Tanto amei tua sombra,
que já nada me resta de ti.
ROBERT
DESNOS
Este poema é um diálogo de
ressonâncias com a poesia de Julio Herrera y Reissig, Marosa di Giorgio, Amanda
Berenguer e Luis Bravo.
1.
Há tempo que tudo o que toco é uma chama
soletrada.
As noites que passei a teu lado sempre me
despertaram teus gemidos, como se a lua quisesse sair de teus seios.
Já não sei quantas vidas leva alguém dentro de
si, porém os sofrimentos contam suas lágrimas de pedra e há uma caixa de
martírios guardada para aqueles que despertam de um longo sonho.
Pássaros recitam as lições de abismo em minha
janela a cada manhã, e celebro os fulgores do silêncio com que a vida rumoreja
seus caprichos. É seguro que a luz a tudo obscureça?
Um golpe do branco pó na madeira de onde fujo
até a desesperação. Aprendi com a chuva a hora certa de chorar, de modo que
posso inventar um sonho onde já não estás.
Ainda é noite?
A noite é uma febre de infinitos animais e
muitos estão adormecidos e não podem ser sonhados de outro modo.
Não sei o que fazes enquanto eu fecho os
portais. Que ninguém escape quando te busco em teus silêncios.
Se um livro pode passar de mão em mão, em uma
aventura sem fim, por olhares que se desconhecem, posso trazer teu passado até
aqui, ainda que seja tão somente para dizer-te que já não posso viver de tua
memória.
2.
O sonho te espera antes que chegue a
noite.
É como a desgraça no olhar ressecado.
Um sonho para cada um de nós, para que
sigamos a vida sem outra fortuna que o abismo.
Desde aqui te chamo. Desde a garganta
do galo de meu canto.
Estamos em nossas vidas para
compartilhar as lagoas de tudo o que perdemos.
Por isso viver é um extravio
improvisado.
Porta invisível que nos leva ao acaso.
Riso talvez esperado nos vãos do tempo
com seu sigilo pontual.
Antes que tudo isto faça parte de teu
tédio oh meu amor, não retornes mais aqui.
Que nada te sirva de protesto. Que
ninguém te responda.
Os nascimentos não contavam com este
momento.
Dá-me teu último conselho antes que
tudo se torne razoável.
A verdadeira vida ⎼ quase sempre ⎼ se encontra em outro vagão.
3.
E agora, o que faço com as noites em meio
à tempestade de tua ausência?
Uma noite sem perfume, outra sem teus pelos.
Angústia disfarçada de repouso.
Outro nome perseguindo a serpente-fogo.
Por três quartos passaste
com seus pastores de cinzas,
eles que nas mulheres invisíveis de cada dor
semearam meus orvalhos esquecidos
ao alcance de virtudes enclausuradas.
Onde está o amor que esteve aqui
e foi tão rico em seu extenso caminho?
E agora, o que faço com as medalhas de tua
pele
e os selos que me havias presenteado?
4.
Sempre vestida de mim estavas
e eu refugiado em teu sangue, em tua terra.
As linhas de tuas mãos conhecem
o segredo de meu rosto,
como nascem seus pratinhos de cores e crescem
pelos ramos de teu desejo.
O amor na sala de jantar, com suas pernas
audazmente dando a hora,
sob a mesa aguarda o galo para poder cantar.
E tu me queres por uma última vez antes de
voltar a me querer.
Assim é teu jogo em nossos rostos arborizados
de sorrisos.
Ninguém sabe me despertar tão bem os manjares
da alegria.
E ficas imóvel enquanto eu te busco.
5.
Cogumelos caminham nus pela casa.
És meu amor comestível docemente reclinado
sobre os crepúsculos insólitos e as mãos
deslizando por entre os matagais dos pecados.
Um beijo reconhece teus ombros.
Outro me ensina que as costas estão repletas
de memória.
Preparei teus prazeres, porém algo mudou as
máscaras de lugar.
A noite não se completa.
O galo já está em sua terceira casa.
Há 35 anos que aqui regresso e não te
encontro.
A solidão permanece imóvel.
6.
Não sei o que se passa com as tranças de nosso
enigma.
