula su malestar ante el cómodo mimetismo de un decir general que allí, también, parece extenderse como plétora: Terá a cópia da cópia cem anos de perdão?, se pregunta con no disimulada ironía; la misma con que invierte el título paciano (La búsqueda del comienzo) para aproximarse al surrealismo latinoamericano, en unos breves pero muy sustanciosos ensayos: Escrituras Surrealistas. O Começo da Busca. Homenaje, pero no ditirambo. Lectura seria de Enrique Molina o del grupo chileno Mandrágora, de Moro o Westphalen, de Sánchez Peláez o Ludwig Zeller o Raúl Henao, de la subversiva escritura de los venezolanos que habitaron bajo El techo de la ballena o dibujaron El perfil y la noche… El otro rostro, menos expuesto y celebrado, del surrealismo americano que no parte –como bien dice– de una derrota como en Europa, sino de uma exacerbada fé em seu próprio destino. Nihilismo, aquél; éste, prosperidad.

Imparable Floriano Martins, lleno de innumerables proyectos; entrañable Floriano Martins: nos honra con su amistad, sin habernos visto jamás; y sin que el interés medie en la relación, exagera-excesivo siempre– la fe que pone en nuestra propia aventura crítica. Recomendable Floriano Martins: su apuesta no es por el éxito, sino por el trabajo bien hecho, por una sinceridad sin componendas, aunque ello –las más de las veces, en esta feria de vanidades de la literatura– se vuelva en su contra. Su palabra como entrega siempre: una palabra dada. Merece este reconocimiento, y nuestra gratitud.

 

 

1999

JUAN CALZADILLA

A quien pueda interesar

 


No se podría hacer justicia a la obra literaria de Floriano Martins sin remitirnos a la diversidad de facetas que en ella apuntan, por un lado, a la labor de uno los traductores de poesía hispanoamericana más versátiles y solventes con que cuenta hoy la literatura brasilera y, por otro, al trabajo lúcido del estudioso atento y pertinaz que, paralelamente a su labor de traductor, se ha ocupado de elaborar un corpus crítico orgánico y comparado en torno a las poéticas de la modernidad en Latinoamérica y especialmente de las vanguardias.

El libro Escritura conquistada, publicado en 1998, añade a la preocupación de Martins por divulgar en lengua portuguesa el pensamiento vivo de los poetas hispanomericanos de cuya obra se ha venido ocupando, una vertiente de comunicador sin la cual no se explica el hecho de que él se haya convertido en referencia obligada para las conexiones de las literaturas en ambos idiomas, tanto en el Brasil como en el resto de hispanoamérica, sin contar los ensayos que el mismo Martins ha venido haciendo para verter su propia obra al castellano. Consecuente con este proyecto activo, Martins mantiene a través de su labor periodística en Fortaleza, y por Internet, un espacio de comunicación que por momentos luce como vehículo eficaz para contribuir a vencer las barreras que aún condenan a las literaturas del Brasil y los países de habla española en Suramérica a un inexplicable divorcio.

A la par de esto, no podemos hacer abstracción del ámbito propio que la obra poética de Martins ha ganado en el Brasil, como una de las más conspicuas voces de la nueva lírica. Nacida al calor de un registro combativo que continúa una tradición surrealista que en Brasil se remonta a la década de los sesenta, la obra poética de Floriano Martins está reunida en Alma en chamas (1998), libro sustancioso y consistente, cuyo rigor y amplio espectro temático es resultado de la alta exigencia con que el autor se ha armado de un estilo personal, de un discurso que libra al poema de todo lo que lo priva de levedad y que quizás por ello, se presta a entregarnos, con gran sentido de lo contemporáneo y espíritu revelador, a una paradójica y casi siempre trágica interpelación de los abismos de nuestro tiempo.

 

 

2000

ROLANDO TORO

A alma em chamas de Floriano Martins

 


O nome de Floriano Martins ocupa um espaço privilegiado dentro das letras latino-americana, tanto por sua obra poética quando por seu profundo saber como ensaísta, crítico e historiador da literatura contemporânea.

Alma em Chamas é um conjunto de poemas sobre a condição humana e o destino.

Floriano Martins comunica em seus poemas a trajetória existencial em meio do suntuoso paradoxo de viver na ambiguidade dos fatos cotidianos e a exatidão do inferno; um avançar por essa nebulosa de possibilidades entre as trevas e o êxtase.

Seus poemas constituem uma extraordinária aventura em torno do mistério do ser.

No meio do labirinto encontra os carvões ainda ardentes de um mítico sacrifício do começo do mundo.

As metáforas de Os carvões de Goya aludem ao processo criador: é necessário passar pelo fogo para retornar, tingido de negro, ao esplendor da vida.

 

O homem se

alimenta dos laços fatais de seus delírios,

Oh viajante das chamas eternas! Por entre

as vértebras agitadas da noite, um homem

segue os passos de sua própria sombra.

Um homem e sua taça de intempéries.

 

A linguagem de Floriano Martins, tanto em suas obras anteriores, como Tumultúmulos e Cinzas do Sol, como em Alma em Chamas, põe em relevo as dimensões caóticas e míticas da existência. Seus poemas são uma permanente criação atual no sentido de Alfredo Auersperg; afunda no tumulto, na complexidade, no caos criador.

Seu projeto poético é subversivo, alheio aos valores convencionais, ao formalismo e à poesia concreta.

Floriano Martins entra com determinação nas trevas da alma, sem eludir o êxtase de viver e a devoção pelo sagrado.

A experiência do inferno gera a intuição do paraíso.

Preciso recordar aqui a Rainer Maria Rilke em uns versos de Os sonetos de Orfeu:

 

Somente o que ergueu a lira

também nas trevas

poderá dizer, pressentindo,

a infinita louvação.

 

A poesia de Floriano Martins entra na complexidade do homem contemporâneo que já não se engana em jardins de ilusão; assim descobre as rosas do vazio e a beleza das tempestades; assim sua linguagem alcança um sentido épico-ontológico, a incandescência do ser.

Martins evoca o destino de viver com as obsessões e tentações infernais, com fome de infinito.

 

O relâmpago abre sua porta, invade o cego

destino que irradia o homem submerso

em sua dor. Desfaz-se o tempo. A terra

é removida de cada corpo. Tudo é propício

a uma fome de ossos. O homem apenas cai.

 

As marés subterrâneas da viagem interior arrastam o poeta até os arrecifes onde tudo é possível: o vazio e o êxtase, um acontecimento sem redenção e pleno de lucidez.

Ao conjugar as metáforas do céu e do inferno, cria o sentido de uma ética e de uma estética novas alheias aos deuses e poderosa no ato de devoção.

Depois de Blake e Rimbaud, surge agora a Alma em Chamas, a linguagem que para viver deve consumir seu corpo, uma linguagem devastadora que, em sua fúria poética, escreve sobre as cinzas ardentes do corpo sua carta de amor.

 

 

2001

LUIZ CARLOS MONTEIRO

A poesia sem tréguas de Floriano Martins

 


Floriano Martins escreve poesia como quem repele, de modo radical e irreconciliável, o minimalismo de décadas recentes. Ele intenta afastar de seu discurso lírico certas falácias redutoras e insustentáveis, que manifestam-se tanto na esfera intuitiva quanto no terreno da poética propriamente. Descarta o esvaziamento de conteúdos indispensáveis à expansão e permanência da boa poesia, abolindo também a esterilidade formal provocada pela arrumação solta, artificiosa e aleatória de palavras no poema. E ao divulgar seu novo livro pela Internet –o eBook Natureza morta–, contradiz tudo aquilo que se destinaria a facilitar a engenharia, em muito ilusória, da leitura funcional, supostamente fluente ou veloz.

A expressão-título Natureza morta pode sugerir coisas como modalidade pictórica ou degradação do verde. Ou ainda, a tematização e metaforização do amor, força-motriz da poesia- de um amor em particular, que presentifica-se, paradoxalmente, na constatação da ausência. Contraposto ao amor que apresenta-se carnalizado e orgânico, fragmentado entre a necessidade, a negação e a angústia de sua consecução, e reforçado por uma sensualidade que logra superar a ocultação daquele outro.

Outros temas eleitos por Floriano Martins revelam-se como a religiosidade, a infância, a loucura e a reflexão sobre a poesia. A religiosidade aflora-se nos sete poemas de Sombras raptadas, parte inicial do livro. Figuras bíblicas femininas encetam monólogos onde o interlocutor preferencial ou possível, onipresente ou subentendido é o Cristo, que, embora mais raramente, também devolve sua fala. Tais vozes sobrepõem-se, caracteristicamente, à voz subliminar do poeta que as enuncia.

Na sua aproximação ao surrealismo, aos labirintos ativos do inconsciente, essa poesia consegue abrir brechas e possibilidades na busca de um discurso renovado. São elementos formais definidores neste processo os choques vocabulares entre palavras aparente impossíveis de estarem juntas, as metáforas e imagens violentas e inusitadas. O poeta Claudio Willer vislumbrou, em resenha sobre o livro anterior de Floriano Martins, a antologia Alma em chamas (1998), relances de uma crítica de fundo metafísico e romântico à sociedade burguesa. Crítica que parte, sem concessões, em Natureza morta- apesar da ternura subterrânea nela contida-, do microcosmo existencial do autor: a família. O parentesco a que não se pode renunciar pelo sangue, a não ser que não se tenha ou não se conheça raízes genealógicas neste mundo.

Na terceira parte, O rastro de um caracol, sete poemas em prosa versam sobre a infância e suas descobertas projetadas na idade adulta: a relação oscilantemente próxima e distanciada com os parentes, a iniciação sexual adolescente e a herança livresca paterna. Tudo isso filtrado pela concepção ideológica- existencial e social- do poeta de agora, e pelos jogos antitéticos e dialéticos que empreende. E que não deixam margem ao escamoteamento de fatos verdadeiramente vividos ou apenas sugestivamente imaginados.

Essa crítica acirrada, na segunda parte de Natureza morta, chega até a um manifesto sobre a violência –Às voltas com a violência (e suas campanhas) –, no qual há questionamentos que ultrapassam a incoerência e a banalidade do senso comum. Tendo já se tornado rotineira nas grandes cidades, como um estado de coisas consentido, a violência requer, para o seu combate de dentro, armas inúteis talvez, como a argumentação da recusa em dela participar.

Em Natureza morta, duas são as formas poéticas escolhidas: o poema-poema e o poema em prosa. O primeiro, mantendo a disposição espacial que privilegia o binômio verso-estrofe, alinha-se em versos brancos ou ocasionalmente rimados, de dimensão fix

a ou variável. Ele tende, com frequência, à extensão, provocada talvez pelo excesso diccional de quem mais tivesse a dizer. Os limites do verso são ultrapassados com o salto para outro verso ou estrofe, sob os efeitos do enjambement.

O segundo tem como resultado blocos inteiriços de uma prosa poética aliterante e assonante, que remove-se circularmente, perfazendo um retorno sutil e constante ao já dito, embora de outras maneiras e com outras palavras. Uma forma pode juntar-se à outra – trechos de poemas em prosa intercalam-se, antecedem ou sucedem a inserções de versos e estrofes do poema-poema, e vice-versa.

Mesmo sem decair em moldes demasiado rígidos, essa poesia não admite o leitor dispersivo, adepto do achado fácil ou da construção relaxada. A medida de sua flexibilidade reflete-se numa espécie de sentido oculto, tanto quanto em torpedos e máquinas de guerra como mensagens explícitas, que mais e mais vão se aclarando com a leitura progressiva e atenta. Expressões categóricas de cunho afirmativo e conceitual, filosoficamente diluídas ou corroboradas na experiência cotidiana a partir de um discurso compreensível, mesclam-se ao seu oposto, as interrogações renitentes. Estas introduzem-se como indagações sugeridas pela dúvida do afirmado, pela teimosia e cautela em não estabelecer verdades definitivas e últimas.

Em Paródia do cadafalso, Nota de Acesso ao livro, Floriano Martins pronuncia-se sobre o horizonte da especulação atual em torno da poesia, e mais extensivamente, da arte: Abolida a sucessão de tempo e espaço, por ali foram também descontinuidades e diferenças. A arte quando muito pintará a si mesma: uma natureza morta. No cerne desta visão um tanto pessimista, o poeta, ser despersonalizado e descentrado, anônimo e sem rosto, teria como referencialidade possível apenas a crueza de um cotidiano inglório e excludente nos meandros da urbe. Para não mergulhar completamente neste abismo de injunções prosaicas e transitórias, deverá cumprir – ainda que sem esperança de remissão ou coroa de louros –, o que dele é exigido pela poesia em conjunção com a vida. E assim, atendendo a disposições individuais, mas solidárias, sustentadas no seu próprio fazer poético, poderá eliminar algumas descontinuidades indesejadas e estabelecer a diferença a seu favor.

 

 

2002

ALFREDO FRESSIA

El poeta Floriano Martins en busca del surrealismo

 


Un balance honesto de todo lo que el Modernismo brasileño legó debe incluir, en rojo y en el debe, esa especie de nacionalismo endémico que recorre la historia literaria del Brasil en el siglo XX, la paradójica antropofagia ejecutada por un indio rousseauniano, según la imagen del crítico Franklin de Oliveira, que impide hasta hoy el diálogo fluido con el resto del Continente. No se trata sólo de insularidad linguística, por más que ésta pese, sino de cierta vocación brasileña por el monólogo, autoritaria, mientras otras culturas latinoamericanas buscan el diálogo. La reacción a ese provincianismo cultural no suele ir más allá del ámbito académico, en particular el esfuerzo de los departamentos de Español de las universidades, y casi nunca surge desde las manifestaciones artísticas, desde la actividad cultural como creación.

El poeta Floriano Martins (Fortaleza, 1957) es de los pocos artistas que se inscriben en esa reacción que implica una búsqueda, casi empecinada, del contexto continental, incluso como manera de comprender y evaluar mejor la cultura de su país. De Ángel Rama se murmuraba que no dormía. De Martins se podría sospechar que ha hecho un pacto con los dioses solares del tiempo en su moroso Ceará natal, y que de ese pacto surge la versatilidad de su obra, desde su trabajo como traductor del español (es responsable, por ejemplo, de la ardua versión al portugués de Delito por bailar el chachachá de Cabrera Infante, o la de los Poemas de amor de García Lorca, ambas en 1998), su ensayística (El corazón del infinito. Tres poetas brasileños, Toledo, España, 1993, para citar uno, interlinguístico). Y también sus clases, encuentros, performances en Panamá o Costa Rica o México, sus diálogos con poetas latinoamericanos, publicados algunos en internet, otros en el espléndido Escritura conquistada, de 1998, donde comparecían las uruguayas Amanda Berenguer y Circe Maia, sus artículos instigadores, tantas veces rebeldes frente al establishment del periodismo cultural, en diarios brasileños, portugueses, latinoamericanos, de Argentina a México. Y todo esto sin olvidar la sólida obra poética que viene construyendo (que incluye piezas en lengua española), y que reunió, en parte, en su Alma em chamas de 1998.

En 2001, aparecieron los poemas de Cenizas del sol, en versión trilingue (español, portugués, inglés) en Andrómeda, una lujosa edición costarricense, presentados en contrapunto con las imágenes de las esculturas de Edgar Zúñiga, uno de los mayores artistas plásticos de Costa Rica. El libro se cierra con dos entrevistas, la realizada por Martins a Zúñiga y la inversa. Se trata de trece poemas en prosa de 1991 (publicados entonces en Río de Janeiro), cuya versión inglesa, a cargo de Margaret Jull Costa, había figurado en The myth of the world (The Dedalus Book of Surrealism), Londres, 1994, y que la actual edición costarricense reproduce. La versión española estuvo a cargo del poeta uruguayo Saúl Ibargoyen y del mexicano Benjamín Valdivia.

Desde el título, sugerido por un pasaje de Arcane 17, de André Breton, el texto se inscribe en la vertiente surrealista que signa gran parte de la obra de Martins, una poesía renuente a los ismos, pero que encuentra en la escritura automática una manera, poderosa en su caso, de reacción frente al parnasianismo burocrático y residual de cierta poesía brasileña.

El año 2001 también marcó la aparición de Extravio de noites/Extravío de noches, once poemas sin títulos, algunos en prosa, presentados por Ed. de Orpheu de Caxias do Sul, Río Grande, en forma bilingue, portugués y español. Se trata de una paradójica poesía erótica donde el cuerpo comparece mediado por espejos, fotos, páginas (las páginas de tu cuerpo), al punto que el verdadero motivo temático del poemario resulta la memoria, cena de fantasmas, la memoria/ sirviendo sus mejores platos.

La obra más significativa de Martins en 2001, aparecida a fines del año, se encuentra sin embargo en O começo da busca. O Surrealismo na poesia da América Latina, en Ed. Escrituras, de San Pablo. Se trata de la primera antología de poesía surrealista latinoamericana, precedida de un ensayo introductorio y seguida por cinco artículos y entrevistas. Existen sin duda antologías locales, además de la Antología de la poesía surrealista latinoamericana, México, 1974, del rumano Stefan Baciu y la Antología de la poesía surrealista (en lengua española) de Ángel Pariente, 1985, o experiencias como la Antología de la poesía surrealista de lengua francesa, Buenos Aires, 1961, de Aldo Pellegrini. Pero falta en ellas, en particular en la de Baciu, latinoamericana, la presencia de los poetas brasileños. Martins viene a llenar ahora ese vacío literalmente continental.

Para su factura, Martins desecha la tesis de Baciu de un parasurrealismo, es decir, incorpora el grupo de poetas cuya obra incluye una vertiente surrealista, pero que no asumen, o no siempre asumen los preceptos del movimiento. Descartada la exigencia de fidelidad al estricto método surrealista de creación, Martins se siente autorizado a incluir, por ejemplo, la obra de Octavio Paz durante los '50, y si excluye una obra como la de Olga Orozco, es meramente por una ineludible negociación editorial de espacio y representatividad. Por otro lado, el autor rechaza la idea de Surrealismo ligada a un tiempo histórico, como un ismo más entre el aluvión de las vanguardias modernas, una periodización que podría propiciar cierta idea de atraso diacrónico, en el Continente, respecto al movimiento parisiense de 1924.

En 1974 Octavio Paz reunió artículos y conferencias sobre el surrealismo en su libro La búsqueda del comienzo, que implicó una delimitación de raigambre historicista a la acción surrealista. Martins prefiere el comienzo de la búsqueda, que da título a su volumen, a sabiendas de que el surrealismo no es intrínsecamente hecho histórico sino ángulo de contrapunto a la poesía constructivista que también atraviesa la poesía continental. Toda la modernidad, dice Martins, aun en sus avatares esteticistas o cientificistas, sufrió el impacto de una erupción onírica u obtuvo al menos la información de un fervor animista, sea en el vientre oculto de su propia matriz cultural o despertado por identificación con otras culturas. Y uno agregaría: toda la modernidad, menos la uruguaya.

No hay, en efecto, un único uruguayo entre los doce poetas, largamente ilustrados, de esta antología. El (casi) inexistente surrealismo uruguayo del que habla el poeta Eduardo Espina (De la jungla de Lautréamont a Selva Márquez, Revista Iberoamericana, 1992) brilla, literalmente registrado, por su ausencia. Y esa carencia está sin duda en la base de cierto tono menor de la lírica nacional que atraviesa el siglo XX desamparada, conformada muchas veces frente al constructivismo positivista y burgués.

Martins privilegió la sólida representación de cada poeta, y no el número de autores. Comparecen aquí: Aldo Pellegrini (Argentina, 1903-1973), el poeta que desde la revista Qué, de 1928, divulgó y trabajó el automatismo; César Moro (Perú, 1903-1956), el limeño de lengua francesa que rehusó su idioma materno, a veces aun en su vida privada, pero volvió a ella en México, tal vez movido por el amor de un hombre; Enrique Molina (Argentina, 1910-1996), el surrealista heterodoxo y apasionado; Emilio Adolfo Westphalen (Perú, 1911-2001), compañero de Moro aun en sus provocaciones contra Vicente Huidobro; Octavio Paz (México, 1914-1998); Enrique Gómez-Correa (Chile, 1915-1995), poeta del grupo Mandrágora, de la noche y la magia del poema negro; Juan Sánchez Peláez (Venezuela, 1922), propulsor del surrealismo en su país; Ludwig Zeller (Chile, 1927), creador de la Casa de la Luna, perseguido en su país, residente después en Canadá y hoy día en México; Juan Calzadilla (Venezuela, 1931), un pilar de la mítica revista El techo de la ballena en la Caracas de los ‘60; Roberto Piva (Brasil, 1937) y Sérgio Lima (Brasil, 1939), los dos poetas de lengua portuguesa que, junto a Claudio Willer, se inscriben en una vertiente surrealista que al mismo tiempo rechaza los principios programáticos del movimiento; y Raúl Henao (Colombia, 1944), quien propone enlazar embriaguez y sobriedad, sueño y vigilia.

Sin duda, como toda antología, hecha además por un poeta, el conjunto revela y pone en abismo el doble juego entre la representatividad y la estética del antologista. Para ampliar las perspectivas de acceso al surrealismo continental, Martins cierra el volumen con cuatro entrevistas conducidas por él mismo en los últimos años (a Roberto Piva, a Ángel Pariente, a Francisco Madariaga y a Sérgio Lima) y un artículo sobre la estética de Enrique Molina. Por vocación, el libro importa en todo el Continente, pero acaso más entre nosotros, y justamente por el motivo inverso, por la falta de esa vocación irracional y onírica en el positivo, cartesiano Uruguay.

 

 

2002

RODRIGO PETRONIO

O mergulho em todas as águas

 

A verdade é que todos querem ser Deus. E cada vez me parece que a grande tradição poética é consubstanciada por quem se recusa a sê-lo.

FLORIANO MARTINS

 


Se a inteligência de um homem é proporcional à sua capacidade de estabelecer recusas, ao conversar com o cearense Floriano Martins tem-se a nítida sensação de estar diante de um homem muito bem-dotado dessa faculdade tão mal distribuída entre os seres humanos, sobretudo entre os intelectuais. Autor do livro de poemas Alma em Chamas, certamente um dos acontecimentos poéticos das últimas décadas, e de uma obra volumosa que abrange ensaios, crítica, tradução e entrevistas com poetas, além de uma série de inéditos, Floriano é um dos maiores conhecedores da poesia latino-americana moderna e contemporânea entre nós, e vem fazendo pontes das mais estimulantes entre essas literaturas e o Brasil. Mas, para nossa surpresa, é uma voz solitária e praticamente isolada em sua proposta. Pela importância e amplitude desse trabalho, veiculado sobretudo nas revistas virtuais Agulha e Banda Hispânica, das quais é editor, assusta sabermos que ele não tenha maior repercussão. Também é de se estranhar que algumas poéticas e estéticas como o Surrealismo, por exemplo, de grande penetração no resto da América e do mundo, não tenha encontrado acolhida em terras brasileiras. E Floriano, para reparar esse lapso e historiar o desenvolvimento do movimento lançado por Breton em Paris em 1921, publicou recentemente o livro O Começo da Busca- O Surrealismo na poesia da América Latina, que traça um perfil histórico dessa estética, emulando e invertendo o título de um livro onde Octavio Paz faz esforço similar, La Búsqueda del Comienzo. Agora prepara o segundo volume desse trabalho, que virá aprofundar, desenvolver e complementar alguns aspectos do primeiro.

São múltiplas as causas da negligência brasileira para com a cultura de seus vizinhos e da nossa resistência a um tipo de representação artística que ele crê das mais subversivas. E é entrando nesses assuntos que a conversa esquenta, e Floriano só falta soltar fogo pelas ventas. Um dos principais motivos dessa barreira brasileira é o que ele chama de falseamento da história. Segundo ele, todo corte brusco e abrupto na história produz uma falsificação, pois apaga a multiplicidade do fenômeno no momento em que ele estava ocorrendo. Assim, a eleição da Semana de 22 como o ingresso do Brasil na modernidade, embora seja um fator aparentemente irreversível, não dá conta da diversidade dos fatos e equivale à leitura do curso das águas em uma lagoa. Muita coisa se perdeu nesse processo, e a extensa documentação sobre cantos populares colhida por Alberto Nepomuceno, por exemplo, intelectual morto em 1920, anterior portanto à Semana, e de quem Floriano escreveu uma biografia, foi praticamente esquecida em proveito das pesquisas de Mario de Andrade. Por outro lado, o Modernismo teria inaugurado um regime de exceção, por meio do qual convalidou seu ideal de modernidade e de nacionalismo imbuído do Futurismo de Marinetti, e a partir do qual passou a criar os critérios eletivos para a formação do cânone literário no Brasil, critérios esses nem sempre de ordem estética, mas meramente ideológicos. E aqui entra o Surrealismo, mais especificamente os argumentos que Floriano desenvolve em o Começo da Busca, e a defesa de duas diretrizes: uma reavaliação urgente do lugar que Murilo Mendes e Jorge de Lima ocupam no cenário da literatura brasileira, instigando a crítica a desvinculá-los de vez dos estigmas limitadores da poesia em Cristo, e a recusa desses dois poetas como sendo os únicos representantes do Surrealismo no Brasil, aos quais Floriano soma os nomes de Roberto Piva, Claudio Willer e Sergio Lima, entre outros.

Essas faces se conciliam, no entanto. E ele faz um traçado oblíquo onde procura demonstrar as lacunas do cânone literário brasileiro, articulando-as à história do Surrealismo e a uma série de poetas hispano-americanos desconhecidos por nós. Suas reivindicações são duras, passam longe da fala amaneirada e adiposa com a qual viemos nos acostumando nos últimos tempos no âmbito do debate literário. Assim, ele começa julgando que mesmo a trinca de ases que gozam de prestígio em língua portuguesa- Paz, Neruda e Borges- deveria ser filtrada com maior seletividade e analisada de forma mais consequente. Porque Octavio Paz, que sempre foi crítico da realidade que tinha à sua volta, com o tempo começou a deixar de sê-lo, e, como poeta, acabou se cristalizando bastante cedo. Neruda pôs em cena o seu ego monumental para a criação de suas obras cosmogônicas, mas não conseguiu levar sua empreitada muito adiante, e Borges, segundo Floriano, é um grande fabulista, um homem dono de uma grande capacidade de fazer de si o centro do mundo e de criar mundos possíveis, mas que, como poeta, faz valer as palavras do crítico Gerardo Deniz, sendo muitas vezes previsível e enfadonho.

Nesse diapasão de leitura crítica, para Floriano, não só o nosso desconhecimento da literatura hispânica é aviltante, como o que conhecemos é muitas vezes referendado sem muito rigor e absorvido de forma um tanto epidérmica. E um caso onde essa distorção se dá de maneira mais aguda é no que diz respeito ao cubano Lezama Lima, um dos seus autores prediletos, mas cujo caráter algo enciclopédico de sua obra e sua reivindicação de uma estética autóctone por intermédio da figura do Señor Barroco, presente em um dos seus ensaios, acabaram sendo apropriados pela estética Neobarroca de Severo Sarduy e pelo Neobarroso do argentino Nestor Perlonguer, que fizeram uma leitura distorcida do grande poeta, autor de Dador. E nesse ponto Floriano parece dar as cartas da tradição poética que realmente lhe interessa. Segundo ele, todos esses autores tentaram, cada um à sua maneira, ser Deus. E que cada vez mais lhe parece que a grande tradição poética é consubstanciada por quem se recusa a sê-lo- arremata. É assim que trava o seu pacto luciferino com o anti-cânone das letras hispânicas, ou pelo menos com o lado menos óbvio do mapa dessa cultura, e fala de suas predileções, como o poeta venezuelano José Antonio Ramos Sucre, que se matou por não suportar mais a presença de visões que lhe assombravam a existência e não vivia “em um plano literário, mas sim na mesma dimensão excessiva de um Artaud”. Faz uma menção especial aos poetas do Chile, cuja vertente múltipla encontra em Pablo de Rokha, Rosamel del Valle e Humberto Díaz-Casanueva uma fonte de renovação que não desconsidera o autóctone e se manifesta no diálogo com a Europa. Já no colombiano León de Greiff, encontramos o mais surpreendente caso de polifonia na tradição poética latino-americana, enquanto o guatemalteco Luiz Cardoza y Aragón soube buscar na algazarra da modernidade uma voz que fosse a soma de todas. Floriano ainda repassa o nome do nicaraguense Pablo Antonio Cuadra, que, assim como Lezama Lima e Octavio Paz, foi um dos autores pioneiros nas leituras que têm como objetivo uma definição cultural da América, e que estabeleceu uma nova relação com o mito.

Claro que essa dificuldade de penetração do Surrealismo no Brasil não se deve apenas a um fator ocasional e à formação do cânone. Deita raízes em uma longa tradição positivista, que se espraia em uma série de esferas da vida social e intelectual e bloqueia qualquer iniciativa de subversão de seus postulados. Para Floriano, nossa história é marcada tanto pelo peso de teorias cientificistas, no pior sentido desta palavra, quanto por certa chaga cristã, que, por exemplo, obstou uma efetiva explosão do ser nas obras de Murilo Mendes e Jorge de Lima, tornando-os fraturados e divididos em suas consciências entre a aspiração a uma liberdade total e os limites motivados pelo pecado e pela negação católica, e, portanto, incapazes de levar às últimas consequências a proposta Surrealista como ela de fato o foi em outros países. Já o caráter cientificista das teorias positivas, que encontrou ambiente fértil no Brasil, estimulou uma relação cada vez mais imanente e estrutural com a linguagem poética, a ponto mesmo de desvinculá-la da matéria vital que lhe origina e transformá-la em um arranjo de signos, apartada da realidade. Na ótica de Floriano são mais ou menos esses os ingredientes de um novo falseamento da história, levado a cabo pelo Concretismo. E mais uma vez, em 1956, com o Plano Piloto da Poesia Concreta e tudo o que adveio daí, temos um recorte fabricado da história e um novo regime de exceção. Se o afazer poético se torna uma forma de afasia, e ao invés de construirmos uma linguagem que plasme e transfigure todas as dimensões do mundo e todas as camadas da realidade nós nos isolamos nela como nefelibatas em suas torres de marfim, sob a desculpa de só assim podermos conquistar aquela autonomia da linguagem poética inaugurada pela arte moderna, então rompemos todos os vínculos entre o pensamento e a ação, e todo o projeto de criar uma arte inclusiva e de valor rigorosamente continental vai pelos ares.

O interessante é que Floriano, em um dos seus livros, Fogo nas Cartas, defende a tese de que a poesia, mesmo sendo intransitiva, é filha da alteridade. Sua visão é de que poesia e política se complementam, assim como a reversibilidade do imaginário e do real pode gerar novos horizontes, novos focos de luz que podem incidir e transfigurar a face da realidade que se nos apresenta. Assim, a chamada autonomia não é algo que se esgota na linguagem, tomada em si mesma, composta a partir de regras intrínsecas e em oposição ao mundo, nem algo que deve servir de veículo ou instrumento de transformação desse mesmo mundo, porque senão ela seria política sem ser poética, mas um misto dos dois. E é nesses termos que ele se refere a alguns dos poetas brasileiros como autistas: creem que a autonomia nasce de um idioleto, de uma fala exclusiva criada por eles mesmos ou pela manipulação da linguagem em uma dicção especial e especiosa que por ventura tenham encontrado. Pelo contrário, Floriano diz que a autonomia do poeta só nasce no momento em que ele mergulha em todas as águas, e sente sua voz a tal ponto madura que pode com ela e nela plasmar e encarnar a realidade que o circunda, não apenas descrevendo-a ou manipulando técnicas, mas penetrando verticalmente o mistério do Ser e o seu devir.

Essas considerações ganham uma dimensão muito ampla se pensarmos na história de nossa mentalidade e nas estruturas hegemônicas do pensamento no Brasil. Basta lembrar que boa parte da nossa poesia e da nossa crítica literária atual flertou ou ainda hoje mantém vínculos fortes com a vertente Estruturalista, com a semiologia ou com as escolas mais recentes dos desconstrucionistas, como a de Derrida, por exemplo, que pregam um recorte poético sincrônico e atemporal, onde a poesia pairasse incólume, livre das contingências e cristalizada sob a forma de um puro enunciado discursivo. É claro que de novo isso não tem nada, e já está na antiguidade: o velho filósofo grego Crates, da escola cética, também propôs que a verdade era inacessível, porque tudo era fruto de artimanhas da linguagem. Com a diferença que Crates, de posse dessa mazela existencial, foi viver com os cães, dormir em um barril, ter seu corpo forrado de pústulas e se alimentar exclusivamente de tremoços, revelando no mínimo mais coerência e honestidade intelectual do que os nossos novos céticos, que usam toga universitária e falam francês.

Por outro lado, há uma outra tradição intelectual brasileira que procura dar fundamentos ontológicos à história, e é movida por uma busca romântica frenética de Nacionalidade e da essência nacional que nos constitui, busca essa que, malgrado ser frenética e muitas vezes proceder por meios tão equivocados quanto o mérito intelectual daqueles que a exercem, até que poderia ser de bom talante, caso não desprezasse os meios em benefício dos fins. Em resumo, no meio-fio entre essas duas correntes do pensamento, somos marcados por uma história intelectual cuja chaga, para além de cristã, parece vir coroada pelo dilema infinito e pela disputa maniqueísta entre duas forças que funcionam como a mesma simetria de um céu e um inferno: Forma versus Conteúdo. Haja vista que mesmo as variantes desses termos partem deles, ora invertendo seus postulados ora os embaralhando, sem, contudo, dar um passo sequer além da pobreza dessa descrição de mundo. E penso aqui na Antropofagia de Oswald de Andrade, que pretendeu eleger a forma brasileira de ser, e no Concretismo, que fez da forma um conteúdo, como um caranguejo que se crê revolucionário por ter decidido andar para frente. O fato é que, para qualquer pessoa inteligente, ambas não passam de um purgatório, e o que esperamos é uma redenção, não um aprofundamento de nossa própria esquizofrenia.

O mergulho em todas as águas de que nos fala Floriano Martins é providencial e significativo. Aliado à perspectiva continental de sua visagem literária e ao caráter libertário do Surrealismo, sinaliza que ainda há muita água para correr pelo rio de Heráclito, muitas barragens a serem estouradas e muitas lagoas onde os sapos de ontem, sempre os mesmos, ainda coaxam, a serem arrebentadas pela fúria de seu devir que há de explodir em um futuro próximo, segundo carta de Pierre Naville que Floriano Martins cita. Quem sabe assim a dualidade do bem e do mal seja superada e possamos enfim auscultar a unidade parmenídica do Ser essencial que configura e anima todos os seres, sejam eles movidos pelo fogo, pela água ou por qualquer outro quinto elemento que esteja além da matéria, que desconhecemos e que provavelmente nunca viremos a conhecer.

 

 

2002

NICODEMOS SENA

A busca de Floriano Martins

 


A grande arte é como as águas de um rio, ou como a vida no universo, que não têm começo, meio nem fim. Foi o que me fez pensar a recente leitura do poema Extravio de Noites, do cearense Floriano Martins (Caxias do Sul: Maneco Livraria & Editora, 2001).

Em busca da palavra perdida, o poeta vai bem além: ao tempo em que nem havia palavra, quando as coisas ainda estavam por ser nomeadas. O paradoxo, entretanto, é que ele consegue isso por meio de uma profusão torrencial de palavras, as quais, reunidas num só caldeirão, são como que o troar de uma legião de anjos/demônios. Pela linha do excesso, do transbordamento, Floriano Martins empreende a recuperação do elo perdido entre ser e tempo, palavras e coisas.

Eis um exemplo retirado a esmo do poema: Agimos com palavras, e caímos em ardil / quando não as prezamos acima de tudo. / Não importa que seja a palavra empenhada / em um jogo de cartas ou sobre o corpo / de uma puta. Que esteja escrita em versos / ou em discursos de posse, nada a diferencia. / A palavra dada antecede qualquer ação, já o dissera um cavalo pela boca de Tolstoi. / Construa ou destrua, tudo no homem se define / por sua palavra. Concebe a Deus e se põe / acima dele, porque assim está escrito. / E escrito está o que por vezes se modifica. / Porém irremovível parece restar um princípio: / a palavra valerá nada se não valer o homem.

Na busca da palavra extraviada, do elo perdido, da revelação primordial, Floriano Martins se lança nas águas da poesia (e da vida, que para ele andam misturadas).

Em vez de reduzi-lo a uma Escola literária (o Surrealismo), prefiro filiar a poesia de Floriano Martins a um certo modo de olhar o mundo, original, incômodo, contestador da asséptica poesia oficial, usada como trampolim. Em O Começo da Busca - O Surrealismo na poesia da América Latina (São Paulo: Escrituras Editora, 2002), o próprio Floriano mostra-nos o vínculo entre gerações malditas de poetas latino-americanos. Trazendo fragmentos de poemas e trechos de palestras/entrevistas dos poetas, O Começo da Busca apresenta-nos esse modo de ver/viver o mundo que tanto mal-estar tem causado aos poetas de resultado.

Não se trata de uma escola literária (o Surrealismo), mas sim de uma concepção total do homem e do Universo: é um humanismo poético, em que no centro está o homem- não a divindade- projetado ao absoluto e ao infinito, com todos os poderes implícitos na condição humana, escreveu o poeta argentino Enrique Molina, em favor do Surrealismo. Poética pautada por um inconformismo absoluto, dentro do que ele próprio defende como um permanente gesto de desafio à condição humana, em Molina convivemos com a linguagem em profundo estado de questionamento, o poema em propósito desesperado de mudar a vida, de iluminar as obscuras zonas do ser, de estabelecer, mediante a inesgotável torrencialidade das imagens, a interseção dos contrários, assim Floriano Martins refere-se à poesia de Enrique Molina.

Essa torrencialidade das imagens talvez seja a mais forte característica dos textos surrealistas. O Começo da Busca fornece-nos exemplos: O canto / nasce do sangue do coração noturno / os pássaros passeiam / por entre gatos fosforescentes. (…) Cada olhar é uma árvore que navega em um rio / uma árvore que cresce em palavras líquidas / até que transborde o céu adormecido (Aldo Pellegrini, Argentina, 1903-1973); A prostituta estirada na rua / na pompa do crime recém-cometido, / é imensa como o silêncio de Deus (Enrique Molina, Argentina, 1910-1996); Diafanidade de auroras refletidas em múltiplos espelhos / Deslumbramento de músicas cobrindo a montanha como um alto arvoredo / Seguindo seu curso de água naufragando um céu em cada enseada (Emilio Westphalen, Peru, 1911-2001); A cidade desvelada circula por meu sangue como uma abelha. (…) Deter-se um instante, deter meu sangue que vai e / vem, vai e vem e não diz nada, / sentado sobre mim mesmo como o iogue à sombra / da figueira, como Buda na margem do rio, deter / o instante, / um só instante, sentado na margem do tempo, / apagar minha imagem do rio que fala adormecido e / não diz nada e me leva consigo, / sentado na margem deter o rio, abrir o instante (Octavio Paz, México, 1914-1998); Minha figura estende-se em um rio calmo / Contido no longo plano do vale sob um céu / levemente azulado / À espera da subida dos peixes que desovarão em / minha cabeça (Sérgio Lima, Brasil, 1939).

