Tu carregas tuas
próprias faltas,
levas o teu
próprio sangue,
anuncia-te
somente a si mesmo
em cuja
mortalidade repousas.
GOTTFRIED BENN
Reúno teus restos
em volta do mundo,
ali destroças a
anunciada súplica do esquecimento.
Indagam os úmidos
tesouros do espelho
pelos corais de
tua pele, o atlas de teu ser.
Rumoreja o
inimigo antes que nos escape,
uma fuga de
trevas tecida em suas entranhas.
Deixa que teus
rastros se evaporem, amor,
que se desfaça
toda a matéria ardente sonhada
e o ciclo de teus
desmaios diante do sol.
Rompe em tremores
as formas de tua dor,
em seus degraus
vou perdendo meus dons.
Não se evocam
sinistras sombras em vão,
o tempo se ordena
diante de sua própria queda.
Prolongo em
cortes a sigilosa tarefa do fogo
nos lugares
abandonados do mundo.
Alguém necessita
prosseguir no combate,
além dos círculos
agônicos, dos sinais obscuros.
Reúno os ossos de
uma pesada árvore,
a idade perdida
de tuas resinas, velho amor,
o peixe esculpido
em teu ventre e o idioma
com que
deciframos a espiral dos desígnios.
Contente em te
perseguir, disse: Náufraga minha,
tua dor se mescla à alegria do mundo,
o íntimo
de tuas silenciosas perdas sua doce
mensagem:
o poema traspassa a perplexidade de
seu salto,
surpreende a visão dos deuses que lhes
são próprios,
dissimula a ronda de toda espécie de
torpor.
Não pode ser
outra a cena de teu mistério isolado.
Romper com o
bosque de seus murmúrios
requer uma
parábola muito além do incêndio.
Movem-se
escamosas figuras em torno ao sonho,
voluptuosas
aventuras da dor, desmaios pronunciados.
Reúno tuas peças
fixas, ainda que dispersas,
sem que nos
preocupe o caos de suas fontes.
A extensão de teu
enigma toca-me luz e sombra:
De que calabouço pensas trazer minha
alma?
Descenderei acaso da tribo errante de
tuas espinhas?
Serei teu caos escolhido em uma
vitrine?
Um velho hóspede
esquecido te desfaz em molduras,
as fabulosas
cenas de sua própria miséria.
Devemos tomar
cuidado com o tempo, eterno amor,
dentro de sua
dura geometria temos lugar certo,
segundo suas
ordens e a epifania de seus lamentos.
Tudo o que
vivemos é pegajosa travessia,
o abismo que em
nossas vísceras testemunha
o sabor insólito
de toda sabedoria, decerto nos reserva
a metáfora de
seus servos raptando nossas sombras.
Reúno os despojos
encaminhados à partilha
de tua lenta
agonia, as invisíveis páginas
do livro que nos
deu nome e saboroso peso e fim.
Restituirá a
memória algo além de vermes?
Que minério torna
potente a angústia, o desamparo?
Passamos por
debaixo do relevo dos sonhos,
o corpo curvado
empenhado em não tecer ruídos,
nada que desperte
a epígrafe voraz de nossas vidas.
Presságios, rios
silenciosos, calabouços e grutas
– tudo o que em
nós se dava como uma dança do gelo,
o círculo imóvel
de nossos próprios vapores.
Tua voz sempre
segada por meus disfarces:
O amor devora o lobo das noites, lambe
a ferida
de seus deuses, destrona o método de
toda infâmia.
Saíamos de nós
para a avidez de escombros, descalços
coincidíamos
nossos passos com o vidro moído das trilhas.
Que canção
voltamos a cantar em nome do amor?
De antigos
funerais recolhemos seus úmidos signos:
Tudo no homem se dá no rapto de si
mesmo – A arte
requer um relevo de miséria e um
número garantido
de quedas dissimuladas – Suas mãos
atadas tocam
a fonte do renascimento. Qual será a misteriosa
tribo que escapa
a todo escrito. Qual a fúria que penetra
o labirinto das
horas, a árvore enlouquecida insurgente
contra a boscagem
murmurante de tanta fábula?
Qual será o nome do amor? Haverá quem escape
de tal trama?
Sátiros nos levam de volta ao lar.
Reúno tuas cenas
em um mesmo filme, empenhado
em dividir o fogo
a cada toque órfico da memória.
Tua metade me
sonha e sei que sou a testemunha
de seus
conhecimentos entrados no fulgor das noites,
o portal de seus
ruídos convertidos em versos.
Outra parte do
amor me chega fiel ao desamparo:
Nada em ti aceita reconhecer os traços
de um mistério,
as agulhas que exalam semelhança justo
nas bordas
com que polimos a firmeza de nossas
feridas,
quando entalhamos o impenetrável de
nossa alma.
Recusas o golpe
de toda liturgia e nisto destróis
as entradas
flamejantes da ordem dos desvios.
Reúno os objetos
sagrados de tua representação:
as imaginárias
colunas por onde o amor se enrosca,
um tema recolhido
em leituras que é tua pele,
as passagens que
levam tua alma a regressar à minha.
Por onde retomo
teu vulto, o centro de tua semelhança?
Como regressar à
epifania de teus assombros?
De onde mais vem
a ventura de contraditórios encantos?
Reúno as páginas
de um livro muito antigo,
cujo esplendor
disfarçadamente percorre nossa espinha.
Sinto-me sem ti,
meu profundo amor, atracado
em um único
corpo, encerrado na fuligem das páginas
de uma cidade que
deveria ser queimada.
Que espécie de naufrágio requer a dor
uma única vez?
Que golpe nos permite ir além de seus
efeitos?
A farsa dos
fragmentos toma rápidas decisões,
célere proclama a
dispersão de suas partes: folhas,
ossos, escamas,
versos, estações, toda a umidade
de um saber que
se transfigura em si próprio ao ser tocado.
Para onde vai tua
memória? Como evitar aqui seu exílio?
Reúno tuas
feridas, o redemoinho de suas imagens.
Por inúmeras
vezes pensei que estivesse comigo o amor.
Os corpos se perdem em suas nuanças;
as dores, não.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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