sábado, 22 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Sonho de uma última paixão

 

 

Tanto amei tua sombra,

que já nada me resta de ti.

ROBERT DESNOS

 

Este poema é um diálogo de ressonâncias com a poesia de Julio Herrera y Reissig, Marosa di Giorgio, Amanda Berenguer e Luis Bravo.

 

 

1.

 

Há tempo que tudo o que toco é uma chama soletrada.

As noites que passei a teu lado sempre me despertaram teus gemidos, como se a lua quisesse sair de teus seios.

Já não sei quantas vidas leva alguém dentro de si, porém os sofrimentos contam suas lágrimas de pedra e há uma caixa de martírios guardada para aqueles que despertam de um longo sonho.

Pássaros recitam as lições de abismo em minha janela a cada manhã, e celebro os fulgores do silêncio com que a vida rumoreja seus caprichos. É seguro que a luz a tudo obscureça?

Um golpe do branco pó na madeira de onde fujo até a desesperação. Aprendi com a chuva a hora certa de chorar, de modo que posso inventar um sonho onde já não estás.

Ainda é noite?

A noite é uma febre de infinitos animais e muitos estão adormecidos e não podem ser sonhados de outro modo.

Não sei o que fazes enquanto eu fecho os portais. Que ninguém escape quando te busco em teus silêncios.

Se um livro pode passar de mão em mão, em uma aventura sem fim, por olhares que se desconhecem, posso trazer teu passado até aqui, ainda que seja tão somente para dizer-te que já não posso viver de tua memória.

 

2.

 

O sonho te espera antes que chegue a noite.

É como a desgraça no olhar ressecado.

Um sonho para cada um de nós, para que sigamos a vida sem outra fortuna que o abismo.

Desde aqui te chamo. Desde a garganta do galo de meu canto.

Estamos em nossas vidas para compartilhar as lagoas de tudo o que perdemos.

Por isso viver é um extravio improvisado.

Porta invisível que nos leva ao acaso.

Riso talvez esperado nos vãos do tempo com seu sigilo pontual.

Antes que tudo isto faça parte de teu tédio oh meu amor, não retornes mais aqui.

Que nada te sirva de protesto. Que ninguém te responda.

Os nascimentos não contavam com este momento.

Dá-me teu último conselho antes que tudo se torne razoável.

A verdadeira vida ⎼ quase sempre ⎼ se encontra em outro vagão.

 

3.

 

E agora, o que faço com as noites em meio

à tempestade de tua ausência?

Uma noite sem perfume, outra sem teus pelos.

Angústia disfarçada de repouso.

Outro nome perseguindo a serpente-fogo.

Por três quartos passaste

com seus pastores de cinzas,

eles que nas mulheres invisíveis de cada dor

semearam meus orvalhos esquecidos

ao alcance de virtudes enclausuradas.

Onde está o amor que esteve aqui

e foi tão rico em seu extenso caminho?

E agora, o que faço com as medalhas de tua pele

e os selos que me havias presenteado?

 

4.

 

Sempre vestida de mim estavas

e eu refugiado em teu sangue, em tua terra.

As linhas de tuas mãos conhecem

o segredo de meu rosto,

como nascem seus pratinhos de cores e crescem pelos ramos de teu desejo.

O amor na sala de jantar, com suas pernas audazmente dando a hora,

sob a mesa aguarda o galo para poder cantar.

E tu me queres por uma última vez antes de voltar a me querer.

Assim é teu jogo em nossos rostos arborizados de sorrisos.

Ninguém sabe me despertar tão bem os manjares da alegria.

E ficas imóvel enquanto eu te busco.

 

5.

 

Cogumelos caminham nus pela casa.

És meu amor comestível docemente reclinado

sobre os crepúsculos insólitos e as mãos deslizando por entre os matagais dos pecados.

Um beijo reconhece teus ombros.

Outro me ensina que as costas estão repletas de memória.

Preparei teus prazeres, porém algo mudou as máscaras de lugar.

A noite não se completa.

O galo já está em sua terceira casa.

Há 35 anos que aqui regresso e não te encontro.

 

A solidão permanece imóvel.