Há rio, há vida, há sangue pulsando nesses versos. Poesia educada pela água, extensa, líquida, transbordante, mítica, onírica, a provocar delírios. Poesia excessiva, como a vida, aberta para o acaso. Poesia que mira o obscuro, o insólito, a irrealidade das coisas óbvias, e não teme a palavra, mas vasculha-a debaixo dos entulhos da civilização. Poesia que se assombra diante de tudo quanto a rodeia e busca uma resposta sobre a “abismática” natureza do Ser. Poesia que não se resigna diante da morte e de Deus e quer mudar a vida, melhorar o homem e se joga de cabeça no absurdo da condição humana. Poesia herética, feita por visionários, como Rimbaud, Novalis, Nerval, Lautréamont, Breton, Enrique Molina, Aldo Pellegrini, Octavio Paz, George Bataille, Ludwig Zeller, Murilo Mendes, César Moro, Claudio Willer, Roberto Piva, Sérgio Lima, Floriano Martins, Enrique Gomez-Correa e Vicente Franz Cecim (este não por acaso nativo da Amazônia, o último reduto da Imaginação), que ousaram lançar esse olhar sonâmbulo-amoroso-louco-mortífero-clarividente-latino-amazônico-bárbaro-banido-bandido-periférico-nordestino sobre o mundo.

 

 

2004

SUSANA WALD

Floriano Martins y los recuerdos de la Feria del Zócalo México

 


Esperábamos hacía días la llegada de Floriano Martins. No teníamos acceso al correo electrónico y no sabíamos a ciencia cierta en qué día iba a llegar.

Una semana antes del 15 de octubre habíamos paseado por el Zócalo de la Ciudad de México y nos encontramos (no por casualidad, porque las casualidades no existen), frente al hotel Majestic. Recordé que Floriano había mencionado este hotel en sus cartas, así que entramos ahí y al consultar con la recepción nos confirmaron que sí, que ahí estaban los escritores brasileños que participaban en la Feria del Libro del Zócalo, y que sí, la semana siguiente ahí estaría también un señor Floriano Martins.

Por eso en la mañana del 15 llamé al hotel y me confirmaron que Floriano sí estaba. Pregunté si sería prudente que lo despertara a estas horas y el conserje me aseguró (¿cómo lo sabía?) que el señor Floriano ya no estaría durmiendo.

Fue maravilloso poder oír su voz. Quizás ya habíamos hablado antes por teléfono desde las distancias siderales que separan nuestros respectivos domicilios, pero fue muy novedoso oírle y quedamos ambos muy encantados de estar tan cerca, ya en la misma ciudad. Se hizo la cita: A la tarde, en la presentación de su libro, Un nuevo continente publicado en Costa Rica.

Estuvimos puntuales, Ludwig Zeller y yo. Desde lejos ya pudimos ver su cabeza inconfundible, envuelta, a pesar del calor, en su boina negra que no se quitó en todas las horas que pasamos juntos. Ludwig y Floriano se lanzaron imantados el uno al otro, se abrazaron y celebraron muy contentos su encuentro, para la distracción de los que presenciaban el hecho en el improvisado Café Salvador Novo, instalado cerca del centro del Zócalo. Floriano y yo también nos abrazamos entusiastas, exclamando, como la mujer en la película de Fellini: ¡Finalmente!

Porque hasta este momento, nuestro contacto ha sido solamente electrónico, por así decirlo, castamente. Cartas han estado yendo y viniendo, publicaciones, entrevistas, todo ha sucedido en el ámbito electrónico entre Floriano y nosotros, él en la para mí mítica ciudad de Fortaleza, en lo que parece el punto de Brasil más avanzado hacia el oriente, como si quisiera volver a encontrar su hueco en el sobaco de África.

Por fin nos sosegamos y nos sentamos como el resto de los asistentes tranquilamente a una mesa del café. Y comenzó la charla, la plática, el goce de hallarse en el mismo lugar y en la misma hora. Y la espera se prolongó bastante.

Antaño los “defeños” que es como se denomina a los que viven en la Ciudad de México, D. F. (Distrito Federal) eran muy impuntuales, como son aún los habitantes de las tranquilas ciudades del sur del país. Pero eso era cuando todavía no había tanta gente en el D. F., cuando no había tantos asaltos, cuando no había tan espesa contaminación, en esos tiempos que los jóvenes no conocieron y los viejos se empecinan en recordar.

Y siendo que ahora los defeños son puntuales, muchos de los presentes se empezaron a inquietar cuando las manillas de los relojes anticuados y los números de los digitales marcaron el tiempo asignado para el evento al que veníamos, Floriano desde Brasil y Ludwig y yo desde Oaxaca. (Nos habíamos demorado más o menos lo mismo en llegar, sólo que Floriano lo hacía en un velocísimo avión y nosotros en nuestra pequeña maquinita con cuatro ruedas, recorriendo, la vista de él, desde el aire, un continente, y la nuestra, por tierra, un trocito del espléndido México.)

Esperábamos a los presentadores del libro de Floriano, Evodio Escalante (México), Alfonso Peña (Costa Rica) y Saúl Ibargoyen (Uruguay-México), según rezaba la invitación al evento. Aprovechamos muy bien el tiempo de la espera, estando aún inmersos en la maravilla del encuentro, a diferencia del público que también había venido al lanzamiento y que se estaba impacientando por la demora. Del trío esperado finalmente apareció Saúl Ibargoyen, rostro para nosotros conocido de eventos defeños anteriores. ¿Y el libro? No había llegado. ¿Y su editor, Alfonso Peña? Tampoco. Pasamos un rato aún gozando el encuentro de los que llegamos de variadas distancias con Ibargoyen, legítimo defeño también.

La presión de los asistentes y los organizadores y la hora que no perdonaba produjo entonces un evento muy grato y simpático. Subió Floriano al podio negro regado de micrófonos, con asientos negros, ante un fondo negro y gris oscuro de telas y plásticos, todo conectado con un mar de cables, también negros. Y empezó a improvisar. Y para apoyarse en la improvisación invitó primero a Saúl Ibargoyen a que subiera junto a él (después de todo, así estaba programado) y luego a Ludwig Zeller quien de este modo aportaba el elemento de sorpresa.

Los tres poetas sentados, amigos sinceros, improvisadores excelentes (como todos los poetas), nos brindaron a los que los mirábamos encantados y entretenidos, una sesión de poesía y de charlas y recuerdos realmente extraordinaria. Hablaron del surrealismo en Brasil, en el Cono Sur, esa remota región de donde venían Saúl y Ludwig, de Venezuela, de los amigos surrealistas de tantos países de América Latina, del español y del portugués. La charla fluía plácida y fácil, los tres estaban en su elemento. Luego vino la lectura de poemas y se empezaba a notar que el tiempo se hacía corto. Los organizadores ya sabían que este evento estaba excediendo su periodo asignado, que el siguiente estaba atrasado. Y a pesar de que todos ¡queríamos más!, como los niños que gozan los dulces con que se los regala, no se pudo.

El trío repentinamente acabó con sus lecturas, bajaron del podio, se mezclaron con el público que entonces los rodeó. Se intercambiaron, firmaron, dedicaron libros y revistas y tarjetas. Y poco a poco, como se va asentando la espuma encima de un vaso de cerveza recién vertida, el evento se apaciguó y abandonamos el espacio a los siguientes escritores que debían ocuparlo.

París sin duda vale una misa. Y encontrarnos cara a cara con Floriano Martins y con Saúl Ibargoyen bien valieron la travesía de dieciséis horas en automóvil.

 

 

2004

CONTADOR BORGES

Orelhas de Estudos de pele

 


Abra o livro e indague que voz é essa que não se deixa pegar? O que está dizendo, para onde me leva? A sensação de vertigem é imediata, o desconforto idem. Quem houver lido poderá se lembrar do que certa vez disse Jean Cocteau, que poesia é uma língua à parte que os poetas podem falar sem risco de serem entendidos, ou seja, nos encontramos atônitos em uma terra de ninguém. O estranhamento desses Estudos de pele, o chão do poema, em princípio trêmulo, escorregadio como gelo fino, vai aos poucos se firmando aos nossos olhos, fazendo sentido à deriva, desdobrando sua interrogação aberta só respondida com outra indagação adiante, luminosa, atirando o leitor contra a parede, instigando o homem que ele é, intranquilo neste horripilante começo de milênio, mas que aqui se potencializa, à beira do abismo, pensando-se no extremo de si mesmo.

Floriano Martins atua, forçando o nosso limite, neste não-lugar em que a palavra se ritualiza e assim fazendo celebra o próprio sacrifício. O sacrifício que para Georges Bataille é justamente a expressão do acordo íntimo entre a morte e a vida. Entenda-se: ocasião para dor, mas também para o êxtase, em movimento gozoso, especular em sua ambivalência, ato em que a escrita, ao atentar contra si mesma, escalpelando o próprio couro, promove a sua maior razão de ser: a pura liberdade de fluir.

Singular também é o elemento dramático que pulsa na linha poética, onde todos os nomes ou referências (Madalena, Ester, Maria, Dália, Alfredo, Lusbet etc.) são máscaras de linguagem, formas catalisadoras do sujeito que as utiliza para demarcar o sentido no movimento do fluxo da escrita e assim exuberá-lo enquanto ele mesmo, sujeito, se aniquila. Toca, ainda que se passagem, na questão dos gêneros, no modo como este autor audacioso se mantém na fronteira, sem se render a nenhuma, verso, drama, narrativa ou ensaio, ao mesmo tempo em que vai costurando seu texto com traços de todas essas modalidades discursivas. Híbrido de plantas e fantasmas, como diria o Zaratustra de Nietzsche.

A obra flui pelas beiras, explora as marginais, os espaços de exceção, para fazer valer seu gesto incomum, desviando o olhar do leitor para onde ele não costuma estar, para que possa tomar parte, convidado de última hora (com toda a urgência que a expressão comporta), na celebração de regozijos que realiza.

Com quantas peles se faz um texto como este? Peles de diferentes tipos e origens, pela sobre pele, onde a própria nudez é tecido, cintilância, dobra irreverente, que não se amolda e não aceita a passividade das lisuras.

São vários livros ao mesmo tempo, livros que não terminam e começam de algum modo não propriamente do início, mas de um ponto invisível na intersecção da fala com o silêncio, da luz com a sombra, fala sub-reptícia, pega de surpresa num vacilo do nada, e que se imprime nesses textos, nos quais o leitor, mobilizado, sai das páginas de um para entrar em outro, e depois de tudo, refeito pela experiência da leitura, possa ainda revisitá-los por novas vias e atalhos.

Nem sempre os livros têm um fim ou começo, mas tão somente peles. Quem ler saberá tocá-las, vesti-las ou despi-las como corpo ou estamparia do infinito.

 

 

2004

LINALDO GUEDES

A ruidosa agonia dos espelhos poéticos

 


É um livro estranho, sim, este de Floriano Martins, poeta cearense, que chega às minhas mãos. Estudos de Pele, lançado recentemente pela Editora Lamparina, é composto de poemas onde a tônica do estranhamento é uma constante. Para o leitor e, parece, para o próprio poeta. Não é poesia discursiva, inventiva ou clássica. Ao mesmo tempo, é poesia discursiva, inventiva, clássica. Um livro que rasga a pele da poesia de forma aparentemente sutil, mas em alguns momentos com uma volúpia que nos faz refletir nestes tempos de guerrilha, sejam bélicas ou culturais.

Contador Borges é muito feliz na orelha do livro, quando diz que em Estudos de Pele a sensação de vertigem é imediata, de desconforto idem. O estranhamento desses Estudos de Pele, o chão do poema, em princípio trêmulo, escorregadio como gelo fino, vai aos poucos se firmando aos nossos olhos, fazendo sentido à deriva, desdobrando sua interrogação aberta só respondida com outra indagação adiante, luminosa, atirando o leitor contra a parede, instigando o homem que ele é intranquilo neste horripilante começo de milênio, mas que aqui se potencializa, à beira do abismo, pensando-se no extremo de si mesmo, analisa Contador Borges, análise essa que assino embaixo.

O livro todo, como explica o próprio Floriano Martins numa espécie de apresentação à obra, é um constante vaivém entre o corpo humano e o corpo da criação. De um lado, a pele do erotismo, que perpassa cuidadosa e bem construída por todas as páginas do livro. De outro, a pele da palavra, ou da linguagem poética, com resmungos, amuos, questionamentos e tiros certeiros do poeta.

A pele do erotismo surge, sinuosa, logo no primeiro capítulo- Sombras raptadas (aliás, a sombra da interrogação parece perseguir o poeta em todos os poemas). Referências femininas diversas surgem imponentes nas páginas, por mais submissas que possam parecer. Com elas, o poeta trava um diálogo-monólogo (acreditem, isso existe, sim, na poesia de Floriano Martins) onde o leitor acaba sendo o principal interlocutor. Lembra temas bíblicos e adapta, com extrema beleza (isso ao lembrar que Camões já o tinha feito) a história de Jacó, com o eu-lírico esperando por sete anos um entendimento sobre a terra que carrego em meu ventre. Aliás, esse primeiro capítulo parece um lento e provocante ritual, com o cultivo de orações em busca do gozo prometido pelas diversas personagens femininas presentes.

Em outros capítulos, o ritual erótico é também uma constante. Como no belíssimo poema Vestes, do capítulo Crime e fuga. Aqui, os panos nus servem de metáfora para o sangramento da pele:

 

Os panos como papiros, inscrições invisíveis que ensinam a

 manter quente a cabeça de um deus morto.

Nus.

Com a medida do inferno de cada dobra

do tecido de que somos feitos.

 

Mas é o ritual poético que surge, também com muita força, neste mesmo capítulo. Enquanto deixa anotado em algum lugar que não deve se lembrar de mais nada, o poeta vai lembrando coisas, vomitando versos que nos fazem refletir. Alguns desses versos parecem sinopses dos nossos acontecimentos em pleno 2004; O esplendor de imagens vicia o poeta em uma enganosa metafísica. Tudo nele é forma transparente, diz Floriano Martins. E não é verdade que estamos ficando tão viciados nesta obsessão pela imagem? Lembro agora, até, um comentário de um poeta tradicional aqui do Nordeste ao receber o elogio de um amigo às imagens presentes em sua poética: e o meu poema é uma igreja, para ter imagens?

Mais na frente, o cearense é incisivo, ferino, autocrítico. Fala que os poetas são vítimas de nada: A única enfermidade que lhes cabe é a presunçosa arrogância. Injustos, capitais e amargurados, aqui estamos os poetas, todos, tolos. Onde estala a liberdade?

Em outro momento, do mesmo poema, não por acaso intitulado Arlequim, é deliciosamente irônico: Risível um poeta falar de ajuste de termostato? Se considerado que hoje mal troca a lâmpada queimada dos próprios versos, sim. Um encontro de poetas? Sempre temo pela ruidosa agonia de espelhos. A terra enferma, o silêncio indecifrável, essas pequenas agonias rumorejantes. Seja como for, melhor que se encontrem, sempre. Assim doemos ao vivo, uns diante dos outros.

Doemos ao vivo, Floriano, em busca do hóspede certo para a poesia desesperada que teima em nos cutucar. Em fuga dos espelhos que estão sempre a exibir a imagem poética que queremos ver. E nada mais que isso.

O que faço com o poeta depois de escrito o poema, indaga Floriano Martins. Diria, que deixá-lo abandonar-se nas mãos do leitor. Ele, o leitor, é que dá o destino merecido a cada poema e a cada poeta. Ele, o leitor, também se dividirá entre encanto e estranhamento com a leitura de Estudos de Pele. Mas não é para isso que os bons livros são feitos?

 

 

2005

MARIA DA PAZ RIBEIRO DANTAS

Estudos de Pele, de Floriano Martins

 


No título Estudos de Pele, o último livro de Floriano Martins, a palavra pele parece sugerir uma pista falsa. Entrar no texto é praticar Um rasgo bem dentro do abismo, onde o coração dispara e ninguém pode conter a presença do indizível. Trata-se de adentrar um labirinto com passagens em múltiplas direções. O roteiro conduz a um descentramento e este se dá em face de um referencial: o conceito de identidade. Num capítulo da Parte III – O hóspede –, que mescla prosa e poesia, é discutida a questão da identidade, na arte ou fora dela. O mesmo em face do mutável. Desde a Parte I, o texto dá espaço às suas visitas perversas (algumas personagens bíblicas mulheres (em Paródia do cadafalso) e várias outras como em Um livro de Ângela, são apenas dois exemplos. A inesperada visita dessas sombras perturbadas não me leva a pensar senão em uma coisa: temos que aprender a ter mil vidas a um só tempo. O que parece faltar às vezes a essas sombras (no caso das bíblicas) é a leveza de ser outra coisa, sem a carga de ressentimento que as liga umbilicalmente a seus contrários. Como em Silentes Suplícios (Marta).

A obra é dividida em nove partes: 0 – Paródia do cadafalso, I – Sombras raptadas, II – Crime & Fuga, III – Rastros de um caracol, IV – Dores de nada, V – Dália do coração negro, VI – Lusbet: eis o abismo, VII – Um livro de Ângela, VIII – Ruínas exaustas, IX – Modelos vivos.

As labirínticas passagens, as múltiplas direções sugeridas pelo texto de Floriano sinalizam por vezes uma espécie de curto-circuito nos níveis tidos como normais de percepção da realidade cotidiana dentro dos mecanismos em que está estruturada a linguagem da vida em sociedade. É o que ocorre em determinadas situações narradas, como a que temos em O Cão e o Lustre. A cena remete à ideia de demência (uma forma bem próxima da loucura); mas no texto é, nada mais nada menos, que a transcrição, para a realidade objetiva, do flash agônico de uma subjetividade em ruína, a da avó enferma, visitada pelo neto, pela última vez: Lembro que havia um lustre pendendo do teto. A pouca voz me disse que ali estava com ela aquele negro cão, quieto, confiável, suspenso no vazio. Cão ou lustre? Luz ou escuridão?

Mas se na alucinada visão da avó o cão e o lustre são concretamente a mesma coisa, em Plano de Fuga o Anjo Líquido derrama-se na direção do abstrato, do invisível: O anjo derramando-se no copo assustava-me ao dizer o quanto a vida pode ser outra quando não se tem para onde ir dentro de nós. A vida pode ser outra, mas a identidade? O texto persegue a fuga obsessiva do mesmo (que a psicanálise nega), enquanto trai (dúvida ou ato falho?) certa inquietude quanto ao ser: E se todas essas sombras não forem apenas uma única sombra, a minha, a provocar-me de inúmeras formas? Evocaria então um verso de Luís Miguel Nava em que confessa ter a identidade acelerada.

Inconsciente ou não, o que o texto persegue é a identidade estética. O poema Flagrantes no assoalho (Parte III) expressa um ritual encantatório em que o amor, condenado à morte pela estabilidade do encontro (como se a vida fosse apenas caber em permanência), é convocado à vertigem da busca incessante,

 

(…)

com deuses assombrosos percorrendo a casa, laminando vertigens para um livro, buscar-te,

buscar-te,

jamais desalentar-se

aguar rios, deixar-se desaguar,

nenhuma lição, apenas o corpo caindo,

a buscar-se: e buscar-te.

 

Esse ritual encantatório é a própria poesia, perseguida como uma caça onde quer que se esconda, seja no ínfimo ou no grandioso:

 

(…)

em uma síncope de obsessões, buscar-te, amor,

enquanto o poema te chama e prepara os archotes

que te conduzem por escadarias com línguas voláteis

a seduzir as páginas de teu corpo, sim, teu corpo,

três vezes teu corpo, buscar-te em recâmaras encantadas úmidas invisíveis, um vento sibilante de janelas decifradas pela noite, um coro de trevas, nota contra nota, o bordão entoado pelo acaso (…).

 

O código desse labirinto pode estar em Visita de um Lagarto – momento do livro onde uma teia de imagens oníricas se adensa em narrativa cifrada, de sentido subjacente ao texto. Por aí, pele poderia conotar pele de lagarto, em sua adjacência a mimetismo, metamorfose, forma que se muda

Não há no texto um sentido linear a que possamos ter acesso, a não ser precisamente a construção dessa fuga da identidade. Por isso há passagens em que não escolhe entre poesia ou prosa, fica na indefinição, no limiar; deslizante para poder abranger a escuta quase psicanalítica do outro, sempre outro, ao infinito. Daí os recortes nas visões do garoto, coladas nas páginas dos livros e sopradas no ar, diante de inexistentes janelas:

 

Que forma assumiria tal vestígio em sua vida? As formas significam muito pouco. Poderia seguir recortando-as. Por uma aurícula errante trataria todas as cobras de duas cabeças. Chamaria raio os esfaqueamentos misteriosos que não raro eram comentados em casa E daria pernas ou asas ao pescoçudo gramofone da avó. As formas não lhe bastavam. Um novo personagem lhe despertara para tanto. Arrastava-se brincalhão sobre seu corpo. Não lhe eram mais enfadonhos os sonhos, embora seguissem silenciosos e em repisado repertório. Tudo permanecia o mesmo, mas ganhava em significado.

O instinto natural de subversão nos leva a ouvir o outro, a contraí-lo enquanto perversão essencial à sua própria existência (Floriano Martins na apresentação do seu Alma em Chamas. 1998).

 

Um Livro de Ângela é momento diverso, em que a narrativa se aclara, torna-se quase linear em seu jorro de imagens urgentes, como a captar o ritmo frenético do instante que passa, através de uma daquelas mil vidas.

 

(…)

Ângela me oferta a caligrafia de suas vertigens,

encrespa-me enquanto perdura,

é apenas um instante,

e quando lhe abrimos as vísceras não há semântica que nos leve além do instante.

transfigurado ressurrecto melancólico derruído,

porém aquecido pela mesma complexidade:

a dor do instante.

 

Enquanto metatexto, pratica uma auto-incisão e cria sua própria imagem (narcísica):

 

 6.

Escrever assim em quebradiço

Dando a falsa ideia de ser nada

Pender para um ponto ou outro

Mudando de forma ou de olhar

Pingando uma imagem ou duas

Tornando o tolo em santa realeza

Glossário de ideias mal defendidas

Crendo que dure a geometria…

Nem todo um livro de Ângela

Recolhe essa anatomia desfigurada do desejo.

Há algo que lhe escapa

Como se pensássemos na evolução de um mesmo dilema:

Somente a impostura garante o sucesso?

(…)

 

Estudos de Pele. Um livro original na medida em que pratica um exercício de semântica, trabalhando com materiais provenientes, ou ao menos familiares, ao universo explorado pela psicanálise.

 

 

2006

JOSÉ ÁNGEL LEYVA

Prólogo de Tres estudios para un amor loco

 


La vida de Floriano transcurre en la red. Como auténtico hombre araña diseña y teje su comunicación con el mundo, sobre todo con el de habla portuguesa e hispana. En su laboratorio doméstico, en Fortaleza, Ceará, en el barrio de Aldeota (global por supuesto), allá en el nordeste brasileño, urde a toda prisa un complejo entramado de contactos y proyectos literarios y culturales que no cesan, que transcurren celosamente cada mes en Agulha Revista de Cultura y en Banda Hispánica. La correspondencia casi automatizada con cientos o miles de interlocutores se alterna con la elaboración de antologías, traducciones, entrevistas y una ardua labor editorial, pero sobre todo con el misterio, con la incredulidad de quienes lo conocemos, de la creación literaria. La efervescencia productiva del poeta es proporcional a su capacidad reflexiva y a su amorosa voluntad de búsqueda, de diálogo con el otro: amigos entrañables, desconocidos íntimos, él mismo. Insaciable, semeja un náufrago que navega con aparente certeza en los océanos cibernéticos, pero sin ocultar esa evidencia de todo alucinado, de todo sujeto extrañado de sí mismo, sediento de ser y estar al mismo tiempo en el lugar del deseo, el propio y el ajeno.

Descubro con sorpresa, cada vez más desbordada, que Floriano es tan conocido que, antes de aludir a su persona, mucha gente se refiere a él como un producto de moda. Lo extraño es que lleva años de novedad. Por lo mismo, es innecesario abundar sobre el personaje. Me referiré entonces sólo a Tres estudios para un amor loco que por lo demás no requiere presentación, se pinta solo–, puesto ahora en circulación por Alforja entre los lectores mexicanos y de idioma español. En este volumen, Floriano deja constancia de su espíritu de gambusino posmoderno en las profundas galerías que nos heredaron las vanguardias literarias y artísticas del siglo XX, en particular del surrealismo y su impronta en América Latina. El poeta, además de fiel seguidor del movimiento que germinó en la mente y en la acción de aquellos dos estudiantes de medicina, André Bretón y Louis Aragón y que se diseminó por el planeta–, es un estudioso exhaustivo del fenómeno, un convencido de su vigencia. Pero su poesía no es precisamente surrealista, si bien acusa un tono retórico y ciertas técnicas emparentadas con la Mesa parlante, es, y no me cabe duda sobre ello, una obra floriana. Producto de su mentalidad trasgresora y anhelante, inconforme y voraz, fagocitaria y polinizante a la vez.

La poesía floriana (por colocarle un distintivo, que no etiqueta) es un hervor visual en territorios de la palabra. El juego fosforescente, luminoso de sus versos provoca efectos múltiples en el espectador-lector. Con habilidad de saltimbanqui o domador obliga a las imágenes a realizar acrobacias conceptuales y emotivas. Las dota de sensualidad, las sujeta a la gravedad de los cuerpos para evitar que se desvanezcan en el aire, en la incontinencia o automatismo verbal. El autor hace juegos, malabarismos en espejos simbólicos donde se advierte la tradición de la vanguardia–, sus significados.

En ese contexto lúdico y escénico, Floriano dicta las palabras llave para hacer figurar lo insólito sobre la hebra de lo lógico. Nos persuade de un equilibrio convulsivo entre los significantes y las imágenes que transitan, ante un público expectante, con sus barras transversales, con sus sentencias al hombro: Construya o destruya, todo en el hombre se define por su palabra. Concibe a Dios y se pone por sobre él, porque así está escrito.

La intertextualidad corresponde a la vocación plástica del poeta, el collage. En cada línea, en cada estrofa, entre poema y poema, importa de otras voces, de otros textos, de otros tiempos, expresiones y escrituras que ensambla con destreza en su propio discurso; el material es el mismo, es él mismo. El autor libera su exuberancia sin rendir tributo al folclore natal, pero sí revela la fuente: el mestizaje cultural y genético en el que es producto y caldo de cultivo. Mixtura es suma, combinación, posibilidad. De Brasil y de Floriano puede decirse irresponsablemente, snob mente, que es un surrealista natural, como lo hizo Bretón al afirmar que México era un país surrealista por definición. El autor respondería que esa condición es un trapecio amueblado por el deseo. En cada ensamble, el autor se descubre en el otro, se confirma a sí mismo al tiempo que se borra y se inaugura. No es ilusionismo, es la manipulación de una pluralidad de opciones que se fecundan con las de otros, que buscan, como lo escribe en un poema: Algo que se anuncie con aquel estupor del aire del que hablaba René Char.

En los poemas florianos se suceden los nombres, las presencias ausentes o mentales de quienes conversan con su ritmo frenético y centrífugo, apacible y centrípeto. Nómina de perplejos y de incrédulos que toman la palabra en un silencio escalofriante, en el principio del espanto. Son los alter ego del poeta, los detonantes de un balbuceo que se vuelve río de saliva, de labios, de lenguas sin límites, de amorosos alfabetos como los que intercambian Lozna y Barbus en su noción del reflejo, en su vehemencia sexual y existencial, pasional, en su lucha por no perderse en el desgaste de las palabras, en su necesidad de decir algo más que la tautología de la muerte. Escuchar nombres más allá de los nuestros, de nuestros personajes, obliga a observar y a pensar la tragedia y el sueño desde otras perspectivas, con significados más próximos a la pregunta que al silogismo. Entre el nacer y el morir, puerta de entrada y de salida sin excepciones, hay un largo camino donde reina el azar y una constelación de sobresaltos, de silencios donde conversamos con los muertos y debatimos con los vivos.

El panteón floriano está habitado por lecturas y ecos de diálogos físicos y virtuales. Lozna y Barbus los dejan sentir en su exuberante discurso donde advierten que el paraíso perdido es quizás el infierno que vivimos. Juarroz, Lihn, Borges, Ghèrasim Luca, Gómez-Correa, Carl Sandburg, Lowry, Eduard Dorn, Horacio, Artaud, Gunter Kunert, Hölderlin, José Ángel Valente, Piva, Murilo Mendes, Lucia Dalla, Pavese, Gonzalo Rojas, entre muchos más, asisten al Banquete, al festín de luces y fuegos de sombras y tinieblas que celebran la palabra.

Eros y Tánatos se ayuntan para darle vida, sentido al acto de respirar sabiendo que hay un fin determinado, que la tragedia está inscrita en el medio, en el centro del deseo, de su ignorancia. La alquimia, la magia, el furor de la verdad amasan la materia con que Floriano invoca el amor para nombrar la poesía, para sacarle más tiras a lo que parece inexistente, a lo que la opinión crítica supone en estado de caducidad. El origen está en la multitud, en la identificación de cada individuo y su lenguaje, en su historia personal hecha de fragmentos por venir, hecha de memoria onírica, de recuerdos arquetípicos. La soledad es extravío, el poeta se descubre en las urbes como estadio de voces diferenciadas, exclusivas. Más que surrealismo, a ratos se antoja la empatía con poéticas y mitos de otras vanguardias, como el estridentismo de Arqueles Vela en La Señorita Etcétera y el Café de nadie, o la prosa de Germán Lizt Arzubide, aunque no estén en las referencias de Floriano. Pero son ámbitos donde lo multánime de los estridentistas se identifica con la lucidez barroca de la unicidad floriana, de su soledad telepática y simultánea en la era de la Internet.

Por último, en la tercera parte que compone este libro, la poesía floriana se trasviste o se desdobla y habla desde la feminidad con la misma intensidad que imprime la voz masculina. Una vez más, el amor reitera su lugar en la existencia, en la voluntad de entrega, de dejarse preñar hasta la muerte, hasta el último suspiro del amante. La trasgresión está en cada acto amoroso, en cada pregunta sobre los límites de lo convencional. El despertar de la protagonista, es como dice Pessoa en alguno de sus versos, es no sólo olvidar sino confundir la vida con funciones de cine, no saber si fue un sueño o el fin de una realidad. Floriano Martins esgrime, inteligente y franco, la posesión como hecho generador del poema. El autor, su anécdota su papel de personaje– queda fuera en el momento en que se descubre aislado, independiente, de la suerte que corren las criaturas y sus fantasmas, cuando ellas encaran su destino, su voluntad de hacerse visibles en la mirada loca del amor, en el escenario del crimen de aquello que impide ser amado.

 

 

2008

CLAUDIO WILLER

A mentira está lá fora, prólogo de Duas mentiras

 


Com este Duas mentiras (2008), Floriano Martins revela-se, mais uma vez, como uma das vozes mais originais da poesia contemporânea brasileira. E como alguém que está permanentemente a questionar a si mesmo, ao que faz, e principalmente o leitor. Evidentemente, provocar o leitor é um modo de instaurar o diálogo, de fazer que a leitura não se reduza a uma relação passiva, unilateral, mera fruição do texto do outro. Outro? Mas que outro? Quem é esse outro? – pode-se perguntar, e certamente o leitor perguntará, pois Duas mentiras transmite a impressão de que seu autor se esconde, ao adotar uma persona feminina. E mais, de que resolveu promover uma inflexão, mudança radical, se compararmos este livro com sua produção anterior- por exemplo, Alma em Chamas, seu livro de 1998- que poderia ser perfilada ao barroco, ou, antes, a um surrealismo metafísico, além de ser associada a algumas das grandes construções de fragmentos que, na modernidade, ocuparam o lugar da epopeia. Aqui, não: o que temos é linguagem quase sempre direta, fluente, de poucas imagens. No lugar da sugestão promovida pela imagética de origem simbolista, há descrições, um percurso minucioso pelas regiões, desvãos e reentrâncias do corpo, por gradações e nuances do erótico. Tudo muito real, nada mentiroso. Poderia ser um depoimento, se o autor fosse aquele – aquela, no caso – que fala. Mas não é. Resta saber se esta é a voz de outro (de outra) ou se sua própria voz é a voz do outro.

Procurando neste novo livro o Floriano dos poemas anteriores, encontramos algo em comum: a preferência pelo poema dramático, com um personagem, um protagonista, que enuncia e declara algo. Mas, cabe insistir, onde está a mentira? Talvez esta seja uma falsa questão, por endossar uma poética realista, da arte como mimese. Sob o ponto de vista literário, é irrelevante se tudo isso foi inventado, ou não. Tanto faz: se não aconteceu, pode acontecer. Acontece. O relato, ou pseudo-relato em Duas mentiras é universal.

Encarar um texto como quebra-cabeças, enigma a ser decifrado, talvez não seja um bom procedimento crítico. Passa ao largo de muita coisa – encontrada a chave, ou uma aparente chave, deixa-se de lado o percurso para chegar lá, o estilo, a escritura propriamente dita. Mas, note-se, Floriano se refere a duas mentiras – se entendermos mentira como sinônimo de negação, de enunciação do que não é, temos uma dupla negação. Uma afirmação através do avesso, nesse canto da reintegração ao todo através da união amorosa. Estes versos de Alma em Chamas podiam servir como sua epígrafe: Teu corpo e o meu caindo sobre o mundo: / noite saqueada por uma caravana de relâmpagos. O par relatado em Duas mentiras nega o tempo. Seu jogo, sua dança, como se expulsassem os espíritos corruptos, dos corpos nus com asas, ilustrados feito uma parábola insofismável, é um exorcismo da grande mentira, que é a passagem do tempo: o amor não tem nenhum apreço pela história. Por isso, refazíamos o enredo, fosse contra os cátaros ou a excomunhão de algum dualismo não revelado, pois tua heresia pacifica e me abrasa as dádivas. Para os amantes, que, ao multiplicar o gozo e o êxtase, superam a circunstância, as dicotomias entre real e imaginário, o mundo do simbólico e aquele das coisas, a mentira está lá fora.

 

 

2008

DAVID CORTÉS CABÁN

Teatro Imposible: la poesía de Floriano Martins

 

Soy el francotirador, el autodidacta.

FLORIANO MARTINS

 


Teatro imposible (Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana, 2007), el nuevo libro del poeta brasilero Floriano Martins, nos revela una deslumbrante manera de acercarse a la poesía. Se explora aquí el sentido de un lenguaje que no agota los modos de representar los temas y motivos que forman ese espacio único donde cada texto funde una nueva imagen del cuerpo, del amor y el deseo, de la vida y la muerte. Floriano Martins ha inventado su estilo y su modo de describir la realidad, ésa que imagina o vive en un lenguaje de novedosa frescura y singular belleza. Como quien mira objetivamente, el poeta se sitúa en múltiples escenarios de un universo que se le presenta como un gran teatro. Desde allí, su palabra va fundando un paisaje de imágenes que proyectan todos los ámbitos de la vida, desde el amor filial que encarna un sentido desafiante de la muerte, hasta las vivencias del amor carnal en su más desgarradora intensidad.

Esta edición recoge algunos de los libros anteriores del poeta, juntamente con poemas que permanecían inéditos hasta el presente. En la nota de introducción, se define la naturaleza y el modo en que han sido estructurados y distribuidos estos poemas. Para beneficio del lector, el poeta mismo hace un señalamiento del trasfondo, el orden y la secuencia que rigen estas composiciones. Al agruparlas, el poeta partió de una nueva idea que rompe con el concepto que generalmente tenemos de una antología, ese que a través del tiempo nos muestra la trayectoria, niveles y matices de la obra de un autor. En este caso, no es la confección del libro como tal la que el poeta enfatiza sino el asunto, el contenido y los planos que se representan en la configuración de los textos. Se trata pues, de acuerdo a la intención del poeta, de crear una nueva formulación de libro, montado a partir de una perspectiva que abarca tanto lo poético como lo plástico. Se encuentran tejidos aquí tres paneles a la manera de una trama pictórica. Cada uno de ellos, a su vez, remite a otro tríptico, de modo tal que no se cierran en sí mismos, sino que se expanden, como pequeños actos o piezas que van pasando de una forma a otra en su prolongación. Las pinturas y dibujos que usualmente ilustran la poesía de Martins no aparecen en esta antología por razones de espacio pues sabemos que la plástica, otra dimensión importante de su obra poética, haría de esta antología una edición más voluminosa y, para fines de distribución, más costosa.

En Teatro imposible confluyen y se superponen imágenes que buscan darle un nuevo sentido al universo y a la vida. Quiero decir, a una realidad que se transforma constantemente en la experiencia de una escritura de distintos matices y situaciones. Si tomamos, por ejemplo, el título del libro y buscamos una razón para unir ambos conceptos teatro=imposible, nos colocarnos ante una idea que nos sugiere múltiples asociaciones, pues el teatro requiere de un escenario físico y de un espectador. Pero en este caso la poesía encarna una autonomía que le permite representar un escenario de situaciones que se interrelacionan y trazan su propio sentido de la realidad. Pienso, y es sólo una intuición, que el poeta busca acercarse al acto creativo desde el punto de vista de las experiencias que definen y/o transforman el destino humano. Por eso la poesía se convierte aquí en un acto de reflexión. Su razón de ser encarna las relaciones que existen entre el amor y el desamor, la vida y la muerte, el destino y la escritura misma en un espacio que se fragmenta en una visión de múltiples interpretaciones. Los trece poemas que componen Cenizas de Sol presentan diferentes personajes y situaciones. Son, como la mayoría de los textos que forman este libro, poemas en prosa cuya intensidad requiere un alto grado de concentración por parte del lector: El desafío de la creación nos reduce a lo inevitable, nos dice en este verso; y en otro: Ando por las calles como si ardiese en una eterna hoguera. Y es que ese hablante poético encarna una experiencia punzante del mundo, una experiencia que irrumpe como un río caudaloso hasta cubrir la vida y la soledad del cuerpo. Estas vivencias y memorias se funden en un lenguaje que nos muestra las cosas no ya como son, sino como las sentimos transformadas en la poesía.

Los libros Sabias arenas y Tumultúmulos son dos elegías donde el personaje poético se funde con la imagen de la madre y del padre. Una reflexión que busca trascender el recuerdo de la muerte. En ambos textos el dolor se expresa a través de un léxico que se caracteriza por la intensidad de las imágenes, destacando la presencia evocada de los padres cono si el destino de éstos fuera la voz que le devuelve un nuevo sentido a su vida y a la poesía: El dolor me conduce a tu reino, dice en este verso y para luego reiterar: Madre / guardada en mí que me visitas. Sirvo a tus sombras. La poesía es también un lugar donde la memoria recobra su pasado. Un pasado que le confiere a la vida una pesada carga de soledad y nostalgia: Hemos sido sólo caída y oscuridad corriente. Un mar de salmos. Porque no podemos con la áspera desnudez de los lamentos. Estas impresiones crean una atmósfera sombría y dolorosa del vacío que siente el hablante ante la dimensión de la muerte y la soledad. El próximo libro, Tumultúmulos, dedicado a la memoria del padre también trata el tema de la muerte: la imagen del padre se presenta como un símbolo central del poema: Soy yo: el libro, las voces / de tu memoria que agitan los secretos del silencio, / tus carnes devoradas por el tiempo. Y más adelante señala: Desapareciste de la tierra días antes de que naciera mi hija. / Desde entonces pude invocar tu nombre como el de un insinuante misterio que me quema los vestidos del tiempo. La identificación con la muerte del padre crea un ambiente sombrío y nostálgico, como si la presencia del hablante poético se deslizara por el escenario de un mundo irracional. Su frágil condición humana refleja la dolorosa realidad de la muerte: Un juego de letras invoca nuestra perplejidad, dice en este verso. Y en la misma estrofa: Padre, padre mío. / Oigo estallar tus murmullos. / Me confiesan la casa herida, espirales de turbio aniquilamiento. / Un juego de letras apenas insinúa remisión: verbo y elemento nos arrastran por salas de reconocimiento. Es como si la poesía misma descendiera a lugares desconocidos buscando la palabra capaz de dilucidar el misterio inexorable de la muerte. Una palabra que dé sentido y ordene su mundo físico: Fui un mago y la magia sorprendía en mí sus flores de cenizas. Las cenizas como las “caídas” son elementos simbólicos de esta poesía: Fui un mago impotente frente al fuego, señala, pues sus fuerzas parecen agotarse frente a la angustiosa realidad de la muerte. En ese plano el poeta busca penetrar el sentido de la vida o de las circunstancias de su mundo real. Intenta trascender esa angustia que se convierte en el punto de referencia de su propia historia y de un lenguaje en el que reconoce cada uno de sus actos. Y es que la escritura misma se convierte en un espejo de su interioridad: La palabra es el único medio de tocar el espíritu, cuando la llaga se instala en nuestras entrañas. Éste es un viejo libro escrito muchas veces. El dolor disimula su llanto, no su conjuro, nos dice en estos versos. En otro texto se recrea otra visión en oposición a la angustia y a las sombras de muerte: Pájaros de fuego deletreando el equilibrio de tu ausencia. / Una noche, padre, y tu sombra guardada por un rayo. Y, por ejemplo:

 

Mi padre envejecido junto al fuego,

árbol ya no oculto en temblores.

