quinta-feira, 20 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | A queda

 

 

Tu carregas tuas próprias faltas,

levas o teu próprio sangue,

anuncia-te somente a si mesmo

em cuja mortalidade repousas.

GOTTFRIED BENN

 

Reúno teus restos em volta do mundo,

ali destroças a anunciada súplica do esquecimento.

Indagam os úmidos tesouros do espelho

 

pelos corais de tua pele, o atlas de teu ser.

Rumoreja o inimigo antes que nos escape,

uma fuga de trevas tecida em suas entranhas.

 

Deixa que teus rastros se evaporem, amor,

que se desfaça toda a matéria ardente sonhada

e o ciclo de teus desmaios diante do sol.

 

Rompe em tremores as formas de tua dor,

em seus degraus vou perdendo meus dons.

Não se evocam sinistras sombras em vão,

 

o tempo se ordena diante de sua própria queda.

Prolongo em cortes a sigilosa tarefa do fogo

nos lugares abandonados do mundo.

 

Alguém necessita prosseguir no combate,

além dos círculos agônicos, dos sinais obscuros.

Reúno os ossos de uma pesada árvore,

 

a idade perdida de tuas resinas, velho amor,

o peixe esculpido em teu ventre e o idioma

com que deciframos a espiral dos desígnios.

 

Contente em te perseguir, disse: Náufraga minha,

tua dor se mescla à alegria do mundo, o íntimo

de tuas silenciosas perdas sua doce mensagem:

 

o poema traspassa a perplexidade de seu salto,

surpreende a visão dos deuses que lhes são próprios,

dissimula a ronda de toda espécie de torpor.

 

Não pode ser outra a cena de teu mistério isolado.

Romper com o bosque de seus murmúrios

requer uma parábola muito além do incêndio.

 

Movem-se escamosas figuras em torno ao sonho,

voluptuosas aventuras da dor, desmaios pronunciados.

Reúno tuas peças fixas, ainda que dispersas,

 

sem que nos preocupe o caos de suas fontes.

A extensão de teu enigma toca-me luz e sombra:

De que calabouço pensas trazer minha alma?

 

Descenderei acaso da tribo errante de tuas espinhas?

Serei teu caos escolhido em uma vitrine?

Um velho hóspede esquecido te desfaz em molduras,

 

as fabulosas cenas de sua própria miséria.

Devemos tomar cuidado com o tempo, eterno amor,

dentro de sua dura geometria temos lugar certo,

 

segundo suas ordens e a epifania de seus lamentos.

Tudo o que vivemos é pegajosa travessia,

o abismo que em nossas vísceras testemunha

 

o sabor insólito de toda sabedoria, decerto nos reserva

a metáfora de seus servos raptando nossas sombras.

Reúno os despojos encaminhados à partilha

 

de tua lenta agonia, as invisíveis páginas

do livro que nos deu nome e saboroso peso e fim.

Restituirá a memória algo além de vermes?

 

Que minério torna potente a angústia, o desamparo?

Passamos por debaixo do relevo dos sonhos,

o corpo curvado empenhado em não tecer ruídos,

 

nada que desperte a epígrafe voraz de nossas vidas.

Presságios, rios silenciosos, calabouços e grutas

– tudo o que em nós se dava como uma dança do gelo,

 

o círculo imóvel de nossos próprios vapores.

Tua voz sempre segada por meus disfarces:

O amor devora o lobo das noites, lambe a ferida

 

de seus deuses, destrona o método de toda infâmia.

Saíamos de nós para a avidez de escombros, descalços

coincidíamos nossos passos com o vidro moído das trilhas.

 

Que canção voltamos a cantar em nome do amor?

De antigos funerais recolhemos seus úmidos signos:

Tudo no homem se dá no rapto de si mesmo – A arte

 

requer um relevo de miséria e um número garantido

de quedas dissimuladas – Suas mãos atadas tocam

a fonte do renascimento. Qual será a misteriosa

 

tribo que escapa a todo escrito. Qual a fúria que penetra

o labirinto das horas, a árvore enlouquecida insurgente

contra a boscagem murmurante de tanta fábula?

 

Qual será o nome do amor? Haverá quem escape

de tal trama? Sátiros nos levam de volta ao lar.

Reúno tuas cenas em um mesmo filme, empenhado

 

em dividir o fogo a cada toque órfico da memória.

Tua metade me sonha e sei que sou a testemunha

de seus conhecimentos entrados no fulgor das noites,

 

o portal de seus ruídos convertidos em versos.

Outra parte do amor me chega fiel ao desamparo:

Nada em ti aceita reconhecer os traços de um mistério,

 

as agulhas que exalam semelhança justo nas bordas

com que polimos a firmeza de nossas feridas,

quando entalhamos o impenetrável de nossa alma.

 

Recusas o golpe de toda liturgia e nisto destróis

as entradas flamejantes da ordem dos desvios.

Reúno os objetos sagrados de tua representação:

 

as imaginárias colunas por onde o amor se enrosca,

um tema recolhido em leituras que é tua pele,

as passagens que levam tua alma a regressar à minha.

 

Por onde retomo teu vulto, o centro de tua semelhança?

Como regressar à epifania de teus assombros?

De onde mais vem a ventura de contraditórios encantos?

 

Reúno as páginas de um livro muito antigo,

cujo esplendor disfarçadamente percorre nossa espinha.

Sinto-me sem ti, meu profundo amor, atracado

 

em um único corpo, encerrado na fuligem das páginas

de uma cidade que deveria ser queimada.

Que espécie de naufrágio requer a dor uma única vez?

 

Que golpe nos permite ir além de seus efeitos?

A farsa dos fragmentos toma rápidas decisões,

célere proclama a dispersão de suas partes: folhas,

 

ossos, escamas, versos, estações, toda a umidade

de um saber que se transfigura em si próprio ao ser tocado.

Para onde vai tua memória? Como evitar aqui seu exílio?

 

Reúno tuas feridas, o redemoinho de suas imagens.

Por inúmeras vezes pensei que estivesse comigo o amor.

Os corpos se perdem em suas nuanças; as dores, não.

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


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