 

6.

 

Não sei o que se passa com as tranças de nosso enigma.

Alguém começa sua vida por onde não sabe o que dizer.

A areia prepara os espelhos inexplicáveis de seus limites.

 

A finitude de um se conecta com a de muitos, e é implacável o círculo onde tudo desanda a recomeçar.

 

7.

 

Passei uns dias sem te olhar.

Apenas recordando as estrelas de tua pele.

A fricção desnuda de teus pássaros no céu.

A ligeireza de tuas tartarugas milenares desde que aprendi seus nomes.

Os dentes do acaso.

A cidade deserta como uma miragem que é também o olho que segue aprendendo como olhar o pó e a guitarra que repetidamente desaparece sempre que abre um segredo em tua vigília.

O ritmo é dado pelo vento e seu reflexo confirma a evidência.

O resplendor da vida está em nossa nudez.

Tudo passa antes que a noite se vá, e quando as imagens se repetem é que o milagre se torna intransitivo.

Não há como copiar o paladar da consciência.

O homem é o único fugitivo no planeta.

 

8.

 

Não foi a península e sua crença nas sílabas contadas.

Não foram as primeiras vítimas do encontro de dois mundos.

Ninguém bombardeou a noite em nossas cidades.

O ocidente segue sem saber o que fazer com as demais dimensões do tempo.

O mundo perde por esperar.

O vapor do chá pode trazer má sorte para um jacaré no Amazonas ou uma vida feliz para um pássaro em Osaka.

Não sabemos o que fazer com o hai-kai, porém não temos por que sabê-lo.

As chuvas matam e salvam.

O peixe nem sempre é morto para alimentar as pessoas.

A televisão é um rodeio.

Em nome da comunicação o homem tem cegado os espelhos.

Não há por que buscar inimigos onde eles não estão.

O homem simplesmente se perdeu e não sabe o que fazer com seus sonhos.

 

9.

 

Nossa instabilidade é uma cidade em ruínas.

Perdemos a pesca dos valores, a magia dos corpos compartilhando a visão de um mesmo tempo.

Tudo em nós perde suas formas,

séculos de vida se desfazendo,

as vias emaranhadas do acaso.

A cidade não segue mais seu habitante, a cidade se perde sem saber o que fazer com seus degraus, nem mesmo o vento sabe por qual rua entrar.

A cidade se descolore.

A cidade somos nós.

E já não alcançamos as rachaduras sem cálculos do tempo.

 

10.

 

O acaso não sofre.

A qualidade do acaso é o decifrar de algo imprevisível.

A noite que passa simplesmente passa.

Não há como recuperar a encruzilhada de seus labirintos.

Qual de teus sonhos será o mais desiludido?

As palavras se esgotam.

Há momentos em que não sabem o que significar.

As palavras são nossa negação do tempo, porém se não as compreendemos passam a ser a negação de nós mesmos.

É muito triste quando o homem se encontra negado por suas palavras.

Eu busquei teu amor na desesperação de tudo, porém, o que significas?

Não descobri a voz silenciada de teu amor,

ando por aqui entrevisto por minha curiosidade.

Quem és? Como ouvir novamente tua voz? Como buscar em teu corpo a luz visível de meus sonhos?

Morte, perda, desilusão… Chegamos até aqui para isso?

Já sabes: não estou em parte alguma.

 

11.

 

Letras trocadas de lugar.

Bosque como um esboço.

Efeito da lira e seus desastres.

Uma invenção faz com que o título perca sentido, outra faz com que o mundo não seja senão títulos.

Às vezes a metáfora é a desesperação das formas.

O mundo, na verdade, não começa ou termina em nenhum de nós.

Quando celebramos as inflexões de uma deusa da linguagem é que percebemos de todo a humanidade que um dia esteve em nosso íntimo.

 

12.

 

Agora já se foram os corpos e as noites ficaram sem sonhos,

com suas âncoras que sopram como mulas fabulosas na fundura do céu,

com suas esfinges preguiçosas e a nostalgia dos pentagramas do fogo,

o claro-escuro das vozes inauditas e a pradaria de espasmos com seus luzeiros fingidos.