Oh dulce tiniebla, ¿tu edad se extingue

para siempre? ¿Qué oscuro cántico

aparta al hombre del júbilo de su muerte?

 

La desolación ahora se convierte en una imagen que impide apartar al hombre del camino al que está predestinado. Parece que la muerte traza la secreta plenitud de un horizonte vedado al conocimiento humano: Vuelve a tu mundo imperfecto, padre. Debemos odiar la moral de tu caída. El futuro que inventas, pero que te reniegas a habitar. Rehúso ser tu intolerable referencia. Frente a la muerte, debo abrazar el golpe de mi propio infortunio. Estos poemas nos muestran ese aspecto existencial de la vida donde El hombre no resiste a la tiniebla de la memoria y reconoce que estamos cercados de sombra. De ahí el contacto siempre con la muerte, esa realidad que cubre el último aliento de cada ser amado.

Los libros agrupados bajo el subtítulo Estudios para un amor loco, presentan diferentes enfoques. Extravío de la noche tiende, por ejemplo, hace un erotismo descarnado, mezcla de luces y sombras, como si el cuerpo humano fuera la piel de la escritura. Una escritura impregnada de un amor que se consume a sí mismo como la llama de una vela que se extingue lentamente. Ya de entrada nos inclinamos sobre la naturaleza de ese amor cuya intensidad crece a través del texto:

 

Medito sobre tu cuerpo

mientras se extingue

una única vela encendida.

Medito con Píndaro: “Sueño

de una sombra el hombre”,

Vestigios de mi cuerpo

dentro del tuyo: ballet

de sombras imposibles

que se confunden en escena

y penetran mutuamente.

 

En ese cuerpo real se transparenta también la forma donde se incorporan los elementos que definen la estructura del poema: las sombras, el vacío, la caída, los gestos, las velas, los espejos y los sueños, todos orientando el sentido del mismo: El espejo todavía está allí, mientras gozamos. Sudores emanan de las páginas de un libro leído al revés en la piel del espejo dice en estos versos, personificando las acciones de una escritura que copia los gestos y los atributos físicos del hablante: Actuamos con palabras, y caemos en una trampa / cuando no las apreciamos por encima de todo. Y en otros dice: …las sombras somos nosotros, el amor que sentimos uno por el otro, el mundo se resume en una declaración de amor… Pues en Floriano Martins el amor y la poesía asumen una relación de múltiples máscaras en el sentido figurado de la palabra. Por ejemplo, el sentido que la palabra asume, se intensifica y expande en la imagen poética. Esa misma relación proyecta la imagen de la caída como un acto que reconstruye los elementos de su propia realidad. Esto lo notamos en el frecuente empleo de sustantivos que generan una visión surrealista de la vida y del tiempo: El futuro es sólo una caída de imagen, dice en este verso; Estamos cayendo de la nada, enfatiza en este otro. Y es que la experiencia de la caída encarna también una imagen simbólica del amor en un cuerpo que enfoca su propia destrucción y que genera, a la vez, una concepción de la vida y del mundo. El poema termina enlazando los últimos versos con los primeros, dándole así un sentido circular.

En Los tormentos miserables del lenguaje y las seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus y Lozna recurren motivos, conceptos e imágenes cuya condición y peculiaridad profundizan y transforman la semántica del poema. Las cosas que se nombran adquieren un perfil que explora distintos planos del lenguaje y de la realidad. Es como si las palabras mismas se independizaran del sentido que poseen para representar otro sentido que transciende la propia autonomía del texto: La música de tu carne oh amor las rocas de tu ser / que me hablan de la imagen desnuda del abismo / esta cadencia de caídas que descalza la memoria… dice; y, luego: Mucho desearía otra caída, otra náusea en el desastre vacío de nuestra existencia. Como notamos desde el principio, todas estas imágenes apuntan a la reiteración de unos elementos lingüísticos que se alejan de toda retórica tradicional. De ahí la confección surrealista de esta escritura y la visión reflexiva del acto creativo: “Hay un secreto que sólo los poetas conocen: tú y yo no somos más que palabras, me dijo alguna vez Enrique Lihn, tú y yo, nuestro sentido. Es decir, sentir la vida como una proyección de una experiencia fundada en el plano del lenguaje, pues para el poeta el gran tema de la vida, del amor y la poesía no es otro que el lenguaje mismo concebido aquí como una fuerza liberadora del ser. O una mirada que profundiza en las pasiones humanas para revelarnos sus más secretas y diversas manifestaciones. Floriano Martins hace de su escritura una reflexión sobre la existencia, pero una reflexión que cuestiona los designios del amor y la muerte, de la memoria y los sueños, y aun del lenguaje y de sus lecturas. Esto último crea otra dimensión intertextual en la superficie de este poema. Se inscriben versos y nombres de poetas (Enrique Lihn, Roberto Juarroz, Enrique Gómez-Correa, Carl Sandburg, Lezama Lima, San Juan de la Cruz) que al desplegarse a través del texto nos sugieren otro modo de explorar su mundo y de interpretar su poesía.

El amor se convierte en una forma de conocimiento que, si bien genera placer, también ve en la imagen de la caída la fatalidad que consume los cuerpos. De ahí, nace una zona oscura llena de interrogaciones y respuestas que parecen estrellarse contra el vacío: Los amores exponen su desnudez bajo la luz del tiempo, / afilan sus páginas con un indestructible ardor, nadie puede juzgar o condenar el amor…, dice el hablante. Y en otro verso: Mi amor es el centro de todo el mundo, / es la única claridad posible, o, por ejemplo: ¡Qué se haga absoluta la tormenta del amor!

Lozna y Barbus, conforman un tipo de personaje andrógino, y parecen proyectarse también como metáforas de un escenario irreal, figuras representativas de un amor que se desvanece en la imagen misma de la caída. Ambos se sitúan en los extremos de un erotismo que sólo existe como la reflexión de una idea poética. Oigámoslos:

 

BARBUS — Sólo al tocar tu ausencia: Innumerable: la noche engendra su inextinguible resplandor, sol de los santos, raíz del fuego. La destrucción de sus cuerpos siembra en la memoria una ciudad de imágenes indescifrables.

 

LOZNA — Sin la perfección de tu olvido nada en mí ha podido morir bastante. Tu memoria es una violación de mis residuos más secretos. Una oscura trama del tiempo para que no se vaya del todo la materia de sus letras.

 

El amor es una imagen recurrente que se intensifica en cada texto proyectando diferentes contrastes y matices. No basta ver el amor como una imagen central donde convergen como fuerzas representativas de ese mundo, el placer y el dolor; es decir, hay que verlo como una imagen que abarca todas las circunstancias humanas que conforman la vida y la muerte. Por eso, el amor, la muerte, la memoria, el dolor, el azar, la poesía, Barbus y Lozna, la soledad y el tiempo son partes de esa realidad. Lozna y Barbus cuestionan su existencia usando el lenguaje que construye el vacío de su realidad. Pero su cuestionamiento no exige una respuesta absoluta, ni busca esclarecer las razones que aquejan al amor, o los mismos misterios de la vida y la muerte. Por medio de ese cuestionamiento las palabras imprimen un matiz metafísico a todo lo que acontece en el poema:

 

¿Qué vas a escribir, poeta, acerca del osario de las pérdidas del lenguaje?

¿Quién sino Lozna podría amarme contra la supuesta riqueza de los sentidos?

Solamente en la poesía es posible encontrar algo de nosotros.

 

Si bien es cierto que Lozna y Barbus encarnan una especie de cuestionamiento del amor y la vida, ese cuestionamiento no exige de ningún modo esclarecer los conflictos de la razón misma de ese amor o de la muerte: No quiere Lozna que Barbus haga tantas preguntas, dice el hablante. Pues esas preguntas son, además, un modo punzante de indagar zonas que nos abisman en una dolorosa realidad de la existencia. La caída sirve aquí como un recurso linguístico para desarrollar todo un pensamiento reflexivo no sólo del acto amoroso, sino también del lenguaje poético, y de lo que significa estar poseído por el amor: El amor es una partija que acaricia los cuerpos / en su perplejidad de esplendores / una ciudad desnuda / de regresos, / una ráfaga de las cicatrices de la palabra, señala en estos versos. Y es que el amor y la muerte se emparejan, son una fuerza inexorable que traza el destino de los amantes. En ese amor se trasparenta también la identidad de un hablante herido por las caídas, y las experiencias y sentimientos que lo agobian. Este es un escenario donde las criaturas amorosas (Lozna y Barbus) discurren sobre la pasión que los consume.

En Dos mentiras se presenta un erotismo desenfrenado. Seres que se funden en un sensualismo que confiere al poema una gran intensidad. Desde el comienzo, el mismo epígrafe del poeta Roberto Piva sugiere la idea de un amor arrebatador que trasciende las fronteras del deseo y la carne: …mi amor por ti una profanación consciente de eternas / estrellas de rapiña. Este epígrafe sirve de puente a un poema cuya sensualidad se representa en acciones definidas por la seducción y el placer erótico: Mi desnudez de bruces derramada en el sofá / daba acogida a las caricias de su mano, pues este amor está libre de toda represión sexual que pueda manifestarse consciente o inconscientemente por parte del hablante:

 

Escenas sacadas de un corte, aún en sangre,

tan invisibles como cicatrices. Agudeza

de gestos imprevistos. Quiero probar tu cuerpo

ahora, mientras lo extraigo del mío, deliciosa

habilidad de hacer que salgas de mí

empapado de gozos.

 

En el poema también se hacen alusiones a músicos y pintores, cineastas y poetas. Todos conforman una atmósfera de situaciones que marcan lo permanente y perecedero del amor. Son vías reflexivas que muestran una exploración continua del aspecto amoroso. Y son también fuerzas que en un determinado momento del poema se relacionan para cristalizar diferentes enfoques de un mismo escenario: ¿A manos de quién / exactamente muere el amor? Imaginemos / un mundo tan soterrado de respuestas / como de preguntas. ¿Sería más fácil amar / y escribir libros menos conflictivos? Este tipo de preguntas abre y cierra gran variedad de los textos dándole, hasta cierto punto, un carácter reflexivo al poema. La muerte, esa presencia adherida a la naturaleza del cuerpo, muestra su íntima relación con las caídas (que no equivalen aquí a caídas físicas, sino simbólicas), sentimientos y acciones representadas en el aspecto figurativo del lenguaje. Tomemos la palabra del hablante poético: ¿Representamos la caída, la frágil similitud / entre lo trágico y lo cómico, el uso del puñal / y la reglamentación de la ley tan sobrecargada / de lagrimosos orígenes y acepciones indecisas? En otro verso señala: Los muertos se esconden por todas partes en nosotros. Pues el amor y la muerte se funden en la presencia jubilosa de la luz, y se desvanecen frente a la trágica invasión de las sombras. Pero el amor también acontece en la armonía de un lenguaje que a veces busca contrariar lo que expresa creando una especie de ambiguedad: La poesía, la libertad y el amor en verdad son fraudes / más patéticos que la cortesía que a veces los convierte / en rehenes […] Dedicarme a estas memorias, hace que me identifique con rostros iluminados por una imagen que se repite: nada sé de mí: no recuerdo con certeza lo que fui. Este modo de acercarse al cuerpo y a la escritura, requiere del lector un mayor esfuerzo de concentración para percibir esa relación ambigua entre lo que realmente expresa el poema y lo que sugiere el asunto y contenido del mismo.

La última sección, Teatro imposible, además de darle título a toda la obra, comprende, como las anteriores, escenarios que expanden y profundizan múltiples facetas de una poesía que proyecta la escritura como un modo de reflexión y exploración del yo. Esta idea hay que verla dentro de las circunstancias y pasiones que personifican otro sentido del lenguaje y de la realidad. Aclaro aquí que esto es lo que intuyo en la lectura del poema y es, por supuesto, mi interpretación personal, pues sabemos que otras lecturas pueden sugerir diferentes interpretaciones. El poema a cada instante te engaña. / Las metáforas conocen todos los hechizos. / Tus imágenes desfallecerán por exceso de nombres, dice en estos versos. O, por ejemplo: Mañana estreno la sangre de tantas muertes. / No hay cómo evitar la risa ante la reacción del público. […] Entre bastidores los personajes remiendan a los modelos. / El teatro sabe que no puede parar. El público se recrea con un enigma estupefacto en las manos. Claro que hay todo un lenguaje alegórico en la imaginería poética de Floriano Martins. Y es que todo aquí forma parte de esta poesía. Sobre esta estructura rebelde y surrealista se establecen los tonos y contrastes de un sentimiento que vierte sobre sí mismo las secretas formas que hacen del amor y la escritura una misma unidad.

La palabra mañana, que sirve como un recurso anafórico, enfoca también una serie de imágenes que parecen sostener las acciones de un tiempo presente que se vuelcan hacia una realidad ya proyectada hacia el futuro:

 

Mañana decoro tu ausencia.

Tú eres mi belleza rehecha en cenizas.

Yo soy la caída rutilante de todo cuanto había en mí de tu amor.

Y ahora nos entregamos a este aire pensativo con que denunciamos todo lo que despreciamos en el otro.

¿Por dónde cae la piel?

Aún estamos aquí, sin embargo.

Escucho el batuque de las ropas deshaciéndose de su morada.

Un poema puede salvar la imagen decadente del amor.

Nunca nos movemos por debajo de la neblina de tales absurdos.

Un suspiro alimentando otro sin que ninguno buscase significado siquiera para sí mismo.

¿Cómo saber cuál de nosotros insiste en esto por creer en algo?

Somos llevados por rumores.

Es el gran ritual que alimenta las vísceras de toda metáfora.

Ruidos, murmullos, cuchicheos,

la vida no es más que esto.

 

Lo que quiere enfatizar Floriano Martins y esto lo podemos observar también cuando sus textos van acompañados de pinturas o dibujos de corte surrealista– es un sentido de la vida y el arte que desemboca no precisamente en lo que se dice o se escribe sino en lo que insinúan las palabras, aquello que puede estar más allá de la lógica o que conlleva una arriesgada interpretación.

 En Autobiografía de un truco el autor parece ir tras el juego dialéctico entre lo que es la realidad y lo que es la escritura. Las conexiones entre la realidad y el arte, sus semejanzas y contrastes forman el entramado del texto: El cuerpo de la escritura se deshace en mis manos. / ¿Arte es descomposición? ¿Qué creencias tiene el artista en nuestros días? / ¿Qué idea se hace de sí, mientras crea como si devolviese algo a su dueño?, el hablante se cuestiona en estos versos. Y es que, como señalé anteriormente, hay que entender esta escritura como la proyección de un pensamiento poético que no sólo cuestiona la eficacia del arte y sus propósitos, sino también la propia realidad del poeta como creador. Encontramos en Teatro imposible (y aquí me refiero a todos los libros que componen esta edición) un yo lírico que no se resigna a aceptar la realidad como la siente, ni como la presenta su entorno, o la copia la tradición literaria, o la que el arte mismo refleja en sus distintas manifestaciones. Floriano Martins intuye diferentes planos y visiones que se corresponden creando un sistema expresivo que busca penetrar otros mundos para resaltar una experiencia creativa determinada-creo– por una realidad que puede ser más caótica y conflictiva: el amor, el placer, la cotidianidad, la vida y la muerte. ¿La realidad enloquece al arte? […], ¿Con cuál arte me siento preparado para enfrentar el pasado?, se cuestiona en estos versos; y luego: …¿de qué está hecho el arte, sino de un duro conocimiento de las escarpas más dilacerantes de la existencia? Desde el punto de vista, la escritura se le presenta como una búsqueda y un cuestionamiento de la realidad. Y es posible que ésta sea la razón del estilo aforístico que observamos en la confección de algunos versos. Veamos, por ejemplo, los siguientes:

 

La escritura se debate entre lo que sufre en sí y lo que sufre de sí.

Toda realidad es periférica, y con ella nuestra visión del mundo.

¿Habrá un verbo dentro de otro que lo contradiga?

El hombre es fruto de lo que crea en su mente.

No es la humanidad lo que me duele, sino su circunstancia.

La realidad no tiene la menor idea del papel que desempeña en nuestras vidas.

El amor estará muerto cuando deje de repetirse.

El azar no deja testimonios.

 

Este estilo aforístico le otorga otra dimensión al poema, otro plano que nos ayuda a reinterpretar la posición del escritor ante su oficio. Es decir, su percepción filosófica de la vida y el concepto de una poesía que parece bastarse a sí misma sin otra naturaleza que no sea el mismo lenguaje que la nombra: Que no se sepa quién habla, ya no tiene importancia. La divinidad está en el verbo y no en el protagonista, como dice en estos versos.

El último libro, Escenas tomadas de un teatro imposible, sigue la misma línea de correspondencia que hemos visto en los demás textos. Su imaginería surrealista proyecta un escenario donde confluyen motivos y experiencias que se transforman rápidamente ante la mirada del lector. Hay que releer el texto cuidadosamente para intuir lo que expresa el autor en los motivos que estructuran el libro. En este último escenario, el epígrafe que se antepone al comienzo del poema: Todo es posible, sólo yo imposible, del poeta Carlos Drummond de Andrade, apunta hacia la realización de una escritura que se distancia del autor imponiéndole las circunstancias que reflejan su propia realidad. Por eso la palabra reflejo adquiere en esta sección tanta visibilidad. La carga semántica que conlleva esta palabra proyecta una metáfora del sentido que damos a cada experiencia humana y de las cosas que suceden en nuestro entorno. El reflejo altera la imagen y el sentido de la realidad: Podemos fingir de varias maneras lo que vimos. El reflejo sigue en su trabajo, despertando un asombro inusitado en cada uno de nosotros, señala. Pues el poeta siente que el mundo y las experiencias que impactan su existencia son el reflejo de una realidad que se transforma intensificándose en el lenguaje. El concepto del tiempo y de la vida, la memoria y el amor, el cuerpo y la muerte, y aun los objetos del mundo real se personifican y adquieren otras perspectivas dentro del poema, se convierten en Piezas inestables, que a cada instante requieren un reflejo distinto de su utilidad, ensayan efectos sonoros, simulaciones de tinieblas, hilan sombras que puedan proyectar al menos una interrogación presumible; es decir, todo entra en un espacio donde la escritura asume múltiples disfraces para formular una especie de juego poético. En este caso, también los espejos representan la complejidad y dualidad que expresan estos versos: Toda realidad se evapora en la medida en que es considerada. O sea, una realidad traspasada por la angustia y el vacío existencial del hablante. Por eso los espejos, las sombras, las caídas, el amor, los pasos, las cortinas, se convierten en símbolos emblemáticos de ese escenario. Las cortinas son referentes que ocultan y, al mismo tiempo, exhiben un escenario no ya de actores, sino de acciones que adquieren legitimidad en la realización misma de la escritura que las proyecta como si fueran seres independientes. De ahí que estos elementos legitimen las acciones de este lenguaje: A esta altura el poema no piensa sino en una manera de retirar de escena la ruinosa aparición del espejo en su escritura automática, reitera en estos versos. En otro dirá: Las cortinas confabulan lo imaginario, es decir, exponen y ocultan las acciones de una realidad imaginaria. En este mismo sentido se perfila la imagen de los protagonistas y sus cuerpos y acciones fragmentadas a través del poema: Los pasos corren de un lado a otro del escenario a preparar las sombras para un próximo acto, dice en este verso, pues el cuerpo es también parte de este escenario: Dejamos los cuerpos arrastrándose por entre las nervaduras del escenario, la blancura de la piel desatando rutas en variaciones que revientan de sudor.

 Los cuerpos proyectan una imagen de gran intensidad sobre escenarios que representan una gama de ideas, pensamientos y emociones que cristalizan los matices del poema. Cada escena remite a otra que parece prolongarse en el eco de otras voces. La vida del hablante forma parte de este escenario donde el arte y la realidad no encarnan una definición absoluta, sino que se transforman en una continua búsqueda que le otorgue un nuevo sentido.

 

Nunca se sabe por qué insistimos tanto en representar la propia vida. Somos sólo la mitad de algo. […] El teatro está abierto: mismos días, iguales sesiones programadas hace tiempo. Alguna que otra vez un visitante se arriesga a mirar para los lados a la salida. Este gesto minúsculo no sabe del todo si busca aniquilar el entendimiento del otro o unirse a él.

 

En Cae el telón se conjuga la condición del destino humano, lo que un día fuimos, la oculta sombra del deseo en la constante búsqueda de una palabra que nos ayude a comprender esa otra dimensión donde el amor y las caídas acompañan la historia personal de cada lector. Estemos de acuerdo o no es aquí donde empieza a brillar el …río que fluye en los tejidos del lenguaje que nos lleva por estos sorprendentes escenarios, y como señala el poeta mismo, sólo Aquel que ama las letras devela el argumento de las tinieblas con serenidad.

Por último, la excelente entrevista, Somos lo que buscamos, de la escritora Ana Marques Gastão arroja información valiosa para conocer la dimensión humana e intelectual de Floriano Martins, los títulos y publicaciones de sus libros, y la proyección de un poeta cuya obra y reconocida labor cultural añaden una nota imprescindible a la nueva poesía brasilera y a la historia de la poesía latinoamericana actual.

 

 

2008

FLORIANO MARTINS

Gênese de Blacktown Hospital Bed 23

 



Criar é sempre desentranhar. De tal perspectiva inclusive compreendemos melhor euforia e tragédia em nossa existência. O livro Campos queimados, como qualquer outro objeto de criação, está constituído por obsessões. Com igual intensidade atravesso o dia. Confundem-se em mim o que escrevo, fotografo, traduzo, beijo, amo, sonho. A trama cotidiana, o tempo impreciso, os diferentes prazeres e aflições que regem a aventura humana. Costumo dizer que não escrevo poemas, mas sim livros. Há um acento sinfônico em cada livro, entendido como uma visão mais ampla de mundo, com suas variações de ritmo e sentido, suas modulações que buscam mesclar desejo e memória, os elementos visíveis e invisíveis da experiência poética. O que um artista escreve sobre sua obra não pode ir além de impressões, notas de composição, reflexões que revelam os bastidores harmônicos. A expressão, no entanto, será dada pela obra em si, ou mais particularmente pela maneira como o leitor se deixa tocar por ela.

Um poema é uma pintura que é uma canção que é uma peça de teatro. Esta é uma de minhas ideias fixas. Outra diz respeito ao modo como embaralho contrastes em um mesmo personagem, para que este me ajude a decifrar as dissonâncias de minha vida. Não acredito em criador que não esteja obsessivamente voltado para a compreensão de seus mais íntimos fantasmas. Viver, assim como escrever, requer devoção. Disse Matisse: “não desenho melhor hoje, desenho diferente”. As obsessões não nos aperfeiçoam, mas sim nos revelam outras maneiras de ver o mundo. Eu mesmo disse em outro livro que a beleza será impudica ou não será. A beleza convulsiva evocada pelo surrealismo é apenas um elemento que integra essa condição impudica da criação. Ir ao ponto, sem retórica de espécie alguma, por mais sutil que seja seu disfarce. Jamais permitir que falsos moralismos derrotem o poema e a verdade de sua beleza. Mais do que verdade: sinceridade. A sinceridade é o que faz com que Matisse desenhe diferente e não melhor. A sinceridade é a resultante da criação que não pode ser substituída pela impressão do que lhe há causado a canção a seu próprio criador.

O alcance de nossa visão é mais amplo quando percebemos essas sensações fugidias, a maneira como buscamos equilíbrio não como se tratasse de uma reconciliação de divergências, mas sim como uma aceitação das variantes dos estados sensíveis da matéria humana. O homem não está regido pela lógica. E o prova o fato de ainda não sabermos lidar com a loucura. A lógica não produz mito. Os movimentos ou capítulos de Campos queimados tocam sensivelmente esta outra obsessão. Quando a morfina subitamente me salva a vida mordida por uma trombose que me leva a um hospital em Sidney, Austrália (“Blacktown hospital, bed 23”). Quando tragicamente nos descobrimos a torpeza com que evitamos tocar a realidade e nos viciamos em adiar o que somos (“A noite em tua pele impressa”). Quando o convívio mais intenso com a crônica policial me leva a acompanhar autópsias e ali descubro, na dissecação de cadáveres, uma porta secreta que nos traz de volta à vida (“Pequeno bosque de imitações”). Quando um amor supostamente derrotado pela voracidade da razão perambula por ruas conflituosas em busca de uma maneira de livrar-se da metáfora de seu desengano (“Duas mentiras”). Ou quando matamos o outro que habita em nós e está a ponto de revelar o que não desejamos exposto (“As joias do abismo”). De que somos feito? Este livro não difere de nenhum outro meu no sentido dessa ideia fixa que me define a existência. Importa ser um homem melhor ou um homem diferente? Que traje uso para falar comigo? Essas pequenas notações ocupam toda uma vida. Estou convicto de que são menos perceptíveis justamente naquela arte menor em que seu criador tenta afastar-se de si.

Muita vanguarda está tomada por esse repúdio ao criador, reflexo de uma incompreensão do fato de que não há criatura sem criador. Outra vanguarda se verifica na negação da tradição. Negar não é o mesmo que romper com algo. Aqueles artistas inclinados a negar a tradição perderam muito da consciência da composição. É inconcebível destruir o que não se consegue construir. Nem se reconstrói do nada. Muita vanguarda resultou incompreensível por esse componente de uma desarmonia mais intensa. A obsessão pela criação não mudou de cenário. Tornou-se invisível por equívoco, por um distúrbio qualquer do criador. A arte não se tornou diferente, mas sim menor. A paisagem humana não desapareceu. O homem é, ao mesmo tempo, criador e criatura. A responsabilidade de um artista está determinada por esta compreensão.

Certa vez escrevi em um poema de adolescência que um carteiro poderia ser presidente de uma nação. Evidente que sim. Porque todos nós participamos, não importa o grau de consciência que temos a respeito do tema, da expressão real do que nos agrada e desagrada no simples fato de estarmos vivos. Não vai além do patético o fato de que muitos defendem o que digo quando o alvo trata de fome, conflitos raciais ou violência religiosa em países o mais longe possível de sua própria casa. O mundo só é imperfeito e digno de repúdio quando bem longe de mim- esta é a ideia fixa do homem. Duro de aceitar é que tenha se tornado também a ideia fixa do artista. E se uma alma assim tão pobre de si assina uma canção, uma escultura, um poema, o mundo vai perdendo força, desacreditando que há uma maneira sincera de exprimir as coisas.

A vida de cada um de nós está composta por aspectos que devem compreender sua situação, que devem saber situar-se. Volto a Magritte quando disse: “tenho mais de cinquenta anos de pintura nas costas e sempre sinto um pouco de medo ao começar uma tela”. Pois eu tenho igual sensação a cada livro que me reinicia. Sinto-me aceso pela mesma imperativa vontade de identificar minhas formas perdidas no mundo, o que sou em cada gesto, o que imagino ser, o que não consigo ser. Não é outro o mundo da criação. Alguém que muito me ensinou a este respeito foi o pintor Antonio Bandeira, com o impacto que me provoca pela maneira com que mescla paisagismo, figurativismo e abstracionismo. Bandeira é o artista que mais avançou no cenário do abstracionismo, justamente por jamais haver perdido de vida a paisagem e a figura. O título que dou a este meu livro, Campos queimados, é uma declaração de felicidade por este presente que ele me deu: sua obra. Título de uma pintura sua, os campos que aqui trato de queimar são expressões de minha ideia fixa do que representam criador e criatura em nosso mundo. São a representação da minha sinceridade.

 

 

2008

FÁTIMA PIRES

Sobras de Deus, uma carta

 


Caro amigo,

Eu já estava para lá de encabulada por não enviar as anotações da novela, acho que elas são bem pessoais, e não servem exatamente para nada. Estavam manuscritas e eu sem tempo de colocá-las por aqui, mas como você pediu que fizesse por via eletrônica, assim será. Tomei a liberdade de identificar as partes como capítulos, mas só para facilitar o entendimento.

Primeiro, uma curiosidade que me fez sorrir: quando me falou por e-mail sobre a novela, falou-me que se tratava da relação de um menino de 13 anos com um rio louco (quando li vi que era um tio) e aí comecei a pensar numa perspectiva muito mais do Guimarães Rosa do que de qualquer outro (risos).

Vamos às anotações:

Antes, preciso dizer que, ao concluir a leitura do texto, pensei em falar contigo do Roland Barthes,

 

O texto aborda-se, experimenta-se em relação ao signo. A obra fecha-se sobre um significado. Podemos atribuir este significado a dois modos de significação: ou o pretendemos aparente, e a obra é então objeto de uma ciência da letra, que é a filologia; ou esse significado é reputado secreto, último, é preciso procurá-lo, e a obra releva então de hermenêutica, de uma interpretação (marxista, psicanalista, temática etc.)… (O Rumor da Língua).

 

Considero a novela como um texto de significados implícitos. Talvez o procedimento mais adequado esteja na procura de significados específicos, que de par em par alavancam a ideia central do texto. E você não facilitou: nenhum acesso do que se é chega a explicar o que se alcança… (rindo). Mas vou por alguns indícios, e talvez consiga sugerir alguma coisa plausível.

Na parte 1 (Céus remotos), uma família começa a ser apresentada ao leitor e esta composição se estende pelos demais capítulos. Esta apresentação vem, na maior parte das vezes, em forma de considerações dos/sobre os personagens quanto a vida, reflexões extraídas de vivências conflituosas, muitas vezes traumáticas. Uma família mergulhada em dor, é o que passa. Interessante também é que não somente os personagens falam, os espaços também, através de analogias, as mais originais. Só para exemplificar: as portas.

A mulher no texto. Talvez esteja aqui uma coisa difícil de dizer. Mas me deu a impressão que há uma depreciação dos papéis femininos, mostram-se sempre sem vida própria, vivem em função de. A intenção era essa mesmo? Veja: Tio Eudoro fala que a mulher é a antífrase da razão; Alfredo Aquilino reporta-se à mulher como aquela que tem visão, mas que a ação cabe ao homem; a esposa de Anselmo Calamares, Adelaide, tem amigas emplumadas e ridículas, é a confusa Adelaide. A enfermeira Firmina é a tonta, tão adorável. Para completar a visão machista, aristocrática e burguesa da família, Anselmo diz: Não procurarei mulheres entre músicos ou qualquer tipo de círculo de vagabundos. Claro está que não é a tua visão, talvez uma construção que assegura a crise porque passa a família. Não sei…

O piano aparece no primeiro capítulo e acompanha o enredo de toda a trama. A analogia entre o piano e o dragão sempre dormindo é ótima! Interessa ver também que há um recurso à ideia de uma existência real e de uma imagem. O que guarda mais o piano? As ondulações sonoras da vida- é isto? Acho que sim.

O conflito entre Anselmo e Alfredo, este último, uma veia poética usurpada. Um disfarce, uma desculpa, para as longas conversas entre Pequeno Ansioso e o seu Tio, uma maneira inteligente de tecer comentários muitas vezes mordazes sobre o comportamento humano. Alfredo e Anselmo: uma disputa insana. Um resultado insano?

Alfredo acusa Anselmo de traçar um círculo ao seu redor. Veja: percebo uma identidade no diálogo entre Pequeno Ansioso com o seu Tio Alfredo e depois entre ele e a Mãe Dolores (a empregada espírita). Parece-me que de certa forma o traçar um círculo é uma característica bem humana que foi assinalada para um dos personagens, mas serve a quase todos. Esta é uma atitude que muitas vezes assinala um caráter defensivo.

No capítulo 2 (Uma margem insuportável do silêncio), veja estas passagens: Pequeno Ansioso, ainda sem o saber, mostrava-se aplicado na maior das lições: deixar que tudo seja e desapareça; acho que o artista acaba por destruir tudo o que cria; A plenitude é feita de uma exímia sequência de abandonos. São indícios de um sofrimento quanto a perda e de uma terapêutica voltada para a superação que, muitas vezes, consiste na agressão do próprio sentimento.

Uma constante também é a referência a inquietude, ao acaso, a presença da morte, e, claro a Deus: Leva tudo consigo e nos põe a viver de espanto. Impressionante!!!! Este Deus, que retira, extrai, só deixa sobras, contraria a ideia de um Deus misericordioso. Esta é sem dúvida uma questão para lá de instigante, atraente. Vejo também este componente em Alma em Chamas, É possível que Deus haja morrido de sua fome infinita- estou certa? Nessa mesma medida: a busca desenfreada da essencialidade é um distúrbio patológico.

A descoberta sexual de Pequeno Ansioso com Dolores, mesclado com a crença da moça, torna toda a experiência traumática e, em certo sentido, trágica, em seu desfecho. A moça é sarcástica aqui: O que esperavas? A hóstia consagrada? Um ato humano plausível de redenção? Talvez seja a ideia, uma brincadeira com o leitor.

No capítulo 3 (Algum silêncio vindo das margens), há uma reflexão de Pequeno Ansioso: Tenho crescido em um mundo enevoado, onde êxtase e tragédia tendem a confundir-se. Sem dúvida, essa é uma questão central no texto.

A ausência paterna fica agora melhor registada, e pareceu-me, que o tio Alfredo assume para o menino uma espécie de identidade masculina/paterna, necessária em sua tenra idade.

O Pequeno Ansioso vive em meio à crise familiar; as ausências do pai e da mãe e um conflito interno que se acentua com as reflexões do tio Alfredo: Não há mais jeito no ser que sê-lo; Recusava-se a aceitar que a vontade de ser não passava de um elemento apedrejado pelo acaso; Minha vontade de ser treinava com o imprevisível e o improvável.

No capítulo 4 (Escuridão numinosa), as anotações de Pequeno Ansioso das reflexões do tio Alfredo dizem respeito a fragilidade da condição humana: um ogro errante ou matuto cheio de si … é também uma passagem belíssima do texto.

Outra referência: as famílias e as suas pistas. Não se apaga nada, somos marcados demais pelo percurso familiar.

No capítulo 5 (Invisíveis trilhas), a avó como ponte que não soube ir de um canto a outro de si mesma… ou assim A Avó sempre foi uma ponte entre a realidade o desastre existencial da família. Ciente do engodo poético havido na família, mas se calava. Pressa na teia familiar.

De novo aparece a figura paterna, só que desta vez com muito mais dor. Não creio que pensasse em mim. Na verdade, jamais trocamos uma única palavra.

Por fim, mãe- mulher- Deus- livros… panteísmo: analogias de tormento, mas também de identificação.

Pronto? Claro que não. Desculpe-me pelas falhas interpretativas, minha limitação na tua área faz com que saia assim. Mas como você pediu… Depois falamos então. Já falei mas vou repetir: adorei ler o texto.

Grande abraço,

Fátima

 

 

2009

IOSITO AGUIAR

A propósito de Sobras de Deus

 


Já a partir do título da novela (novela?) firma-se uma certa arrogância que nos segue por todas as páginas. Na descrição dos sacrifícios, perversões e abandonos, persiste o sentimento de arrogância. Irrita-me, confesso, o viés com que o autor contempla o mundo.

É sumamente perigoso para qualquer poeta ter seu mundo de inocência violado. É que o poeta ao ser contemplado com o epós, ganha uma parte de DEUS, mas também uma do Diabo para faire pendant. É quando, então, ele revela seu lado mais blasé. Rimbaud ao ter sua inocência violada, transformou-se num contrabandista. Que fosse seres humanos sua mercadoria, pouco lhe importava.

Afinal, não tinham violado o seu universo de inocência? Então, agora que o aguentassem; Hölderlin não suportando a violência e agressividade do mundo à sua volta, escapou pela loucura. Divina loucura! Diria meu velho mestre, Casais Monteiro.

O poeta tem de ser deixado in-nocens para que possa incorporar seu texto à poesia e possa dar a cada palavra seu próprio som e ao texto sua própria sintaxe. O amargor que no intertítulo CÉUS REMOTOS o tio Eudoro Antunes destila: Sonhei tanto com alguma mínima forma de transcendência, deixa-nos a imaginar que, possivelmente, a brutal franqueza de mãe Dolores e suas atitudes, tenham causado estragos irreversíveis no universo do Pequeno Ansioso.

A morte do tio Eudoro lhe embaralhou a vida. Afinal, um morto nunca morre em si. Mas, divertir-se enganado pelo bisavô, ainda que este lesse François Villon? É então quando a escatologia rola solta ou seria a coprofilia?

O lugar comum desgastou as conexões vocabulares. Por isso mesmo, o poeta brinca de novela e escande às gargalhadas as mais torpes figuras de expressão: o que somos é o que existe ou o que desejamos? O chato mesmo é que só a infelicidade quer dormir com Deus!

A percepção consciente de todos os fragmentos, todos os detalhes e açoitado pelo derrame de imagens: vereda que levava a lugar nenhum, e o grande aprendizado com o tio: …não há réstia de cor ou fragmento de luz que não traga em si a chave de toda a paleta. Todos sabemos das feridas que os fantasmas românticos abrem em nossos peitos – diz Jorge Lúcio de Campos – a nos lembrar de Höelderlin: Mas onde está o perigo, nasce/ Também o que salva. Mas o menino tem um tio louco e que é também poeta e que lhe ensina que as mulheres sabem ver o mundo e os homens, só se forem levados por uma visão.

O poeta Floriano Martins, tendo sabido separar Logos e Melancholia e marcando seu discurso poético-filosófico no melhor estilo, não permitiu que Saturno e sua melas + kole (bílis negra), maculasse sua caminhada. As estruturas do mundo à sua volta parecem estar em irreversível processo de deterioramento. Mas o Ansioso Menino não se desespera e na sua fragilidade parece querer dizer-nos: … é preciso que todos olhemos juntos um objetivo maior na vida.

O autor acaba por descobrir que a Força Centrífuga que dispersou e atomizou a humanidade, precisa ser reestruturada e integrada para que confira sentido e propósito à existência. Ao contrário, o menino exposto a um universo familiar e sem limitações, poderia ser vítima de consequências inimagináveis. Mas não é o que acontece. Do tio louco e poeta e dos poucos livros que lê, aprendeu: Não importa o que se pode ler, mas sim o que verdadeiramente transfigura a vida. E nisso, poucos livros ajudarão. Afinal, os livros são atos essenciais de escrituras e não de leituras, a revelar que a busca desenfreada de essencialidade não passa de um distúrbio patológico, uma vez que, toda beleza é perversa. É assustador que uma criança tenha podido captar e compreender essa afirmação do tio louco e poeta: Duvido, comigo mesmo, ser preciso ler algum verso. Versos não têm tanta importância, que dizer então de seus autores?