Alguém começa sua vida por onde não sabe o que
dizer.
A areia prepara os espelhos inexplicáveis de
seus limites.
A finitude de um se conecta com a de muitos, e
é implacável o círculo onde tudo desanda a recomeçar.
7.
Passei uns dias sem te olhar.
Apenas recordando as estrelas de tua pele.
A fricção desnuda de teus pássaros no céu.
A ligeireza de tuas tartarugas milenares desde
que aprendi seus nomes.
Os dentes do acaso.
A cidade deserta como uma miragem que é também
o olho que segue aprendendo como olhar o pó e a guitarra que repetidamente
desaparece sempre que abre um segredo em tua vigília.
O ritmo é dado pelo vento e seu reflexo
confirma a evidência.
O resplendor da vida está em nossa nudez.
Tudo passa antes que a noite se vá, e quando
as imagens se repetem é que o milagre se torna intransitivo.
Não há como copiar o paladar da consciência.
O homem é o único fugitivo no planeta.
8.
Não foi a península e sua crença nas sílabas
contadas.
Não foram as primeiras vítimas do encontro de
dois mundos.
Ninguém bombardeou a noite em nossas cidades.
O ocidente segue sem saber o que fazer com as
demais dimensões do tempo.
O mundo perde por esperar.
O vapor do chá pode trazer má sorte para um
jacaré no Amazonas ou uma vida feliz para um pássaro em Osaka.
Não sabemos o que fazer com o hai-kai, porém
não temos por que sabê-lo.
As chuvas matam e salvam.
O peixe nem sempre é morto para alimentar as
pessoas.
A televisão é um rodeio.
Em nome da comunicação o homem tem cegado os
espelhos.
Não há por que buscar inimigos onde eles não
estão.
O homem simplesmente se perdeu e não sabe o
que fazer com seus sonhos.
9.
Nossa instabilidade é uma cidade em ruínas.
Perdemos a pesca dos valores, a magia dos
corpos compartilhando a visão de um mesmo tempo.
Tudo em nós perde suas formas,
séculos de vida se desfazendo,
as vias emaranhadas do acaso.
A cidade não segue mais seu habitante, a
cidade se perde sem saber o que fazer com seus degraus, nem mesmo o vento sabe
por qual rua entrar.
A cidade se descolore.
A cidade somos nós.
E já não alcançamos as rachaduras sem cálculos
do tempo.
10.
O acaso não sofre.
A qualidade do acaso é o decifrar de algo
imprevisível.
A noite que passa simplesmente passa.
Não há como recuperar a encruzilhada de seus
labirintos.
Qual de teus sonhos será o mais desiludido?
As palavras se esgotam.
Há momentos em que não sabem o que significar.
As palavras são nossa negação do tempo, porém
se não as compreendemos passam a ser a negação de nós mesmos.
É muito triste quando o homem se encontra
negado por suas palavras.
Eu busquei teu amor na desesperação de tudo,
porém, o que significas?
Não descobri a voz silenciada de teu amor,
ando por aqui entrevisto por minha
curiosidade.
Quem és? Como ouvir novamente tua voz? Como
buscar em teu corpo a luz visível de meus sonhos?
Morte, perda, desilusão… Chegamos até aqui
para isso?
Já sabes: não estou em parte alguma.
11.
Letras trocadas de lugar.
Bosque como um esboço.
Efeito da lira e seus desastres.
Uma invenção faz com que o título perca
sentido, outra faz com que o mundo não seja senão títulos.
Às vezes a metáfora é a desesperação das
formas.
O mundo, na verdade, não começa ou termina em
nenhum de nós.
Quando celebramos as inflexões de uma deusa da
linguagem é que percebemos de todo a humanidade que um dia esteve em nosso
íntimo.
12.
Agora já se foram os corpos e as noites
ficaram sem sonhos,
com suas âncoras que sopram como mulas
fabulosas na fundura do céu,
com suas esfinges preguiçosas e a nostalgia
dos pentagramas do fogo,
o claro-escuro das vozes inauditas e a
pradaria de espasmos com seus luzeiros fingidos.
A morte não sabe o que fazer consigo mesma na
ausência de corpos.
Abstraída boceja possuída por seu instinto
negro sem saber como descansar.
Não há ninguém nos lábios da paisagem, ninguém
nas curvas do caminho.
Nem testemunhas ou mendigos. Sequer os olhos
amargos do idealismo.
A morte já não sabe a quem amar.
Arde a vazia repercussão de suas confissões
nas calçadas abandonadas.
Não sabe chorar. Não sabe chorar. E o mundo é
um horror que sorri indiferente.
13.
Sombras sonâmbulas no espelho,
como se a lua fosse um cativeiro de excessos.
O caminho está repleto de páginas apagadas
para que ninguém o compreenda.
A desesperação com suas pupilas intranquilas.
Os ruídos tão tristes e o piano irreal dos
passos.
O silêncio dos presságios, o silêncio das perspectivas.
Sombras fogem dos sulcos deixados na areia do
espelho em meio aos passos perdidos do tempo,
ao redor da casa vazia da memória.
14.
O mundo começa como uma carícia flagrante na
escuridão.
Os dentes da penumbra se encontram na mesma
posição das estrelas mais vertiginosas.
Às vezes eu te quero como uma palavra nova.
Outras, como uma velha luz que sobe pelo verbo
que perpassa minha vida.
Os suicidas renascem ou se estendem como uma
mancha no trânsito opulento das almas?
Onde se escondem as compoteiras do acaso?
Onde se expandem os despojos do fogo?
E as confidências do desastre, o que fizeram
das agulhas elétricas espetadas na fronte dos magos?
As colheres passeiam com seus ovos de pedra
e os corvos bicam a gramática e indagam sobre
o destino da esperança:
quando retrocede ou quanto perdura o que se
escreve aqui?
15.
Devemos ler o catálogo negro das hierarquias,
decifrar a evaporação dos corpos e a
austeridade do olhar.
O músico de rua soprando seu didjeridoo ou
tocando uma viola de cocho,
a hélice do tempo sentenciando a música, dia e
noite, a expressar uma dor.
Ciência, arte, religião ⎼ cartéis do isolamento, medulas relampejantes
da miséria humana.
Meu nome estrangulado na porta de casa.
Vagabundeiam as gerações que perderam seus
presságios.
Uma vez ou outra passa por aqui o destino sem
que ninguém saiba seu nome.
16.
De outro lado sai a criação voltada sobre si
mesma,
como um monoteísmo perdido nos anfiteatros do
espírito.
Cultivamos sombras e não há fé que justifique
nos esquartejarmos.
As sagradas famílias religiosas produzem os
atos mais obscenos
e a memória se repete como um papagaio real.
O século mal começou e já está por ir-se.
A viagem crepitante de olhar o futuro: pássaro
pousado na linha do horizonte, sedução dos dedos de alguém na pele da
tecnologia.
As janelas tomam seu leite em casa todas as
manhãs.
Creio na ilusão de que a vida salpica sua
esperança em mim,
ou talvez seja um desesperado enlouquecido de
penúrias.
Já não me preocupam a sabedoria e o trevo de
cinco milagres.
17.
Viver é uma recorrência de abismos.
As sílabas reclamam que as palavras são
imprecisas.
Eu tenho um nome desconhecido que vive em mim.
Não participa do desjejum. Tampouco gosta do
pêssego com que recordo outros reinos onde vivi.
Todos chegamos aqui de algum lugar,
com seus frutos flores chuvas máquinas
gramáticas.
Não há como evitar a surpresa.
O homem é apetecível.
Por mais velho que seja o mundo o homem é uma
chaga vociferante.
Uma escultura que dança.
Um cadáver que canta.
Um mistério que move as asas como se a ilusão
da forma como a conhecemos houvesse nascido em suas plumas.
18.
Em um rumor interminável encontro um pedaço de
tua inquietude.
Por que te dói o sonho?
Há um cinema: a perspectiva do instante
multiplicado em jogos luminosos.
Um teatro perdido: há a argila dos relógios, o
truque dos corpos ausentes,
o cavalo vestido de asas e o fósforo da música
de Erik Satie.
Por que me dói o sonho?
É o vidro, o efeito de cena, as tintas que são
o desjejum do pavão real,
a própria música de Satie e os muros bem
próximos das palavras que são livres de inquietude…
Para onde fomos?
19.
As ruas mudam de lugar.
Algumas voam com seus arranha-céus às costas.
Os hospitais são as testemunhas do horror,
embora seja nas escolas onde todos se alimentam de desastres.
As versões derramadas da dor olham as escadas
que passam como se a loucura não durasse mais que o olhar.
Porém a loucura é uma viagem no submarino da
melancolia pela telepatia carnívora dos ossos.
Quando a casa fala seus impulsos são de
transmutação.
Sobre a longitude das sombras cansadas e a
arte da velocidade sediciosa eu descubro o oxigênio de tuas formas.
Por isso a espessura das coisas invisíveis
nada pode contra a ranhura aberta de teu sexo.
Por isso o acaso mantém no centro da cidade
uma caverna somente para teus princípios ressoantes.
E teus redemoinhos pagãos.
E as orelhas atraídas pelo perigo do silêncio.
Por isso estão proibidas as câmaras
fotográficas enquanto o universo sonha com teu corpo interminável.
20.
Há que começar a
filmar o instante quando ele se põe a descansar. O universo como uma película
marcada pelas chuvas. O aguaceiro das vertigens. As janelas com o azeite íntimo
de suas palavras e a vertigem da fundura transmitida como se o pântano não
fosse mais do que dois lagartos fazendo amor. Há que começar a depositar no céu
os ovos da nave que reconhece nossos passos na terra.
21.
A lua cheia de assombros e o espelho pesado
passam uma vez mais por aqui
carregando as sombras artificiais e o gorjeio
de tantas vozes confusas.
Um homem permanece nu
na casa do vazio,
o mesmo vazio giratório,
a mesma jaula soltando o perfume que inunda a
memória,
o mesmo retrato da família desaparecida
e a justiça buscando seu leite quando já é
outro o alimento do mundo.
Porém o homem permanece: como se houvesse algo
novo na rotina de seus signos desconjuntados.
O homem e seu intérprete.
O homem e o vômito de suas relutantes
evidências.
O homem detido até que prove uma singularidade
de pernas e cordas vocais.
O tempo perdido faz com que os clandestinos
tomem seus trens, os criminosos redijam suas memórias, os amantes esqueçam as
lufadas do perigo.
O mesmo homem cada vez mais longe de si.
Um que pensa que se atreve a morrer.
Um que soletra palavras como se fossem a
última sentença.
O último homem esquartejado por sua imaginação
e o espelho inundado de cicatrizes móveis.
22.
Ela me chamou até aqui.
Os espectros cozinham o impossível.
Seu rosto é azul como uma agulha delirante que
perdeu a bússola.
As noites retrocedem para além dos limites da gramática.
As pernas estão em meus ombros e o tempo
recita anos de vertigens.
Não me importa quanto perdurem as estações.
As linhas que saltam do horizonte para suas
mãos.
O pêndulo das constelações.
A efígie das areias mudando de cor a cada
escultura de riscos que deixo na praia.
Eloquência de minha desesperação, não importa.
Ela me chamou até aqui.
Ninguém poderá apagar sua ausência.
Sequer resumir os efeitos de sua floração em
meus desertos.
23.
Por que te dói o sonho?
As vozes apertam a pele do silêncio.
Tudo é feito de uma ciência incerta.
Pesadelo de palavras e sentenças.
Sombras em fuga buscando inventar signos mais
velhos.
Destino impertinente.
Exigências do acaso antes que seja demasiado
tarde.
Amanhã está longe de ser outro dia e os
espelhos saíram todos para pescar.
Não importa. Os corpos são um perigo quando
não os podemos tocar.
Perdi o endereço do mundo em que vivo.
Esqueci os presságios. Caminhei por uma
biblioteca de folhagens de fogo.
Um dia na catedral de Sevilha, outro nos
degraus de Monte Albán.
E logo entre as árvores andarilhas da Ursa
Maior.
Há tanto tempo me encontro nas mãos da viagem
que já não sei como iniciar outro curso.
24.
Os dias não fazem perguntas.
Minhas dores não querem saber da sabedoria
enlouquecida da arte.
Dos ramos do abismo. Ninguém escuta a
orquestra dos extravios.
Com que roupa te vestes para as descargas
elétricas do amanhecer no centro de São Paulo?
Ou na neve vítrea de tua passagem por
Cincinnati?
Desde quando deixaste de estar aqui?
Somos as pedras asfixiantes de um
quebra-cabeças de cidades submersas na névoa, com suas sílabas fechadas e os
cartéis ilegíveis.
Como o vertedouro do próprio diabo que
arrancou os corpos de suas sombras enquanto o sol despertava.
Por isto não te alcanço. Por isto me dói a
mesa, a comida, o leito dos sonhos.
Por isto a justiça perdeu suas datas. A moral
é uma deusa a quem ninguém sacrifica uma pedra que seja.
Por isto não há mais como extrair identidade
dos homens.
25.
Não há como incendiar as sombras.
Eu necessito teu corpo. A casca saboreada de
teu ser.
A memória ruborizada de tua loucura.
O jardim perfumado de teu sangue.
As estações do prazer e a língua secreta dos
desejos.
Uma dezena de pérolas com sua vidência e a
evidência de teu gosto impenetrável.
A roupa insuportável das alucinações,
e a violenta resposta do mundo à botânica:
mercado e noticiário.
Por roubar um sonho a árvore foi condenada a
repetir seus mesmos figos a vida inteira.
A vida inteira. A vida inteira. A vida
inteira.
Por roubar um sonho.
26.
As imagens cortam seus pelos como se fosse um
disfarce contra as corujas.
As lenhas crepitam, azunhando, sangrando um
cenário de perdas secretas
como a caixa preta da abundância,
as janelas curiosas que espreitam bem lá de
dentro,
os vidros azuis do sonho e os morcegos vistos
por todas as partes,
a morte sorrindo como se tivesse chegado ao
fim
e os pratos vazios na mesa.
A névoa trouxe o chá preto ao lago montado nas
costas do abismo.
Quisera fazer uma fogueira com o espinhaço
desse espelho interminável.
Máscaras e ovos. Sortilégios que são um baile
de odaliscas que é a gravidade diabólica dos olhares.
A cena está repleta de pianistas.
Há que criar um aroma novo.
Um desejo seminu que nos olhe de relance.
Um palácio na pele. Uma maçã de ouro. Um grito
de orgasmo.
27.
As estrelas recordam que a morte não tem fim.
Na escuridão da página começou a aparecer uma
bruxa na ponta dos pés.
Há em sua pele ramos que necessito desatar,
porém como lhe dizer que não volte a olhar
para mim?
Chega de ilusões. Minhas visões querem dormir
de pé.
Não quero amanhã te escrever. Um dia, quando
eu chegar bem perto de ti,
um dia, isto sim, provaremos de um outro tipo
de mundo.
Creio que houve uma noite imprevista em que me
indagaste: quem és?
e eu,
teu monstro esquecido:
nada entre nós é
insondável.
28.
Eu tenho loucas gritando na porta,
o terror das respostas na ponta da língua.
Minhas táticas de reconhecimento de incerta
racionalidade,
a realidade e seus ardilosos conceitos.
As máquinas de café e a janela aberta,
o pássaro vindouro e o mobiliário de plumas
dos voos perdidos.
Por que teus cálculos são sempre de regresso?
Não me arrependo de ti, porém jamais pensei em
regressar.
Estás em minha vida muito além das
circunstâncias
e as trevas chegam até aqui sem
intermediários.
Como o acaso acossado? Como um experimento do
instável?
Igual ao vento e sua carta de insurgências.
Uma caverna manuscrita. O logaritmo do sonho.
Um voo longe ⎼ longe ⎼ de chegar a parte alguma.
E as mulheres como granadas de mão, um
fracasso da multidão
e o relâmpago ilusório,
longe de si mesmo,
tornando inumeráveis as provisões da
esperança.
Já não sei onde posso morrer tranquilo porque
a morte me visita com seus códices e não me quer matar, mas sim levar-me ao
aposento de seus suores frios.
Ela não gosta, porém eu morro aqui mesmo.
Que se dane a morte.
Não escuto nada.
Ela não me serve para nada.
Que venha outra. Outra mais. Quantas.
29.
E elas foram chegando, as sombras imensas,
desciam por todas as partes da casa,
intermináveis horizontes de espanto. Elas,
com seus gritos campestres, estrelas úmidas,
cabelos noturnos avançando pelo pátio,
desatando os lugares esquecidos e os ramos da
visão.
Repartimos as vozes. Não há porque temer a
catástrofe.
Um mundo começa a desfazer-se de suas formas
na destruição de outro,
sem deixar-se morrer por morte que não o
mereça.
Elas continuam sonhando com nossos espectros.
Agora que já não sabemos o que fez de nós a
fogueira dos umbrais.
Agora que o acaso aprendeu a repetir-se.
Prometemos em sacrifício algo que não sabemos
o que é.
Amores humilhados. Quimeras desvirginadas. Magia
retrocedida.
Como a intromissão de uma realidade em outra.
30.
A rua fica aberta.
Retornam as aparições.
Umas sombras põem ovos.
Outras cozinham os cabelos de uma santa.
As janelas se precipitam de seus olhos de
vidro.
Pescoços de meninas sem rosto são dados como
elegíacos.
Uns rebeldes sangrentos elegem o mais
longínquo dos destinos.
A cobiça é amarela e sua escritura ilegível.
É verdade que minuciosamente descrevo os cestos
vazios da tragédia do amor,
porém é melhor que olhem o mais breve
possível,
pois a verdade já está por transcorrer
e ninguém poderá saber o que fará com os fiéis
a mascarada guardiã dos artefatos luminosos e das lágrimas empoeiradas que
improvisam as filhas negras na rua gelada.
Ninguém. Nem mesmo os representantes da
herdade das premissas.
31.
As contrassenhas perdem seus colibris.
Já se foram os nomes do abismo.
Ninguém impede a passagem de teu nome. Essência
proibida. Queimante silêncio que muda de lugar os móveis de tua paixão.
Voz desfiada radiante transparente quase de
todo invisível.
Casa transbordada de motivos. Corpo que perdeu
o sentido como uma lista de chamados.
Livro quase chegando ao mar.
Eu te quero aqui. Não me importam as tuas
formas.
Quero te amar na feira interminável do ser.
Onde te alcanço o mundo jamais deixa de estar
em mim.
O cenário não passa de um despojo queimante.
Estamos todos à margem de uma fábula de
caveiras.
Não há mais alguém a quem extrair um parágrafo
de ajuda.
De outro modo o mundo é uma casa sem dono.
E nós somos os pés de um personagem avulso.
Caminhemos até que a noite compreenda as
formas de seu silêncio.
32.
Anda com tudo. Não me deixes em casa.
Já não tenho por que visitar fantasmas.
Já não quero os sinos confusos do desejo.
Cada dia se enrosca em nós como se fosse
sempre.
Os dias são noites sem sonhos iguais às noites
que não sabem o que fazer com seus contrabandos de imagens.
Cheguei até aqui para saber o que se passa com
teu sonho.
Tua veloz desesperação e a árvore esmeralda da
presença dos mitos.
Foi como visitar as entranhas da imaginação.
A mesa das vertigens. Os números secretos. As
senhas sem pressa dos mistérios crescidos.
Que tenhas retornado à minha saída dos
espelhos, das redes carregadas de horizontes e dos abismos postais,
não importa. Ninguém mais do que eu invadiu
teu campanário.
Ninguém foi mais implacável com teu deserto e
o som do outro lado de teu mundo.
Ninguém, e as folhas do sonho sorriem com a
descoberta da paisagem cravada nas janelas de teu corpo.
Não há mais nada.
Foste uma vez mais embora tão logo retornaste.
Outra vez o vento. Outra vez o mistério.
Até mesmo a morte um dia perde seu instrumento
de precisão.
Olho a cratera de sua magia.
Não quero saber de mim.
Sonho com uma noite em que o amor entrou para
escavar as paredes soltas da realidade,
e graças a isto retorno a ti.
Porém já não estás.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
∞
Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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