A morte não sabe o que fazer consigo mesma na ausência de corpos.

Abstraída boceja possuída por seu instinto negro sem saber como descansar.

Não há ninguém nos lábios da paisagem, ninguém nas curvas do caminho.

Nem testemunhas ou mendigos. Sequer os olhos amargos do idealismo.

A morte já não sabe a quem amar.

Arde a vazia repercussão de suas confissões nas calçadas abandonadas.

Não sabe chorar. Não sabe chorar. E o mundo é um horror que sorri indiferente.

 

13.

 

Sombras sonâmbulas no espelho,

como se a lua fosse um cativeiro de excessos.

O caminho está repleto de páginas apagadas para que ninguém o compreenda.

A desesperação com suas pupilas intranquilas.

Os ruídos tão tristes e o piano irreal dos passos.

O silêncio dos presságios, o silêncio das perspectivas.

Sombras fogem dos sulcos deixados na areia do espelho em meio aos passos perdidos do tempo,

ao redor da casa vazia da memória.

 

14.

 

O mundo começa como uma carícia flagrante na escuridão.

Os dentes da penumbra se encontram na mesma posição das estrelas mais vertiginosas.

Às vezes eu te quero como uma palavra nova.

Outras, como uma velha luz que sobe pelo verbo que perpassa minha vida.

Os suicidas renascem ou se estendem como uma mancha no trânsito opulento das almas?

Onde se escondem as compoteiras do acaso?

Onde se expandem os despojos do fogo?

E as confidências do desastre, o que fizeram das agulhas elétricas espetadas na fronte dos magos?

As colheres passeiam com seus ovos de pedra

e os corvos bicam a gramática e indagam sobre o destino da esperança:

quando retrocede ou quanto perdura o que se escreve aqui?

 

15.

 

Devemos ler o catálogo negro das hierarquias,

decifrar a evaporação dos corpos e a austeridade do olhar.

O músico de rua soprando seu didjeridoo ou tocando uma viola de cocho,

a hélice do tempo sentenciando a música, dia e noite, a expressar uma dor.

Ciência, arte, religião ⎼ cartéis do isolamento, medulas relampejantes da miséria humana.

Meu nome estrangulado na porta de casa.

Vagabundeiam as gerações que perderam seus presságios.

Uma vez ou outra passa por aqui o destino sem que ninguém saiba seu nome.

 

16.

 

De outro lado sai a criação voltada sobre si mesma,

como um monoteísmo perdido nos anfiteatros do espírito.

Cultivamos sombras e não há fé que justifique nos esquartejarmos.

As sagradas famílias religiosas produzem os atos mais obscenos

e a memória se repete como um papagaio real.

O século mal começou e já está por ir-se.

A viagem crepitante de olhar o futuro: pássaro pousado na linha do horizonte, sedução dos dedos de alguém na pele da tecnologia.

As janelas tomam seu leite em casa todas as manhãs.

Creio na ilusão de que a vida salpica sua esperança em mim,

ou talvez seja um desesperado enlouquecido de penúrias.

Já não me preocupam a sabedoria e o trevo de cinco milagres.

 

17.

 

Viver é uma recorrência de abismos.

As sílabas reclamam que as palavras são imprecisas.

Eu tenho um nome desconhecido que vive em mim.

Não participa do desjejum. Tampouco gosta do pêssego com que recordo outros reinos onde vivi.

Todos chegamos aqui de algum lugar,

com seus frutos flores chuvas máquinas gramáticas.

Não há como evitar a surpresa.

O homem é apetecível.

Por mais velho que seja o mundo o homem é uma chaga vociferante.

Uma escultura que dança.

Um cadáver que canta.

Um mistério que move as asas como se a ilusão da forma como a conhecemos houvesse nascido em suas plumas.

 

18.

 

Em um rumor interminável encontro um pedaço de tua inquietude.

Por que te dói o sonho?

Há um cinema: a perspectiva do instante multiplicado em jogos luminosos.

Um teatro perdido: há a argila dos relógios, o truque dos corpos ausentes,

o cavalo vestido de asas e o fósforo da música de Erik Satie.