Parece-nos que o autor tenta passar um preceito unificador, pensando em potencialidade e não em possibilidade, uma vez que, unidade e diversidade são polaridades necessárias e simultâneas da mesma essência. Essa tentativa fragmentária de expressar o inexpressável, parece induzir-nos a uma constatação: melhor afastar-se ou a capitulação posterior será inexorável.

Como harmonizar a loucura com a normalidade do cotidiano? A novela parece transcorrer no universo da memória. Mas logo vem-nos a advertência: Quando tudo é memória, nada mais é memória… o homem é a única catarse possível.

Apesar de lidar com loucura, poetas e impossibilidades vitais, o estilo rico, mas seco e objetivo do autor, evidencia uma ausência, a ausência da música que, ressaltamos, parece-nos intencional. A maestria na manipulação imagética, leva-o a prescindir da intenção melopaica. Sua dicção nos conduz a uma prosa de câmara, acentuando com sua linguagem um certo mal-estar linguístico, presente em Kafka, Artaud e Beckett, como expressão de um mundo em ruínas onde todos os valores humanos foram ou estão sendo aniquilados, pois: Dar pela falta dos tecidos imutáveis de que é feito cada vida, leva o mesmo e imprevisível tempo que fiá-la.

Parece-nos que o autor quer ser uma espécie de deus! E é essa arrogância que provoca certo mal-estar: Os poemas não passam disto: um reflexo de nossa simplicidade diante da vida. Os poetas somos todos franciscanos. (…) nossa tragédia vem de nossa abnegação. Desejamos profundamente que todos os homens sejam felizes. Aqui acessamos um esquecimento que impede o vir gloriosus do autor e seus personagens: música e raiz da raça pois, como disse Kotnensky: O ser do homem não se mantém e não floresce, se não estiver permanentemente plantado em suas raízes.

UMA MARGEM IMPERTUBÁVEL DO SILÊNCIO – ALGUM SILÊNCIO VINDO DAS MARGENS – esses intertítulos conduzem através da iniciação sexual do Menino Ansioso. Como é de se prever, Mãe Dolores o conduz na descoberta do sexo. Ríspida, rude e objetiva ela devassa aquele mundo de inocência. Como consequência, dor e linguagem passam a conviver como expressão daquele espírito. Há qualquer coisa de artaudiano na linguagem do Menino Ansioso e sua compreensão do não-domínio da sexualidade de mãe Dolores. E a constatação: Não há mais jeito no ser que sê-lo.

As primeiras experiências com a dor parecem conduzi-lo por um caminho entre a complexa variedade de possibilidades e dificuldades, incapazes, no entanto, de bloquear o poder de sua mente e de seu coração. Apesar das ausências paterna e materna: O pai viajava muito e a mãe vivia às voltas com os cuidados exigidos pelo irmão mais novo, com suas deformações genéticas.

O Menino Ansioso – sem ignorar nenhuma faceta entre sujeito e objeto – vai moldando sua visão pessoal da vida sem separar espírito e matéria ou intuição e razão. O Pequeno Ansioso consegue romper o rito vil de mãe Dolores e depois vai com ela banhar-se no tanque de peixes do quintal, enquanto o resto da casa chora seus mortos.

ESCURIDÃO NUMINOSA – Não é só a escuridão do quartinho onde mãe Dolores o inicia, que marca sua trajetória. Filosofia, arte e ciência lhes são apresentadas na vivência familiar. Entretanto, nenhum caminho real lhe é apontado. Sua natureza é perpassada em todo o seu contexto pelos elementos vitais de suas vivências. Um novo ordenamento do conhecimento, ajuda-o a desvendar as analogias, propiciando-lhe a possibilidade de uma postura, mais ampla e objetiva, do sentido da vida.

Seu conhecimento não se limita às impossibilidades do tio poeta-louco, do tio poeta-burocrático, de mãe Dolores ou da sábia avó. Antes de tudo é um poderoso recurso que o vai libertar do medo, abrindo caminho para a reabilitação da sua vontade, para o renascimento da sua fé na vida e de uma certa confiança no amanhã. Na ruína que é sua família, consegue encontrar padrão e sistema capazes de ajudá-lo a recuperar a própria dignidade.

De alguma forma nosso Pequeno Ansioso vai conseguir deflagrar as mudanças que irão possibilitar certo aprofundamento na compreensão do universal, no entendimento e superação dos preconceitos. Sua intuição será a grande auxiliar na superação dos limites. O conhecimento irá livrá-lo da dependência do autoritarismo, comum das famílias nordestinas.

INVISÍVEIS TRILHAS – UMA ÚLTIMA CHAMA. O livro não é nada, e o Pequeno Ansioso é a soma de todas as inquietudes da existência humana. Não há como não retomar Mallarmé e dizer que, na literatura, pelo menos: A dor existe para acabar em livro.

 

 

2009

RICARDO LLOPESA

La palabra en llamas de Floriano Martins

 


Hay una poesía de antes del Modernismo, exclusiva de la tradición española, y otra de después, de origen latinoamericano, mezcla, fusión de raza y, por tanto, de lengua. En su mejor expresión, el modernismo fue progreso, no ruptura. Pero lo que pudo ser contribución fue tomado en España por segregación. Pese a la opinión, esa segregación, que para muchos llegó a la desfachatez, siguió adelante con Rubén Darío a la cabeza. Juan Ramón Jiménez denominó al siglo XX el siglo del Modernismo. Y cien años después, en los albores del siglo XXI, la poesía en lengua castellana discurre por dos caminos que se bifurcan, diferentes en forma y fondo. La española mira todavía con respeto su pasado, y la latinoamericana busca en la palabra el ritmo y la imagen.

Después de Rubén Darío la poesía es otra. Fue el fundador. Luego vinieron Lugones con su poesía prosaica; Huidobro con su vuelo de cóndor, y desde entonces la poesía, la buena, busca en la palabra el punto de apoyo, para seguir escribiendo el libro anterior, que es el siguiente.

En este punto, Floriano Martins (Fortaleza, 1957), intelectual de muchas facetas, pero principalmente poeta, es uno de los continuadores de esa búsqueda que plantea nuevas perspectivas y persigue fines de identidad con el pasado. Su libro Teatro imposible (Caracas: Fundación Editorial el Perro y la Rana, 2007) puede servirnos de ejemplo. Estamos ante la poesía de un poeta que maneja la palabra con precisión, en busca del verso que comunique imagen y ritmo-condición imprescindible de la poesía–, creando un estilo prosaico, fusión entre poesía y prosa, la gran conquista de la literatura francesa, que desde el modernismo ha encontrado destacados cultivadores en América.

El prosaísmo en la poesía, tanto como la prosa rítmica, han sido mal vistos en la tradición clásica española, que perdura hasta nuestros días. No es una actitud reciente. Recuerdo que el célebre autor de Los trofeos, el cubano afincado en París que escribió en francés, José María Heredia, fue tachado de prosaico en una crítica de Cánovas del Castillo, publicada en Madrid, en 1853.

Esta prosa elegante y sugerente, que suena a otra cosa porque no es prosa ni es poesía, la definió el poeta nicaraguense, Pablo Antonio Cuadra, en su sentido universal con el nombre de prosema, porque sin ser prosa ni poesía es algo diferente que suena a género nuevo.

Llegados a este punto se hace necesario precisar que Floriano Martins es poeta y escritor brasileño, que tiene la virtud de conocer perfectamente bien las literaturas hispánicas, de España e Hispanoamérica, lo que le ha permitido absorber de aquí y allá lo mejor de cada una para confeccionar su estilo propio. De ahí que Teatro imposible nos parezca una escritura impecable, que maneja con destreza lo mágico de la lengua, debido también al excelente trabajo de traducción al castellano, obra de Marta Spagnuolo.

Teatro imposible viene precedido de una Aclaratoria imprescindible para guiar al lector a través de la lectura. Floriano Martins parte de dos citas de García Lorca, que están en la base de su estética: El público no debe atravesar las sedas y los cartones que el poeta levanta en su dormitorio… (Extracto de Lorca) Es una cuestión de forma, de máscara. García Lorca supo mirar con ojos diferentes la realidad poética y teatral de su país. De hecho, su renovación del romance la llevó a cabo bajo esta convicción.

Los colonos ingleses en Norteamérica inauguran con Walt Whitman otra mirada y otro estilo que identifica su personalidad, distinta de la tradición inglesa. Es el origen del verso libre. América latina también tiene que conquistar con plenitud su identidad apartándose del discurso lógico impuesto por la colonización.

El libro se divide en tres partes, que el poeta llama panel, donde lo poético se enlaza al enredo escénico, repitiendo sus palabras. El primer panel, Campos quemados, se subdivide en tres apartados o tríptico, que son tres propuestas de estilo. La primera, consta de 13 prosemas; la segunda, de 33 poemas, y la tercera, combina poemas y prosemas, hasta un número de 21 textos. La elección no es casual, sino cabalístico, como la estructura y el montaje del texto y la obra. La palabra desempeña un papel importante en el contexto del sintagma, para ofrecer un texto limpio y coherente. Por su parte, la frase es resultado de la depurada elaboración. De hecho, Teatro imposible responde a una exhaustiva corrección de libros anteriores, llevados al rigor y exigencia de una mirada acorde con la experiencia y madurez del poeta. En verdad, Campos quemados es un panel lúdico que invita a la felicidad, pero al mismo tiempo conduce a la soledad. Es el sufrimiento que produce el gozo. El poeta escribe: Tengo miedo de este juego que anuncia la noche como una náusea infinita (primer apartado), porque detrás de infinitas puertas, todas las cosas / cantan (segundo). Sin embargo: Sus cuerpos son restos de sombras (tercero). La mirada responde a la fugacidad del amor. Más que al amor, a la fusión de los cuerpos.

Estudios para un amor loco, segunda sección del libro, ofrece la estructura anterior, pero con registro diferente. Predomina la poesía. El verso se convierte en más largo y el contenido más denso, a excepción del primer poema que puede servir de ejemplo para comprender el mensaje implícito y la veladura del texto. Pertenece a la sección Extravío de noches, cuyos tres primeros versos se repiten a lo largo de la sección, a manera de leitmotiv, como variante del discurso:

 

Medito sobre tu cuerpo

mientras se extingue

una única vela encendida.

Medito con Píndaro: “Sueño

de una sombra el hombre”.

Vestigios de mi cuerpo

dentro del tuyo: ballet

de sombras imposibles

que se confunden en escenas

y se penetran mutuamente.

 

Las imágenes se producen verso a verso con el brillo de luz propia, al punto de parecer un escenario donde cabe la imaginación del deseo. La palabra se convierte en fenómeno verbal y simbólico de una realidad aparente, donde está presente el poder léxico del mejor surrealismo, que trae a la memoria del lector un cúmulo de imágenes en movimiento. Una cualidad a destacar es la línea en movimiento de la poesía moderna. La reivindicación de Floriano Martins va por el camino más difícil de la poesía, mediante la construcción de metáforas nuevas descritas con las palabras de siempre, teniendo cuidado en no caer en lo rutinario, el vicio de lo manido y repetido. Es uno de los grandes aciertos del libro.

Pero el libro es un laberinto de caminos que se continúan hasta cerrar el círculo. El segundo apartado lleva un título largo que anticipa el contenido: Los tormentos miserables del lenguaje y las seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbas y Lozna, donde el poeta se vale del artificio del monólogo, el diálogo y la escenificación para llevar el texto a otra dimensión, que es la complicidad de generar otro texto, mestizo o criollo, por antonomasia. Es el apartado más extenso del libro y encierra toda una posibilidad aleatoria de la escritura. Una poética.

Los poemas, con su variante los prosemas, configuran el tercer apartado, Dos mentiras, producen el efecto de espejos que se miran y la imagen queda distorsionada como en estos versos finales: Dedicarme / a estas memorias, hace que me identifique con / rostros iluminados por una imagen que se repite: / nada sé de mí: no recuerdo con certeza lo que fui.

Por fin, el lector llega al tercer panel y último, Teatro imposible, que da título al libro, inédito y dividido en tres apartados. El primero, es un único poema sobre el mañana. La confirmación del desencanto y el olvido, que ilustra una cita de Malcolm de Chazal: El esqueleto del viento / es la vida toda, que el poeta titula, La noche impresa en tu piel.

El segundo, bajo el epígrafe de Autobiografía de un truco, desarrolla ampliamente la cita de Doug Moench: Esta es la muerte. Pero, ¿desde cuándo la vivo? Predominan los prosemas y el verso gana en intensidad, haciéndose más largo y más prosaico. La separación se convierte en “cenizas para un destierro de la memoria y el poeta se pregunta: ¿La lujuria de la escritura reside en su falsificación? Acto seguido responde: La memoria es una notable instructora de falsarios. Una exposición tan cruel como evidente, que confirma la existencia, pues La realidad no tiene la menor idea del papel que / desempeña en nuestras vidas.

El tercer apartado, Escenas tomadas de un teatro imposible, lo integran nueve textos en prosa. Nos damos cuenta que el poeta se aleja de la pasión amorosa y entra en los predios existenciales y literarios, valiéndose de la técnica del efecto de los espejos reflectantes, como en una ópera de lo absurdo, que es el caos de la propia realidad.

Cae el telón es la coda final, en el más alto nivel literario que cierra la obra. Digo obra, no libro, porque al llegar aquí el lector se percata que está frente a una verdadera obra, una obra artística por su unidad y construcción. Al cerrar el libro queda en el pensamiento el concierto de una sinfonía de voces, palabras, ideas, formas y escenas, el recuerdo de los cuerpos que cambian de registro, adentrándose en la conciencia y cuestionando el arte dentro de un maremagnum organizado, que es el caos organizado de la vida.

La escritura es como una serpiente, cuyo cuerpo se retuerce y enrosca en su pose elegante, que es el estilo. Libros de poesía los hay y muchos, todos los días aparecen nuevos títulos, pero Teatro imposible es de aquellos que por su magia hacen honor a las letras, por la calidad del texto, el dominio de estilo y la coherencia del lenguaje.

 

 

2009

MARTÍN PALACIO GAMBOA

La estrategia en el útero del caos

 


Floriano Martins lleva a cabo una travesía escrituraria cuya dirección desviante rechaza cualquier intento que pretenda negar la incondicional capacidad transformadora del sueño y lo fortuito, esa

 

nuestra estrategia en el útero del caos.

 

Lo que ya implica una acepción del barroquismo y el trazo abriente de lo visionario, eso que permite al poema convertirse en una figura hermética y blindada al presenciarse un movimiento ascensional de desprendimiento de toda exterioridad alusiva, donde la desintegración del yo autoral en su propio torbellino gráfico no supone un fin, sino su posterior integración en el macrotexto como idealidad trascendente. Eso quiere decir que la unidad inmanente se hunde en su propia disolución para asimilarse luego en el horizonte de la totalidad como índice trascendental; no se la niega del todo, pero se afirma una unidad distinta superior ya que si,

 

aunque vagas nociones del absurdo,

nuestras metáforas están impregnadas de vértigo,

 

también es cierto que

 

el mundo está salvado por esas terribles contradicciones.

 

Esta experiencia unificante del sujeto no se verifica en la realidad inmediata sino en el poema, donde recobra nueva actualidad; en otros términos, el texto se instala como una zona habitable y prodigiosa donde el individuo pierde su centro para integrarse en lo mirífico. Dicho texto, por su misma acentricidad, termina asemejándose a Dios, el cual puede compararse a una figura circular cuyo centro está en todas partes y su circunferencia en ninguna, y la escritura esconde vehementemente su centro. De allí que, en su ininterrumpido movimiento significante, la palabra persiga el infinito, el fin de lo perecedero, alcanzar el espectáculo de lo absoluto y contener una forma de lo divino en los subterfugios de la página. (Paráfrasis y adaptación de un fragmento de “Julio Herrera y Reissig. Las ruinas de lo imaginario”, de Eduardo Espina. Editorial Graffiti. Montevideo, 1995.) Por su registro de pulsión alucinatoria lindante con lo esotérico y lo deslumbrante, la poética de Floriano Martins hace visible la conexión de lo infinito en lo finito y el desdoblamiento de lo objetivo en lo subjetivo, estableciéndose el discurso como torrencial idiomático fundado en la simultaneidad, en el desfile constante de iconos desfigurados por su misma inestabilidad:

 

(…) Sólo es posible arrancar aliento

de la existencia. La muerte no comprende

la voz del vacío, no puede desfigurar su

rostro. El horror ha perdido todos los dones,

los encantos de su propia pasión. La suavidad

es la más profunda quemadura. Es el enigma

del gran incendio que alimenta la historia

de nuestra caída. Es la lengua sobre el fuego,

las canciones de cenizas con peces derramados.

 

Por lo imaginario (que es traducción de lo visionario), la escritura penetra en la realidad de las cosas y en su cerco de imágenes– mucho más profundamente que si estuviera fundada en ideologemas y silogismos; inaugura una instancia figural inhabitada cuyo registro retórico promueve una serie semántica dispersiva, cumpliéndose así una de las prerrogativas del surrealismo en la que lo real y lo maravilloso dejan de ser un mero juego de oposiciones.

Para Floriano Martins, ese modo de comunicar lo incomunicable transita un conjunto de itinerarios aporéticos que cierto estado místico subyacente a este corpus de textos impone al discurso lírico. El poema se realiza como una impostura: presenta una gnoseología no fácilmente clasificable que escapa a cualquier tipo de verbalización-el lenguaje es un equilibrio de asombros– que pretenda asediarlo asertiva y uniformemente; impostura que se vale del poder diversificador de la metáfora y de la cadena de dificultades que ésta inaugura para consolidar los parámetros definidores de la poética. Para proseguir con la atención puesta en la constitución del relato de la poesía como conocimiento, vale recordar la observación de Foed Castro Chamma respecto a que la Filosofía tiene su delineación en la Poesía como corolario de la Verdad y la Belleza, ambas entrelazadas al espíritu creador, lo cual encuentra extensión en los actos. La Verdad es un desafío desvirtuado muchas veces por la imaginación al reducir lo real a lo meramente simbólico. En el entronque de la imaginación y de la razón ocurre la captura de lo que subyace al margen de lo real y se ofrece como revelación al Conocimiento. Conjugada a la razón, la imaginación atiende al ejercicio del espíritu creador cuya escalada va desde el conflicto de la representación a la lectura, la interpretación y la elaboración de la obra de arte, la cual es crítica en la identificación concomitante de los grados de la realidad y el encuentro del individuo consigo mismo. (Castro Chamma, Foed. “Livro Primeiro: vitalidade da arte”. Véase Agulha Revista de Cultura, número 21/22, correspondiente a los meses de febrero y marzo de 2002) En definitiva, se ratifica una ganancia insoslayable: la onticidad subjetiva del conocimiento poético, y con ella, la incorporación a un nuevo estatuto de la noción de verdad ante la posibilidad de prolongar los poderes divinos, o sea, la creación de mundos, de cosmogonías con leyes propias, cuyo sostén es la devaluación de cualquier gesto mimético, en aras de ganar solidez para el ser de lo poético. De allí la pertinencia con que Maria Zambrano afirmaba el hecho de que no es camino la imitación (…) [porque por ella] se multiplica la decadencia, se patentiza el no-ser, se precipita la muerte sin estar maduro para ella. Copiar los rasgos de lo fenoménico sin inyectarle otras porciones de sí mismo ya recreadas no produce un ahondamiento en su ser, sino un estancamiento en lo epidérmico. Es necesario, entonces, recuperar la transposición del umbral de significados insuficientes, incompletos, otorgados a las cosas para convertirlos en sentidos plenos, pues el universo está allí delante, intacto casi todavía para nuestro conocimiento con su dura sustancia, hecha de claves y reservados jeroglíficos. (Zambrano, María. “La razón en la sombra. Antología”. Ediciones Jesús Moreno Sanz, Madrid, Siruela, 1993) O como diría Martins:

 

(…) Lo que pasa

con la poesía es que debe el poeta conocer, como

recuerda José Ángel Valente, la sumaria ley del círculo;

 

es el ejercicio de penetración e intervención en el recinto desconocido o cerrado -laberíntico- aún del mundo aprovechándose del poder traslaticio que obra el lenguaje sobre la realidad, ese metal candente que

 

parece tener una aversión natural a la representación.

 

 

2010

GABRIEL RUDAS

Tres estudios para un amor loco, de Floriano Martins

 


Para hablar de la obra del poeta y artista brasilero Floriano Martins es imprescindible comenzar por hablar de su trabajo como promotor y estudioso del arte y la literatura latinoamericanos. Esto no solo porque para Martins las fronteras entre la escritura y lo todo lo que se hace en la vida deben diluirse, sino porque en sus poemas se hacen evidentes los temas que lo ha han guiado su vida en su trabajo en sus diferentes facetas. Durante años dirigió, junto con Claudio Willer, Agulha Revista de Cultura, y desde 2001 dirige Banda Hispánica. Ambos proyectos están teñidos por una de las principales obsesiones de Martins: la comunicación entre la cultura latinoamericana en español y portugués para crear una comunidad cultural con una tradición común. Para Martins, el mutuo desconocimiento de los poetas y estudiosos de ambas lenguas es una de las aberraciones culturales que hay que cambiar. En segundo lugar, en el trabajo de Martins ha habido otra gran obsesión intelectual y estética no menos importante: el Surrealismo. Para él, esta palabra no designa únicamente el proyecto poético que alguna vez diseñó el francés André Bretón en los años veinte.

El Surrealismo en la visión de Martins es un modo de ser artístico en constante cambio y expansión, que ha sido transformado, revitalizado resinificado a lo largo de los años. Así, Martins ha dedicado su labor como crítico, editor y antólogo a comprender las variaciones de este fenómeno en la poesía latinoamericana y, por supuesto, en su propia propuesta poética. El Surrealismo para Martins ha sido una fuerza que ha propuesto nuevos horizontes estéticos y vitales, y que impregnado todas las formas del arte hasta el día de hoy. En efecto, Floriano Martins se considera a sí mismo surrealista, no solo en tanto que poeta, sino en su manera de entender su trabajo como plástico y sus diálogos con el mundo de la música.

Este mismo espíritu está presente el libro Tres estudios para un amor loco (Ediciones Alforja. México, 2006). Allí Martins reúne la traducción revisada por él– de los poemas Extravío de noches y Dos mentiras, y la reedición corregida de un poema escrito originalmente en español: Los tormentos miserables del lenguaje y las seducciones del infierno en los instantes trágicos de amor de Barbus y Lozna. Al inicio de cada cada uno de estos poemas se han incluido fotomontajes artísticos del autor, quizá a manera de epígrafe visual o para resaltar el dialogo que los poemas establecen con otras formas de arte. Cada una de estos poemas, que por su extensión y unidad podrían ser libros independientes, son presentados como partes de un mismo texto.

La primera parte, Extravío de noches, es en la que se puede encontrar más claramente la presencia del Surrealismo en un sentido tradicional: torrentes de palabras que se encadenan, referencias oníricas y eróticas, y la presencia de metáforas hechas de elementos deliberadamente disímiles, pero con un fuerte componente visual:

 

El cuerpo está cubierto de velos

que son cortes profundos en la piel

y son trofeos de un desastre

en el bosque de tus sueños:

el cuerpo foliado con sus recortes de gozo

y estampas laminadas que son garabatos

en la piedra esbozada en tu vientre

y vellos de fuego como árboles que exhiben

ante un derrame de voces

 

Pero el flujo de palabras que encontramos en fragmentos como éste convive con otros momentos en donde elementos más fuertemente racionales se imponerse en el poema. Así, se pueden encontrar secciones donde se reflexiona sobre el papel del lenguaje y de las palabras en la poesía (si imposibilidad de captar la vida), la relación de la poesía con la presencia o la pérdida de Dios, así como referencias a la construcción del propio texto que se está leyendo. En esos momentos el lector siente que el poema da paso al ensayo y que se siente más fuertemente la voz del crítico que ha reflexionado sobre el papel de su propia escritura. En algunos momentos este cambio de tono da la sensación de que el autor está dando explicaciones; es como si la voz poética se hubiera arrepentido de los riesgos que había corrido en sus momentos más oníricos y avezados, y quisiera justificarse mostrando que posee un conocimiento del oficio. En otros, en cambio, este cambio de tono le da fuerza al poema, pues se genera una voz consciente sobre sus descubrimientos.

La segunda parte de libro es Los tormentos miserables del lenguaje y las seducciones del infierno en los instantes trágicos de amor de Barbus y Lozna. El texto se propone como un diálogo poético entre dos personajes imaginarios, Barbus y Lozna, que bien pueden ser desdoblamientos un solo yo poético explorando diferentes facetas de su interioridad. El texto gira en torno a la relación entre Eros y Tánatos, es decir, entre el erotismo y el amor, por un lado, y la muerte, la desaparición y el olvido por otro. Ambos elementos aparecen como fuerzas en tención, pero también como facetas de un mismo fenómeno. Barbus y Lozna se aman, se tocan, pero sobre todo se piensan poéticamente. Sin embargo, el poema se ocupa tanto de lo que consiguen ambas voces en su juego de poesía-amor, sino de lo que no consiguen. Así, trata más sobre los límites tanto del amor como de la poesía. Al final el texto se revela como un poema de ausencia, no sólo de la ausencia de dos amantes separados, sino de la ausencia a la que se tiene que enfrentar el lenguaje.

 

Es la lengua una marea de reflujos.

No hay retorno del poema si la sangre

no ha sido derramada con provecho.

¿Quién podrá decir que el amor ha pasado

hace tanto tiempo que no cabe más

su herencia sobre la tierra? Donde termina

el hombre empieza el infierno de su

memoria. Es una llave sin fin. No es tarde.

 

En esta parte, más que en las otras dos, Martins intenta dilucidar sus reflexiones a través del diálogo con otros poetas, en primer lugar, de la tradición clásica, pero sobre todo de la poesía latinoamericana moderna. De modo que el poema se despliega en muchas direcciones: como diálogo con la tradición, exploración de los límites del lenguaje, como poema sobre la muerte y como diálogo amoroso. Todo esto buscando un continuum en el que se da a entender que cada uno de estos despliegues poéticos no es más que la manifestación de diversos ángulos de un mismo problema que aparece ante el poeta de muchas formas. A pesar de esta diversidad, nunca se tiene la sensación de tener un poema fragmentado, sino un flujo integrado de perspectivas sobre una misma preocupación y una misma angustia.

 Sin embargo, esa misma unidad que logra el poema lo lleva a la principal objeción que se le puede hacer: al ser un poema extenso y desbordado de palabras (como su título), al cabo de un tiempo el lector se siente ahogado en cierta redundancia. Si en Extravío de noches se percibía una voz poética súbitamente contenida por la voz crítica, en Los tormentos miserables… hay un sujeto poético que ha logrado articular fluidamente el pensamiento racional y el descubrimiento de sus límites, pero que se ha dejado maravillar demasiado por los versos que ha conseguido. No se puede decir que haya un momento donde el poema esté mal logrado, pero sí se tiene la sensación de que se hubiera podido prescindir de una parte de los fragmentos, pues en su monotonía le quitan algo de fuerza al poema.

La tercera parte, Dos mentiras, es la mejor lograda de las tres. En un estilo mucho más condensado, aquí el poeta vuelve a plantear los temas que ha venido desarrollando a lo largo del libro: el erotismo, la soledad, la ausencia del ser amado y, sobre todo, la imposibilidad del lenguaje y del amor para sobreponerse al paso del tiempo y a aniquilación de todas las cosas. El poema está planteado del todo desde una voz femenina. Inicia como un poema puramente erótico de gran intensidad, pero lentamente va revelando su verdadera naturaleza como poema sobre la muerte (aquí como posible asesinato), el paso del tiempo y el fracaso del lenguaje mismo. El personaje femenino mata, real o simbólicamente, a su amado. Con ese acto se mata el amor, la memoria, y sobre todo la identidad:

 

Proscripta o prescripta: la tinta será siempre un riesgo.

No sé si tuve un amante, si viví un loco amor

y lo maté. Despierto dando gritos ajenos, como

si viviese un verso de Díaz-Casanueva. Dedicarme

a estas memorias, hace que me identifique con

rostros iluminados por una imagen que se repite:

nada sé de mí: no recuerdo con certeza lo que fui.

 

Después de cada una de las partes de Tres estudios para un amor loco es como si para el poeta sólo quedara una gran incógnita. Esta incógnita que no puede resolver ni en sus personajes, ni en sus reflexiones sobre eros, la muerte o la palabra, ni en sus diálogos con la música, el arte, la cultura o la literatura latinoamericana. Tampoco se puede resolver por la ruptura del lenguaje y de la racionalidad que propone el Surrealismo, el cual halla en los poemas de Martins tanto su realización contemporánea como sus imposibilidades. Lograr presentar esa incógnita de un modo corporal, visual, pero también intelectual, es quizá uno de los mayores logros del libro.

 Por último, el hecho de que Martins haya escrito los poemas en español y portugués da cuenta de su voluntad de navegar por ambas tradiciones literarias. Esto se hace evidente a lo largo de todo el libro, en donde cita indistintamente a poetas como Borges, Juarroz, Ludwig Zeller, Drummond de Andrade o Murilo Mendes y los hace partícipes de una sola tradición que articula con su propia propuesta. Además de los logros propios de cada uno de los poemas, esta manera de aunar las latitudes poéticas hace del libro de Floriano Martins un texto interesante que puede convertirse en una puerta de entrada para un entendimiento de la poesía que se escribe en el continente.

 

 

2010

DAVID CORTÉS CABÁN

La imagen femenina en La efigie sospechosa de Floriano Martins

 

Antes que la palabra se busque,

borro un poco su marca,

tal vez sólo para crear un misterio.

FLORIANO MARTINS

 


El mundo poético creado por Floriano Martins es un mundo dinámico, fuerte, novedoso, y de varias posibilidades interpretativas, como debe ser la verdadera poesía: un lenguaje distinto que concierne a la mirada que observa y recoge la imagen del mundo real; y, novedoso por la riqueza de los medios que utiliza (la plástica, la fotografía y la música) para construir un imaginario que perdure al ritmo del tiempo presente y del futuro.

Sin evadirse de ningún sentimiento, sin contaminarse del caos, sin correr tras modas pasajeras, sin reprimir la libertad de la palabra que esplende y matiza los contornos de su poesía, Floriano Martins ha venido construyendo una obra que se caracteriza no solo por la singularidad de su estilo, sino también por la solidez indiscutible de su trabajo artístico, tanto en la poesía como en la plástica. Hay que añadir a estas palabras su trabajo y compromiso de promover desde los cimientos mismos de las revistas en Internet Agulha Revista de Cultura (que dirigía con Claudio Willer), y ahora Agulha Hispánica, un diálogo más solidario y democrático con las literaturas latinoamericanas, de España y del Caribe en el marco de una comunidad más heterogénea de lectores y escritores de todo el mundo.

Poner en perspectiva la obra total de Floriano Martins requiere un análisis paciente y profundo que el tiempo y el espacio no nos permite. Por eso, lo que quiero subrayar en estas páginas son las líneas estéticas, los elementos y motivos que confluyen en la percepción que tiene el poeta del amor, de la vida y del mundo. Es decir, lo que su pensamiento intuye y transforma dotándolo de una identidad propia que trasciende hasta calar hondo en el sentimiento y la sensibilidad del lector.

Al leer La efigie sospechosa de inmediato llaman la atención dos palabras en los epígrafes que anteceden la poesía que nos ocupa. La primera, belleza, del poeta Amadeo Modigliani, que se relaciona íntimamente con la atmósfera del libro; y, la segunda, desnudez, porque proyecta una realidad consistente con el tono y los motivos que estos poemas encarnan. En la Nota Editorial, se habla, además, de dos claves sugerentes y decisivas en la génesis del libro. Se nos dice que la idea del libro surgió cuando el poeta superpuso una serie de fotos de imágenes del cuerpo femenino a las del paisaje… Nacen así estos poemas no en el sentido de contraponer o entrecruzar realidades distintas, sino al fundir en una misma unidad el concepto de las fotografías con el pensamiento poético. De este modo se proyecta el contenido de cada texto en consonancia con la imagen fotográfica estableciendo así un discurso armonioso entre elementos de distintas índoles. Todo así se conjuga para crear una estructura cuya uniformidad resalte el sentido de cada poema y le infunda frescura y dinamismo a la expresión poética. Esta técnica, creo yo, aspira a mostrarnos otros modos de mirar el texto literario y a sugerirnos un paisaje donde puedan establecerse encuentros y realidades distintas sin restarle valor a un género en beneficio de otro. De ahí que no sea arriesgado decir que estos poemas revelan también a un poeta profundamente preocupado, no simplemente por el sentido demótico de la palabra en medios expresivos como la fotografía o la plástica, sino por lo que queda distante, más allá de nuestra comprensión. Es decir, conceptos que no siempre dependen de la lógica sino de la intuición y emoción del lector. Creo que así he visto a Floriano Martins en la naturaleza de su poesía: contemplándose y contemplándonos, pensando y expresando las emociones que nos acercan a las grandes verdades e interrogantes de la vida y la muerte, del amor y el desamor, del placer y la soledad, del silencio o la incomprensión, de los gestos y las experiencias que trazan nuestra travesía por la vida.

Uno de los temas fundamentales de este libro es el cuerpo femenino visto como una infinita expresión de amor. Un amor y un erotismo por cuyas grietas se desliza la cegadora luz de una mirada que reconcilia la belleza de los contrarios. Pues como el poeta mismo dice …nada sobrevive lejos de la presencia terrible de su contrario… Es en esta dimensión, y en las variantes de los textos aquí reunidos que se funda la naturaleza de este libro. En nombre de ese amor que nunca es perfecto porque la vida no tendría sentido, y en nombre de esos cuerpos y la pasión amorosa que los justifica, presentamos estos poemas. Pero ¿a que alude el título La efigie sospechosa, o qué relación directa o indirecta hay entre éste y los poemas del libro? Es necesario entender que la palabra efigie es un referente ligado íntimamente a la naturaleza de estos textos, una imagen que puede encarnar los atributos físicos de una persona. En este sentido la imagen misma encarna la belleza de un cuerpo que desconocemos, pero ya desde el primer poema, A quien sepa el nombre de ella, lo presentimos en la superficie de estos versos. La presencia de ese ser desconocido se confirma en cada uno de los poemas, aunque éstos vayan dirigidos a un destinatario que ignoramos, un destinatario que puede estar representado, de un modo significativo, en cada uno de nosotros, los lectores. Las referencias las hallamos en la imagen misma de ese cuerpo cuyos atributos se definen también por la naturaleza, los objetos y el ambiente en que se desplaza. En torno a este cuerpo femenino girará cada texto en sucesivas y relampagueantes imágenes. Cada poema enlaza con el que le precede haciendo del cuerpo mismo un referente cuya única variante serán los nombres que ellos mismos encarnan. Nombres femeninos que, aunque distintos y sugestivos, representan un solo ser y evocan –para mencionarlo pasajeramente– figuras lejanas en el tiempo y la historia: Leonor, Lucrecia, Beatriz, María, Dalila, Salomé. Pero lo esencial aquí es la sensualidad del cuerpo, no importa que el nombre sea distinto o evoque alguna emoción diferente en la individualidad de cada sujeto. No es el nombre en sí lo que el hablante trata de resaltar, sino los atributos de ese cuerpo, su belleza, su erotismo y su desnudez en el contexto de este lenguaje poético: Con sus labios despintando espejos, cada / cuerpo se enorgullece de abrigar otros, / sin saber con certeza dónde plantó su morada, escribe el poeta en estos versos (Berenice). Por eso al acercarnos a este cuerpo que incita la mirada, sentimos que lo observamos desde distintos ángulos como ocurre también con las fotos: Fotografías los restos de la tempestad en los pliegues de los / cuerpos delirantes que consagramos al tiempo (Estela). En cada uno de ellos leemos palabras y elementos comunes que proyectan no sólo la presencia de la imagen femenina, sino también la reacción del hablante ante el cuerpo: Miro al fin cómo pasas por mi cuerpo, / cómo repartes el abismo y me estremezco: / no te escondes jamás tras un secreto (Amelia).

 A lo largo del libro, los elementos formales del lenguaje enfatizan la plenitud y belleza del cuerpo femenino y, también, condicionan el contenido de los poemas. Si tomamos, por ejemplo, la palabra cuerpo mencionada 28 veces, veremos que la intención no es contrastar el sentido de esta imagen por otra, sino expandir su significado, ir más allá de la realidad física que ella encarna. Posiblemente éste sea uno de los rasgos fundamentales de la poesía de Floriano Martins; querer ir siempre más allá, otorgarle a las cosas un sentido y una condición de infinitud que no se puede revelar a través de las palabras. Esto es lo que entiendo cuando el poeta, inconforme con el lenguaje mismo que trabaja, nos dice:

 

¿Por dónde camina mi pensamiento? Por mares de espíritus diferentes, por ríos de sombras encantadas y también por los pozos de sangre que identifican ciertas opciones que no aceptamos como tales. Metáforas de toda clase que muchas veces funcionan como estímulos intelectuales, pero que se tornan enfadosas, mecanismos gastados, si no las insultamos para que abandonen esa condición porfiadamente única, y se lancen más allá de sí…más allá de toda metáfora.

Decirle al cuerpo de una mujer deseada extendido sobre el césped que sea más que simplemente el cuerpo del deseo. O al mobiliario trazado por la mirada, por más que se configure como realidad tangible, que vaya más allá y descubra una manera de volverse al mismo tiempo palpable e imprevisible.

 

Partiendo de la experiencia de esa mirada, que busca ir más allá de lo que acontece en la vida, encontrará el poeta un paisaje lleno de luz y sombras. Un paisaje que refleja la llama del amor y el erotismo en la naturaleza misma de ese cuerpo: árboles, ramas, follajes, hierbas, mar, río, peces, pájaros, algas, pétalos. Todos estos elementos complementan la atmósfera del tema aportando un matiz peculiar a la imagen femenina: Estás frente a mí y juegas con tu mirada: / pequeñas piedras posadas en el lecho del río, / pez vibrante que es también el tallo sagrado / de la selva de encajes que vislumbras en mí (Enriqueta). Y en otro poema dirá: Tus besos ensayan una alegoría en mi espalda, / Los siento como árboles que danzan, llameantes / pétalos, constelación de cuerpos en plena cosecha / susurrando: todo hombre es una recreación (Alicia). La presencia de la naturaleza real y la imagen femenina se funden en un solo discurso erótico de fuerzas que se ciñen al llamado del amor. Ambos: cuerpo y naturaleza configuran un espacio para fundirse en una desnudez total. Su única biografía es el deseo, el descarnado amor que los lleva por el paisaje amoroso que ellos mismos han inventado: Las lenguas nos llevan de un lugar a otro, / siempre en tránsito, guiadas por la gravedad. / Jamás te vi tan desnuda como el día / que me pusiste sal en la lengua entonando / un no te vayas silencioso y veraz como la luna. (Helena). Todo aquí transmite un erotismo implacable y profundo, un erotismo que reclama propia vida en el ser amado: Lector, ¿oyes cantar los cuerpos, escuchas las exigencias del amor, sus gestos en la ardiente huella del placer? Aquí, en estos versos que se alzan como olas gigantes contra el abismo, inclina tu corazón y escucha: Fui a buscarte del otro lado del asombro, del río, de la cabecera fulgurante del deseo (Heloisa). Este sentimiento impetuoso no entiende otro lenguaje que el de la desnudez, la belleza de un cuerpo en otro cuerpo. Ésta es la imagen del amor, la presencia de un cuerpo consumido por el amor: …en la vastedad de tu cuerpo desemboco los reflejos / devoradores de todo, sollozos, fulgores, risas, los soles que se / desprenden, donde respiras, tu flor de huesos, laberinto… He aquí otro motivo de La efigie sospechosa: el amor como un cántico jubiloso, la imagen femenina presente y lejana como efigie profunda, cerrándose como un arco dorado sobre la realidad de estos versos. En estos versos gravita la plenitud de su desnudez, igual que esos astros que se desprenden en las noches de invierno, iluminado con todo su fulgor.

 La efigie sospechosa refleja el cuerpo femenino como el centro de una experiencia que abarca diferentes situaciones de la vida, pero encuentra en la sensualidad un sentido trascendental y profundo. El lenguaje se convierte en una metáfora del cuerpo. Y no hay tiempo para la soledad, ni para el dolor o la muerte, o de pensar que el placer es una experiencia pasajera. Sólo hay que dejarse llevar por esa voz amorosa, por ese sentimiento que arrastra al cuerpo bajo la magia deslumbrante del universo. Dejarse llevar por la fuerza indestructible del amor, aunque existan experiencias, que quedan fuera de nuestra comprensión. Pero, ¿quién no ha corrido tras esa imagen femenina cuando la vida y el amor encarnan un mismo cuerpo? Aunque La efigie sospechosa sea una total invención de las palabras, es también una ilusión que nos ayuda a intuir en el amor la inocencia perdida, la deslumbrante belleza, la recóndita pasión que late en cada ser esperando que alguien la despierte: Antes que la luz despierte / garabateo en tu pierna un clavel, / sin que sepas qué sentido darle, nos dice el poeta, como buscando el sentido que inventan las palabras. Por eso, a pesar del tono surrealista de estas imágenes, la efigie sospechosa puede ser más real de lo que imaginamos, y estar silenciosamente resguardada en el mismo plano de nuestra existencia: un amor ni puro, ni imposible, sino un amor lleno de enigmas y defectos, flaquezas, taras, altibajos, como la vida misma.

Ojalá que quien se acerque a este libro encuentre una expresión que cifre en el amor y el erotismo el sentido más profundo de nuestra condición humana: la belleza de unos cuerpos que relumbren como efigies.

 

 

2010

MANUEL CERPA

Teatro imposible, de Floriano Martins

 


El fin primordial del teatro fue representar lo extraordinario de la vida en un anfiteatro, luego fueron las máscaras, las grandes tragedias griegas, la poética de Aristóteles y algún tiempo después, eficaz e imperceptiblemente aconteció la inversión de la alegoría: la vida sería tomada como una obra de teatro cuya existencia obedece los designios o padece los caprichos de un dios dramaturgo. Los vanguardistas europeos nos revelaron que detrás de la máscara que somos no hay más que nuestra sombra o nada y soñaron con obras de escenificación imposible. La erudición infatigable del investigador que es Floriano Martins, aunada a la sensibilidad extensiva del poeta que supera todo tipo de fronteras lo convierten en el demiurgo que nos brinda otro teatro imposible.

El libro del ensayista, poeta y artista plástico brasileño hace de cada acto de la vida una extensión de la poesía capaz de poner en escena una máscara tras otra. Cada sección del libro, a excepción solo de una, comienza con un epígrafe que concentra el sentido de cierto tema en torno al cual la escritura va proliferando en una reverberación de cadencias envolventes que nos entrega tal longitud de versos que regularmente el verso mismo es abolido por la fuerza de su propio ritmo, capaz sin embargo de entregarnos con regular frecuencia lapsos nada menos que epigramáticos.

Teatro imposible ha sido editado en 2007 por la Fundación Editorial el perro y la rana, del Ministerio del Poder Popular para la Cultura en Caracas, Venezuela. Pertenece a la Colección Poesía del Mundo, Serie Contemporáneos. El libro es rústico, de un poco más de doscientas páginas, impreso en octavos de un papel opaco y ligero, es decir, es un volumen que se puede llevar cómodamente a todos lados debajo del hombro, y que se debe llevar a todos lados porque su lectura, aunque no es sencilla, es envolvente.

El libro abre con una presentación anónima, grandilocuente y lacrimosa que se debe al Ministerio del Poder Popular para la Cultura y que debe ser la misma para cada obra que patrocinen. Tenemos después una Aclaratoria del autor en que se nos dice que este libro reúne poemas editados e inéditos, desde 1991. El poeta explica que a pesar de lo anterior la obra no es una antología sino una nueva formulación de libro. Está dividido en tres partes que el autor concibió como tres paneles a la manera de una trama pictórica: 1) Campos quemados; 2) Estudios para un amor loco; 3) Teatro imposible. En esta Aclaratoria, que es la verdadera presentación del libro, se refiere en breve, pero de manera muy organizada la fecha y procedencia de cada panel, o sea de cada sección. Toda la obra ha sido traducida al castellano por la escritora y periodista argentina Marta Spagnuolo.

La primera sección o panel del libro, Campos quemados, está subdividida en: 1) Cenizas del sol; 2) Sabias arenas; 3) Tumultúmulos. Cada parte de este primer panel, como refiere minuciosamente el autor en su aclaratoria, fue publicada originalmente en libros individuales.

Cenizas del sol presenta en trece poemas, construidos en una prosa sumamente inquietante, el retrato de personajes movidos por sus pasiones y sus angustias. Personajes revestidos de una dimensión simultáneamente mítica y humana por virtud de sus nombres de procedencia hebrea o latina.

Sabias arenas y Tumultúmulos logran la parte más profundamente poética del libro, la más íntima. Son cantos elegíacos dedicados a la madre y al padre respectivamente. Algunos de estos versos bastan para demostrar la madurez de una sensibilidad doliente, pero en cierta forma tranquila ante la pérdida: Tú eres el dolor del fuego. / El dolor de la luz coronando mi espíritu con/ las palabras de un texto perdido. En ambos se desarrolla con sutileza una analogía entre la vida y el texto, pero en Tumultúmulos el poeta se sabe hijo y padre: Desapareciste de la tierra días antes de que naciera mi hija. La consubstanciación entre el padre y el hijo es posible gracias al fuego, que podría ser la muerte pero que el poder de la palabra lo vuelve la vida misma: Soy yo: el nombre, las letras, Soy yo: la muerte, las ruinas, Soy yo: el libro, las voces.

La segunda sección, Estudios para un amor loco, se subdivide en: 1) Extravío de noches; 2) Los tormentos miserables del lenguaje y las seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus y lozna; 3) Dos mentiras.

Estudios para un amor loco es de un claro erotismo depuradamente surrealista donde el protagonismo sigue siendo de la escritura como tema de fondo, pero en el que la imagen se revela sin impedimentos como un cuadro que alternativamente se llena de sí y se depura hasta vaciarse: “Medito sobre tu cuerpo/ mientras se extingue/ una única vela encendida.

Los tormentos miserables del lenguaje y las seducciones del infierno en los instantes trágicos del amor de Barbus y lozna puede verse en su unidad como un poema extenso y polifónico. Es un poema de un erotismo que logra ser amoroso y de un dolor triste, pero ante todo es un poema que hace homenaje a la voz y al cuerpo: Lozna es una herida que no cicatriza: son palabras con que/ el tiempo quiere despedirse de nosotros. En este poema abundan las preguntas, como hace quien está de verdad enamorado y no encuentra, en su lucidez extraviada, más amparo que la ironía: ¿Qué es la catástrofe? ¿El peregrinaje de Barbus bajo/ los arcos de la muerte de su amor?

Dos mentiras está formado por poemas que vuelven a la mujer una deidad erótica y terrible. Después del epígrafe de Roberto Piva, hay otro, presumiblemente del autor, que resume, lo cual es una magistral constante, el sentido temático: Lejos de la blasfemia, ningún dios resiste. En este panel la voz es quien habla y es la voz de la fatalidad.

La tercera sección, Teatro imposible, ha sido subdividida en: 1) La noche impresa en tu piel; 2) Autobiografía de un truco; 3) Escenas tomadas de un teatro imposible.

La noche impresa en tu piel es también un canto erótico a la poesía, al encuentro con la mujer como el encuentro con la escritura que batalla contra sí misma y paradójicamente se cumple gracias a su desasosiego. Es la vigilancia del poeta, pero también su embriaguez: Mañana comienzo a desaprenderte.

Autobiografía de un truco nos arrastra consigo a la abismante reflexión que agobia a quien es simultáneamente crítico y por sobre todo poeta. Es claro que aquí la autobiografía es el hecho de decir diciéndose, de ser salmón en la corriente poética. Pero qué causes nutren esta fuerza. La voz se interroga a sí misma: ¿La lujuria de la escritura reside en su falsificación? Por más que se fatiguen estás páginas, parece que el poema no ofrece un veredicto; pero sí, en cambio la posibilidad de crear, como se abre una puerta hacia la noche, nuestra propia respuesta.

Escenas tomadas de un teatro imposible es un abigarrado reflejo no sólo de todo el libro, sino de la vida misma, habitada por reflejos como máscaras: ¿Habrá humanidad suficiente para este baile de sombras? Este teatro está habitado por una geometría onírica que tiende sus sombras sobre esa otra sombra que es la escritura que es la vida que es el teatro.

Finalmente tenemos una especie de coda titulada Cae el telón que a la vez está dentro y fuera del último panel del libro: Escenas tomadas de un teatro imposible y que cierra perfectamente con la congruencia del título la obra. Por último, presentada como apéndice aparece Somos lo que buscamos, entrevista que la también poeta y crítica literaria Ana Marques Gastão hace al autor. La entrevista, que no discurre sobre este libro, es una oportunidad de entender la dimensión artística y crítica de este poeta infatigable y lúcido.

Teatro imposible es un escenario verbal en que se despliegan Las máscaras que guardan la terrible verdad sobre nuestras vidas y es indudablemente el libro que cualquier poeta desearía firmar con su pluma.

 

 

2011

FLORIANO MARTINS

Gênese de Antes que a árvore se feche

 



Os primeiros versos deste livro foram escritos em janeiro de 2010 em uma simpática noite de inverno em Cincinnati, eu havia acabado de ver o filme De-Lovely, de Irwin Winkler. A neve caía lá fora e Ashley Judd havia me revelado tanto do caráter de Linda Porter, a esposa do compositor biografado por Winkler, que eu não fiz mais do que dar passagem para o poema dedicado aos olhos daquela mulher. O filme gotejava encantos por todos os lados, de tal maneira que nunca saberei ao certo se os olhos do poema são de Linda ou de Ashley. O que sei é que ali algo se modificava em minha escrita, a começar pela recuperação do manuscrito. Há décadas eu não escrevia poemas à mão. Uma única exceção, sem constituir nada além do que se possa chamar força das circunstâncias, foi um extenso poema escrito em um leito de hospital, em Sidney, dois anos antes, quando uma trombose quase me liquida.

O inverno naquela região estadunidense foi dos mais pesados e talvez pelo encantamento diante da neve, mais do que propriamente o isolamento, me pus a escrever novos poemas assediados por alguma lembrança feminina. Alejandra Pizarnik, Lee Miller, Clarice Lispector… Era curioso como os poemas começaram a destacar partes do corpo de cada mulher. Olhos, lábios, umbigo, mãos… Ali relativamente próxima de mim, em Nova York, vivia uma querida amiga, Madeline Millán. A neve e meu trabalho na Universidade não permitiram um encontro nosso, porém conversávamos quase a diário pela Internet. Quando escrevi o poema dedicado a ela – precisamente a seus ombros –, enviei um breve conjunto de cinco poemas a outro querido amigo, no Brasil, Jacob Klintowitz, que ao ler este último poema logo me escreveu dizendo que ali estava a chave de um livro que deveria se chamar “antes que a árvore se feche”. Os pedaços de corpos evocados nos títulos apontaram em uma direção que me levou a Emily Brontë. Ao lhe escrever um poema, percebi as senhas para a concepção de um livro, a soma de aspectos como “as sombras esquecidas sob os corpos”, “o mistério da morte”, “as vozes confiscadas por antigos presságios”, imagens que foram ambientando os manuscritos seguintes, mas, sobretudo, um facho de luz esclarecendo a trama que estava em jogo. O desafio vinha dos fragmentos de corpos que se impunham como partes de um poema que embaralharia as inúmeras etapas de uma vida.

As próximas mulheres começaram a chegar, ritmadas por essa ideia de que uma árvore estava a se fechar, e que elas deveriam arriscar um verbo, uma imagem, uma parte do corpo, de tal maneira que a completude do que estava em jogo fosse afiançada pela legitimidade de seus fragmentos. A esta altura eu já não estava mais em Cincinnati e sim de regresso a Fortaleza. Nunca dei importância em minha vida para fatores climáticos, mas é verdade que a passagem dos 14 graus negativos de Ohio para os 32 graus positivos do Ceará sugere alguma mudança de comportamento, seja na vigília ou no sonho, especialmente nessa área ambígua em que se dá a criação. Aos poucos, o corpo do livro foi definindo suas urgências, e voltei a pensar na curiosidade de que Mary Shelley estava do outro lado do espelho, sendo ela mulher a criar um personagem homem que idealiza um ser que lhe é igual. Eterno retorno à ideia do outro baseado em si mesmo.

Na outra margem do espelho eu me via como um homem que criava um personagem masculino obcecado pelas mulheres que são fundamentais em sua vida por aspectos alheios a tempo ou espaço. A mãe, uma grande paixão, a autora de um livro, alguém que lhe tenha enviado uma frase provocativa de reparo em sua alma… Não importa. Vivas, mortas, reais ou não. Esqueci o espelho. Toda idealização resulta em um monstro. Quando cheguei à Austrália, dezembro de 2010, o calor era quase tão intenso quanto o de minha cidade. O livro estava, assim como eu, praticamente de férias, quando visito uma exposição de Annie Leibovitz. Naquela manhã, no Museu de Arte Contemporânea de Sidney, anotei de memória o verso com que concluiria o poema dedicado à fotógrafa: “o mundo não cessa de tornar-se teu”. O que faltava ao livro o verso define. As férias se foram e escrevi vários poemas australianos. Pela primeira vez montei o corpo ideal sobre uma mesa: lábios, ancas, pernas, pulsos, calcanhares… A árvore já estava por se fechar.

Regressei a Fortaleza para cuidar dos ossos, veias e – finalmente – da memória desse outro Frankenstein. Um tipo curioso de autópsia antecipada. Ao contrário do monstro criado por Mary Shelley, esta minha “noiva-cadáver”- como um leitor amigo passou a tratá-la, sem que nada tenha a ver com a Corpse Bride de Tim Burton- atua como um transcritor. Os fragmentos de seu corpo equivalem aos instrumentos de uma orquestra. Essa mulher insondável, que é a própria árvore se fechando, ao mesmo tempo é a única fresta que me leva a identificar o que sou a partir do que crio. Concluído em Fortaleza, justamente com a memória da mãe, o livro define que a idealização não está em parte alguma, sendo ela, isto sim, parte de tudo o que somos.

 

 

2012

IGNACIO RAULD

Presentación de la poesía de Floriano Martins

 



Conocí a Floriano Martins (Fortaleza, Brasil, 1957) debido a ciertas preocupaciones que, en su momento, me diera la obra y la figura de Humberto Díaz-Casanueva. Persuadido por las reiteradas menciones que hiciera sobre el chileno en no pocas entrevistas en las que se hablaba de autores claves para Hispanoamérica decidí rastrear algún punto de contacto. Llegué, entonces, a dos de sus proyectos editoriales: Agulha Hispánica y Banda Hispánica. Un descubrimiento feliz porque es realmente difícil encontrar revistas que tengan una línea editorial tan ambiciosa y que, al mismo tiempo, la sigan a cabalidad; teniendo por fin la discusión del fenómeno poético en Latinoamérica (entiéndase, en los 19 países que la conforman) esta revista conjunta autores tan definitivos como Eunice Odio (Costa Rica), Manuel del Cabral (República Dominicana), Rosamel del Valle (Chile), Martín Adán (Perú), Aurelio Arturo y Jorge Gaitán Durán (Colombia) además de otros más oficialmente distribuidos, pensados y criticados. Ensayos, entrevistas, antologías, éstas revistas son un banco de datos sin ningún tipo de priorización o exclusión externa a la calidad poética de los textos revisados: una suerte de eje en cruz, un centro expansivo por definición encargado de recoger las diversas modulaciones que la poesía ha alcanzado no solo en lengua española sino también en portuguesa.

Aparte de sus labores de editor, traductor y difusor cultural, Floriano Martins cuenta con un par de libros de entrevista y crítica literaria. En uno de ellos llamado La escritura conquistada, suculento, Martins reúne entrevistas con más de 50 poetas latinoamericanos. Solamente el tipo de nombres aquí citados debieran atraer la atención de los lectores: Francisco Madariaga, Pedro Lastra, Eugenio Montejo, Javier Sologuren, Fernando Charry Lara se citan en un texto único y sorprendente. El libro no solo cuenta con la participación de estos autores, sino que, además, con el manejo y el conocimiento vastísimo del mismo entrevistador. Alejándose del simple catálogo y haciendo más de una llamada de atención sobre cuestiones que aún quedan pendientes dentro de los estudios relativos a la poesía latinoamericana, el también poeta brasileño no deja de suministrar datos, nombres y títulos de principal interés.

A raíz de estos elementos, decidí escribirle sobre el asunto que me conminaba. Aparte de su generoso y cálido recibimiento, tuve la suerte de que me compartiera algunos de sus poemas. La selección que pongo a disposición de los lectores se desprende de uno de esos intercambios. La traducción fue proporcionada por el mismo autor y realizada por Gladys Mendía.

En poesía el diálogo que mantienen fuego y noche suele ser ritmado por una intérprete que orquesta sus diferencias. Una mujer extática, frenética o simplemente danzante se incorpora en esos momentos arduos y, tomando el cerrojo más inverosímil, entorna tinieblas, llamas y sus empujes recíprocos para ofrecerse como una síntesis de inicio, como una palabra que introduce un aire de misterio respirable y devanable. Se brinda, por así decirlo, Ariadna en su hilo.

Tornasolada y refractante, oscura y fugitiva, amante y hermética son solo algunas de las tantas cualidades que suele asumir una figura que, si bien en principio se introduce como mediadora en la conversación, se transforma, mediante un vuelco sobrecogedor, en el prolegómeno de una reflexión más profunda. Es así que Ariadna se hace un laberinto: no solo recoge armónicamente el conflicto de luz y sombra, sino que, además, resalta como una metáfora que pone en movimiento a la imaginación vinculante de la palabra poética, desplegada en un tránsito hipnótico. En cierta forma podríamos decir bajo este contexto que buscando la elucidación se tropieza con el misterio de un mundo que se apresura a fundamentarse en su decirse, cuestión escandalosa cuando el poeta entiende que este es un destino que se ha ido lentamente cuajando en su entorno sin necesariamente haber sido entrevisto: el de la palabra como un pilar o como la excavación previa al trazo de los cimientos en la tierra. Cosa que, obviamente, abre puertas para un cuestionamiento más radical dentro de los ámbitos por los cuales el misterio instala su noche embriagadora en los ojos, esa su noche olvidada mediante una vicaria inesperada.

Afirmándose de estas líneas que dictan los códigos de la memoria humana, amén de un pathos propio y una singular aproximación, Floriano Martins inicia en Antes que el árbol se cierre (Antes que a árvore se feche, 2011) su persecución de esa primera abeja, de la mujer danzante y visionaria que reúne alternativamente las murmuraciones de la luz y la sombra. De este libro quisiera comentar unas cuantas cosas antes de dar paso a los poemas.

En primer lugar, el poemario consta de una veintena de poemas en el que la nota particular es cierto tipo de sorpresa: en términos generales esa mujer danzante es una aparición intempestiva que surge entremedio de la evocación de unos cuantos íconos femeninos. Una presencia solapada que se revela, un hallazgo inesperado del cual se indican sus estandartes luminosos. Es así como encontramos títulos que conjugan tanto a la persona evocada como al asomo de una parte del cuerpo de la mujer: “Labios de Alejandra Pizarnik”, “Voz de Alberta Hunter”, “Talones de Bonnie Parker”; títulos que enuncian, en medio de la sorpresa lectiva por la renuencia al dato biográfico o a un decidido diálogo intertextual, el instante en que el misterio se instala en su noche. Aunque este es un recurso permanente y, quizá degradable al paso de las páginas, no es exclusivo. En efecto, Martins como cultor del fuego nocturno y de los andariveles y dédalos dibujados en las costillas de la figura femenina, inicia no pocos cuestionamientos en torno a la palabra poética que sustentan su deslumbramiento. A este respecto, versos como “Tu cuerpo recibe en su lecho un verbo distinto cada noche” (“Muñecas de Anja Lechner); “Tu nombre me confunde. // Yo simplemente barajo sus letras y no deletreo más donde todo / comenzó” (“Piernas de Anne Darwin”) o “Hay demasiadas palabras en el mundo. Podemos pasar una vida / entera sin reencontrarnos” (“Talones de Bonnie Parker”); llevan la meditación, minuciosa, en torno a la palabra poética hacia el ámbito en que esta se entrega a sus visiones imprevisibles. Desplegando estas indicaciones de ruta, el poeta acentúa la reverberación y la participación de la palabra en un horizonte de fundación y creación de su sola exclusividad. Se trata, obviamente, del reconocimiento del trance como una modalidad inherente a la creación poética, inabarcable, vetada, para cualquier otro tipo de enunciación u oficio. Horizonte exclusivo que equivale al adentramiento en una esfera propicia para el encuentro y el dilema en torno al conocimiento de un ser:

 

Me recuesto en la sombra gastada del abismo para contar tus besos.

El primero me enseña los secretos de la pólvora.

Otro me hace creer que puedo volar.

Son como desafíos silenciosos los pequeños rostros flotando en el

   espanto de cada mirada.

Señales del desorden que la vida elige en su tránsito fugaz por la

   prosperidad del tiempo.

Palabras con que excavo la invisibilidad de tu figura.

Silencio que abrigamos al lado de ellas para que preserven lo que

  saben de nosotros.

 

Pizarnik, Benevides, Lispector, son las causales más sensibles por los cuales se articula un saludo a la antesala del mito, en tanto que dejan entrever-parafraseando al poeta– la oración que sustenta la danza de la mujer vicaria.

En segundo lugar, y ya más ligado a la apreciación estética, es bueno decir que el lenguaje que emplea Martins en este libro, a pesar de la gran cantidad de afinidades, no se condice del todo con las maneras surrealistas. Sin dejar de dar marcas textuales al respecto “azar”, “delirio”, “transcripción”, “manuscrito” el poeta brasileño se separa bastante de las técnicas usualmente recopiladas bajo esta denominación. Si bien no busca ni el automatismo, ni se entrega a una pasión desbordante, ni menos aún se involucra en juegos verbales, mantiene como norte de su escritura el adentramiento en los signos que nutren el alfabeto más noble y primitivo del hombre mediante los cuales la noche inserta sus sumideros en la vigilia. A este respecto el oficio de Martins tiene como nota propia la detención sobre lo que se transforma o, dicho de otra manera, la pausa lúcida sobre lo que madura. Con esto me refiero a que, si bien el libro está llevado por cierta urgencia, por una reflexión que no puede ser demorada tal como sugiere el título–, la voz es calma, triste a ratos, pero sin duda atenta a aquello que la plantea y que va aclarándose conforme el cuerpo de esa mujer insondable se dibuja o, también, según ese árbol se cierra sobre sus ramificaciones densamente numeradas. En pocas palabras, el libro tiene una curva ascendente y continua, una forma de plantearse y encontrarse en la médula del enigma que lo vivifica. Presiente y escucha las dimensiones que le tocan a partir de los signos que descubre.

En el último de sus libros publicados, Vox tatuada, Humberto Díaz-Casanueva planteaba recogiendo un decir de Jacques Derrida– la urgencia de “buscar pensamientos inauditos / que se buscan a través de la Memoria / de los viejos Signos”. Esta es una de esas buscas.

 

 

2013

FLORIANO MARTINS & MANUEL IRIS

Don’t eat the yellow snow, posfácio de Overnight medley

 

 


FM | Não sabes, mas eu lembro teu olhar no aeroporto em Cincinnati, quando acompanhavas Armando Romero, vocês dois indo me buscar para os dias loucos de Ohio. Meu coração estava em festa porque era a minha primeira neve. Foi um inverno pesado, e o recebi como um presente. Porém teu olhar era o mesmo meu, de alguém que estava à espera de algo mais. É uma maneira de estar no mundo que não tem que ver com a nostalgia ou a disponibilidade para a criminalidade de circunstância. Por quase três meses compartilhamos essa incrível liberdade da alegria. Recordo a felicidade habitando o olhar de todos que estavam conosco. E ríamos de tudo com um grau verdadeiramente mágico de quem conhece ao menos alguns truques da eternidade. E foi assim que quando chegamos à ideia de escrever este livro ele já estava anotado em nosso espírito. A música, o jazz, a improvisação, as aulas sobre surrealismo, os vídeos, nossas cervejas, não havia como não escrevê-lo. É possível que a ninguém interesse saber como as coisas nascem, porém me encanta a ideia de recordar esses pontos de fogo da existência humana.

 

MI | Sem dúvida, este livro estava sendo escrito por nós dois, sem saber que era um livro conjunto. Meus primeiros poemas sobre jazz, presentes no livro, são muito mais velhos que a ideia de escrevermos juntos. Faltava-me compreender muitas coisas. Por exemplo, para mim ainda não era claro o espírito surrealista do jazz e desconfiava quase inteiramente da escritura automática. Sendo um poeta mais conservador que tu, inclusive em minha maneira de entender o jazz, o intercâmbio em Cincinnati foi um convite a sair de mim mesmo, justificando essa saída com uma necessidade formal: não se pode fazer jazz sem arriscar-se no vazio, o que não significa deixar-se levar pelo facilismo de simplesmente soltar-se a falar. Esta inédita responsabilidade para começar o caos foi talvez o aspecto mais profundo que me trouxeram esses dias de poesia e diálogos sob a neve. Creio que este projeto é precisamente isto: a conjunção de duas maneiras de soltar amarras, respondendo ao jazz como necessidade expressiva compartilhada. Várias vezes nós dissemos que a poesia é também uma forma de amizade, e não penso no jazz de outra maneira. Creio que, ao chegar no aeroporto, começava a formar-se uma amizade que se cristaliza no poema, e que toma forma graças à música.

 

FM | O livro foi teu antes de ser nosso. A ideia era tua. Eu estava escrevendo uma série de poemas dedicados a partes do corpo feminino, de alguma maneira inspirado em Mary Shelley, à diferença que desta vez o criador estaria buscando uma mulher que estivesse além de toda idealização, que fosse a memória de sensações vividas com várias mulheres em distintos planos, não necessariamente o amor, a amizade, o sexo. Quando li teu poema dedicado a Charlie Parker de imediato pensei que poderíamos seguir juntos nessa aventura. Ainda não sabes, mas teve inclusive a ver com o seminário, pois saí de minha casa a caminho dos Estados Unidos com um plano de aulas que logo após a primeira sessão descobri que seria impossível. Tive então que improvisar, preparar os vídeos para cada semana, buscar imagens, músicas, propor a magia daquela tarde de colagens. O ambiente da música era finalmente o melhor lugar para destacar a relação entre música e surrealismo, a conexão entre a improvisação do jazz e a escritura automática. Hoje seguramente poderia dar um seminário com maior consistência e certamente que com uma ainda maior liberdade. Essa liberdade que sabe fazer seu próprio lugar, como no caso de nosso livro, que começamos apenas com os poemas isolados dedicados aos músicos e logo passamos à necessidade vital de escrever a quatro mãos, onde a identidade não é mais de seus autores, mas sim do próprio livro. Um livro sobre jazz que é o próprio jazz. A improvisação, mas também a fusão. Algo impossível sem a amizade, a sinceridade, o sentido absoluto de doação, de entrega.

 

MI | Sim, há muito de entrega neste livro, que vem de muito antes para ambos. Em meu caso, vários poemas sobre jazz neste livro são também vários de meus primeiros poemas. Não sei bem quando comecei a escrever para este livro. No entanto, não foi senão depois de estudar contigo o surrealismo, sua lógica e sua relação com o jazz e a escritura automática, que me pareceu imprescindível considerar estas possibilidades para considerar completo não um poema, mas sim um projeto longo que pretenda abordar liricamente o tema jazzístico. Não há escapatória, nem a quero. Tuas aulas e os diálogos contigo e com outros professores e companheiros me estimularam a soltar essas amarras.

O resultado é este livro, que observo como filho que contém meus genes de maneira estranha, e que não deixa de lançar luz sobre minha própria natureza. Isto é talvez o que tem de aterrador, um produto que está elaborado a partir do inconsciente. A exploração telúrica de que falaste tanto em tuas aulas, acabou sendo uma maneira de pensar e de escrever que não creio perder completamente em meu futuro. Digo em poucas palavras: este livro é o testemunho de uma aprendizagem em que tua figura (digo isto tanto como amigo como poeta e estudante) foi indispensável. A amizade eu não sei dizer se foi consequência ou causa de tudo isto, porém definitivamente é algo indissociável do processo.

 

FM | Tudo isto já não tem que ver propriamente com jazz e surrealismo. A criação é impossível sem esses pontos que sublinhas. Se algo verdadeiramente criamos o fazemos por efeito de desentranhamento. E se alcançamos essa magia é porque ela mesma é fruto da fusão de dois mundos, os que levamos dentro e fora de nós. Não foi somente Breton, o surdo, quem complicou essa relação com sua rejeição à música no surrealismo. Por sua vez, John Cage também fazia uma confusão entre jazz e o que ele chamava de discurso, considerando o jazz inaceitável por seu excesso de discurso. Isso de pôr regras é sempre um ardil, porque as mesmas resultam aplicáveis quase sempre apenas para os demais, ou seja, é uma maneira de impor a visão de um sobre os demais. Não há poesia sem ritmo, por isso é impensável apagar as fronteiras entre música e poesia. Tampouco há arte sem discurso, seja na plástica, na lírica, na música, não importa. E cada vez eu estou mais convencido de que não importa a arte sem a amizade. A raiz de tudo está no sentido de entrega, na busca do outro, a arte é essencialmente uma maneira de estar no mundo. Por último, o tema da aprendizagem. O que pode haver na vida longe do gozo da aprendizagem? Assim é que estamos de mãos dadas em uma experiência muito rica, Manuel. E a mesma se enriquece justamente por suas amplas janelas abertas, buscando conexões entre todos os pontos aqui anotados. Mas me diz uma coisa, quando nos encontramos já tinhas dois ou três poemas escritos nessa direção. Como chegaste a eles (principalmente aos músicos)?

 

MI | Comecei a escutar jazz na escola, graças à influência de amigos que sabiam e sabem muito mais de música do que eu. Nessa ocasião eu estudava também violão clássico e tomei a decisão de dedicar-me à literatura, como estudante. A poesia e a música eram e são ainda em mim dois aspectos de um mesmo fogo, porém naquele momento passar de uma para a outra era uma sinestesia quase inadvertida: acontecia e pronto. Jovem, meio poeta, a curiosidade me fez pesquisar e algo ainda menos explicável: fez com que eu me plantasse diante da folha em branco para falar de Coltrane, Miles Davis ou Charlie Parker, que é com o que comecei, lá no início. Isto tem já uma década, não menos.

Certamente, nessa ocasião eu não pensava em uma coleção ou em um livro. Não pensava. Os poemas eram mais uma maneira de entender a música do que propriamente de me expressar. Não tinham (e nem têm até agora) maior intenção do que a de ser o testemunho de uma reação emotiva a um estímulo também emocional. A forma desses poemas, a maneira como cheguei a isso, tem sido sempre um mistério para mim. A única coisa que tenho clara é a fascinação que me produz o jazz, e a impossibilidade de expressá-la com palavras correntes: necessito da poesia. Na realidade, este é o primeiro livro que comecei a escrever, e até hoje o que tenho mais curiosidade de ver, pelo que tu lhe acrescentarás de visual, que é um componente que escapa às minhas capacidades. Como entendes armar este assunto tripartido? Como se dá em ti essa trindade?

 

FM | Este é um tema que há muito me apaixona, a ideia de trabalhar os livros como um objeto de arte, muito além de simples repositório de poemas. Tem a ver não apenas com a parte plástica, mas também com o próprio desenho estrutural de concepção da poesia. Sempre digo que não escrevo poemas, mas sim livros. Desde o princípio sempre convidei um artista para trabalhar comigo. Uma vez cheguei a dividir livro com um escultor- Edgar Zúñiga, da Costa Rica-, agregando ao final, como estamos fazendo agora, uma conversa entre os dois autores. E também agora trabalho na preparação de outro livro comum, com um artista brasileiro, Sérgio Lucena. Antes eu lidava com as colagens surrealistas, mas agora tenho me identificado mais com um tipo muito particular de fotografia. No entanto, como é a poesia a base de tudo, tenho buscado cada vez mais ampliar essa relação amorosa entre a palavra e a plástica. Em nosso caso, tenho pensado em compartilhar duas linguagens: as partituras musicais e os manuscritos poéticos. Estamos trabalhando com duas partes individuais e uma terceira que é a celebração da amizade e da improvisação. Até chegarmos ao ponto de fundir nossos idiomas no último poema. Creio que a poesia não tem exemplo de outra alquimia de igual intensidade.

 

MI | Essa tua versatilidade me põe a pensar em teu completo lançar-se a maneiras pouco ortodoxas de escritura. De modo disciplinado te dedicas às escolas da ruptura, ao constante embate com os modos tradicionais de abordar o fato poético. Igualmente, também teu sentido do gosto artístico é amplo, diverso. Por exemplo, o que consideras jazz (penso na inclusão de Piazzolla, que foi ideia tua). Além do mais, vejo tuas possibilidades de criador como algo muito mais vasto (falo de mim porque nós dois fazemos este livro) que o espectro de minhas primeiras escolhas. Nosso gosto nos leva a essa peleja entre um poeta jovem e irreverente- falo de ti- e um conservador que agora se diverte como uma criança a quem se dá permissão de brincar sob a chuva. Não sei se queres falar de teu gosto musical, teu humor poético, e da maneira com que há formado parte deste livro escrito por duas vozes tão distintas.

 

FM | Na verdade, além de Astor Piazzolla, também podemos evocar as presenças de Hermeto Pascoal e Frank Zappa, as três escolhas minhas que expressam certa singularidade do jazz. Talvez pela relação com a música popular de seus países, um tipo de fusão com o tango, o forró, o choro, o rock, o blues, é possível que por essa razão seus nomes não pertençam à galeria mais tradicional do jazz. Observa um disco como o que fez Piazzolla com Gary Burton, como é sofisticado o contraponto entre jazz e tango. O que Piazzolla chama de novo tango também poderia se chamar de novo jazz. É como faz Zappa com elementos da música erudita de vanguarda e o jazz. Mesma coisa no caso de Hermeto Pascoal, quando revela uma relação amorosa entre o jazz e a música popular brasileira. E mesmo dentro do jazz há escolhas mais radicais que são as de Albert Ayler e Sun Ra. Porém o que importa é que os 12 nomes que conformam a minha parte, querido, são um registro natural de minhas preferências musicais, gente que frequentemente escuto, alguns desde muito cedo, como Gato Barbieri ou Cannonball Adderley. Porém estou convicto de que se trata de uma lista de raros e que o mesmo não se passou com as tuas preferências, que são os nomes mais identificados com o jazz e são magníficos, todos eles. Eu creio que é uma condição afortunada do livro esse equilíbrio entre nossos gostos. Equilíbrio feliz que se repete na terceira parte, em nossa escolha de músicas como palco para a improvisação a quatro mãos. Recordo que a cada música falávamos um pouco da relação afetiva que mantínhamos com elas. É um livro (quase dizia é um disco) feito de maneira apaixonada, com o coração aberto e que reflete muito bem nossa amizade.

 

MI | Sim. É um livro íntimo, embora compartilhado. Para mim foi, além do mais, uma experiência com outras modalidades criativas, outros métodos e formas de conceber o poético. Algo como tomar, a cada verso, um risco e uma trilha nova. Procurei, no entanto, ser fiel ao que amo, em música e poesia. Também tiveste essa coerência. Entendo o livro que fizemos como um diálogo entre dois distintos que não querem convencer o outro, mas sim cantar juntos, escutar-se. Não temo afirmar, como já disseste, que é um livro que a partir da experiência do jazz reflete as possibilidades da amizade, do amor e da poesia.

 

 

2014

JOVINO SANTOS NETO

Jazz como da primeira vez, 4ª capa de Overnight medley

 


Dizem que uma imagem vale por mil palavras. Acho eu que uma frase musical vale por mil imagens. As palavras intuídas criativamente neste livro por esse duo de poetas, no entanto, revertem esse fluir, condensando a experiência multisensorial da Música Maiúscula, capturando suas cores, estórias e nuances em pequenas joias em fgorma de língua. Floriano Martins e Manuel Iris jogam aqui um pingue-ponge esperto com sua bi-visão individual e dual, mono e estéreo, assim como em um grupo musical bem afiado o baixo e a bateria conversam enquanto plantam o ecossistema onde os solistas voam.

Claro, podemos escutá-los ou lê0los em solos únicos, mas as vozes do livro emanam da sua percepção extra-subterrânea do jazz, com seus túmulos e berços abertos. Seus ouvidos estereofônicos e estetoscópicos souberam captar a aura da vibração musical do suingue, o toar do baixo, o chacoalho da batera, o choro embutido dos sopros, o horizonte do piano e o beijo partida na goela cantante. Sobretudo, Martins e Iris explicaram o que nunca se explica, sem dizer o que é.

A composição, o improviso, encontram o kairos, momento supremo em que ambos se entrelaçam como o Ouroboros alquímico, em Santa Trindade com o Nada, Som do Tempo. O mistério de Overnight medley é um show que deixa um desejo de bis, a memória do sonho onde se aprende a ouvir tudo de novo como da primeira vez. Da capo!

 

 

2014

MÓNICA MORALES ROCHA

Overnight Medley, poemas que saben a jazz

 


En 1959, Bill Evans escribió, en las liner notes de Kind of blue, sobre los retos de la improvisación grupal. Quizá por encima de las dificultades técnicas de la creación colectiva espontánea, Evans puntualizaba la necesidad humana y social de simpatía entre los participantes, para lograr un resultado común. Para el pianista de Nueva Jersey, esa dificultad quedó resuelta bellamente [¡y de qué manera!] en las sesiones del 2 de marzo y 22 de abril de aquel afortunado año para el jazz.

En Overnight Medley (Fortaleza: ARC Edições, 2014), los poetas Floriano Martins (Brasil, 1957) y Manuel Iris (México, 1983), de alguna manera sobre el mismo planteamiento de Evans, presentan a lo largo de sus páginas:

Un libro sobre jazz que es el mismo jazz. La improvisación, pero también la fusión. Algo imposible sin la amistad, la sinceridad, el sentido absoluto de donación, de entrega.