Por que me dói o sonho?

É o vidro, o efeito de cena, as tintas que são o desjejum do pavão real,

a própria música de Satie e os muros bem próximos das palavras que são livres de inquietude…

Para onde fomos?

 

19.

 

As ruas mudam de lugar.

Algumas voam com seus arranha-céus às costas.

Os hospitais são as testemunhas do horror, embora seja nas escolas onde todos se alimentam de desastres.

As versões derramadas da dor olham as escadas que passam como se a loucura não durasse mais que o olhar.

Porém a loucura é uma viagem no submarino da melancolia pela telepatia carnívora dos ossos.

Quando a casa fala seus impulsos são de transmutação.

Sobre a longitude das sombras cansadas e a arte da velocidade sediciosa eu descubro o oxigênio de tuas formas.

Por isso a espessura das coisas invisíveis nada pode contra a ranhura aberta de teu sexo.

Por isso o acaso mantém no centro da cidade uma caverna somente para teus princípios ressoantes.

E teus redemoinhos pagãos.

E as orelhas atraídas pelo perigo do silêncio.

Por isso estão proibidas as câmaras fotográficas enquanto o universo sonha com teu corpo interminável.

 

20.

 

Há que começar a filmar o instante quando ele se põe a descansar. O universo como uma película marcada pelas chuvas. O aguaceiro das vertigens. As janelas com o azeite íntimo de suas palavras e a vertigem da fundura transmitida como se o pântano não fosse mais do que dois lagartos fazendo amor. Há que começar a depositar no céu os ovos da nave que reconhece nossos passos na terra.

 

21.

 

A lua cheia de assombros e o espelho pesado passam uma vez mais por aqui

carregando as sombras artificiais e o gorjeio de tantas vozes confusas.

 

Um homem permanece nu

na casa do vazio,

o mesmo vazio giratório,

a mesma jaula soltando o perfume que inunda a memória,

o mesmo retrato da família desaparecida

e a justiça buscando seu leite quando já é outro o alimento do mundo.

Porém o homem permanece: como se houvesse algo novo na rotina de seus signos desconjuntados.

 

O homem e seu intérprete.

O homem e o vômito de suas relutantes evidências.

O homem detido até que prove uma singularidade de pernas e cordas vocais.

O tempo perdido faz com que os clandestinos tomem seus trens, os criminosos redijam suas memórias, os amantes esqueçam as lufadas do perigo.

 

O mesmo homem cada vez mais longe de si.

Um que pensa que se atreve a morrer.

Um que soletra palavras como se fossem a última sentença.

O último homem esquartejado por sua imaginação

e o espelho inundado de cicatrizes móveis.

 

22.

 

Ela me chamou até aqui.

Os espectros cozinham o impossível.

Seu rosto é azul como uma agulha delirante que perdeu a bússola.

As noites retrocedem para além dos limites da gramática.

As pernas estão em meus ombros e o tempo recita anos de vertigens.

Não me importa quanto perdurem as estações.

As linhas que saltam do horizonte para suas mãos.

O pêndulo das constelações.

A efígie das areias mudando de cor a cada escultura de riscos que deixo na praia.

Eloquência de minha desesperação, não importa.

Ela me chamou até aqui.

Ninguém poderá apagar sua ausência.

Sequer resumir os efeitos de sua floração em meus desertos.

 

23.

 

Por que te dói o sonho?

As vozes apertam a pele do silêncio.

Tudo é feito de uma ciência incerta.

Pesadelo de palavras e sentenças.

Sombras em fuga buscando inventar signos mais velhos.

Destino impertinente.

Exigências do acaso antes que seja demasiado tarde.

Amanhã está longe de ser outro dia e os espelhos saíram todos para pescar.

Não importa. Os corpos são um perigo quando não os podemos tocar.

Perdi o endereço do mundo em que vivo.

Esqueci os presságios. Caminhei por uma biblioteca de folhagens de fogo.

Um dia na catedral de Sevilha, outro nos degraus de Monte Albán.

E logo entre as árvores andarilhas da Ursa Maior.

Há tanto tempo me encontro nas mãos da viagem que já não sei como iniciar outro curso.