Overnight Medley es un poemario trilingue (español, portugués e inglés) dividido en cuatro partes: Footprints, a cargo de Iris, entre otros poemas recupera las semillas de este proyecto a cuatro manos; poemas que son, también, de los primeros del escritor mexicano, nacidos como una manera de entender la música y dan testimonio de una reacción emotiva a un estímulo también emocional. Iris se hace de una serie de textos que visitan a Ellington, Mingus, Coltrane, Monk, Gillespie y más. En diez poemas regala postales diversas, riqueza de voces, personajes, situaciones. Finalmente, su mirada curiosa– no abandona el erotismo sutil pero contundente y bien logrado (sabroso, pues). Un fragmento de mi favorito, Round midnight:

 

Thelonius Monk ha atado los extremos de la media noche

para iniciar la variación de los andamios

que se alargan de tu hablar

a tu gemir de orgasmo al primitivo

tiempo de los otros los pre-humanos

que se aman contemplando el fuego.

 

Giant Steps, capítulo de Martins, deja cuenta del registro natural de [sus] preferencias musicales, e incluye a músicos como Ayler, Cannonball Adderley, hasta Sun Ra; pasando por selecciones menos ortodoxas, como Pascoal, Piazzolla y Zappa. Siendo este libro mi primera lectura del brasileño, confieso que casi logra engañarme con el orden alfabético, por nombre de pila de los músicos, en el índice de Giant Steps. En palabras de Iris, independientemente de su edad, Martins es un poeta joven e irreverente que juega (y disfruta como niño) con las palabras, sin perder un gramo en la maestría de su oficio poético. Me provocó de inmediato el deseo mortal de aprender portugués para leerle en su lengua materna, que-aun sin entender del todo– al pronunciar los poemas, suenan riquísimos. Acá un fragmento de su texto Cannonball Adderley:

 

Lo que amo es una alegoría inquieta un pronombre

desprendido del lenguaje

lo que amo es una cuenta de risas y no exige nada de mí

lo que amo por suerte no sé dónde se encuentra

libro que comienza en el epílogo

a salvo de sí mismo.

 

En Mi favorite things, Martins e Iris le apuestan a la técnica de la escritura automática, propuesta de Bretón y los surrealistas, como equivalente a la improvisación jazzística. Y en una serie de poemas que surgen de temas de jazz, como So what, Meditation for Moses, Lost y The procastinator; construyen, al alimón, imágenes que deleitan lo mismo que estremecen. De Memories of you, una probadita:

 

y eres eso: la memoria de una mano

acariciando el lomo y eres eso: la memoria

entre dos cuerpos que se acercan al límite

de los espejos y eres eso: la dulce

memoria de los fuegos

 y el camino.

 

Y cierran con Don’t eat the yellow snow, un diálogo con sabor epistolar donde Floriano y Manuel develan los orígenes y el proceso de conformación de este poemario; las delicias tras bambalinas de sus páginas. Un guiño al lector. Una concesión generosa, que pocas veces encontramos en los libros.

La relación entre jazz y literatura no es cosa nueva. Ya desde sus orígenes Ginsberg, Kerouac y la generación beat, en Estados Unidos; o Cortázar desde Latinoamérica, por ejemplo; han dejado amplio testimonio de los paralelos entre ambos. Para el autor de Rayuela, no podría encontrarse otro género musical con mayor similitud al surrealismo literario que el jazz: el ritmo y la inspiración como elementos presentes, tanto en la escritura automática como en la improvisación; el impulso total. Y, por su parte, los beats asimilaron al jazz como método literario y forma de vida, llegando a autopercibirse como jazzistas de la literatura.

Como neófita en los saberes musicales, pero hedonista ávida y voraz escucha de jazz; además de lectora irredenta, no puedo más que celebrar, llena de un gozo indescriptible, que Martins e Iris coincidieran sobre el pentagrama de la vida. Que juntos decidieran publicar este libro que, a partir de la experiencia del jazz, refleja las posibilidades de la amistad, y el amor a la poesía.

Celebro el Overnight Medley, como celebro una reunión entre amigos entrañables. Me encuentro entre sus páginas, como niña en tienda de dulces, llena de asombro y emoción. Y lo recorro despacio, para dejar que los poemas suenen, estremezcan y lo inunden todo. Sí, la vida es asunto sencillo: jazz y poemas ¿para qué buscar más?

 

 

2014

FLORIANO MARTINS & VIVIANE DE SANTANA PAULO

Nós em nós, posfácio de Em silêncio

 


FM | Eu faço as minhas melhores associações quando tomo uma cerveja e ponho música e me ausento do mundo. Na verdade, não tem a ver com a cerveja ou a música, e sim com a ausência do mundo. Música e cerveja entram como um estalo, um auxílio luxuoso que me permite fazer boas conexões entre os chamados ambientes dissociados. Melhor dizer ambientes cujos enlaces intrínsecos resultam imperceptíveis. A música cuida de uma orientação de tempo e espaço, me conduz a um cenário de aceleração dos sentidos. A cerveja me dá uma cadência letárgica mais vibrante que o vinho ou a maconha, e sem o desenfreio que se possa alcançar com o whisky ou a cocaína. Rimbaud queria desordenar os sentidos. Eu busco sua equalização. Ativar uma corrente em isolado nunca me pareceu fascinante. Uma overdose erótica, política, mística. Nada disto interessa à criação em separado. A minha memória é um caos. Tenho uma facilidade quase suicida de esquecer coisas. Ao mesmo tempo esses golpes de esquecimento são enriquecidos por uma sinfonia aparentemente sem sentido de verbetes do acaso objetivo, eloquências empíricas, suspeitas de um plano ideal ou seu revés etc. Recordo um poeta sem nome na minha adolescência que sofria muito ao parir cada poema. Eu não creio que uma mulher recorde o parto como um momento sofrido de sua vida. Aquela explosão de êxtase- sou naturalmente suspeito, por não haver parido em sentido literal- é um capítulo da alegria e não do sofrimento. Não me dói criar. Porém a cerveja e a música, com o tempo, foram me estimulando a buscar um insight distante delas. As sombras são um indicativo tanto de nossa aflição diante do que somos como uma sugestão de avançar nesse labirinto existencial. Quando escrevo um poema o que faço é por ali na mesa uma peça até então inexistente. Se eu me ponho a repetir o mesmo a cada minuto, logo a mesa não suportará a frequência do inexistente. Um dia chegaremos ao status do perfeitamente razoável, pela frequência de emissão e a satisfação da recepção. Nada pior pode acontecer na vida da criação artística. Os meus argumentos em defesa do indefensável que é a (minha) criação, me levam a começar este nosso diálogo expondo a alma bem abertinha, janela plena, para que sejamos o que verdadeiramente somos: seres criativos.

 

VSP | Existe a brincadeira de criança: “eu vejo o que você não vê”, e a criança descreve a coisa e a outra precisa adivinhar sobre o que ela está falando. A poesia possui esta característica de revelar, àqueles que não possuem a capacidade de ver, um aspecto diferente da realidade, ou ela revela um mundo permeado de fantasia. E o leitor adivinha, isto é, interpreta o poema. A poesia define alguns estados de espírito ou simplesmente atribui imagem à realidade, ao pensamento, e mediante a imaginação e reflexão o poeta deforma a linguagem, a realidade, ou chama a atenção para uma visão singular da vida, subjacente ou não em nosso cotidiano e intelecto. O poeta possui o talento de ver o que muitos não veem. Mas qual o processo de criação para isso? No meu caso, possuo um cotidiano atarefado, quase não tenho tempo para escrever. Entretanto, as associações borbulham constantemente na minha mente. Carrego sempre papel e caneta, escrevo no que estiver ao alcance: guardanapo ou lenço de papel, em uma conta de telefone que está casualmente em minha bolsa, convite de concerto… Escrevo dentro do vagão do metrô, na lanchonete na hora do almoço, na cozinha esperando o arroz ficar pronto, à noite antes de dormir, nos cafés espalhados por Berlim (do que mais gosto, de simplesmente sentar em um café e ficar escrevendo)… As ideias advêm das reflexões sobre determinados temas ou lances cotidianos, e das intensas leituras. Em uma reportagem na televisão sobre agrotóxicos, por exemplo, surgiu uma rápida imagem daquilo que parecia ser um espantalho, e logo veio à mente o início de um poema sobre espantalhos.

 

FM | Escrever em cafés é mesmo fascinante e já o fiz em cidades como São Paulo, Porto, Caracas, Tenerife e a capital panamenha. A existência de cafés silenciosos tornava possível este prazer. Recordo que Eric Satie compôs muitas de suas peças em cafés em Paris. Já escrevi em quartos de hotel, bares de aeroporto, até mesmo em um cinema- em plena projeção de um filme-, porém sempre essa escrita resultava na integridade do poema. Muito raramente em minha vida fiz anotações de versos. A memória tece sua fiação mágica, a rede elétrica de imagens, os truques da linguagem etc., até o ponto de explosão. Mesmo nos poemas extensos, algo comum em dado momento de minha poesia, as anotações inexistiam. O poema, por sua extensão em tais casos, exigia ser fracionado em diversas sessões, que se sucediam até a sua finalização, porém sem anotações intermediárias. É como tenho feito em nossa parceria. Quando te envio um trecho que acrescento ao nosso poema eu o esqueço por completo. Até que me retornas e então eu o deixo abrir sua casa secreta de relâmpagos. Ali o retomo e logo segue de volta a teus braços. O que mais me encanta no que estamos fazendo é que damos passagem à ideia de uma criação coletiva. Sempre me fascinaram os cadáveres deliciosos do Surrealismo e recordo momentos em que os pratiquei com poetas em Portugal ou Panamá. A Internet mais recentemente propiciou um encontro meu com um poeta mexicano, com a curiosidade agregada de que estávamos um nos Estados Unidos e o outro na Austrália, e ali, naquela mesa virtual on-line, escrevemos uma série de poemas que resultou em um livro. O nosso caso tem sua distinção porque há uma variação de tempo, cada fragmento de poema vai se desdobrando com base no ritmo de vida de cada um, o que inclui o teu cotidiano atarefado. Porém uma coisa me alegra, acima de todas as demais, que é o fato de haver alcançado essa intimidade criativa com um poeta brasileiro. O Brasil me parece um dos países mais contraditórios do mundo. Os danos causados à nossa cultura pela matriz católica apostólica romana são imensos. Ao mesmo tempo, os cultos negros e índios, mesmo considerados periféricos, enriqueceram o ideário popular muito mais do que os preconceitos impostos pela religião oficial. Aníbal Machado abre seu impagável ABC das catástrofes dizendo que “as grandes catástrofes são, em geral, filhas da explosão, ou fruto da instantânea ruptura de equilíbrio das massas”. Teus anos de residência na Alemanha permitem avaliar bem o comportamento de uma sociedade que entende de catástrofes. A ausência delas na cultura brasileira foi moldando uma tipologia de circunstâncias, o que não deixa de ser aterrador, embora não passe de um desastre local.

 

VSP | Há a cultura dos cafés na Europa. Como os jovens, e também alguns adultos moram sozinhos e não com a família, procuram um local longe do ambiente doméstico para espairecer ou trabalhar, ler, escrever. Os cafés são quase uma extensão da sala de estar. Há os jornais para ler, há quem traz um livro e permanece lendo enquanto toma um cappuccino e come um pedaço de bolo. Os cafés são muito aconchegantes. No Brasil possuímos uma natureza belíssima, exuberante, que poderia ser acoplada ao nosso cotidiano, mas infelizmente não é. Sou paulistana e em São Paulo existe uma correria desumana, as pessoas não conseguem parar para pensar, vivem no centro de uma voragem mecânica infalível. Sinto muita falta da natureza em São Paulo, de lugares aconchegantes, sem chiqueria, onde você possa sentar em um sofazinho, tomar um café e ler um livro observando os transeuntes na rua. Certamente, o Brasil é um país muito contraditório. Em alguns casos isto é criativo e em outros cansativo. Trata-se de um país que sempre teve um grande potencial, mas precisa desenvolver uma consciência política e cívica. Quais são os meus direitos e deveres na sociedade? Como posso contribuir para o progresso da sociedade? Questões que deveriam ser discutidas e integradas no cotidiano dos brasileiros. A Alemanha só se ergueu de duas guerras porque o pensamento é coletivo: “vamos organizar o país e se for necessário abrir mão de alguns privilégios em prol dos meus compatriotas, em prol da nação, eu abro mão”. A elite alemã, assim como os políticos se sentem responsáveis pelo progresso da nação e procuram ajudar a administrar o país de forma que todas as classes sejam incluídas. A pobreza é um sinônimo de má administração e, a longo prazo, possui efeitos maléficos para toda a sociedade, por esta razão é combatida antes que se alastre incontrolavelmente. Retornando ao processo de criação, também sou muito esquecida (talvez seja uma característica típica dos poetas: viver no mundo da lua), não consigo memorizar nenhum poema meu nem de ninguém. Acredito que isso também se deva ao fato de eu não ter aprendido na escola a arte de recitar. Para escrever os nossos poemas não é possível eu fazer anotações porque não sei quais serão os próximos versos. Tento me colocar no seu lugar e imaginar o que você por ventura poderia estar imaginando ou simplesmente dar outro rumo e a partir disso desenvolver os próximos versos. Quando sou eu que inicio um poema, procuro imaginar um tema ou uma imagem que possa ser interpretada através de metáforas. Mas cada poema foi um desafio porque escrever poesia é algo muito íntimo e não acreditava que poderia ser escrito por duas pessoas distintas, ainda mais duas pessoas que não se conhecem pessoalmente e vivem em dois continentes diferentes. E algumas vezes eu não sabia como continuar. Mas a criação significa dar continuação às coisas ou reconstruí-las através da invenção. Procurei enveredar os versos nas alamedas da realidade contemporânea, distorcendo-a, a fim de não me limitar somente ao enleio do surrealismo onírico.

 

FM | Foram fundamentais à construção dessa voz comum que atingimos com nossos poemas o sentido de entrega e a afirmação de uma poética distinta da minha, segura de si e igualmente apaixonada pelo risco. Quando eu te convidei o que mais me atraía em tua poesia era exatamente o que faltava na minha. Eu vinha de uma metáfora mais abstrata, com uma sensualidade transbordante, enquanto que a tua intensidade- não menor do que a minha- vinha dessa mineração da vertigem do cotidiano, atenção aos vitrais e à ferrugem da paisagem urbana. Graças a essa busca de um equilíbrio a linguagem poética foi costurando uma voz muito especial e com um grau de intimidade tão fascinante que não há quebra na passagem dos versos de um para outro em nenhum poema. Eu considero este nosso encontro uma imensa felicidade que atesta nossa liberdade de criação, a maturidade da aventura de busca do outro, uma entrada naquele plano que Jung chamou de imaginação ativa onde o ego não representa conflito ou obstáculo. E note que no caso de Abismanto acrescentamos mais uma ousadia, pelo ambiente erótico, tomado de ardis que por um descuido mínimo nos levaria à reiteração ou a uma cafonice amatória. Creio que nos saímos bem, tanto que agora mesmo já avançamos para um outro capítulo.

 

VSP | A criatividade ultrapassa fronteiras e os indivíduos criativos aceitam, até mesmo procuram os desafios que entremeiam o universo da invenção, estão sempre atentos às novas possibilidades, para tanto é preciso não ter medo do fracasso e aprender com ele, e se entregar à aventura. Para escrever poemas a quatro mãos não pode faltar o respeito mútuo e a admiração recíproca pelo trabalho um do outro, a ponto de se aceitar as críticas e sugestões de ambos. Não há aqui espaço para a vaidade. Entretanto, não é algo que se atinge facilmente. Às vezes, pode-se haver respeito e admiração mútuos e mesmo assim não se alcança a devida afinidade para escrever poemas a quatro mãos. Realmente, trata-se de um trabalho complexo que envolve a psicologia de cada um. Coincidimos em muitos casos com a mesma visão e julgamento de mundo, e possuímos formas diferentes de interpretá-los, o que levou um a incluir elementos distintos no poema do outro, alternativamente. Graças a você, Floriano, pude lidar com este tipo de experiência que contribui para aumentar os mecanismos da criação.

 

 

2015

JOSÉ CASTELLO

Escutem seu nome

 


Em um poema de Floriano Martins, Rastro, esbarro em um verso que me derruba: Esta é a única obra. Escutem seu nome. O poema está em O sol e as sombras (São Paulo: Editora Pantemporâneo, 2014), livro trabalhado em parceria com as mãos vigorosas do artista Valdir Rocha. As reproduções das gravuras em metal de Valdir são atordoantes e conferem ainda mais potência à frase que leio.

O livro se abre com uma epígrafe iluminadora do espanhol Francisco de Goya: Na natureza existem tão poucas cores quanto linhas, só existem o sol e as sombras. Dá-me um pedaço de carvão e eu te darei o quadro mais belo. Tudo, no livro, conflui para um mergulho radical em si. Tudo conflui para o verso de Floriano- ele, também, simples e forte.

Eu o repito, para ter certeza de que ele existe: Esta é a única obra. Escutem seu nome. O verso vem em itálico, o que tanto pode indicar a fala de um personagem obscuro, como uma citação. Mas citação de quem? Não importa- o verso se fecha em si mesmo e nos sacode. Nos arrasta. Ele resume, de modo impactante, o segredo da própria criação.

Lembra Goya que na natureza existem poucas coisas realmente valiosas e que, por isso, devemos nos aferrar ao pouco que temos. Precisamos nos agarrar ao que somos – ao próprio nome – ou nada mais se sustenta. Essa parece ser a sina de artistas e escritores: sustentar uma assinatura. As máximas contemporâneas afirmam que o autor morreu, mas para os artistas verdadeiros isso não passa de uma afirmação leviana.

Precipitada e perigosa, já que pode matar (ainda que metaforicamente) o que um artista é. Pode emudecer uma voz. E de que mais trata um nome senão de uma voz que nos designa? Que nos devolve a nós mesmos? Ter um nome – o que é muito diferente de ter uma identidade renomada –: eis tudo o que um artista quer. Tudo o que um artista (um escritor) persegue. Tudo o que o mantém respirando.

O mesmo poema, Rastro, abre com outros versos fortes: O lugar de ser de cada letra,/ a oração convertida em pérola/ que nos decifra em fatias. A palavra pérola- eis o nome, ao que só se chega depois de um longo percurso de volta a si. Voltar a si é muito mais difícil do que avançar, ou transformar-se. Em outras palavras: para um artista, voltar a si é o verdadeiro avanço, é a verdadeira transformação.

Transformar-se em si mesmo – o que parece simples é o mais difícil. Ainda Floriano: O mundo é uma fábula,/ até que nos descobrimos/ o personagem de sua saga. O personagem de si mesmo. Ao lado do poema, um imenso rosto, com os olhos arregalados, nos encara. Figura, mais do que nunca, silenciosa. Seus olhos bastam.

A arte de Valdir Rocha dialoga em silêncio com as palavras do poeta. Esse olhar intenso e imenso, voltado mais para dentro do que para fora, é aquele que um artista abre para, enfim, chegar a si mesmo. Refere-se, ainda, ao espanto que todo artista experimenta quando, depois de muita luta, chega ao próprio nome.

 

 

2015

GLAUCIA MARIA OLINGER

Dança, tragédia e sombras na poesia de Floriano Martins, orelhas de A vida inesperada

 

A dança era muito frenética, viva, de chacoalhar, tinir, contorcer e durar muito tempo.

CAROLYN CHRISTOV-BAGARGIEV

 


Em tempos de produções poéticas minguadas e aguadas, em um mundo estéril e desolado, a poesia surrealista de Floriano Martins ⎼ espantoso artefato ⎼ surge como um Abre-SE, Sésamo, das celas de segurança dos manicômios.

Octavio Paz disse que o surrealismo é a maçã de fogo na árvore da sintaxe. Não posso dizer que a poesia de Floriano ⎼ cheia de interferências, cruzamentos, palavras saltitantes, dançantes e em rodopio ⎼ seja como uma Eva Dormente, uma Eva antes de ter mordido a maçã, Eva antes da contaminação.

Não. Não posso.

Mas consigo enxergar uma situação em que o mundo foi pelos ares e Floriano Martins está e assim permanecerá devotado ao infinito, juntando os cacos para reconstruir um ideal de clareza pós-apocalíptica.

Sua imaginação é uma avalanche e nada é linear, nada tem começo, meio e fim, certamente porque tudo ali é começo, meio e fim.

Avalanche guardiã do próprio mito que imagina, alinhava, faz reverberar e reitera.

Escrita em estado permanente de desconstrução e reinvenção, difícil saber como Floriano evita cair no próprio abismo.

Cada frase é como se algo muito sério fosse acontecer. É preciso ler e reler e ler uma vez mais, até que se tenha a certeza de que as palavras não fazem sentido algum, justamente porque fazem todo o sentido do mundo.

Intrigantes jogos de linguagem, uns divertidos, outros sombrios, graças a eles Floriano chega à lógica do sentido através do não-sentido.

Outra impressão marcante é que seu leitor, muito mais do que simplesmente leitor, é um voyeur: arrazoados intensamente eróticos, sensíveis ao tato, o atordoam e perturbam, e o poeta sabe como poucos tirar proveito dessa vertigem encantatória, porque habilmente domina ⎼ ou se deixa enganosamente dominar por ele ⎼ o instante preciso em que se deve produzir ruído e alvoroço.

Uma vez fechado o livro, o ruído permanece, como expressão repleta de contágio e possibilidades. Esta é a mágica de uma vida inesperada.

Se a linguagem mascara ou revela sombras, jamais o saberemos.

No entanto, a grande tragédia é que a poesia, alimentada pelo tédio, pela angústia e o desespero, como íntima nostalgia do Paraíso, pode revelar um Floriano Martins que deseja algo mais do que simples passagem.

Quer o diálogo.

Sua escrita compartilhada com seus pares poetas, por exemplo, toma forma e reforça a linguagem da consciência com a da associação, criando uma intensa rede.

Nele não observo catarse ou êxtase, mas sim emoções recortadas com tranquilidade. Absoluto controle. No fundo da imaginação existe um poder que abarca moralidade, beleza e verdade. Floriano Martins nos proporciona não apenas a visão da grandeza pessoal do poeta que é, mas de algo impessoal e ainda muito maior: a visão de um ato decisivo de liberdade espiritual: a visão da recriação do homem através da poesia.

 

 

2015

MÁRCIO SIMÕES & FLORIANO MARTINS

Gênese por trás dos espelhos, posfácio de A vida inesperada

 

As noites são uma só, cobertas por distintos véus de melancolia e uma tenda transparente em cujas dobras vislumbramos o espectro que nos guia por outros mundos. O mundo não muda uma vírgula além de sua sintaxe inventada justamente por nós. A natureza se move tão lentamente que não percebemos a essência de seus atos. Nós somos os deuses dos deuses e capitulamos graças à inveja que uns sentem dos outros.

FLORIANO MARTINS

 


MS | Você vem trabalhando num volume, intitulado A Vida Inesperada, em que reúne – ou talvez mais apropriado seria dizer refunde – a totalidade de seus escritos poéticos. O que representa esse volume para você?

 

FM | Em 1991 eu escrevi, e de imediato publiquei, dois livros que mostraram uma feliz definição de minha voz poética: Cinzas do sol e Sábias areias. Ambos são distintos na forma – o primeiro é um conjunto de prosa poética; o segundo enfeixa uma série de décimas –, porém se irmanam na presença de um tema único, na caracterização de personagens inseridos em uma tessitura narrativa e na evocação de um epos pessoal. Um pouco antes deles eu havia escrito dois outros: A queda da rebeldia angelical e Contradições terríveis. Dos originais do primeiro eu me desfiz, porém o segundo foi publicado em 1989. Neles havia uma tensão entre fundo e forma que não se definia favoravelmente à identificação de uma singularidade buscada por mim. De algum modo era a mesma a paixão pela diversidade de ambientes, a provocação filosófica, o choque intencional de imagens, a trama narrativa, porém eu não me sentia tão em casa quanto a partir do momento em que escrevo Cinzas do sol. Antes deles foram publicados cinco outros livros. São livros-degraus. Eu nunca estive muito longe de mim, mas vinha até então desatento a um detalhe: o de tornar-me personagem de minha criação. Faço tais observações por conta de tua referência a que o livro A vida inesperada refere-se à totalidade de meus escritos poéticos. Não há isto, é bem outro seu espírito. Cronologicamente eu pus em um mesmo caldeirão uma série de experimentos poéticos que somam 24 anos (1991-2015), mas que não resumem sequer a totalidade do que criei neste período. O primeiro impulso não era o de reunir escritos, menos ainda o de revisá-los ou corrigi-los. Profusão e diversidade me fizeram parir um pouco de tudo ao longo destes anos. Flertei com várias máscaras da escrita. Da tragédia ao pastiche. Do versículo bíblico à psicografia. Do soneto à crônica criminal. Não à toa um de meus livros se chama Alma em chamas. A ideia, no presente caso, era a de ajustar os ponteiros existenciais da criação, espalhando em uma mesa imaginária tudo o que publiquei, desde Cinzas do sol (1991) até O sol e as sombras (2014), sem deixar de fora também muitos inéditos. Tratei de apontar a mim mesmo algumas coordenadas ainda não percebidas. Por vezes corrigi um advérbio, uma imagem, um argumento. Desloquei poemas de um livro para outro. Cortei versos e mesmo inúmeros poemas. Fundi uns poucos. Ao longo desses 24 anos e entranhado no enredo dos 26 capítulos que constituem A vida inesperada, observo agora com melhor clareza a presença de um personagem inteiramente alheio à tradição lírica brasileira. Eu me sinto – e não vejo reconforto nisto – um estranho no ninho de nossa lírica.

 

MS | Em que exatamente consistiria essa estranheza? Parece evidente no seu caso que o empenho de todo artista no sentido de forjar uma singularidade e uma perspectiva crítica pessoal, sem a qual nenhuma arte se torna relevante, levaram a um elevado grau de autoconsciência daquilo que se faz. Sendo assim, quais acredita serem os pontos de atrito e contato (bem como as contribuições específicas) da sua escritura poética em relação à tradição lírica nacional?

 

FM | Eu não sei se o correto seria chamar de pontos de atrito. Observo bem amiúde inclinações por um conformismo estético, que acabam por expressar tanto uma transigência com a tradição quanto uma ausência de motivos. Quanto a pontos de contato, há inúmeros, porém não com a totalidade de nenhuma obra em especial. Ao ler um poema de outro aprendemos tanto com seus erros quanto com seus acertos. E ninguém erra ou acerta por completo. Três imensos poetas brasileiros erraram por excesso: Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Manuel de Barros. Porém toda grande poesia arrasta consigo um ninho de pequenos pecados. Não sei se eu poderia referir-me, em meu caso, a contribuições específicas. Os poetas se leem muito pouco entre si e menos ainda o fazem com o necessário sentido de entrega. Outro dia escrevemos um poema a quatro mãos, Contador Borges e eu. Ao final ele observou que o poema estava tão bem soldado que era impossível identificar a autoria de versos isolados. No entanto, somos tão distintos um do outro. Tenho por poetas como Marco Lucchesi, Viviane de Santana Paulo e o próprio Contador Borges uma admiração incondicional. Mas somos vozes que foram se formando graças a um conjunto de experiências de vida e não apenas fruto de nossas leituras. Este desequilíbrio entre vida e obra constitui um dos defeitos mais graves de nossa lírica.

 

MS | Para Sergio Cohn, destacando justamente a singularidade da sua poética no panorama nacional, sua poesia “realiza textos com forte teor imagético e algumas vezes delirantes, em longos fluxos de versos livres, ao gosto da poesia surrealista” (In: Poesia.BR, 1980. Azougue, 2012). Não existe singularidade no vazio, então, qual o universo de diálogo de sua obra poética?

 

FM | A força maior veio sempre da diversidade. E não somente diversidade literária. Menos ainda restrita ao ambiente poético. Se pensarmos em livros marcantes de minha infância entre os títulos que se impõem estão: Crime e castigo (Dostoievsky), Paraíso perdido (Milton), O Conde de Monte Cristo (Dumas, pai), O tronco do ipê (Alencar), aos quais foram se somando, na primeira adolescência, títulos como A ilha do tesouro e 20 mil léguas submarinas (ambos de Julio Verne), Memórias do cárcere (Graciliano Ramos) e uma pedrada certeira na minha janela que dava para o mundo: Os 120 dias de Sodoma (Sade). No entanto, eu era fascinado por outras fontes preciosas, como as revistas do Príncipe Valente (Hal Foster), os desenhos animados do Gato Félix (Otto Messmer), peças de teatro como O balcão (Genet), O arquiteto e o imperador da Assíria (Arrabal) e Marat/Sade (Peter Weiss). Esta então me apaixonava desde a estranheza do título: A Perseguição e Assassinato de Jean-Paul Marat encenado pelos internos do Hospício de Charenton sob direção do Senhor de Sade. É bem possível que venha daí a extensão territorial do título de um livro meu: Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna (1998). O mundo das afinidades é uma colcha de retalhos. Resultamos de fricções saudáveis com todas as pedras da existência que nos despertam alguma inquietação. E por vezes somos tocados de forma indireta: somente fui ler O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde (Stevenson), após uma adaptação deste romance para a televisão, a telenovela O médico e o monstro, que eu via graças a um espelho bem posicionado pelo acaso em meu quarto, porque minha mãe achava que eu não tinha idade para tanto. Li primeiramente Tolstoy e Dostoievsky em adaptações de seus romances para fotonovela. Mas não posso esquecer a música, que foi o meu maior arsenal de afinidades, as letras, arranjos, instrumentos, a voz, sempre tive verdadeira fascinação pelos detalhes.

 

MS | Dentre o que escreveu, tem algo, algum livro específico ou ciclo de poemas, que te agrade mais?

 

FM | Gosto muito do que representa em minha vida o momento em que escrevi Cinzas do sol. Também mantenho muito presente em mim a escritura, praticamente sob efeito de morfina, da série Blacktown Hospital Bed 23. São dois textos bem acentuados pelo medo da morte: a de minha avó materna, no primeiro caso, e a minha própria, no segundo. Em face disto, são também textos que acentuaram tanto a minha escrita quanto a minha visão de mundo. Cinzas do sol me pôs no centro de minha criação, como personagem inarredável de seu cenário, enquanto que Blacktown Hospital Bed 23 me definiu melhor as condições de parto, a magia do improviso, essa relação entranhável entre a letra e o sangue. Graças a este acento visceral me foi possível chegar à escritura a quatro mãos de dois livros, que não estão presentes em A vida inesperada: Overnight medley e Em silêncio, o primeiro escrito com o mexicano Manuel Iris, o segundo com a brasileira Viviane de Santana Paulo, ambos publicados em 2014. Os textos mencionados não são preferidos ou melhores em relação aos demais. Eu poderia aqui remeter a particularidades essenciais durante a criação de cada um deles. Mas reconheço, isto sim, o quanto que ambos foram impactantes em minha vida.

 

MS | Recentemente você gravou um vídeo intitulado Abismo minucioso, que registra a criação de três poemas automáticos por você a partir de temas propostos na hora pelo artista plástico Valdir Rocha. Por outro lado, você vem reescrevendo e rearranjando sua obra poética para A vida inesperada. Como você equaciona esse trânsito entre os opostos aparentes que são a escritura automática e a reescritura?

 

FM | Não vejo em que os dois termos se oponham entre si. A pedra de toque da existência humana é a dúvida, a inquietude, o descompasso, a fração, o risco, tudo isto sempre me pareceu levar a uma cama bem quentinha e harmoniosa entre a escritura automática e a reescritura. Não consigo entender como a criação possa ser algo sofrido na mesma proporção em que não vejo motivo para o criador não aceitar um deslize ocasional e tratar de ajustá-lo. Eu não tenho nenhuma dificuldade em criar, o que não significa que não erre. Acho que os dois termos são evocados de forma intencionalmente equivocada. Não por ti, claro. A reescritura pressupõe uma obsessão racionalista de controle extremo sobre a criação? A escritura automática nos leva a um ritual de instantaneidade que nos torna alheios a qualquer noção estética?

 

MS | O debate sobre o assunto parece ter se cristalizado em um oposicionismo caricato e reducionista entre dois elementos dialógicos da criação, que não operam em separado senão sob graves prejuízos. Mas, de onde costumam partir seus poemas? Planeja seus livros antes de escrevê-los? O que leva você a se sentar para escrever um poema?

 

FM | Eu não me sento para escrever. Desconfio que a minha ideia de planejamento da criação seja a mesma de um compositor sinfônico. Andamentos, fraseados, hora de entrada de cada instrumento, tudo isto me vem como uma avalanche, em geral não anoto nada, mesmo no caso dos textos mais extensos. Percebo a trilha que busca a escrita e vou lhe dando total liberdade de definir seu curso. Em geral, escrevo muito rapidamente. Dias, semanas ou meses, a depender da extensão da viagem. O vulto do livro surge no horizonte como um sinal de vida. Evidente que duas coisas se passam aqui: tanto a aventura vai se intensificando na medida em que há melhor domínio dos instrumentos, quanto não me privo de pôr à prova as intenções da escrita, revendo cada detalhe desse aparente delírio. E sempre encontro erros, até porque há uma insatisfação perene, um alto registro de exigência ou inconformismo.

 

MS | Paralelo à criação poética você tem desenvolvido uma intensa atividade no campo das artes visuais- quase sempre numa peculiaríssima forma de colagem digital a partir de material fotográfico prévio produzido por você mesmo-, sei que já afirmastes que ambas (poesia e plástica) têm sua razão de ser no poeta, mas crês que há uma relação de influência direta entre as duas ou são áreas de atuação distintas que encontram seu ponto de interseção unicamente na sua volúpia criativa?

 

FM | Naturalmente há um ponto de fusão entre imagem plástica e poética. Assim como há certo charme em dizer que o poeta está por trás de tudo. O campo das classificações é tão danoso à criação que por vezes alguns artistas se valem desse charme para fugir dos escaninhos viciados da academia. Eu gosto de criar. Conheço as minhas limitações e constantemente me desafio sem perda de autocrítica. Quando digo que não sou artista plástico isto significa que, ao criar, não parto de uma essência plástica. O mesmo posso dizer quando componho letras de canção ou eventualmente arrisco alguma melodia. No entanto, tua observação é no sentido de uma influência e neste sentido o mundo plástico está entranhado em mim desde muito cedo. Um cunhado de minha avó materna era um médico pintor, afeito a naturezas mortas, algumas das quais se tornaram os primeiros abismos fascinantes de minha infância. Eu mesmo usava guaches e papel cartão para copiar capas de romances do José de Alencar. E recortava figuras em revistas, dando-lhes imaginária tridimensionalidade, incluindo vozes e enredos. Quando ali pelos 30 anos comecei a fazer colagens o universo plástico que me veio à tona foi exatamente o das naturezas mortas. Criar uma atmosfera impactante pela aproximação de imagens distintas entre si não me fascinava tanto quanto descobrir intimidades até então não percebidas entre elas. Eu queria criar um mundo novo e não apenas evidenciar o desconforto de um mundo visível.

 

MS | Outro campo de atuação em que você tem se empenhado atualmente tem sido a organização e tradução de livros de autores pouco usuais em nosso panorama cultural. Deste trabalho nos dá testemunho um volume de ensaios de Aldo Pellegrini (Sobre Surrealismo. Sol Negro, 2013), uma antologia de viagens do surrealismo (Viagens do Surrealismo. Edições Nephelibata, 2014), três volumes de Vicente Huidobro (III novelas exemplares; Tremor de Céu; Traduções do Universo, todos pela Sol Negro Edições), e ainda uma antologia da poesia surrealista na América (Breviário poético do Surrealismo na América), todos recentemente editados ou ainda no prelo. O que o levou à escolha desses temas e autores?

 

FM | Não se trata de atualmente. Venho fazendo isto desde 1998, quando a Ediouro publicou uma antologia de poemas do Federico García Lorca, traduzida e prefaciada por mim. A mesma editora também publicou tradução minha de um livro de contos do cubano Guillermo Cabrera Infante. Para a Fundação Memorial da América Latina publiquei libretos reunindo textos do espanhol Jorge Rodríguez Padrón e do porto-riquenho José Luis Vega. Posteriormente publiquei um livro de contos do costarriquenho Alfonso Peña, uma antologia poética do venezuelano Juan Calzadilla e ensaios do nicaraguense Pablo Antonio Cuadra. Quando saiu, em 1998, uma edição de meu Escritura conquistada – volume de entrevistas a poetas ibero-americanos que anos depois seria ampliado substancialmente e editado, em dois tomos, na Venezuela –, ao me fazer uma entrevista o José Castello eu lhe disse que minha vida talvez fosse facilitada, em termos de mercado, se eu tivesse me inclinado pela pesquisa e tradução de literatura de língua francesa ou inglesa. Não foi um gesto suicida, mas antes uma compreensão do papel que um intelectual deve representar frente à cultura de seu país. Qualquer profissional sério enfrenta obstáculos ligados à frivolidade de mercado. Não seria diferente com o pesquisador de literatura. O destaque maior que eu daria aqui seria ao acervo de matérias publicadas na Agulha Revista de Cultura, assinadas por inúmeros colaboradores, que evidencia uma carência de conhecimento do leitor brasileiro acerca de situações relevantes na literatura de países periféricos a certo vício de mercado. O Brasil precisa ser desfeito, refeito ou simplesmente inventado? Já é um pouco tarde para qualquer um desses experimentos. Apenas uma coisa é certa em nossa realidade cultural: o band-aid custa caro.

 

MS | Esquecemos algo?

 

FM | O pintor William Turner, ao morrer, de súbito exclamou: “O sol é Deus!” A todo instante nos esquecemos disto, da súbita riqueza do inesperado. De um modo geral, somos viciados em planos e frustrações. Satisfazemos a nossa vida com esses dois argumentos: o que um dia queremos realizar e o infortúnio do que não foi possível. Evidente que nada disto importa. O gratificante na vida é o que ocorre alheio ao nosso controle. O que nos exige a vida é que deixemos a casa sempre aberta ao inesperado. Eu tenho vivido sob o salvo conduto do acaso. Abraxas

 

 

2017

FLORIANO MARTINS

Gênese de um livro de horas: A mais antiga das noites

 


É possível que este seja o livro de um pintor, muito mais do que o de um poeta. Fascina-me constatar que cada poema traz em si a chave-mestra de um paiol de imagens-vivas. Neles eu não busquei modelos, nem os trouxe à perspectiva de uma leitura para sugerir mimetismo. Suas vozes vão preenchendo a escrita como a descoberta de uma nova ramificação existencial. Cada registro desnuda a pluma que o revela. O vento no jardim nos trouxe umas vozes que queriam ser descascadas. Ouvimos os hieróglifos da pele delas todas. Uma porcelana de sementes impossíveis. Relendo-o agora, estou certo de tê-lo pintado, e não escrito. Na manhã em que senti a presença da médium Eva Fay de imediato pensei na pedra chinesa para caligrafia que minha filha me trouxe de Hong Kong. Eva sabia o quanto eu queria desenhar palavras. E à mesa vi como foi trançando as metáforas de Antonio Bandeira, Maria de Naglowska e Franz von Stuck. Como a evocação de luzes na pintura de Bandeira, onde cada cena descrita abria um canal de alteridade que nos levava ao outro do outro no outro… Um ramo sem fim da criação quando esta aprende a reconhecer-se em tudo o que toca. Desentranhado em poucas manhãs, este livro não deixa de ser um caderno de anamorfoses. Tudo o que percebemos a razão se esmera em ocultar ou deformar. Este talvez seja o maior conflito amoroso de nossa precária existência. O léxico é um grafismo de corpos que planejam as cenas mais eróticas que já psicografei. Quando pousei o olhar sobre uma foto de Francesca Woodman soube de seu suicídio, porque ela tratava obsessivamente de desfazer-se de si em cada plano em que registrava a própria imagem. Francesca estava sempre em outra parte. Suas fotos movem-se com agudeza e tragam a nossa alma para o mais íntimo de seus ângulos. O mesmo que as enigmáticas figuras que perambulam pela obra de Leonor Fini, Olia Pishchanska e Xia Xiaowan. Seus traços foram guiando as letras à procura do paradeiro de muitos dos poemas que tenho escrito. A rigor, quando evoco seus nomes há muito que já estão comigo. Somos como os meteoros de Radovan Ivsic: já não são escamas a recobrir seu corpo, mas sim lábios minúsculos, inumeráveis. Não importa o que um disse, mas antes o que o outro pensou. Quando ainda recortava figuras para fazer uma colagem afeita a minúcias eu tinha a meu lado a aura de Luca Signorelli, Pierre Nicolas Huillot e Leila Ferraz. Todas as linguagens são uma só. Conversávamos ao modo de uma película de sonhos. Um transbordamento perene de imagens, bodas perfeitas entre Barroco e Surrealismo, voragem anímica. Essa melodia de excessos me deu uma chave secretíssima da obsessão espiral, cujas janelas me escancaram a obra de Eugène Ionesco, Valdir Rocha e Eunice Odio. O encontro com Valdir não foi intermediado por Eva Fay, porém há momentos em que não descartamos a hipótese de habitarmos uma variada excentricidade de mundos. Em uma de nossas conversas, quando me disse preferir minhas fotos nuas aos efeitos de sobreposição que costumo empregar, eu me pus a namorar transparências de Claude Monet e Cícero Dias, e ali descobri uma narrativa que descerrava um horizonte de fábulas, como se visitássemos as pinturas religiosas populares de séculos esquecidos à procura de uma aceitação mínima para o que somos. A história da humanidade, de algum modo, é um jogo ardiloso de cenas superpostas. Não há relevo sem perspectiva, causa e tributo. Dalton Trumbo intuiu que a sala de identificação é um baile de máscaras. A história aceita o engano, casual ou não. O homem reluta em cair em si. Edith Rimmington retira do fundo falso de uma caixa invisível os personagens de seu teatro ao revés. Marie Wilcox se torna a figura exemplar que ninguém quer por perto. Uma velha índia que ao invés de implorar por justiça ou um prato de comida se põe a trabalhar pelo registro de sua língua nativa. O século XXI ainda não aterrissou em si mesmo e uma de suas mais perigosas confusões diz respeito à hemorragia da culpa, graças à qual tudo se tenta remendar da pior maneira possível. Quando me visitou Hilma Af Klint confesso me haver surpreendido. A abstração me interessava muito pouco como um recurso isolado. Como qualquer outro truque de linguagem. Mas logo compreendi que era justamente isto o que ela queria me dizer, em sua condição precursora, o que ficou bem límpido assim que voltei a conversar com Austin Osman Spare ou Pablo de Rokha. O sonho mais aterrador que se pode ter é com um cemitério de linguagens, onde os túmulos se multiplicam sem o menor contato entre eles. Não de todo ao acaso, minhas anotações são uma espécie de clepsidra graças à qual oriento o curso de minha criação. Verbos, imagens, tonalidades, movimentos, dissonâncias, o palco se desfazendo e refazendo a cada cena. Ocultismo e mediunidade. Tênue silhueta da humanidade encontrada entre escombros do acaso. Uma canção de amor. Uma aquarela esmaecida. Um refúgio da memória. De algum modo naufragamos em nossas aspirações. Vejo agora que nem escrevi ou pintei este livro. Ele sempre esteve em mim, generoso palimpsesto, como a história secreta de uma multidão. E por isto o dedico à multidão que habitou alguém que sempre amei: Chico Anysio.

 

 

2017

FLORIANO MARTINS

Gênese de um livro de farpas: A grande obra da carne

 


A cena se passa em um castelo medieval, há tempos transformado em Grande Hotel, majestoso e soturno, com suas paredes grossas e quartos que são como celas de um convento. Todavia não se trata mais do Hotel, que foi à falência, nem de um eventual convento, e sim de uma dúbia e improvisada casa de recuperação de virtudes. A médica Nise se sente intrigada ante o desafio de seu mais novo paciente, Antonio, e solicita ajuda de Maria, renomada por seu êxito em reanimar sexualmente pacientes encerrados em si mesmos. Antonio é um caso complexo, porque se sente aprisionado por sua própria consciência. A ambientação é completada por duas presenças curiosas. Aurora é a faxineira que vem aos sábados cuidar da limpeza da casa. Teria tudo para ser uma moça de hábitos simples. No entanto, ela é assediada por tremores que lhe fazem crer uma encarnação de Aleister Crowley, o mestre da magia sexual que ela desconhece por completo. Não bastasse, sabe-se que por alguma razão a direção da casa cedeu espaço, em um cômodo no porão, para que um taxidermista se instalasse, com a incumbência de montar uma exposição de corpos representativos da história do Grande Hotel. O que se descobriu tardiamente era que Guilherme tinha mais de meio milênio de existência e que havia atravessado destinos simplesmente se apossando de novas formas. Quando se encontram estes cinco personagens não há propriamente uma discórdia, mas antes um convulsivo cenário em que cada um deles manifesta uma opinião terapêutica acerca de Antonio, desde cedo caracterizado e aceito como o paciente único do Grande Hotel. O encontro deste quinteto é tão imprevisto quanto fascinante, cabendo à imaginação tecer os fios comunicantes desse prodigioso acaso. Esta, em definitivo, é uma obra de ficção, em especial pelo que se confunde com a realidade.

 

 

2017

FLORIANO MARTINS

Gênese de um livro de truques: O livro desmedido de William Blake

 


Ao receber em casa exemplar do livro Gog, de Giovanni Papini, de imediato após a primeira folheada saí com ele, sem nada planejar. Após um tempo impreciso caminhando dei de cara com um lugar chamado Mercado 153. Entrei e o simpático metre me informou que tinha Heineken original, holandesa. Aquele 153 me levou direto ao nove de sua decomposição, número que multiplicado se reproduz a si mesmo, de acordo com o princípio da adição mística. Um gole da geladíssima cerveja e, ao folhear novamente o livro, pedi ao metre que me conseguisse papel e caneta. Incalculável o tempo que levei a escrever, até que, sem que antes desse por conta, percebi que estava escrevendo de forma invertida, como se o manuscrito só pudesse ser revelado pelo uso de um espelho. Surpreso e faminto, pedi um filé alto, mal-passado, e voltei a folhear o livro de Papini, sem, no entanto, ler sequer uma frase. As manifestações espíritas se dão de incontáveis maneiras. Há aquelas que produzem estranhos ruídos ou que arrastam móveis pela casa; outras que materializam bilhetes ou fornecem pistas para que localizemos velhas tranqueiras domésticas ou mesmo alguns pequenos tesouros; há ainda aquelas em que ouvimos vozes ou somos tomados pelo espírito de alguém… Minha mãe e sua irmã vislumbravam formas humanas, chegando a identificá-las e conversar com elas. No meu caso não houve nada disto. Naquela manhã o que senti foi a presença invisível de William Blake, a delicada força de sua mão segurando a minha e simplesmente rascunhando notas e mais notas. Durante cinco ou seis vezes repeti aquele ritual. Retornava ao Mercado 153, sentava-me à mesma mesa, cerveja, filé, sem que nada faltasse. Sempre comigo o livro de Papini, mesmo sem abri-lo. No terceiro dia o metre indagou se eu era escritor. Para ele a minha visita era tão afetuosa quanto a de Blake para mim. A primeira cerveja eu tomava conversando com ele, curioso de tudo. O poeta inglês prosseguiu com seus manuscritos, e no quarto dia me apresentou Catherine, sua esposa, pedindo que eu também a deixasse escrever algo. Observo agora que nem mesmo quando as anotações se concluíram eu voltei a folhear o exemplar de Gog. Senti que havíamos finalizado aquele estranho rito quando me pus a desenhar o rosto de Blake e logo o meu próprio sobre ele. Não nos despedimos. Algo em mim estava ciente de que eu havia recebido um presente. Nossa relação com o mundo, visível ou não, se dá como a percepção de uma ponte, cujo entendimento da mecânica de comunicação de duas experiências é o que define nossa existência. Blake me descrevera fatos que não constam de suas diversas biografias. Somente uma semana depois é que comecei a ler Papini. Em algum momento fomos- Blake, Papini, eu- a misteriosa definição de três mundos: corpo, intelecto e espírito.

 

 


2020

PÉRICLES PRADE

Em torno de um atípico paideuma poético

 


Floriano Martins acaba de lançar, com o selo ARC Edições, a volumosa poesia completa Antes que a Árvore se feche, cujo título foi extraído de um de seus extensos poemas, constituindo significativo paideuma, posto que não necessariamente nos moldes dos conceitos de Frobenius (Força interior) e de Pound (Renovação da tradição), tão ao gosto dos concretos, pois nele também estão embutidas produções lavradas em parceria com outros poetas, a exemplo do jogo coletivo cadáveres deliciosos, utilizado na fase inicial da irrupção surrealista. Não deixa, contudo, de ser uma espécie de sábia ordenação de artefatos poéticos, mapeamento das etapas evolutivas de sua poesia, a partir de A outra ponta do homem (1998) até Atlas atrevido (2018).

No entanto, não se trata de um modelo ou sistema fechado. O próprio título do acervo, ao contrário, explicita que se está diante de uma obra aberta (melhor dizendo: com um final aberto) nos campos da criação e do ato interpretativo, regida pela fruição (jouissante) reveladora de labiríntica matéria-prima vocacionada à emoção estética, prenhe de peculiares instâncias orgânicas, impondo-se como coerente estatuto poético, imantado pela originalidade do patrimônio literário, além de corresponder, em certa medida, ao correlato objetivo de que falava Eliot, mormente ao tratar do conjunto acabado de obra(s) de um autor.

Nem por isso será adotado, sem reservas, o denominado close reading (ponto de vista voltado às palavras) no aflorado exame (salientando-se o nível semântico) dos elementos internos da materialidade linguística, considerando os poemas (ou metapoemas) como organismos dinâmicos, pautados por ambuiguidades e tensões, mas sem radical preocupação discursivo-estrutural.

Como leitor-polo da vultosa obra, porém, sabedor da dificuldade do total desnudamento dos enigmas e armadilhas da linguagem mascarada, às vezes obscura e impenetrável, impulsionada por escavações arqueológicas dos signos do cosmos vocabular do autor, de movimentos circulares e mutantes, inclusive nas entrelinhas dos poemas, parece-me ser útil a Estética da Recepção como critério analítico.

Percebe-se, à partida, após a conclusão da leitura vertical do tecido desse painel, em que confluem os movimentos surrealismo/barroco/simbolismo, os três permeados pelas características musicalidade/visualidade/teatralidade, inerentes àquelas estratégias estilísticas, respeitada a especificidade de cada qual, porque, convinhável é dizer, transitam entre si sem pedir licença.

Alerta-se que, antes de examiná-los, per se, convém apontar e justificar, em breves linhas, essas características quase sempre entrelaçadas.

Digo musicalidade inerente por que,- nessa árvore sígnica, cifrada, mitológica, subversiva, proverbial, espontânea, erótica, lúdica, aforística, irônica e ousada (as noites uivam feito um pulmão repleto de música), plantada sob o fluxo e o influxo contínuos de relâmpagos/estilhaços/fagulhas (fragmentos epopeicos), sob a qual o poeta dialoga consigo mesmo (prisioneiro da solidão) como se genuflexo estivesse no confessionário, mergulhado em si (viagem de idas às profundezas do ser e vindas à superfície onde sobram as inquietações), mas demonstrando empatia com estranhos (nem sempre leitores), apesar da catarse (derivada de uma memória viciada ao recuperar o passado) ao retratar o mundo interior e exterior de ruínas (carnavalização contida),- ela é fundamental ao emprestar, com apuro, velocidade ao segmento rítmico nos versos em cadeia.

E assim o é na conhecida concepção de Valéry, e melhor afeiçoada à de Pound (no sentido de que a poesia se atrofia quando se afasta da música) para embalar a dicção da imaginação fervente da matéria, propiciatória de manipuladas imagens profusas, intensas, polivalentes e cúmplices de mistérios, espantos e tumultos numa espiral gozosa através dos sentidos doados e de surpreendentes epifanias alquímicas.

Em suma, atento o criador à sonoridade das camadas do poema, e ao valor mágico-musical das palavras, construtores da partitura poética, sem desprezar o silêncio à maneira de John Cage (O ritmo é do silêncio que nos recusa).

Quanto à inerência da visualidade, perpassa parte relevante dos poemas, confortada aos conceitos horacianos relativos aos contrapontos ut poesis pictura (como a poesia é pintura) e ut pictura poesis (como a pintura é poesia).

Nota-se, com frequência, a eleição conceitual em consonância com ut poesis pictura, dado o caráter pictórico de variados versos (A árvore vermelha de Mondrian é o princípio da discórdia), certa plasticidade paralela à da linguagem (e por isso mesmo visual), relações entre o verbal e o não-verbal, possibilitadoras da elaboração mental dos temas, quadros, cenários e personagens. Aliás, ressalta-se que Stéphane Mallarmé concebia o poema como um objeto pictórico-verbal.

Representativos, entre outros, são os poemas escritos tendo como paradigmas/estímulos os desenhos (Lembrança de homens que não existiam), gravuras em metal (O Sol e as Sombras) e fotografias (Tabula Rasa) do artista plástico Valdir Rocha. Afora as referências a Klee, van Gogh, Bacon, Blake, Goya, Bosch, e ao nosso Antônio Bandeira, entre tantos trazidos à ribalta.

Ademais, os livros componentes da obra compacta são ilustrados por Juliana Hoffmann (bem como a capa), na pegada ut pictura poesis, embelezando-a sob o olhar estético. Não é novidade, mas melhor conduz o rumo da leitura. No antigo Egito O Livro dos Mortos continha imagética representação, avultando as Iluminuras medievais e as ulteriores ilustrações de Dom Quixote, Eneida, As mil e uma noites etc. etc. Afinal, o próprio Floriano Martins assegura que “o poema é uma pintura”, atestando sua sensibilidade visual. Como sabido, além de poeta militante, ele é artista fazedor de colagens e de intrigantes fotografias.

A respeito da teatralidade (qualidade do que é teatral, por óbvio), conversam os poemas com as mencionadas vertentes, dando-lhes tons dramatúrgicos, configurando-se, com autonomia (ainda que não haja exterior espetáculo), porque O Teatro não pode parar, em um Teathron (nada é mais possível do que o seu Teatro Impossível) singular, ritualístico, como fonte prazerosa, no plano espacial e no altiplano temporal, na tentativa de superar, nesse ludismo quase infantil, as tensões, os conflitos e o sofrimento (pathos), desencadeando uma dramaturgia poética de recorte surreal, barroco e/ou simbólico, caracterizadora, com densidade metafórica, de sua pessoal e rica cosmovisão.

A esta altura é de bom aviso sinalar a confluência dessas inclinações literárias, muitas vezes entranhadas e superpostas.

Destaca-se o surrealismo, que não rende homenagem à tradição surrealista enquanto tal, de inspiração bretoniana, pondo-se a latere do automatismo psíquico da fase inaugural. Não é, enfim, um típico poeta surrealista, muito embora seja possível pinçar passagens de similar ressonância desde o primeiro (silêncio das cicatrizes traçadas nos pulmões do kyrie eleison), mediano (lâmpadas descem as escadas em busca de presságios) e último livro enfeixado nessa montagem (Temo pelos bigodes cáusticos da solidão).

Todavia, não corresponde a um exagerado surrealismo metafísico, em que pese o viés transcendental potencializado por certos deslocamento dos estados mentais flutuantes e pendulares (consciência/inconsciência) na fatura imagética dos poemas como objeto estético, haja vista o indeterminado balanço das associações livres, a par da anárquica e dispersiva subversão cronológica dos polimorfos sintagmas, quando os devaneios, geradores do delírio, se instauram mais agudos, por exemplo ao serem usadas repetições (polissíndeto) como a da palavra-chave abismo, seduzido o poeta, na esteira de Bachelard, pela imagem preferida (ideia nuclear até certo ponto melancólica), que, com humor mais negro do que branco, arrasta as vozes do criador, incorporado pelas fantasmas no caos consentido.

Essa busca resultante da transcendência, catapultada pela circularidade abissal, nada tem a ver com a metafísica. Daí que não vejo qualquer afinidade ou fervor nessa domada incontinência verbal, notadamente nos poemas em prosa. Seria, quiçá, reflexão ontológica, espécie de sabedoria poética ou aquele tipo de Poesia transcendental fornida por Novalis (geminando-a com a Filosofia), ou, ainda, uma transcendentalidade à moda de Emerson, sem intimidade com a metafísica de raízes neo-kantianas.

Parece-me que se conecta com um surrealismo mais comportado (Martins abandonou o grupo surrealista paulista em 1997). Até porque, se a linguagem é a Mansão do Ser (Heidegger), o poeta estaria mais próximo da visão pessoana, a do verso O que em mim sente ‘stá pensando. Sentimento e razão, a dor de pensar.

Observa-se, então, que o surrealismo deste primoroso poeta passou a ser mitigado (afim ao de Murilo Mendes, com recaídas cubistas), no curso do tempo (malgrado a paixão por Benjamin Péret e Aimé Césaire), sendo in progress absorvido pelas teias do barroco.

No que tange à aura do barroco (vocábulo ambíguo devido às vicissitudes semânticas), espargido com saliência maior em Alma em Chamas, e diluídos temporalmente os traços capitais (não guardam os poemas relação direta com a poesia antirrealista do século XVII (Luís de Góngora), também transfiguradores do real, permissivos das oposições dualistas da coincidência dos contrários (coincidentia oppositorum), sem maneirismo, no seu caso, apesar da ostentação, exuberância e suntuosidade da linguagem elisiva e alusiva, mas à deriva dos artifícios ornamentais.

O que há, no fundo, é um parentesco sentimental e espiritual, tendo influenciado, inclusive, poetas como Jorge Guillén e Gerardo Diego, o expressionismo alemão dos anos 20, e, na França, Valéry Larbaud, além da poesia simbolista (final do século XIX e início do XX), com Stefan George e Mallarmé. Se inspirou o surrealista Benjamin Crémiex, pode-se dizer o mesmo no tocante a Floriano Martins, agitado pelo sensorial espírito dionisíaco e pelos mitos nietzschianos do eterno retorno.

Esse fulgor e requinte são, em especial, encontradiços no encartado livro Alma em Chamas acima noticiado (Morta no desespero do fogo, seu corpo desfigurado gelava a noite), com o léxico opulento da mesma sorte visto e lido em outros poemas (e na prosa poética), soltos ou agrupados, gozado o mundo através dos sentidos (avultando as sensações cromáticas, tácteis e olfativas), onde são intensos o erotismo (que insinua perversão), a carnalidade e os retratos sensuais de mulheres (gozem sozinhas, e me enterrem no quintal / Teus gemidos projetam suas chamas em meu sexo / Bendita seja forma de teu clitóris, e a noite que me consome), inclusive aquelas em relação às quais se apropria da persona feminina no domínio da alteridade (Meus mamilos queimavam / Minha nudez de bruços espalhada pelo sofá), nesse estágio secularizando o transcendente (Vamos desenhar a espinha dorsal de um enigma), ao tematizar, pelo fusionismo (unificação dos pormenores), a ilusão e a fugacidade da vida, visando à unidade das contradições com o poder crepitante das metáforas (Comporta-se o náufrago como um farol caído) de misteriosa expressividade, objetivando, com esses contornos de multifacetado estilo, o alegre advento das maravilhas e das surpresas (construção zeugmática das frases), de tal arte que, em paralelo, se aproxima da poesia simbólica.

O simbolismo, ou, melhor dito, a serventia dos símbolos nos poemas, atravessa toda a produção, sem decalque na Escola Simbolista, valendo-se das sugestões, das correspondências de sotaque baudelairiano (mais rimbaudiano na prosa poética), numa linguagem um tanto falocêntrica, sinestésica, variando a imagética simbólica quando se imiscui nas órbitas surreal e barroca.

Quando a imagem se põe mais pura com o símbolo eleito (em geral de feição erudita), imbrica-se com o lirismo que passeia com desenvoltura, visto como “o desenvolvimento de um grito”, para usar as palavras de Valéry, no momento do aperfeiçoamento do caráter musical do poema (ritmo/melodia/harmonia).

Tudo decorre de um simbolismo energético, na toada do discurso livre, indireto, como componente demiúrgico (função poética), associado, no instante da imaginação excitada (e seus punti luminosi), ao mito da queda, o criador compartilhando o eu-lírico (o eu é o seu abismo) de estrato subliminar.

É preciso ser um poeta magnífico, de indiscutível excelência, como Floriano Martins, devotado ao sagrado, para conciliar, com naturalidade, esses movimentos constituintes de uma estrutura azeitada, coesa, não obstante as transeuntes peculiaridades, transformando-as em uma obra poética complexa, de qualidade perene, pós-moderna, na expectativa de que as gerações futuras possam degustá-la quando se depararem com o paideuma de nossa época, vertido ou não em outras formas de expressão estético-literária.

 

 

2021

BERTA LUCÍA ESTRADA

Las mujeres desaparecidas, de Floriano Martins

 


Desde hace unas dos décadas los periodistas, como los críticos literarios, profesores de literatura, editoriales, e incluso muchos escritores y poetas, han acuñado la expresión literatura de género, escritura femenina o mujeres escritoras; entre otras expresiones que discriminan el acto de crear. Aunque nunca he leído que digan literatura de género para referirse a los escritores, mucho menos escritura masculina u hombres escritores. En las Ferias de Libros, o Congresos de Escritores, tampoco existen mesas sobre la literatura masculina; los escritores nunca han tenido que justificar su oficio; algo que se nos exige permanentemente a las escritoras. Y por supuesto, nadie les dice qué escriben para entretenerse o porque son histéricos; es más, ni siquiera lo piensan. La creación literaria y/o artística es bien vista si el que la ejerce es un hombre; en cambio es banal, fútil, vana, anodina, mala por no decir pésima– si quien la ejerce es una mujer. Las palabras escritora y poeta son los términos justos para definir un oficio en el que siempre hemos estado presentes; así la historia de la literatura nos haya olvidado conscientemente. Lo demás me parece que entra en el terreno de la exclusión. La literatura no puede verse como una producción realizada por hombres o por mujeres. Simplemente hay buena o mala literatura; lo demás son clichés que menosprecian el oficio de escribir cuando quien lo ejerce es una mujer. Marguerite Yourcenar lo dijo muy lúcidamente en una entrevista que le hizo Matthieu Galey en 1980: Un hombre que lee o que piensa o que calcula, pertenece a la especie y no al sexo; y en sus mejores momentos escapa a lo humano (Marguerite Yourcenar, Con los ojos abiertos).

Esta es una discusión que genera polémicas, sobre todo de la parte de las feministas radicales, que ven en el acto de la creación una especie de catarsis exclusiva de las mujeres; y por su parte, los hombres la eluden porque así no tienen necesidad de leer la actividad de las escritoras; lo que les facilita no tener que esgrimir argumentos serios y profundos sobre la actividad creadora; algo que no les cuesta ninguna dificultad si se trata de hablar sobre su propio universo y/o infierno creativo. Y al decir esto recuerdo a una feminista radical que sostenía que la actividad creadora de las mujeres es diferente a la de los hombres; y para refutar su argumentación le conté que yo misma escribí un poemario desde el punto de vista de un hombre, dipsómano además. Su cólera no se hizo esperar y lo que atinó a decirme es que me compadecía mucho; todo eso con un aire de arrogancia y de superioridad que rayaba en lo burlesco. Pues bien, en ese momento preciso Floriano Martins entró a la discusión que se llevaba a cabo en la página de un Festival de Poesía donde estábamos invitados los tres; aunque el Festival aun no había comenzado ya había una polémica sobre este tema que suele enardecer a muchas personas; como a la feminista a la que hago alusión; y como si fuera poco, palabras más palabras menos, me dijo que yo no sabía nada de feminismo puesto que para ella las corrientes que deben tenerse en cuenta son las más recientes; en otras palabras, me consideraba demasiado vieja como para poder opinar sobre un asunto que ella conocía a la perfección. Floriano Martins, con quien que yo he escrito dos piezas de teatro y una nouvelle también escribimos juntos un poema en el que participaron cinco poetas más, cuatro de los cuales eran hombres, apoyó mi posición y dejó claro que él también escribía muchas veces desde una visión femenina. Lo que escandalizó aun más a la joven y colérica feminista. Creo que ese día se tropezó con el diablo; eso, en el caso eventual que sea creyente.

Precisamente en nuestra escritura al alimón Floriano Martins y yo nos compenetramos tanto que al finalizar el trabajo, y leerlo a posteriori, rara vez soy capaz de identificar algunos cuantos párrafos escritos por él o por mí. Y a él le sucede algo similar; por eso siempre hablamos de nuestro trabajo. Lo que Floriano Martins y yo logramos es una perfecta simbiosis entre dos escritores que a la hora de crear no piensan en los géneros que aparecen en sus cédulas de ciudadanía.

Y si hago este prolegómeno que puede ser un poco extenso es para poder entender y ambientar la obra que hoy tengo el honor de presentar a los lectores que conocen y que aprecian el trabajo poético de Floriano Martins; me refiero a Las mujeres desaparecidas, un poemario escrito en un impecable castellano; recuérdese que Martins es brasileño; por lo tanto, su lengua materna es el portugués; al menos el que se habla en su país de origen.

Las mujeres desaparecidas es un libro que hurga en las entrañas más recónditas del universo femenino. La sexualidad, el abandono, la soledad, el suicidio, la desaparición voluntaria o involuntaria, el maltrato, la vejez, el oprobio, la insensatez, entre otros temas, aparecen a todo lo largo de los poemas sobre las 50 mujeres que pueblan este poemario que va mucho más allá de una denuncia social; y lo digo porque al mismo tiempo que denuncia la protervia de la sociedad patriarcal devela la condición humana.

Las mujeres desaparecidas es un poemario metafísico, poseedor de una hermosa e inquietante belleza, y en el que cada palabra ocupa el lugar exacto, nada sobra ni nada falta. Un trabajo de relojero en el que impera la armonía, el equilibrio; así esa armonía y ese equilibrio desciendan al averno y algunas de las mujeres se encuentren cara a cara con los súcubos e íncubos que las atormentan y torturan.


Una piedra me duele por dentro. Vine aquí

para persuadir al abismo que volviera a vivir

conmigo. La soledad es una mujer intransigente.

[…] La última imagen

de la inocencia es una piedra encadenada al fondo

del abismo. Me quedo haciendo mi ronda febril sola

(Lecciones ocultas de Adele Castanheira)


En este poema se encuentra la matriz que da origen a la poética de Floriano Martins, el abismo, la caída, la chute a la que hace referencia Camus. El poeta sabe que no hay redención posible, que no hay escapatoria, que los paraísos terrenales no existen, y que lo único real es la condena, la expiación; no desde el punto de vista judeocristiano si no ontológico; este último concepto entendido como el estudio del ser (οντος, ontos = ser, ente).


Nadie puede entender lo que hubo en su última noche.

Las fieras que salieron de las nubes, con sus ojos

hambrientos, le enseñaron los dientes metálicos

del abismo.

[…] Las noches reunidas siguen buscando

el enigma de los vértigos y la primera hora

del mundo sin ella. Tres veces encontraron su cuerpo frío.

Tres veces la muerte decía cosas

distintas y desabrigadas.

[…] Julia sigue muriendo cada noche.

Como una marea sangrando sin motivo.

Un crimen, nada más.

(La última noche de Julia Domecq)


Otra vez el abismo, en este caso no el que se escoge libremente sino al que son lanzadas miles de mujeres cada día. El feminicidio es un crimen atroz que forma parte de la cultura patriarcal y con el que se castiga a las mujeres que se salen de los postulados que les exige una obediencia ciega. La falta de Julia Domecq, transgresora como sus amigas, fue salir a caminar


en la playa oscura con sus pies desnudos.

Con el viento se aconsejaba, deseosa de abrigar

en su cuerpo las rutas secretas de la luna. Julia

y su marea íntima adormeciendo los barcos de pesca.


Y si algo sabemos las mujeres, y Floriano Martins es consciente de ello, es que salir a dar un paseo en la noche, máxime sí es un paraje oscuro y solitario, equivale a ir al encuentro de la propia muerte. El gineceo griego no existe en el sentido literal de la palabra; y, sin embargo, sigue presente en las sociedades que no aceptan que las mujeres somos seres autónomos y libres; por eso nos controlan los pasos, el cuerpo, la sexualidad, por eso durante milenios se nos negó la educación, para impedirnos volar.


La desconcertante ausencia de Augustine Lurie

nos llevó a su habitación. Sobre la cama

deshecha, como la proyección de un enigma,

encontramos los cordones de sus zapatos.

Nada más. Durante varias noches esperamos

inútilmente que el chello y las campanas

nos devolvieran a Augustine. El silencio se convirtió

en la catástrofe más terrible que nos sobrevino,

destrozando nuestros sueños y hábitos.

(Los cordones mortales de Augustine Lurie)


Una mujer que interpreta el chello es una especie de mancha en una sociedad que la prefiere en el ámbito privado de la casa paterna o de la casa del marido que le han escogido. La música libera, rompe cadenas, abre horizontes; y el único horizonte que le está asignado es la cocina y la creación de los hijos. La sumisión absoluta y total a los hombres de la familia, de la sociedad y del país; y por supuesto, la obediencia a la clase sacerdotal; la misma que le exige ser María mientras que encuentra que la prostitución es necesaria a la sociedad. Y en este eterno juego de espejos, un laberinto en el que nos topamos a cada instante con otra de las máscaras que llevamos escondidas en una de las mangas, encontramos a Laurie Augustine, la profesora de 41 años que fue condenada por tener relaciones sexuales con tres alumnos menores de edad. Y por supuesto, no estoy justificando su crimen; solo estoy recordando que las identidades pueden ser múltiples y que no todas las mujeres son víctimas del horror de la sociedad patriarcal; a veces también son victimarias y depredadoras sexuales.


Un credo contra el destino.

Josefina sonríe como una leyenda, su cabello ondulado

alimenta el viento. Una multitud aguarda la curación,

el oratorio de las almas en agonía. Sangre llorosa

de una terrible experiencia. Los rostros desfigurados

por el fuego. ¿Cuántas somos? Llevamos su cuerpo

desconectado de las heridas. Su dolor parecía herirnos más.

Josefina contra el clero. Dios comería en otro sitio.

Nuestras carnes se arrepienten de tanta vida devota.

(Los espejos ciegos de Josefina Ramos)


En Confesiones de Helena Salustre entramos aun más al averno de las creencias religiosas y de su terrible concepción de pecado; ese estigma que nos han tatuado en la frente y en el alma y con el que cada segundo nos estigmatiza, nos condena. Todo lo que hace una mujer, o deja de hacer, es una falta que debe expiarse.


Confieso los pecados que no cometí,

los dolores que no siento.

[…] Los perros colgados

atormentan mis sueños. Las lluvias

lamen las tumbas de los pequeños

hijos asesinados. Lloro por las luces

que me incriminan, […]

Si quieres, les confieso la inocencia

que nunca me acarició.

[…] Las noches empapadas de horror

desfiguran mis súplicas. Esto es

todo lo que pido: déjame enterrar

a mi dulce Astrid. Así que les confieso

que soy todo lo que quieren de mí.


El título del poema no es anodino, la palabra confesiones nos pone enfrente de un cura que va a hurgar en lo más profundo de nuestra psiquis, no para liberarnos de culpas reales o imaginarias, si no para solazarse en sus propios fantasmas; los mismos que lo atormentan en las noches en los que reemplaza el cuerpo cálido de una mujer por un cilicio en su cintura. El nombre de Helena Salustre nos devela que Helena sigue siendo la mujer por la que se desató la guerra de Troya; así ella nunca hubiese participado en ella; solo fue un botín disputado entre los poderosos; una Helena que sigue siendo actual, que desata pasiones, odios y guerras; como en La Ilíada. Aunque Homero ya no se sienta en el umbral de los palacios para contar la historia de Helena, Menelao y Paris, si no que ahora se sienta a la mesa con nosotros. Y Salustre, el apellido de esta Helena contemporánea, nos recuerda a la esposa de Lot (si bien en La Biblia a la esposa de Lot se le niega un nombre, en algunas tradiciones judías le dan el nombre de Ado o Edith)-la que no tiene nombre, la que se convirtió en estatua de sal por haber mirado hacia atrás y haber sido testigo de la destrucción de Sodoma; una de las dos ciudades maldecidas por el dios vengador y colérico de La Biblia. E incluso podría leerse como palustre; lo que viene del pantano. En otras palabras, una especie de peste, como la que azotó los campos de batalla del campamento aqueo. Tal vez por eso la guerra de Troya sigue tan vigente en todos los estamentos de la sociedad; las mujeres seguimos siendo tristes trofeos de guerra; y nuestros cuerpos, convertidos en campos de batalla, son pisoteados, vilipendiados, arruinados por millones de cortes hechos con lascas de sílex utilizadas desde los tiempos de los neandertales.

Floriano Martins es el emisario de las que no tienen voz; en este caso de Janet Horne; la mujer que padecía de demencia senil y cuya hija tenía los pies deformes, por lo cual fueron declaradas brujas. Y aunque Janet Horne fue quemada aparentemente en 1727, siendo la última bruja llevada a la hoguera en Escocia, su nombre se popularizó y aun hoy en día, cuando desean estigmatizar a una mujer, porque se viste o habla o se sienta o camina diferente a las reglas establecidas, se le llama Janet Horne.

 

Somos bestias

torturadas en nombre de Dios.

[…] Janet Horne fue la última

mujer quemada para alimentar

la perversión humana, lo que nos muestra

la imagen es que sus carnes masticadas

al fuego todavía imprimen en la gastada

tela de nuestro destino el lenguaje

siniestro de un contrato macabro: todos los días,

a cada momento, una última mujer

retoma la partición del mal, el abominable

fetiche de nuestra marcha por la tierra.

(Janet Horne y la partición del mal)

 

Y en Las abstracciones falsificadas de Lucía Rosales encontramos nuevamente el abismo en el que las mujeres caemos una y otra y otra vez:

 

Lo que ella llama el privilegio

de sus pinceles es un paisaje destrozado. La sangrienta

semejanza refleja el sacrificio de sus espejos.

 

Esta vez el abismo está disfrazado del invento falso en el que las mujeres nos lanzamos al contemplarnos en una galería infinita de espejos; cómo los espejos de Borges.

En El mar y el laberinto en las ropas empapadas de Margarita Butler nos trasladamos a la Escocia de 1644 cuando el capitán Juan Comofort murió en una batalla naval en contra del tirano de Portugal; imagino que su viuda, Margarita Butler, en cierta forma quedó enterrada con él en las aguas del Atlántico.

 

Las aguas se embriagan con las cenizas

de la imaginación. El pasado es un secreto

que nadie supo mantener inalterado.

 

Y en El regreso de Annabel Lee, Floriano Martins dialoga con el poema Annabel Lee, de Edgar Allan Poe; y por supuesto, dialoga con la novela de Kenzaburo Oé, La bella Annabel Lee:

 

Annabel Lee

Con amor que los alados serafines del cielo

Nos envidian a ella y a mí.

Y por esta razón, hace mucho tiempo,

En este reino junto a la mar

De una nube sopló un viento

Que heló a mi amada Annabel Lee

Y sus parientes de alta cuna vinieron

Y se la llevaron lejos de mí

Para encerrarla en un sepulcro

En este reino junto al mar.

(Edgar Allan Poe, El regreso de Annabel Lee)

 

Y Floriano Martins responde:

 

Se encontró el fantasma de Annabel Lee

en una de las lunas de un antiguo planeta a la deriva

en el espacio entre nuestras mentes conspiradas.

[…] Annabel Lee era el ángel

tocante de estas caídas, la lámpara encantada

que empapaba las luces de rompecabezas. Las noches

masticaban planetas fugaces. Nadie te vio cuando,

furtiva, volviste a triunfar en el caos.

 

Annabel Lee es, en cierta forma, la representación de millones de mujeres idealizadas y perdidas en el laberinto de la memoria. A veces es más importante imaginar un gran amor que vivir uno real; sobre todo cuando la bruma de las primeras citas se diluye y el enamorado ve alguna de las faces de la amada que hasta ese momento había permanecido oculta. El mito del amor casto y puro se da de bruces en el poema de Martins; sobre todo cuando él dice: Nadie te vio cuando, furtiva, volviste a triunfar en el caos.

Y con este verso termino este prólogo, ningún otro define mejor la existencia humana: volvimos a triunfar en el caos. ¡Qué lejos está Floriano Martins del espíritu romántico que imagina a las mujeres como seres de luz y armonía! Por eso me gusta la visión de La charogne (La carroña) de Baudelaire. No hay que olvidar que la belleza también se regodea en la podredumbre y en la descomposición de los cadáveres. Invito a los lectores a descubrir las otras mujeres que pueblan este universo de Las mujeres desaparecidas.

 

 

2021

MARÍA ANTONIETA FLORES

La desaparición y sus rastros

 


Los cordones, los llantos, apenas señales que hablan. Muchas emociones se aglutinan en torno a la desaparición. Si forzada o voluntaria, abre las puertas de lo enigmático. No hay certeza de la pérdida y en el peor de los casos, mantiene la esperanza en un regreso. A medida que avanza el tiempo, la desaparición suscita resignación o aceptación.

La desaparición es una elevada expresión del horror.

Los magos siempre aspiran a cumplir el artificio de la desaparición, es uno de los trucos más apreciados. Y, al igual que un mago, pero con la palabra, empieza el acto poético de Las mujeres desaparecidas de Floriano Martins.

Una atmósfera húmeda y onírica construye un discurso siniestro, ominoso. Predomina de comienzo a fin. Son poemas narrativos en la tradición de Spoon River de Edgar Lee Masters y en ellos se construyen historias de mujeres de distintos ámbitos. A todas las une un neblinoso concepto de desaparición. Son, como bien lo señala en el poema final …espejismos / manifestados en cada deseo. (“Nadie separa el bien del mal”, poema que cierra el libro, es clave para comprender el sentido general del poemario.)

Espejismo se desliza sin dificultad a espejo y de allí, a los sueños. Todo un camino para buscar la imagen real del ánima, siempre elusiva porque los espejos impiden la llegada de nuestra imagen real.

El espejo constata: al final no hay nada.

El ser que carece de reflejo ante el azogue, siempre es la confirmación de un fantasma o un vampiro, de un más allá invisible. Estas mujeres del universo de Floriano Martins provienen de ese ámbito, solo adquieren cuerpo gracias a la palabra. Aparecen en el poema, desaparecen en el punto final y permanecen como una huella pronta a la melancolía en la memoria del lector. Sus historias inacabadas, hablan de la fugacidad y de la pérdida.

Atravesar el espejo, estar atrapado en el espejo son tópicos recurrentes del horror.

Los reflejos, las apariencias.

Este es un libro sobre las apariencias.