 

24.

 

Os dias não fazem perguntas.

Minhas dores não querem saber da sabedoria enlouquecida da arte.

Dos ramos do abismo. Ninguém escuta a orquestra dos extravios.

Com que roupa te vestes para as descargas elétricas do amanhecer no centro de São Paulo?

Ou na neve vítrea de tua passagem por Cincinnati?

Desde quando deixaste de estar aqui?

Somos as pedras asfixiantes de um quebra-cabeças de cidades submersas na névoa, com suas sílabas fechadas e os cartéis ilegíveis.

Como o vertedouro do próprio diabo que arrancou os corpos de suas sombras enquanto o sol despertava.

Por isto não te alcanço. Por isto me dói a mesa, a comida, o leito dos sonhos.

Por isto a justiça perdeu suas datas. A moral é uma deusa a quem ninguém sacrifica uma pedra que seja.

Por isto não há mais como extrair identidade dos homens.

 

25.

 

Não há como incendiar as sombras.

Eu necessito teu corpo. A casca saboreada de teu ser.

A memória ruborizada de tua loucura.

O jardim perfumado de teu sangue.

As estações do prazer e a língua secreta dos desejos.

Uma dezena de pérolas com sua vidência e a evidência de teu gosto impenetrável.

A roupa insuportável das alucinações,

e a violenta resposta do mundo à botânica: mercado e noticiário.

Por roubar um sonho a árvore foi condenada a repetir seus mesmos figos a vida inteira.

A vida inteira. A vida inteira. A vida inteira.

Por roubar um sonho.

 

26.

 

As imagens cortam seus pelos como se fosse um disfarce contra as corujas.

As lenhas crepitam, azunhando, sangrando um cenário de perdas secretas

como a caixa preta da abundância,

as janelas curiosas que espreitam bem lá de dentro,

os vidros azuis do sonho e os morcegos vistos por todas as partes,

a morte sorrindo como se tivesse chegado ao fim

e os pratos vazios na mesa.

A névoa trouxe o chá preto ao lago montado nas costas do abismo.

Quisera fazer uma fogueira com o espinhaço desse espelho interminável.

Máscaras e ovos. Sortilégios que são um baile de odaliscas que é a gravidade diabólica dos olhares.

A cena está repleta de pianistas.

Há que criar um aroma novo.

Um desejo seminu que nos olhe de relance.

Um palácio na pele. Uma maçã de ouro. Um grito de orgasmo.

 

27.

 

As estrelas recordam que a morte não tem fim.

Na escuridão da página começou a aparecer uma bruxa na ponta dos pés.

Há em sua pele ramos que necessito desatar,

porém como lhe dizer que não volte a olhar para mim?

Chega de ilusões. Minhas visões querem dormir de pé.

Não quero amanhã te escrever. Um dia, quando eu chegar bem perto de ti,

um dia, isto sim, provaremos de um outro tipo de mundo.

Creio que houve uma noite imprevista em que me indagaste: quem és?

e eu,

teu monstro esquecido:

nada entre nós é insondável.

 

28.

 

Eu tenho loucas gritando na porta,

o terror das respostas na ponta da língua.

Minhas táticas de reconhecimento de incerta racionalidade,

a realidade e seus ardilosos conceitos.

As máquinas de café e a janela aberta,

o pássaro vindouro e o mobiliário de plumas dos voos perdidos.

Por que teus cálculos são sempre de regresso?

Não me arrependo de ti, porém jamais pensei em regressar.

Estás em minha vida muito além das circunstâncias

e as trevas chegam até aqui sem intermediários.

Como o acaso acossado? Como um experimento do instável?

Igual ao vento e sua carta de insurgências.

Uma caverna manuscrita. O logaritmo do sonho. Um voo longe ⎼ longe ⎼ de chegar a parte alguma.

E as mulheres como granadas de mão, um fracasso da multidão

e o relâmpago ilusório,

longe de si mesmo,

tornando inumeráveis as provisões da esperança.

Já não sei onde posso morrer tranquilo porque a morte me visita com seus códices e não me quer matar, mas sim levar-me ao aposento de seus suores frios.

Ela não gosta, porém eu morro aqui mesmo.

Que se dane a morte.

Não escuto nada.

Ela não me serve para nada.

Que venha outra. Outra mais. Quantas.

 

29.

 

E elas foram chegando, as sombras imensas,

desciam por todas as partes da casa,

intermináveis horizontes de espanto. Elas,

com seus gritos campestres, estrelas úmidas,

cabelos noturnos avançando pelo pátio,

desatando os lugares esquecidos e os ramos da visão.

Repartimos as vozes. Não há porque temer a catástrofe.

Um mundo começa a desfazer-se de suas formas na destruição de outro,

sem deixar-se morrer por morte que não o mereça.

Elas continuam sonhando com nossos espectros.

Agora que já não sabemos o que fez de nós a fogueira dos umbrais.

Agora que o acaso aprendeu a repetir-se.

Prometemos em sacrifício algo que não sabemos o que é.

Amores humilhados. Quimeras desvirginadas. Magia retrocedida.

Como a intromissão de uma realidade em outra.

 

30.

 

A rua fica aberta.

Retornam as aparições.

Umas sombras põem ovos.

Outras cozinham os cabelos de uma santa.

As janelas se precipitam de seus olhos de vidro.

Pescoços de meninas sem rosto são dados como elegíacos.

Uns rebeldes sangrentos elegem o mais longínquo dos destinos.

A cobiça é amarela e sua escritura ilegível.

É verdade que minuciosamente descrevo os cestos vazios da tragédia do amor,

porém é melhor que olhem o mais breve possível,

pois a verdade já está por transcorrer

e ninguém poderá saber o que fará com os fiéis a mascarada guardiã dos artefatos luminosos e das lágrimas empoeiradas que improvisam as filhas negras na rua gelada.

Ninguém. Nem mesmo os representantes da herdade das premissas.

 

31.

 

As contrassenhas perdem seus colibris.

Já se foram os nomes do abismo.

Ninguém impede a passagem de teu nome. Essência proibida. Queimante silêncio que muda de lugar os móveis de tua paixão.

Voz desfiada radiante transparente quase de todo invisível.

Casa transbordada de motivos. Corpo que perdeu o sentido como uma lista de chamados.

Livro quase chegando ao mar.

Eu te quero aqui. Não me importam as tuas formas.

Quero te amar na feira interminável do ser.

Onde te alcanço o mundo jamais deixa de estar em mim.

O cenário não passa de um despojo queimante.

Estamos todos à margem de uma fábula de caveiras.

Não há mais alguém a quem extrair um parágrafo de ajuda.

De outro modo o mundo é uma casa sem dono.

E nós somos os pés de um personagem avulso.

Caminhemos até que a noite compreenda as formas de seu silêncio.

 

32.

 

Anda com tudo. Não me deixes em casa.

Já não tenho por que visitar fantasmas.

Já não quero os sinos confusos do desejo.

Cada dia se enrosca em nós como se fosse sempre.

Os dias são noites sem sonhos iguais às noites que não sabem o que fazer com seus contrabandos de imagens.

Cheguei até aqui para saber o que se passa com teu sonho.

Tua veloz desesperação e a árvore esmeralda da presença dos mitos.

Foi como visitar as entranhas da imaginação.

A mesa das vertigens. Os números secretos. As senhas sem pressa dos mistérios crescidos.

Que tenhas retornado à minha saída dos espelhos, das redes carregadas de horizontes e dos abismos postais,

não importa. Ninguém mais do que eu invadiu teu campanário.

Ninguém foi mais implacável com teu deserto e o som do outro lado de teu mundo.

Ninguém, e as folhas do sonho sorriem com a descoberta da paisagem cravada nas janelas de teu corpo.

Não há mais nada.

Foste uma vez mais embora tão logo retornaste.

Outra vez o vento. Outra vez o mistério.

Até mesmo a morte um dia perde seu instrumento de precisão.

Olho a cratera de sua magia.

Não quero saber de mim.

Sonho com uma noite em que o amor entrou para escavar as paredes soltas da realidade,

e graças a isto retorno a ti.

Porém já não estás.

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

 


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