La visión romántica, sumada a la estética gótica construyen lo ominoso. El inframundo permite que escuchemos sus sonidos y el ánima se asoma para desaparecer, luego regresa con otro rostro, con otro nombre. Se hace más inasible. Las mujeres se fueron, abierto el grifo de la inmortalidad. / Yo me quedé con los extraños poderes del agua, / evaporando, transmutando, rellenando y secando. Se lee en la página 27.

Los trabajos de la alquimia psíquica van depurando la obra, avanzan en ese viaje a las profundidades del alma. Desaparecer se vincula con la disolución y la desintegración, labores previas al logro de la obra por vía de la transformación sea esa obra la psiquis, la vida o el poema.

Heráclito ya lo advirtió en su fragmento 45: No podrás conocer los confines del alma por más que viajes…

Estas mujeres desaparecidas se han hecho presentes gracias a los trabajos poéticos y alquímicos de Floriano Martins, y son testimonio de su exploración del ánima en una atmósfera heredera de las estéticas romántica y gótica. Construye, así, un camino de múltiples rutas hacia su propia profundidad y la de los lectores que hagan junto con él este viaje.

Tal vez, al final, el ánima muestre su verdadero rostro.

 

 

2021

CARMEN VERDE AROCHA

El peso de la noche

 

El último polvo nubló la frontera.

Inquieta y sumisa, me quedé en mi voz

ENRIQUETA ARVELO LARRIVA

 


Necesito silencio, estar sola y salir, y buscar una hora para considerar lo que le ha sucedido a mi mundo, lo que la muerte ha hecho en mi mundo. Esta petición de Virginia Woolf (Londres, 1882-1941) con la que inicio este texto, podría resumir el mundo que habita en las páginas del poemario Las mujeres desaparecidas (LP5 Editora, 2021) de Floriano Martins (Brasil, 1957). Virginia Woolf hurgó en el sufrimiento desde su condición de mujer-escritora. Revivió una y otra vez el mito. Martins parece responderle a Woolf: Tal vez tenga que crear otra/ oscuridad dentro de mí, para que la noche pueda/ ver su abismo perdido. (Fragmento: “Los pasos perdidos en los ojos de Silvia Denguer”.

Las mujeres desaparecidas, es un poemario-plegaria, un manojo de flores violetas entre los dedos. Las mujeres se buscan entre sí. Se han quedado sin la habitación propia que tanto nombraba Woolf. Las mujeres desaparecidas, enorme vasija, un lugar que encierra o más bien, resguarda unas voces en forma de poemas de este tiempo, de otros más antiguos, algunos fuera de este espacio, quizás en Marte o en otra galaxia: He estado planeando/ regresar a tu hogar desde hace algún tiempo, / a los abismos artificiales que plantaste en Marte. (Fragmento: “Marlene Smith y los espejos bajo el mar”)

La voz femenina, hablante en los poemas, repetida cincuenta veces, perforada en el dolor, multiplicada por espejos hechos de río-mar. No en cualquier espejo una mujer puede mirar su sufrimiento. Necesita uno que haya sido creado en la noche más oscura, que sea callado, sin memoria, para habitarlo, embarazarlo de nuevos ruidos y de una aturdida tristeza: quizás este sea el mismo nombre con el que apodamos la muerte:

 

Josefina contra el clero. Dios comería en otro sitio.

Nuestras carnes se arrepienten de tanta vida devota.

Nuestras luces encendidas por dentro. Ante el espejo,

las sombras sostienen a los espíritus. Las velas se ríen

de nuestros espejismos amordazados. ¿Cuántas

siguen escuchando el llanto de esta furtiva ausencia?

 (Fragmento: “Los espejos ciegos de Josefina Ramos”)

 

Floriano Martins, el poeta, se entrega a las voces que recrea. Presta su escritura para que las mujeres cuenten sus penas, sus miedos, su incapacidad para defenderse, de vengarse de los que les infligen el dolor. En Las mujeres desaparecidas, el lamento se emparenta no en su forma de expresión, sino en la queja, con algunos poemas de Martha Kornblith: Este recuerdo a lo ancho de lo eterno,/ Esa presencia ausente,/ Esa memoria que no respeta al cuerpo/ (la muerte se aleja sin despedidas)./ Esta angustia de no poder, Esa asfixia. (Obra completa. Caracas: Editorial Eclepsidra, 2016.)

El poeta hace un viaje ancestral: Caminamos con los ancestros cincelados en la piel, nos dice en el poema sobre Suzanne Du Prat. Para ello, crea una atmósfera alrededor de los textos: el ambiente, el espacio de los poemas de Las mujeres desaparecidas es oscuro, tenebroso, lleno de fantasmas, ruidos, sombras. La naturaleza se deja ver hostil; su poder, insiste el poeta, se opone, transfigura y facilita aún más la aparición de la maldad: Los oyentes exigen la presencia del milagro/ anunciado en la puerta. Somos bestias/ torturadas en nombre de Dios. / La cruel mimesis de una simulación/ que intensifica nuestra caída. (Fragmento: “Janet Horne y la partición del mal”)

Y es aquí donde recuerdo a Marosa Di Giorgio (Uruguay, 1934-2004), rodeada de una poesía que también describe un mundo femenino lleno de sombras, temerosa de la noche, de los hijos del Diablo, de la violencia masculina, y del presentimiento de lo lúgubre dentro de una naturaleza casi despiadada: Se espantaba cuando daban casa a un animal. Sobre todo si era /hembra. Oía las lastimaduras./ Qué palabra ésa: hembra. (Misales. Relatos eróticos. Montevideo: Cal y Canto, 1993.)

Es el mundo de la noche, del cierre del útero durante sus nueve meses una vez fecundado. Los ecos lastiman, las mujeres arden, han encontrado su cauce en estos versos de Floriano Martins: Un día imaginamos que nuestros hábitos estaban/ estrictamente instalados y que era imposible/ que los espíritus se liberaran de sus cadenas y pasillos/ siniestros… (Fragmento: “Los cordones mortales de Augustinie Lurie”)

Las mujeres desaparecidas, puede ser leído como un poema largo, como una sola voz que se ha tragado otras voces. La historia de un viaje, escrito desde una palabra precisa, doliente, sensual y profundamente sola. ¿Por qué un viaje? se preguntarán algunos: No fue la última vez que vi a Suzanne en los radioactivos/ ciclos de la tierra. Ella había pasado como una verdad/ fantástica tratando que las mujeres regresaran/ de los temporales y descargas eléctricas de mi ser. (Fragmento: “Por donde pasaba Suzanne Du Prat”)

En el principio las mujeres se reunían alrededor del fuego, así lo relatan los mitos, pero este se volvió contra ellas. Forjar el hierro engrandeció al fuego a los ojos del hombre en la antiguedad, acaso Vulcano tuvo razón. En su largo recorrido por el mundo, el fuego purifica, transforma y eleva, pero también nos vuelve ceniza, ya lo supo Dido, ese hermoso personaje creado por Eneas en la Eneida. En algún momento, el fuego vio que tenía sombra y observó que parecía una mujer, con su cavidad, su vasija, pero no entendió nada: Si es cierto que Janet Horne fue la última/ mujer quemada para alimentar/ la perversión humana, el fuego se come todo: ¿Cuántas fueron las figuras que huyeron del fuego? / ¿Cuántas agonías se describieron en esos meses? Pero hay un lapso de tiempo, en el que la luna apenas es un reflejo-espejo de estas voces, casi fantasmas, extraviadas en su destino de fuego.

Se recrean, transcurren, cobran vida estos poemas de Floriano Martins. Cincuenta poemas que ruegan por la vida de cincuenta mujeres, en un casi rastreo, mujeres que yacen en el rastreo. ¿Cuál es el límite de estos poemas? Quizás sea una suerte de telarañas, o un túnel tejido con finos hilos fibrosos, inquietantes. Hay una alusión velada en los poemas que cuestiona las falsas costumbres, a la doble moral, a lo religioso: No hay ciencia ni religión que explique los cuerpos/ arrojados al mar. Aquí la espiritualidad, la indagación hiriente nos empuja a visitarnos por dentro, hacia un paisaje interior cada vez más frío: …Tal vez tenga que crear otra/ oscuridad dentro de mí, para que la noche pueda/ ver su abismo perdido. Pero también es posible/ que ya no podamos hacer nada el uno por el otro. (Fragmento: “Los pasos perdidos en los ojos de Silvia Denguer”)

Al llegar al último poema, es difícil no quedar atrapado en este universo que dibuja y nos desdibuja mientras vamos leyendo. La vastedad de imágenes, de Las mujeres desaparecidas nos seduce, nos impulsa a una relectura pausada, pero no menos angustiante y compleja que la primera.

¿Cómo soltar el peso de la noche al cerrar el libro? ¿Qué nombre darle a este vacío-espejo oscuridad que ha invocado Floriano Martins con sus versos? Acaso tiene sentido nombrar el desamparo, ¿la nada absoluta? Se abre la vasija: salen las lágrimas, la noche y la venganza, sin escrúpulos damos paso al silencio, pero el poeta insiste:

 

nunca he conocido a la misma mujer adentro.

Los sueños son el río de Heráclito que los miedos

no soportan. La llave del abismo. Alfa y Omega.

 

 

2022

ANA LAFFERRANDERIE

Un día fui Aurora Leonardos, de Floriano Martins

 


Este libro del celebrado poeta, editor y traductor brasileño Floriano Martins parte de una decisión valiosa: construir una voz femenina/un erotismo ligado a lo femenino desde el oficio de un poeta varón. Esta decisión habla por sí misma de un poeta versátil, osado, ambicioso, que no permanece cómodo dentro de los caminos ya recorridos en su obra, sino que busca más. Lo que narra no resulta obvio ni tan transparente. Es un libro que requiere atención por parte del lector, si se desea entrar en él. Tiene un costado simbólico (sobre todo en la primera parte, donde los poemas funcionan como pequeñas cajitas perfectas, concentradas, suficientes y a la vez interconectadas), pero es al mismo tiempo accesible, carente de hermetismo. Es un libro consistente, delicadamente construido, como una filigrana que ofrece las claves necesarias y precisas para entrar a recorrerlo (y habitarlo). Las diferentes partes de Un día fui Aurora Leonardos se continúan de manera fluida, sin disrupciones ni aspectos que puedan confundir al lector. El libro conforma así un todo coherente, aunque con variaciones en el tono y la voz. Esas variaciones van corriendo de lugar al lector: impiden que se acomode a una idea de cómo es esa voz. Al mismo tiempo, oxigenan el texto, le otorgan aire y novedad, dentro de un universo que no deja de ser compacto. Un valor extra del libro es que no se trata de una traducción, sino de una versión hecha por el mismo poeta, en lengua castellana, dato sumamente valioso que suma interés a esta pieza esencial dentro del ya poderoso catálogo Alfabeto del Mundo.

 

 

2022

DAVID CORTÉS CABAN

Un acercamiento a Un día fui Aurora Leonardos, de Floriano Martins

 

La vida que vivimos es un mito fugitivo.

FLORIANO MARTINS

 


En este nuevo libro de Floriano Martins, Un día fui Aurora Leonardos, el sujeto amoroso está dispuesto a ensayar otras vidas en el desenfrenado erotismo de la carne. No de un cuerpo guiado por la tentación aquella de que hablara Rubén “…y la carne que tienta con sus frescos racimos”, sino por una relación cuya intimidad pueda mostrarse en la poesía como manifestación humana y estética del yo amoroso. ¿Qué es lo que manifiesta el amor más allá de la hondura existencial que llena la vida? Habrá que descubrirlo en la contemplación del cuerpo, y la revelación que sostiene no solo la vida en el tiempo, sino también otras realidades que nos obligan a reflexionar sobre el universo en el que se instala la plena libertad del yo erótico. Es decir, ese espacio donde el cuerpo no ofrecerá resistencias a las formas del deseo, ni a las caricias que le preceden, ni al temor de extraviarse y ser reconocido por lo que acontece a su alrededor.

Tres tiempos pasionales ordenan la estructura física de este libro para proyectar la voz de un hablante que insiste en expresar una relación que lo vincula a los albores de la mitología griega para desplazarse luego en el espacio temporal y social que lo sostiene poéticamente. El primer instante, “A la sombra de un mito fugitivo”, nos instalará en la dimensión temporal para designar una criatura que toma su nombre (Aurora) de la misma confección del universo y situarse dentro de una existencia mítica. Con este fin abarcará lo que solamente puede describirse no por la abstracción de la imagen, sino por la conciencia de un estado amoroso cuyo placer no tiene límites. Un erotismo no encubierto ni disimulado que, como sugiere el primer poema (“La nube de Zeus”) traza las rutas que enfatizan una realidad no sostenible solo por la eroticidad pues en el fondo la eroticidad no podría por sí sola sostener la existencia: Zeus besó el sexo de Zíngara. / Las luces soplan al punto ciego / donde se rehacen las imágenes. Zeus quiere otra canción para él / una ofrenda del misterio, / donde pasa el filo de la navaja, / donde la curva se estrecha, / en la cresta de la danza, Zeus / quiere el sexo hinchado de la noche. El hablante de estas composiciones sabe que la concepción lésbica se nutre de un sentido mucho más profundo del que las acciones rutinarias confieren al amor. Pero aquí refieren a las que eros transfiere a través del tiempo a esa experiencia lésbica (Véase la Nota insertada al final. Allí el autor pone de relieve la relación lésbica del personaje en la creación y estructura del libro.), pues reducir el amor solo a la carne sería despojarlo del centro de su luminosidad y su entorno. Por eso el hablante recurrirá en el primer poema al beso en el fulgor de una nube que cae para que el proceso de esa relación se sostenga en el tiempo. Así el beso dado en el sexo de Zíngara (esa gitana atormentada por los sueños y abandonada indiferentemente por Zeus) se convertirá en la imagen de una naturaleza testigo y confidente del amor: Zeus, un beso y cae la nube. Esa nube que podría cubrir las criaturas del universo, encarnará en Zíngara su relación con el mundo y su sexualidad. De ahí la imagen lésbica que da sentido a la vida, ésa será también la expresión simbólica de la bruja que cruza el río de los jaguares, y de la pluma que descifra el universo.

El concepto de la pluma, en el proceso de la escritura y en el escenario que la sostiene, describirá el placer del yo en la palabra como plenitud erótica. Esta pluma descifra el universo y ordenará figurativamente la visión del cuerpo y la naturaleza expresivas de sus manifestaciones. De ahí que el erotismo haga del cuerpo un sentido absoluto y resalte las acciones de los personajes. El poema “Teatro a ciegas” representará los hechos exteriores de esta realidad: Las horas sofocan en el vestuario. / Entre ropas ajustadas, el gemido / por muchas escenas escondido saluda / y dos pares de botas sospechan / que esta será la última sesión (…). Y luego, en el poema “Otro nombre”: Una lluvia de pianos acelera la noche. / Sus piernas rechinan como luces mojadas. / Una nube olvidada en lo alto del edificio / se arrastra por el cielo evitando dejarse / corroer por el mismo impulso (…). Y a tono también con esta descripción —característico del estilo surrealista de Martins—: …Un pétalo flotando en tus nalgas, / los labios del orgasmo agitados en el pasillo. Las rodillas bordan huertos en mi pecho (“Noches calentadas”).

 Si bien es cierto que el tema principal de Aurora Leonardos se sustenta sobre la relación amorosa del sujeto lésbico, no podríamos obviar las referencias que constituyen el universo de esa sexualidad que en la naturaleza real (ríos, bosque, noche, piedras, cordilleras), confirman las experiencias y connotaciones de un cuerpo que no busca viajar a oscuras por el mundo, ni ausentarse del centro existencial que lo proyecta. Por eso el espacio exterior de esa eroticidad se manifestará en todo lo que se nombre para que la que realidad circundante se ofrezca como un punto de referencia. Así el yo protegerá su relación contra los reproches del mundo exterior amparándose en las formas de esa naturaleza. El tiempo brilla con sus fábulas hechizadas. / Nos refugiamos en chozas suspendidas / en el torrente de los espíritus que nos guían. / Sabias ramas retorcidas anticipan la luz / de las pequeñas curvas de tu espalda desnuda (“Ciervo Lascivo”). Las imágenes de esa realidad exterior las veremos ligadas a la profundidad del ser y a lo que el cuerpo podría ofrecer en cuanto a su eroticidad. En este sentido la búsqueda constante del placer responderá siempre a su necesidad más que a una visión intelectual del mundo: Tu alma rueda en el regazo de mis anhelos, / te busco en la espesura de tantos matices, / en las arboledas brillantes de tus aspiraciones (“Comilona”); señala en esta estrofa y la siguiente, esa inspiración que será también un reflejo del cosmos y de la afirmación del yo en el tiempo:

 

(…)

En tu vientre caen todas las estrellas.

Una deliciosa cadencia nos acaricia.

Somos los últimos amantes refugiados

en el esplendor de una pintura manchada.

 

(“Pantalla repentina”)

 

Pero la naturaleza nos brinda la percepción de un cuerpo cuya relación lésbica nace no solo en el impulso sexual, sino también de lo que concierne al sentido de la vida según ese erotismo reconozca su experiencia en el eco nostálgico del pasado: Los días parecen aves migratorias… / Los días se desvanecen después de un ciclo de orgasmos (“Pincelada convulsiva”). Un tiempo y un pasado que aportan a ese escenario erótico una imagen que se desvanece en la mañana como la proyección surrealista de las cosas, y de ese mundo percibido como un teatro, idea que tan apasionadamente trasluce la poesía de Floriano Martins. En esa imagen vemos también un escenario siempre distinto, un yo lésbico anunciando lo que verdaderamente le complace de la vida: Yo soy tu tierra esparcida. / Eres el resplandor exuberante de mi glotonería. / en la escena final fingimos que morimos / y el teatro ruge su última farsa (“Fin de noche”).

En la sección titulada “Milagro de mil caras” el epígrafe (Los rostros atribuían a las máscaras sus conflictos de personalidad. Y terminaron adoptando la ausencia de todos los rasgos expresivos.), y el de Laís Araruna de Aquino (Me imagino la sensación de una bebida caliente / y la imagen es más real que el acto en sí.) denotan las claves que preceden la hondura de estas composiciones. Las experiencias que satisfacen el cuerpo no agotarán los sentidos que impregnan de erotismo la vida. La profundidad de cada momento fundirá el cuerpo en un entorno íntimo y cambiante. Todo juntamente fundiéndose sobre un cuerpo cuya identidad será absorbida en profunda relación con todo lo que sea capaz de reflejar su avidez sexual. La naturaleza, los objetos y el tiempo expresarán las formas visibles de un erotismo que parece desvanecerse para resurgir continuamente y permitirle al yo seguir existiendo en la memoria y en los momentos más imprecisos de la vida: …ella vino a verme, creo que fue ayer, / no sé que le dijeron, se evaporó (“Extraña lluvia”). Lo que existe, lo que comprendemos dejará su húmeda huella en un paisaje de impresiones fragmentadas sobre el tiempo: “Mi sombra se hunde en tus vestiduras / rituales asociados con la caída, memoria de la cueva, / inquilinos con nombres falsos las noches / fuera de la línea giratoria del horizonte (“Rocío ciego”). El aspecto de aquello que fue la realidad tangible de ese cuerpo, vendrá y se irá y volverá a surgir por la fuerza y la eroticitad que lo retiene; historia que no podría expresarse de otro modo sino como la plena manifestación del placer:

 

Ella me escribió en la cama

las tres rosas del bambú balandra

de sombras, ático volcado,

grietas de agua yo digería

sus cascadas y perlas

detrás de cada beso,

un grifo estelar sudor

de lino, la piel revoloteando,

pentagrama debajo de la cama ,

fue como ella vino,

antes de que el sol menguara,

y ninguna de nosotras

dos supiera amanecer.

 

(“Trébol de ilusiones”)

 

La intensidad de esa relación lésbica se constituye como un centro real, pero también como una especie de territorio flotante, una zona de relaciones donde la conciencia puede revelar su intimidad y actuar libremente. Sin embargo, la realidad no será siempre la misma. No dependerá solamente del cuerpo sino también del ámbito en el que se presenta su imagen. Por lo tanto, cada lectura altera la percepción del mundo erótico para resaltar su propia experiencia. La vivencia que proyecta la vida del hablante contracta también con la temporalidad de esa relación. En este contexto la posición del sujeto lésbico no podrá sustraerse del mundo o sustituir su yo por otro. Su realidad estará definida por la esencia del cosmos y el sentido reflexivo que conlleve esa relación lésbica en la voz del cuerpo amado que la refleja: Leo tu vida en las hojas / de té, el bullicio de la vela / separando en dos / tu destino, el anhelo / de tus labios grabados / en la taza… (“Perla descifrada”).

Es difícil aprehender toda la realidad que concentra un poema en su estructura. Su escenario, su inspiración y la impresión que proyecte no es definitiva. Nos asomamos a ver qué ocurre, pero ignoramos cómo fue hecho. Por eso, al acercarnos a Un día fui Aurora Leonardos solo es posible ver lo que el lenguaje va asimilando de la vida por el sentido y la estructura social en la que se desenvuelve, y no podemos desatendernos del paisaje exterior. En el caso de estas composiciones, el sentido lésbico no puede ser la excepción. Reproduce todo aquello que al ser contemplado termina uniéndose a lo nombrado, y lo nombrado es concebido en un erotismo cuyo sentido no puede mostrase por sí solo, sino a través de la naturaleza que lo revela: Árbol descubierto bajo el follaje / de la caída, pabellón de besos, rebaño / de imágenes que contamos / para revelar escenario abandonado, cerezas / cuchillas ciegas , tus iniciales / adivinando las razones de mi orgasmo… (“La próxima hora”). Y en este mismo orden: La ventana entreabierta donde / el sol calentó la vegetación / quien acababa de despertar en la piel de Anna la sábana / de sus aguas, la desnudez descuidada sobre la mía… (“Pintura en la pared”). En efecto, estas palabras se ajustan a la confección erótica del lenguaje no por mera casualidad. Ellas proclaman la dimensión del paisaje en la intimidad de los cuerpos garantizando el escenario de esa relación. Pero de una relación en la que el eros sobrevivirá en la agonía o la insatisfacción de un cuerpo que parece alejarse sobre un horizonte de insinuaciones y reclamos como deja entrever, por ejemplo, el poema “Última página”, y como sugiere también “Visiones nubladas”. Así el deseo insaciable de poseer y saberse poseída existe como inseparable relación de lo que el cuerpo apetece. De ahí no solo el anhelo de vivir plenamente, sino también de sentir la vida como transformación y libertad.

En el apartado final, “La vida accidental de Aurora Leonardos”, hallamos dos epígrafes cuya percepción parece contener no el fin de esa relación amorosa, sino el motivo que pone a prueba la libertad de elegir y vivir mediante lo que el erotismo impone como camino existencial frente a la hondura de todo lo que el amor concibe y reserva exclusivamente para sí, como el sentimiento que transmite el verso anónimo de esta sección: Cuando el árbol cayó de los brazos de la niña / ella se negó a bajar allí de nuevo. Ciertamente se muestra una imagen iluminadora de la inocencia del amor para revivir un escenario de evocaciones. Dirijamos la mirada a lo lejos para imaginar la geografía de esas montañas (“Blue Mountains”) y la presencia arrolladora de esos cuerpos evocados en el tiempo.

 

Las montañas están desnudas, justo ante mis ojos.

Casi puedo tocarlas. El azul refleja el deseo de infinito.

Ven del cielo, de la tierra, del lago, nada está escrito en el abismo.

Tus manos realzan mi cuerpo, sumergido en la inmensidad

de la camisa blanca como una pequeña obsesión del mediodía.

Cultivas dinamites en mi vientre y la fortuna híbrida del deseo

que deletrea mi ser como una luna ramificada sobre la piel de la noche.

Flores, mariposas, el rostro de las casas, todo, todo es azul en los ojos del lagarto.

Bebo tu orgasmo cinco veces, y las mujeres que salen de mí, cada una de ellas,

mascan el pasto despeinado del tu misterio azul.

 

Igual que esa naturaleza desnuda, los cuerpos asimilarán la sensación cósmica del universo en el erotismo que los vive con nuevas experiencias. Las montañas están desnudas, el deseo infinito, el cielo, la tierra, los lagos orientarán el ambiente que vivifica los cuerpos y la ambición del lenguaje que los proyecta: Vistas desde arriba las nubes / son como tu cuerpo / descansando en la pradera. Mirar es todo lo que he hecho en los últimos días (“El barquero”). La evocación del paisaje se adherirá al cuerpo para compartir la intensidad de las acciones y las fantasías eróticas que proporcionan profundas emociones. La realidad que no puede desvincularse de la naturaleza confecciona también la voz de una amante que no puede existir sino dentro del ser que la vive desde la transitoriedad de otro cuerpo, y desde el fondo mismo de una relación consumida por amor. Por el cuerpo de Aurora Leonardos está lleno de formas que la sumergen en el río luminoso del tiempo: Tu cuerpo descansaba sobre el mío. Nuestros ríos conjugaban / una pequeña historia / robada en la puerta / de un último beso (“Em pleno outono”). Y más adelante:

 

Me enseñaste a abrazar los árboles.

En tus manos me convertí en el paisaje.

 

Deshojaste mi cuerpo entre besos

y saludaste desde detrás de ramas y palos,

improvisando escondites en mis sitios.

 

Yo me tocaba toda buscándote donde estabas.

En ti descubrí mi naturaleza salvaje.

 

(“En el centro del bosque”)

 

La historia de Aurora Leonardos dura lo que el placer mismo le permite al dramatismo de su existencia. Por eso nos hace pensar en una realidad fuera del tiempo donde los seres inventan un mundo para explorar su eroticidad. Una experiencia lésbica que pueda ser entendida solo al contacto con su propia realidad, aunque al final acabe convirtiéndose en memoria y evocación en el tiempo: Ven a mirar el cielo en vuelo lascivo, / mi sonata con sus hierbas delirantes, / mi lluvia rosada. / Dejo escapar tu nombre: / río que me bebe… (“Llena de noche”). Por eso la realidad dará la impresión de que todo contiene un nuevo sentido, un proceso de continuidad y transformación en la palabra. De un poema a otro surgirán nuevos motivos para concentrar nuestra atención en la imagen que agita la vida. ¿Qué sucede cuando el amor insiste una y otra vez por caminos por donde nadie puede regresar, o cuando el cuerpo amado se transforma en mil cuerpos? Un día soñé que te era posible entrar por ese camino (…) / Estar aquí apoyado contra tu cuerpo mientras la desnudez me toca (“Un pétalo de sueño”).

Tendremos que situarnos frente la desnudez del cuerpo, imaginar el paisaje de su sensualidad. Situarnos donde apenas existamos para que la poesía y el amor no consigan desatenderse de la vida y los cuerpos sigan girando como una fábula en el tiempo. Solo así el misterio nos dará la final perspectiva de ese amor insatisfecho que retorna o se aleja como aquella nube que cae impregnada del beso de Zeus (“La nube de Zeus”). Y donde la poesía misma ya es otra manera de explorar la vida, otra mirada que nos aísla del mundo. Porque en el proceso de esa relación lésbica lo que importa es vencer la angustia del tiempo y la soledad en la profundidad del amor y sus misterios: Me toco por completo buscando el refugio de tus manos. / Disfrázame de todo menos de mí misma, porque no quiero volver / aquí cuando te hayas ido (“En mi soledad”).


 

2022

FLORIANO MARTINS

Una nota final

 


Aurora Leonardos (1987-?) es una pequeña jungla de misterios. Su primera aparición fue en una colección de poemas escritos con el gusto de informar sobre el extravagante recuerdo de su juventud. Poemas con una vorágine erótica que acentuaba su salvaje lesbianismo, en el sentido de una naturalidad que rompía cualquier cerco preestablecido, con cualquier mancha moral en la biografía de sus amantes. Ambientada en sus días en las montañas australianas, el vértigo es la tinta sagrada con la que desenterró las arriesgadas imágenes de cada momento vivido. Autobiográficos hasta la médula, los versos confabulan sobre un personaje casi mítico, que se instala como una representación del deseo de una mujer por otra.

Esta primera cosecha poética fue interrumpida por su muerte, metáfora singular del agotamiento de sus expectativas vitales. Suicidio en forma de salto inesperado desde la cima de una montaña, su cuerpo se desmoronó en el camino y nunca fue encontrado. Casi 10 años después reaparece Aurora Leonardos con una nueva fuerza devastadora, esta vez utilizando el poema como una cuchilla afilada que desgarró la carne del tiempo una imagen múltiple e ininterrumpida que fue la determinación poética de un instante. Cada uno de los poemas constituye el rastro vertiginoso de una máscara que vuelve a poner de relieve la condición lésbica como firma de un tratado existencial.

Una vez escrito, imaginé que volvería a desaparecer sin dejar rastro. Sin embargo, pasaron unos meses y me di cuenta de que había accedido a mi correo electrónico y dejado unos poemas con una nota en la que mencionaban que el primer verso de cada uno lo había sugerido una poeta amiga, Anna Apolinário. Viví con ella durante estos tres momentos intrigantes y es un gran honor para mí que me haya confiado sus poemas. Siempre embriagada por la voluptuosidad del momento, su voraz movimiento marcó sobre todo la alegría de una conquista, la de haber dejado a la deriva cualquier miedo a la aventura existencial.

 

 

2023

AMIRAH GAZEL

Fuerte olfato, ante todo…, prefacio de Huesos de los presagios

 

Un tableau qui ne choque pas

n’est vaut pas la peine.

MARCEL DUCHAMP

                      


F.F., Fercho y Floriano son dos amigos de la Constelación Andromeda, dos malabaristas de las palabras. El solo imaginar el desafío de escribir el prólogo para esta doble vía cósmica de imaginación activa: Huesos de presagios, me petrificó.

Fernando y Floriano tienen una trayectoria inmensurable, poetas, son dos seres galácticos, resplandecientes en su interior como oro líquido en un mundo de amor en el olvido flotante de lo incierto, además de ser hombres de letras…

Tomé mi brújula escondida y emprendí el viaje…

Una música replay me invadió al adentrarme en la espesa zona de emociones, las notas ya estaban escritas en cada uno de los soliloquios danzantes sobre colores desvanecidos entre lo real, lo paralelo y la imaginación activa. Resuenan cantos arrastrados por la corriente de la mente, en breves instantes de gozo acuoso con pincel inclemente, disipando el pseudo academicismo.

Plastikos, moldear, transformar, dar forma, cada obra un viaje que estimula la mente, una música sacra entre pinceles.

Párrafos concisos, cóncavos y convexos que tienen raíces en un Paul-Emile Borduas que en 1942 nos decía: No tengo ninguna idea preconcebida. Frente al papel en blanco con la mente vacía de ideas literarias, obedezco al impulso que viene primero. Si tengo la idea de aplicar el carboncillo en el medio del papel o en uno de los lados, lo hago sin dudarlo, y así sigo. Un proceso creativo alimentado por la psicología…

F.F., automáticos, amigos, afanosos de liberar el inconsciente en cada lectora, en cada lector, se dejan influenciar por el movimiento y de un encuentro espontáneo nace un sueño y al unísono termina materializándose en este catálogo de arte, porque lo llamo catálogo como los de las artes porque cada texto es una ventana, es una imagen, una obra que nos refleja el mundo interior del artista, en este caso a cuatro manos, dos cabezas y um só coração.

Cada trazo nos deja un rayón en el alma- reflexiones creadas en el NO LUGAR, cada cuadrado o rectángulo de texto es una partícula de un fragmento de Plástika, que contiene miles de átomos unidos que permiten representar la realidad y, al mismo tiempo, comunicar las emociones. Las marmóreas figuras, tienen agujeros y silencios…

Plastikos, una familia de peso molecular elevado… que emana desde la cueva de Chauvet, una erupción de gran masa molecular que ajusta, que hace, que coloca, que puede cambiar la forma…

Este juego creativo-visual de Fernando y Floriano, es una experiencia que busca, de manera inconsciente, pero con cabeza, transmitir lo que está por encima de la realidad.

Para lanzarse en esta abismal y virtual partida de lo oculto, de lo prohibido, de lo que está detrás de la representación, se necesita conocimiento, se tiene que ser un loco de Macuto.

Dos artwitters rescatando la poesía de la Plastika, que se esconde en el olvido, que cuestiona la relativa belleza del filo libidinoso entre el ánima y el animus de una escogida sala de exposición. Pudieron ser más, son estos los Plastikos que encabezan esta estimulante conversación con los lobos que con su materia reflejan muchas realidades, que testimonian del infinito misterio que habita entre el artista y el humano.

Una boca que no come, pero besa … tablillas creadas una sobre otra, glotonería existencial, videntes que desenterraron los huesos de las cosas futuras.

La inteligencia artificial es Humo SaFiens, lo real es el Amor… la argamasa de otras constelaciones.

 

 

2023

ELYS REGINA ZILS

Orelhas de Sombras no jardim

 


Floriano Martins (Brasil, 1957) é poeta, dramaturgo, ensaísta, artista plástico, tradutor. Criou em 1999 a Agulha Revista de Cultura, da qual é diretor desde então, e o selo ARC Edições, com mais de 100 livros publicados de autores de diversos países. Estudioso da tradição lírica-hispano americana e um dos maiores estudiosos do surrealismo na América, é autor dos livros de ensaios: Um novo continente- Poesia e Surrealismo na América; Escritura Conquistada Poesia hispano-americana; 120 noite de Eros Mulheres surrealistas, entre outros.

Mesmo com uma extensa produção – digo isso com a propriedade de quem tem em mãos, só para citar um exemplo, seu livro de poemas Antes que a árvore se feche (2020) com mais de 600 páginas –, ainda consegue surpreender e instigar seus leitores.

Sombras no Jardim é um livro que compartilha abismos de intensos silêncios que gritam ao pé do ouvido do poeta. Seu escritório se transforma em mesa espírita em um magnifico ato criativo para aludir à elegância do sofrimento. A arquitetura espiritual com a qual o livro avança envolve o leitor que é teletransportado para cada uma das distintas realidades que se constroem em paisagens inquietantes.

Assim, o poeta ultrapassa o véu que separa os mundos para coletar as tintas que irão escrever esses retratos do inesperado que brota do sussurro íntimo de cada canto das paredes que escondem o abismo individual. Cada verbo é um mergulho nas profundezas dessas mulheres singulares e misteriosas. Quando suas buscas encontram seu fim, nasce um livro de vida e morte. É com o cair da noite que os sonhos ganham vida. Como escreve Floriano Martins neste livro: A vida não venera a morte. A morte não venera a vida. Nós somos o único milagre sob o sol.

 

 

2023

JACOB KLINTOWITZ

Sombras Iluminadas, prefácio de Sombras no jardim

 


É possível que a existência no Jardim do Paraíso tenha sido de pura serenidade até o momento em que deixou de ser pura serenidade. No mito, por um interdito, a Voz cria nos seres um espelho de autocontemplação. Quem sou? Em Sombras no jardim, Floriano Martins elabora um extraordinário texto, objeto poético, textos que renascem um após outro, no qual ele nos diz qual é o contorno de inexatidões do existente. E neste existente estamos nós, em forma de enigma e está, por sua vez, explicitamente, uma das mais comovedoras definições do que seja arte, este espaço sem limite, feito de enigmas e perguntas e sensações e descobertas e prazeres. Um universo multifacetado na borda do infinito.

O homem?

Sombras.

O homem?

Personagem.

O homem?

Objeto cerimonial.

O homem?

Um corpo caído ao chão por falta de asas.

Talvez esta literatura de Floriano Martins seja uma cartografia. Nela se desenha o percurso imaginário, e o desejo e o domínio do desejo, e a percepção do ser como destino. Todos um dia caminhamos sobre as águas- ela nos diz. Sombras no jardim é feito por 18.699 palavras de aproximações e mistérios. Desde a Renascença sabemos do percurso da luz entre nós e de como as sombras podem ser iluminadas. Somos os mestres do arco-íris. É o caso. Sombras iluminadas.

Certamente seria possível dividir este livro em duas ou três partes. Relatos de diferentes formatos e com ênfases diferentes. E, no entanto, apesar da estrutura racional do livro, hesito. A ficção de Floriano é de uma atenção permanente e se interroga o tempo todo. É a complexa inteligência racional do autor. O que é provavelmente a sua análise mais extensa, mais lógica, a parte ensaística, é impregnada de tal maneira pelo poético e pela ficção, que reforça o sentimento de que a nossa época tem a sua radicalidade justamente na junção dos diferentes.

Desde o século XX os grandes autores tornaram presente o reino do sentimento. Este é o século da inclusão. Mesmo na área das artes visuais, tradicionalmente sem palavras, a característica é a da inclusão, desde as formas de civilizações diferentes da nossa, com a sua arte totêmica, até a junção de suportes e matérias diferentes. O diálogo que parecia impossível, é possível, como nos mostrou a Colagem. Em vários gêneros, em antigas divisões, é difícil apontar o que é literatura no cinema, o que é movimento no teatro, o que é roteiro na dança, o que é imagem visual na poesia. Um dos exemplos mais marcantes nas últimas décadas é exatamente o livro Sombras no Jardim.

Quem sabe poderíamos dizer que os textos mais curtos são contos, devido a sua unidade temporal. Mas são igualmente poesia. É encantador como o texto se interroga e se comenta de maneira permanente. Quem será o autor? Tantos personagens, tanta energia feminina, tantas definições. E o Floriano nos diz que não tem mais nome o personagem, que a identidade é feita de camadas e camadas de alguma coisa que podemos chamar de realidade, infinito, universos, pulsões de energia. Sonhos, quem sabe. Mas que sonhos tão sábios, tão provocadores, tão enternecedores. Estamos diante de um tesouro.

O título é lindo, Sombras no jardim, por seu conteúdo multiforme. É jardim do paraíso e é igualmente a sombra no nosso quintal que substituiu a luz plena do sol e nos indica nuanças na luminosidade do dia. É a nossa sombra, o oculto em nós, o que não sabemos, a presença deste que nos habita e com o qual raramente temos diálogo. Sombras no jardim é um espaço comum entre o autor e o leitor, é a nossa comunhão. O mundo, nos diz Floriano, é o que imaginamos dele.

Tanto pensamos e dialogamos com o texto, de tal maneira é um objeto diante de nós, tão forte é o seu caráter totêmico, que afirmo que estamos em contato com a mais reveladora filosofia. Reconhecemos aqui e ali, perto ou distante, ecos dos mestres. Súbitas iluminações. Só sei que nada sei, nos disse Platão pela boca de seu personagem Sócrates. E o Floriano nos diz que …os espelhos serão sempre cegos. Eu nunca voltarei à cena.

Pensei em iniciar este comentário pelo começo. Não é o certo. Os textos dele estão sempre no início e no fim. Façam esta experiência, leiam de trás para diante, de diante para trás, do meio para o fim, do fim para o meio. É lúdico. É feliz. Sou obrigado a dizer que este revolucionário livro de Floriano Martins deve ser lido várias vezes. Ele nunca será o mesmo. Nós também nunca voltaremos a ser iguais. As constantes janelas de Floriano, presentes em inúmeros textos, talvez abram para o mundo perceptivo. Édipo quando se cega. Como diz uma personagem: Enquanto houver caminho, continuarei buscando em todos lugares.

Estas visões do Enigma lembra o Oráculo. É uma afirmação sem pudor. Ainda bem.

É comovente que este relato de mistérios, esta trilha de emoções inusitadas, este desvendar imenso, de repente nos diga, o amor é o único mistério. E é tão humano que este poeta que acaba de nos entregar esse livro de iluminações, este sistema de sonhar belezas e identidades, nos lembre: É só isso e nada mais.

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário