OLUTÍPAC 6: O QUE QUER QUE VENHA PELA FRENTE
Em uma tarde chuvosa, dois trapaceiros se encontram na
Pastelaria Proust, nas proximidades de um atacadão que se erguera onde antes
fora o glorioso Cine Azteka. Um deles (Quem? Quem?) tamborila na mesa, enquanto
o outro entrança suas provocações e juntos mascam uma mistureba picante.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Pois é, meu caro… Nada mais incurável do que a ignorância
satisfeita… que vai cresceeeeendddooooooo… Quanto maior o progresso, maior a
ignorância… É um fenômeno paradoxal que nunca foi estudado… E pelo visto… nunca
será, em face dessa tendência globalizante…
ANSELMO PÍCARO ⎼ Ora
Xavier, nosso obituário é perpetuum, sempre lavramos o mesmo fim para um
princípio que inexplicavelmente volta a atuar. O cinismo biográfico nosso é
tanto que jamais aceitaríamos as razões da queda do império nazista. Como não
subornar alguém neste país, Xavier?
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Nada melhor que uma jangada singrando à beira da praia, a
meio de diluvial chuvarada, e batida pela desenfreada ventania, pra fazer a
paradoxal promoção do totêmico Circo Cyclame!… O Paradoxo faz parte do Circo.
ANSELMO PÍCARO ⎼ O Paradoxo nasceu e se criou no
picadeiro, alimentado com leite de leoa. O primeiro baque que ele sofreu na
vida foi quando proibiram o uso de animais nos circos. Desde então o Paradoxo
construiu sua jangada e tem singrado alagamentos e corredeiras por todo o
Planeta.
XAVIER CHAVIGNY ⎼
Agora virá o
novo baque: vão proibir o uso de anões palhaços… A Comichão dos Direitos
Humanos da Haia dirá que se perpetra a humilhação de minoria discriminada… uma
minoria tão mais aguda, porque o volume de seus integrantes é ainda menor que o
das minorias de pessoas normais.
ANSELMO PÍCARO ⎼
Os canários do Rei trinam seus mistérios deformados, o falsete
permanente de seus discursos de ocasião, com as veias rasgadas de nossa América
mal encenada. Os mares que aqui gorjeiam nunca viram um espelho. Conduzimos uma
caravana de silogismos banais e seletas hipocrisias no lombo da história. Somos
uns notáveis traficantes de cortinas de fumaça. Falsificamos tabuadas, alvarás
de funcionamento, santinhos e cartelas de planejamento familiar.
XAVIER CHAVIGNY ⎼
É sempre assim… Mediante medíocre sofisma, charlatão siciliano ludibria
a cigana adolescente… E querubim arranca a guirlanda da boca da quimera. O
presidente Xipong está sempre de olho… Nunca dê o primeiro passo na China pra
não ter de marchar mil milhas. Lance
a calcinha de Lili Fong pela janela, e deixe os hai-kais na cristaleira. Quem
quiser contar cruas verdades ao povão, deve falar baixinho… E deixar o motor
ligado. Que o Vesúvio amanhã… Sabe-se lá.
ANSELMO PÍCARO ⎼
Não se deixar nunca vencer pela insônia. A cristaleira em sua carcaça
vítrea oculta os melhores segredos do alumínio e a fórmula perdida de um antigo
barbitúrico. Quem temer bala perdida que trate de aprender a engabelar
epitáfios. Os embriões proibidos bailam todos no porão. Uma caverna de prata
amadurecida abre caminho no cérebro de teu mapa em prantos. Por aqui, por aqui, sussurra a tatuagem
desbotada na coxa esquerda de Lili Fong, não
diga ao Vesúvio aonde vamos.
XAVIER CHAVIGNY ⎼
A tatuagem desbotada na coxa de Lili Fong é uma mandala do Tibet. Um
mandarim tarimbado sempre acha a maior graça nas piadas do Presidente Xipong.
Toda raposa tem seus dias de sorte. Mas isso não deve assustar as galinhas: o
pior vem depois. Enquanto a Sereia canta o seu maxixe fatal na tardinha
tropical, o jangadeiro lê o jornal e se coça com ele enquanto saboreia uma
tortilha xique-xique de saúva com dendê. Piano sem dentes, lira sem cordas,
Glória sem cachos, cometa sem rabo.
ANSELMO PÍCARO ⎼
O vento alimentando o engasgo do sol, o jangadeiro se entretinha com a Folha do Norte, dando notícia de uma
querela envolvendo duas faquiresas que tentavam sabotar sucuris e pregos uma da
outra. 120 dias de jejum era então a novela mais lida. Mas logo vieram os
militares e proibiram as urnas de vidro. Cerca de duas mil e quinhentas
passistas lamentavam que o Cisne fosse encontrado afogado em uma poça de gim.
Adelaide, a tigresa passa-fome, orgulhosa campeã mundial de jejum, degustava
sua sopa de ostra com tacacá e um postal com aquarela da águia da revolução que
lhe enviara um assessor de Xipong. Também para ela a China agora seria o
limite.
XAVIER CHAVIGNY ⎼
O jangadeiro é antes de tudo um cético, e se tortura com o disparate de
se engraçar por uma sereia, e, na sua ânsia, sente necessidade de se ater a um
compromisso com a gostosa fantasia, na medida em que seu verdadeiro destino é a
pesca. A sereia seria uma
metáfora para a pesca, embrulhada na rede… E ele, para acabar de vez com tão
tortuosas divagações, a enfiou, por fim, no samburá.
ANSELMO PÍCARO ⎼
Guardada ali na escuridão fantasmal de algas e vislumbres costeiros,
definha a sereia sem mais noção das marés. Seu busto talvez um dia venha a ser
a carranca de proa do baleeiro com que sonha Lázaro dos Anjos. O poente abre
uma curiosa porta no quintal dos devaneios. Lunetas e astrolábios se embriagam
em meio a visões que surgem pelo convés apergaminhado. Uma súbita aparição no
horizonte pode vir a por fim em uma história envelhecida e desgastada. Quem duvidaria
se as pausas cardeais se encontrassem sob aquele toldo estrelado em meio a tudo
que julgamos não passar de inflamada deriva!
XAVIER CHAVIGNY ⎼
A súbita aparição crepuscular se aproxima, e entra na taverna onde
divaga Lázaro dos Anjos. Diz-lhe Frei Feijão: Lázaro, pega a sereia e solta-a de novo ao mar. Libera-te da volúpia
insana e insolúvel. De todos os pecados, o pior é o que não pode ser realizado.
Lázaro responde em voz rouca: E o Livre
Arbítrio? É um Direito Divino! Eu quero meu Livre Arbítrio para me perder em
louca paixão com a minha sereia!!! Frei Feijão se torce de rir: O-Ro-Roooo!!! Paspalho, serás condenado… sem
ter podido gozaaarrrr!!! A-Ra-Raaaa!!!”
ANSELMO PÍCARO ⎼ Ambos ficariam assim a noite
inteira, arranhando as paredes de seus princípios, não fosse o grito que
ouvimos sair do samburá, um grave uivo assombrado como se a árvore inteira de
uma alma houvesse desgalhado. Um grito único e suficiente para descabelar o
semblante de todos ali presentes.
ANGINO VENTURIS ⎼
Que susto me deu o fantasma petrificado e gélido dessa múmia… Como um abuso de
presságios, por um milésimo de instante senti mil formas tornando inútil a
minha beleza. Quem a pôs aqui, em meu samburá-cafofo, em meu talo-casebre?
ANSELMO PÍCARO ⎼ Ah o ouriço-cacheiro, mascote
improvisada por impropriedade ou desacato do destino. Angino e seu olhar de
cinematógrafo bifurcado. O que se passa, serafim do capeta? Por que gritas
assim?
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Angino
está esperando que chegue Michelangelo e o pinte na Capela Sixtina…
O-Ro-Roooo!… O encontro pode se tardar por milênios… Mas um dia… O processo do
tramalhão é um verdadeiro furacão, começa num pequeno remoinho, e vai se
enrolando e desenroscando, sabe-se lá o que vem por aí… O tramalhão repete
assim a formação do Cosmos, com palavrinhas soltas aqui e acolá, caracolando,
caracolando, e que ao acaso se vão juntando, se misturando em pequenos bolos,
se formando e se desfazendo, até que um dia lemos a frase: FIAT LUX… E então BANG!!! Dá-se a terrível explosão… E surge o
MUNDO!…
MUNDO ⎼ Para acabar
de vez com o julgamento do Homem temos que passar a faca no códex. Na falta de
um consenso da totalidade foram erguidos monumentos por toda a parte. O todo
agoniza com contrações nas entranhas. Vamos traçar aqui uma nova linha do horizonte.
Cada um de volta a seu leito, mascando os abismos promíscuos. Xavier Chavigny
se ocupa do Paradoxo. Caberá a Anselmo Pícaro dar melhor rumo às vertigens.
Lili Fong desistirá do bico de afinadora de pianos e finalmente poderá montar
sua galeria, graças a uma herança súbita cuja origem não cabe a nenhum de nós
discutir. Angino, caso queira continuar conosco, terá que entender que não é
fácil a vida de mascote de tramalhão. A Lázaro dos Anjos foi dada a
oportunidade de levar a faquiresa Adelaide ao encontro de Xipong. Frei Feijão
que se aquiete, pois não voltará a ter voz nessa jornada. Ah sim, já quase
esquecia: Michelangelo já não atende por este nome e a Capela foi arrendada
pelo Banco do Vaticano. Agora, cada um com seu trigal, cuidem bem das palavras
e dos convênios do espírito. BANG!!!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Pelo visto não sobrou mais nada a
se providenciar, e falta só Eudóxio baixar a cortina. Vamos lá, rapaz, gira a
manivela!…
EUDÓXIO ⎼ Pois então, aqui vai… Giro pois a manivela… e…
nheng-nheng-nheng…
CORTINA ⎼ AAAAAAAAAAAAAAAAFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFFF
MUNDO ⎼ Ah que
absurdo é morrer antes do tempo!
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Deixem que eu me apresente e corrija essa falha de andamento. Fui convocado às
pressas para ser o roteirista de nossa viagem, e talvez por isto Xavier não
tenha compreendido bem do que se trata. Eudóxio não está mais conosco e
tampouco necessitamos da inesquecível cortina do Circo Cyclame. O maior
objetivo de nosso Acaso é cruzar o planeta neste vagão que é tanto do mais
fantasmal trem de que tem notícia a história ainda por vir quanto o prenúncio
de uma narrativa já vivida em um passado nada recente. Aqui as cenas passarão
por nós recortadas como um trailer, porém não haverá calendário ou marcas
sacrificiais de mudanças de capítulos. Deixemos o tempo lá fora, com seus
pequenos delitos de consciência, e nos dediquemos à esfera comum da imaginação.
Como a viagem parece não ter fim, que venham todos, cada um contar a sua
própria noção dos acontecimentos.
LOTÉRIO ⎼ Aí está, Olegário, você dispensou o Ponto Euxímio, que
era o único que zelosamente guardava em seu seboso bloco todos os podres e
sublimações por que passam os componentes de nossa trupe inumerável, a maioria
dos quais ou esqueceu, ou não quer lembrar, suas manigâncias e vicissitudes. A
começar por Dona Gaudéria, a domadora gorducha de cartolinha e chicote, e seu
urso Bruno, que só come chocolates Boroshenko,
da Ucrânia, importados por um preço escorchante. E isso, embora os chocolates
russos Gaspadin, duros e saudáveis, robustos e bem mais baratos, custem metade
do preço de seus congêneres. E porque, Dona Gaudéria, essa despesa suntuária
com chocolates prum urso iletrado?
GAUDÉRIA ⎼ Ora, Seu Lotério, não vou deixar a ganância da gerência
impor chocolates de pedra pro meu precioso urso siberiano que iria ter seus
dentes quebrados com os chocolates bolcheviques.
MUNDO ⎼ Tratem de
organizar essa colmeia de sutilezas encardidas. Nosso destino final fica um
pouco mais além do infinito. Ouçam a voz astuta, embora velhaca, de Olegário
Trombeta.
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Antes da próxima curva quero que conheçam a parteira Gumercinda, que cuidará de
facilitar a passagem para o exterior do que temos de pior em nosso íntimo.
Também lhes apresento o poeta das cicatrizes manuscritas, Anselmo Pícaro, cuja
alma vaga insone pelos corredores móveis de nossa máquina. Não se deixem
confortar por suas peripécias, nem mesmo por minhas matreiras palavras. Estamos
aqui para descascar relâmpagos. Nada mais.
ANGINO VENTURIS ⎼
Cala a boca, Trombetinha. Prepara a minha papinha de ervas, que estou faminto.
Como posso ter saído do ministério e vir parar nessa chaleira com rodas…!!!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Angino acha que o roteirista é
cozinheiro. É preciso organizar a equipe pro vagão que por ora, além de
perdido, está parado. É preciso garçom, cozinheira, e um mecânico para engatar
o gancho do vagão nalgum trem desavisado. Feito isso, a trupe poderá seguir viagem, e terá público
garantido, pois certamente os passageiros do trem virão ao espetáculo.
ADELAIDE ⎼ Esse Olegário não escuta ninguém.
Sugeri que chamasse Madame Travanca para ser nossa cozinheira, não me ouviu.
Veio esta… Como é mesmo o nome?
ANSELMO PÍCARO ⎼ Adele Castanheira.
ADELAIDE ⎼ Que coisa! Espero que nos valha.
Travanca sempre cuidou bem de minha dieta.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Que dieta? Não levas a vida a
jejuar?
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Atenção todos! Vamos concluir as apresentações. Travadão Limeira cuidará da
máquina. Graças a ele logo daremos partida à nossa aventura. E tudo o que
precisem, não deixem de pedir ao nosso Valete de Ouro, ele que por anos se
destacou como o grande garçom do Palácio das Cartas Relidas.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Atenção,
Olegário, está chegando de fiacre o grande declamador Xavier Chavigny, de chinó
de Voltaire, roupa de La Fontaine, e bengalinha de Luís XIV. Dará um chiquê
especial à nossa viagem, as Peruas finas vão fazer xixi d’emoção e os grandes
luminares da academia virão todos correndo pro nosso vagão. A tifosada cerca o
fiacre, aos brados: Chavigny!!! Chavigny!!!
Chavigny está um pouco irritado.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Desgruda, gente, senão não posso abrir a porta! Ai,
Postilhão, estala o chicote pra assustar os moleques trombadinhas e as
deslumbradas!…
POSTILHÃO [aciona o chicote] ⎼ Fora, malta lafranhuda, saiam
todos da porta, pro Chavigny poder apear… ZAFT-PAFFF!!! ZAFT-PAFFF!!!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Preciso duma escadinha, pra apear. Aí está [três moleques
baixaram o lombo, em sequência, improvisando uma escadinha], agora sim, posso
descer.
POSTILHÃO ⎼ Silêncio contrito, respeitável público!… Bato o tacão da
bota três vezes, e Chavigny começa a recitar: TAC! - TAC! - TAC!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Chorai, triste, oh triste urutaus!… Tau-Tau-Tau… Oh
vós pissirrostro noturno… pássaro sagrado!… Pia-Pia-Pia!!!, pássaro amado da
Titia…
PROF. AGRIPA ⎼ Urutau não, trata-se de… urutu!… Uma cobra venenosíssima…
PROF. BENTO ⎼ Titia não, trata-se de… Thétis!… Filha de Urano e de Gea, a
bela namorada do Vasco da Gama…
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Thétis tem
belas tetas… Belas tetas tem Thétis…
PÚBLICO ⎼ BRAVOOOOO!!!! BIS!!! BIS!!! BIS!!!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Gravei, bem cuidado,
vinte mulheres / nas roldanas dos versos meus. / Ah poeta, no mundo, quinda
mais queres? / Quem ama a tantas é como Deus. / Pororoca mais santa eu fiz no
balde da titia, / quem me dera, quem me dera, livrar-me dessa corneta.
PROF. AGRIPA ⎼ Que safado, chupando versos do Mangabeira, a eles misturando
suas asneiras.
PROF. BENTO ⎼ Aquele nefelibata nortista?
PROF. AGRIPA ⎼ Todo chafurdado, mas é. Reconheci de supetão.
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Que bom quando a escrita não segura as frases soltas. Obrigado, Xavier, os dias
passarão melhores graças ao timbre caloroso de Xavier Chavigny. Travadão, faça
a última conferência. Vamos dar a partida.
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼ Mas
Olegário, eu sou maquinista, não sei soltar palestras. Pra Conferência melhor
Dr. Barbão, aqui presente na plateia, para brindar nosso refinado público com
sua ciência profunda.
DR. BARBÃO [levanta-se, adentra o
palco inexistente] ⎼ Muito grato. Senhoras e Senhores, falarei sobre a
evolução dos macacos e da origem da espécie humana. Comecemos há dois milhões
de anos…
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Dois milhões de anos??? É muito tempo!… Por favor, douto Barbão, comece a
partir da última quarta-feira…
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼
Minhas conferências são científicas. Duram pelos menos duas horas. Melhor
passarmos pruma récita do Chavigny, pra não atrasarmos a partida. Solta o
rouxinol, Chavigny!!!…
XAVIER
CHAVIGNY ⎼ Besar la mano
me voy
de la Reina Urraca,
sentada en la butaca
y despedirme del Rey Barbón…
de Galicia y Aragón
merced vos sea propicia
y de la muñeca
si bien me credes
de Dueña Mercedes
PARTIDA ⎼ Simbora daqui.
Piuuuííííííí… Solta o fole, mexe-mexe… Sacudindo a moleza, esperneando a alma
toda, vamos sem rumo, mas vamos.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Lili Fong dobrava suas calcinhas e
falava baixinho. Faquiresa Adelaide conversava com as suas boiunas e sucuris.
Lázaro dos Anjos sentado na última mesa do vagão-restaurante amontoava barquinhos
de papel, numa conversa miúda consigo mesmo, sabe-se lá com que santos se
pegava. Certo silêncio quis bancar um desconforto, mas foi coisa de dois
tragos. Travadão Limeira e Adele Castanheira foram trabalhar em suas
respectivas caldeiras. O público ressonava como um dragão que escapara de um
banquete de fábulas. Ao que tudo indica logo começaríamos a recolher os relatos
da expectativa, aquelas imagens tão sonhadas por nossos decantados convivas.
Valete de Ouro distribui em cada mesa um libreto com sugestões de comidas e
bebidas.
ADELAIDE ⎼ Meninas, não estranhem o
sacolejo. A viagem será longa, porém jamais lhes deixarei faltar sua papinha de
vitela moída e os nacos de fígado de ornitorrinco.
OLUTÍPAC 5: EXPECTATIVA DOS RELATOS
DR.
BARBÃO ⎼ Houve um súbito
apagão e o vagão ainda persiste no escuro… Mas eu, com minha caneta-lanterna,
posso escrever no escuro. O-Ro-Rooooo!!! Estou fazendo estas anotações no
cadernão que comprei pra escrever meu tenebroso Vagão Fantasma… Ora! O Vagão
Fantasma é uma projeção karmática do vagão onde estou sentado, que é o
mesmo Vagão Fantasma que ora escrevo,
mas não é o mesmo, porque o Vagão
Fantasma é uma alegoria do trem onde estou sentado. Ou… o Vagão onde estou
sentado é que é uma alegoria no meu relato Trem
Fantasma? E quem sou eu, afinal? Um personagem?…
CADERNÃO ⎼ Eu mesmo não saberia descrever
com igual propriedade de conflito a cilada que te arrasta para o centro da
narrativa. Um vagão reproduzindo-se em outro como uma pele que se descasca,
raspando a página, na busca de que se revelem oferendas e sacrifícios, e que eu
me descubra quem sou. O personagem que há muito planejo em cada nova história
que transcrevo como um ritual de iniciação. Em qual vagão posso estar ou mesmo
quantos sou, pois desconfio que não poderia seguir viagem sendo apenas um.
Haverá algum dilema em roçar os versículos de cada mínimo escombro da memória,
projetando um limbo esgalhado em que me encontro comigo mesmo em diversas
cenas, deslumbrado náufrago de um amor próprio em soluços? Não me negues uma
resposta, meu caro Barbão. Quantos ainda seremos, nessa clareira em movimento?
DR. BARBÃO ⎼ Era
o que me faltava… Meu Cadernão agora s’escreve sozinho, e ainda me
apronta impróvidas questões… Mas preciso manter sangue frio, vou responder-lhe,
por escrito, naturalmente, no próprio: Pois é, Cadernão, creio sermos por ora
umas 22 pessoas… Umas magras e outras gordas… Algumas gordas de pernas finas, e
outras magras de pernas gordas… A que me atrai é uma domadora gorduchota
encantadora com coxas gordas… Mas ela é dona dum ursão colossal de dentes e garras terríveis,
e não ouso m’aproximar de sua formosa dona, gentilíssima dama de barrocos
encantos… Ai! Que tormento de paixão!… Que devo fazer, oh!… Cadernão?…
CADERNÃO ⎼ Cuidar bem da recíproca ainda é a
melhor maneira de ser agraciado com as benfeitorias do acaso. Poucos estamos em
condição de descobrir novas moradas. Os primeiros deuses se desfazem de seus
totens de cobre e esvaziam os caminhos, para que possamos encontrar um outro
ser vivente que nos saúde dentro de um rosto que é o mesmo nosso. Somos aquilo
que criamos, quanto mais cientes nos mostramos de que é impossível fazer o rio
regressar à sua nascente. Despertamos um ramo de fogo em cada ato e nos
alimentamos da hemorragia de nossos sacrifícios. Não te deixes levar, meu caro
Barbão, pela confusa veracidade dos fatos. Toma a tua espada e com ela sagra a
domadora que te excita. Desnuda os teus receios e converte o ursão colossal em
fanático defensor de tua profana jornada.
DR. BARBÃO ⎼ Pois,
Cadernão, és um idealista, o que te agradeço, pois sendo publicado com meu
nome, me garantirás a admiração dos grandes vultos das letras e da
filosofia, e a elite mais fina apreciará meu espírito cético, amargo sim, mas lúcido!… E nobre!… Ganharei uma
cadeira na Academia e o Prêmio Nobel!… Mas não conquistarei o coração da minha
fatal domadora, que tem por perfumarias o vão beletrismo, coisa de chá e
bolacha madalena na Confeitaria Garnier… Minha domadora é uma amazona atlética
que maneja o chicote, sabe o que quer, conhece os seus direitos, e não tem
tempo a perder!… Ela quer um homem de ação!… Desassombrado e decidido, um James
Bond, um Lourenço da Arábia, um Robin Hood, um Marlon Motoqueiro, ou então… Um
Casanova!… Aquele safado!… Com uma conversa medíocre, engambela e come todas as
mulheres na aprovação universal dos pamonhas… Mas eu não!… Eu quero a domadora
pra mim!!!… Bem sei que terei de enfrentar o urso… E enquanto enfrento o urso…
Ela e o Casanova… ah!, Dor de minhas dores!… Ai!… Cadernão!!!… Com minhas
lágrimas torrenciais te molhei todo, e as letras se borraram… Você está usando
tinta azul Pandora!… Que se dissolve com água… Ai! Talvez melhor assim,
esquecerei meus males!… Pra sempre, e nunca mais…
CADERNÃO ⎼ O mundo glub não cessa blug de
afogar-se em glub glub lágr d si mesmo, as minh vã s perd eu j nã m ach… blug
repit me s pr ios ecosssssss…
ADELAIDE ⎼ As minhas meninas dormiram. Posso
agora pensar no quanto devo a elas por me haverem livrado de um mundo de
estátuas antropófagas. Minhas pequenas sucuris de olhos correspondentes a
planetas esbeltos. Quando as conheci recordo que mascava ídolos como espigas
anônimas. Nada existia além da mentira do primeiro dogma. Meu corpo era um
templo fosfórico de medusas com úlceras e sonâmbulas, os homens com seus negros
pinos cravejados em minha pele. Tão próxima, tão próxima, do que me era mais
distante! Minha vida passava frente a meus olhos como um assombro ilegível. Ah
minhas boiunas, não fossem vocês eu ainda estaria empilhando torres, proscrita
como a sombra de um demônio.
XAVIER CHAVIGNY ⎼
Elas sabem disto, Adelaide. Eu também sou um hóspede do acaso e a minha vida
sempre foi assaltada por cortinas tanto efêmeras quanto deslumbrantes.
CADERNÃO ⎼ Barbão se levantou e se foi. Ainda bem, ou ia me afogar em suas lágrimas
torrenciais… A tinta azul das letras borradas pintou na folha dupla em que
estou aberto um mar cristalino… E um barquinho de papel ora surge e flutua no
mar azul… O papel usado no barquinho não é meu… É dum naco de jornal, e em
letras grandes, está escrito: NAUFRÁGIO DO TITANIC!… E então… Subitamente… O
barquinho naufraga!… A notícia do jornal era, assim, do naufrágio do próprio
barquinho!… Que representa o… Titanic!… Mas… No pequeno espelho oval do
muro… Surge a cara do Barbão!…
CARATONHA NO ESPELHO DO BARBÃO ⎼ Sim, Cadernão, agora
tornei-me um escritor que escreve livros… tridimensionais!… Superei todos os
avanços do cinema!…. Os leitores poderão ler meu Cadernão sem o ridículo
zoclinho de cartão com rodelas de celofane, uma verde e outra vermelha… No
Cadernão não precisa porque as imagens de papel são feitas em três dimensões!!!
Sou um gênioooo!!! O-R-Ro-Ro-ROOOOOOOOOOOOOO!!!…
ANGINO VENTURIS ⎼ Seu
Olegário, o Doutor Barbão pirou!… Está soltando gargalhadas guturais e se
dizendo ser um gênio!…
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Mas observe, Angino, o que está se passando. Veja como desponta na linha do
horizonte, tracejada ao centro da página tridimensional do novo Cadernão, a
barcaça de Lázaro dos Anjos, iluminada como se estivesse parindo o próprio rio
por onde flui. Se olharmos bem o barco tem a forma de um peixe, todo em madeira
pintada de variados tons de azul. Na proa Lázaro disseca os rumores de
tempestade e unta a paisagem à volta com palavras perfeitas compostas apenas
por vogais. Espie, Angino.
ANGINO VENTURIS ⎼ Seu
Olegário, capaz que o homem seja mesmo um gênio! Não duvido que aos poucos
vejamos saltar daquelas páginas as cartas de navegação que decidirão os rumos
de nossa viagem.
MUNDO ⎼ China! Nosso
destino se chama China. Isto não mais se discute.
LILI FONG ⎼ E não me
importa se vamos de trem ou de canoa, de camelo ou em dorso de andorinha.
Certas viagens eu bem sei que são cumpridas como um simples passar de páginas.
Outras requerem olhos bem fixos na sensualidade das lonjuras. Eu me guio pelas
estrelas que se retorcem dentro de mim. E me desloco como janelas visitadas por
uma caravana de luzes. Levem-me daqui, de um jeito ou de outro, que meu
Xiponguinho me espera.
DR.
BARBÃO [abre o Cadernão] ⎼ Que tanto ama Lili Fong o Presidente Xipong?… Um tirano malvado, inimigo
da Democracia Liberal… Dize-me, oh, meu Cadernão!…
CADERNÃO ⎼ Não sejas tão ciumento, Barbão… A
Juventude Cultural, e as Mulheres Libertárias, independentemente da idade,
sempre adoram os Heróis do Povo, e detestam os Oligarcas.
DR. BARBÃO ⎼ Andas muito estranho, Cadernão. Comprei-te há
muitos anos, após a primeira Grande Guerra, num sebo de Zurique… Já estavas
então bem velho, amassado, sujo, com marcas de dedos e garranchos
indecifráveis… Diz-me a quem antes pertencias ou… te rasgo em pedaços!!!
CADERNÃO ⎼ Sois um grande sábio, Doutor
Barbão, justo e bom, um Paladino da Ciência e da Evolução Eterna do Macaco
Ereto…
DR. BARBÃO ⎼ Não me enganarás assim tão fácil… Rasgo-te agora as
folhas iniciais, de garranchos ilegíveis, pra saberes que não estou pra
delongas… Lá vai!… RASP-RACT-RAAAAC!!!
CADERNÃO [em lágrimas de tinta] ⎼
AAAAIII!!! CRUEL… Glub… Glub… Meu glub glub primeiro dono era glebub glub
gling…
DR. BARBÃO ⎼ Pára de chorar… Estás borrando as letras da tinta
solúvel Azul Pandora!!! Estás destruindo meus preciosos apontamentos!!!…
ANGINO VENTURIS ⎼ Seu Olegário, avie uma solução presse bate-boca
descabido. Se perdemos o Cadernão ele leva consigo a pouca história que temos.
LOTÉRIO ⎼ Mas
que história? ‘Tás tresvariando, mascote dos infernos! Este empilhado de caixas
com rodas mal partiu e já teve uma crise de identidade, se imaginando barcaça.
Se as lágrimas do Cadernão nos engolem boiaremos em seu estômago como ossos
esburacados. O azulão Vermeer em que fomos esboçados muitas vezes se sentiu nu
e comovido com as nossas carências mais comuns. Desconfio que o que nos une a
todos neste vagão constelado de desvarios é a confusa esperança que todos
aleitamos no íntimo em conflito com as carnes mortas de nossos sonhos
definhados. Esta é a verdade!
ANGINO VENTURIS ⎼ Ai a verdade, a verdade, sempre ela a nos
desorientar!
GAUDÉRIA ⎼ Meninos, que tal se preparamos um número bastante rítmico com
saltos galantes e outras peripécias?! Vamos aquecer a lâmpada, alegrar a vida,
banhar a noite de pólvora. Angino, vá buscar algumas bolas de fogo. Lotério,
sai detrás dessa cara enlutada e pega ali o meu chicote de pelos de mamute em
fuga. Chamem todos.
LOTÉRIO ⎼ Mas se o filme mental for
tridimensional, morreremos todos na destruição do Alaska!…
DR. BARBÃO ⎼ Melhor
morreres queimado no Alaska, do que afogado no Mar Azul Pandora!…
GAUDÉRIA ⎼ Sossego uma pinoia! Mesmo com a tragédia que se avizinha, na
telona esvoaçante, eu ponho ali a linha de equilibrismo, a roleta para as
facas, um jogo de bastões e outros penduricalhos. Se vamos morrer que seja em
festa!
MUNDO ⎼ Ah que
absurdo é morrer antes do tempo!
LOTÉRIO ⎼ Que mundo mais sem graça,
sempre viciado no mesmo bordão!
LILI FONG ⎼ Eu só hei de
morrer nos braços de meu presidente!
LÁZARO DOS ANJOS ⎼
As espigas renascem com a respiração. A nebulosa pode ser deixada para trás
como uma lanterna míope. Interroguemos as figuras sombrias que em nossas
agonias vislumbramos. Muitos fantasmas são charlatões, como senadores em
campanha ou hábitos em procissão. Vamos rever quadro a quadro a dissimulada
fatalidade de uma mente disciplinada como a deste Barbobão! Mas antes alguém
ajude o Anão a descer do muro…
MUNDO ⎼ Ah que
absurdo é morrer antes do tempo!
LOTÉRIO ⎼ Seu Olegário, dá uma paulada
nesse papagaio de pedinte!
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼ Papagaio qual? O Mundo?…
LÁZARO DOS ANJOS ⎼
Profunda sabedoria a de
Lotério!… Nem Kant faria uma sacada tão perspicaz: O Mundo é um vão Papagaio!…
CARATONHA NO ESPELHO DO BARBÃO ⎼ Lex
sed Lex, Carapex…
ANGINO VENTURIS ⎼ Distraiam a gorducha, enquanto eu aplico um
corretivo no mundo. Xavier, canta uma lambada, faz a gorducha requebrar.
PÚBLICO ⎼ CANTA!!!!! CANTA!!!!!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Uma alma penada me
escracha, / me atazana e me faz pirraça. / Se eu assopro na tuba ela engasga. /
no estribilho é uma cangalha. / Vira e mexe pra cima de mim, / como um bofe de
senzala. / Vira e mexe pra cima que é bom, / vem pra cá, alma penada.
CARATONHA NO ESPELHO DO BARBÃO ⎼ Joga
a tarrafa… Tasca o pau…!
DR. BARBÃO [surdina] ⎼ Enquanto
Caratonha embasbaca o povão, esgueiro-me com o Cadernão ao sovaco, percorro
todo o trem até chegar ao derradeiro vagão, que é o bagageiro… Aqui, Cadernão,
ninguém nos achará… E poderei usufruir o maravilhoso mundo imaginário que eu
crio e escrevo em tuas páginas… Este mundo fictício… Bom e feliz…
CADERNÃO ⎼ Enganas-te, Barbão… Este mundo à tua volta é que é o imaginário, criado
pela imaginação coletiva de todos esses efêmeros bonifrates de carne e osso,
que se agitam um tempinho irrisório, inventam uma peça confusa, e muito presto
somem na poeira de uns poucos anos. Ao passo que os personagens em minhas
folhas podem durar séculos e séculos… Tal aquele Dom Quixote que vive até hoje,
enquanto Cervantes, aos poucos, passou a se tornar seu personagem, um assunto
para professores, um retratinho de enciclopédia. Dom Quixote segue sempre,
lutando com seus moinhos de vento…
DR. BARBÃO ⎼ Ao menos me deixa, perverso amontoado de
minha incontida imaginação, sobreviver um pouco em tuas páginas. Guarda para o
final da viagem o remédio radical contra as minhas heresias. Quero desfrutar ao
máximo do convívio com essa barcaça ferroviária cujo fascínio maior acoberta
nossos males de infância e outros truques da memória.
CADERNÃO ⎼ Deixo sim, aqui reservada para um
último momento, esta página em que desenho um perfil de Azazel. Espero que
ainda te recordes a história que um dia eu te ensinei a ler, do bibliotecário
de Almundanas que descobriu que a virtude maior dos verdadeiros talismãs é a
magia sinistra que guardam em si, pois quando, por intenção de motivos, são
quebrados, de imediato deixam de proteger a encomenda e desatam a causar-lhe
toda forma de dano. Cuida bem desta página, para que avances conosco até o
final do relato. Mas desde já deves saber a verdade…
DR. BARBÃO ⎼ …mas Cadernão, quantas vezes já não escrevi em tua
pele que não há verdade além das páginas de um relatório…
CADERNÃO ⎼ Não importa, pois aqui não
estamos tratando senão de episódios circunscritos ao mundo dos talismãs, em
geral infestado de fantasias e crendices de origens as mais improváveis.
DR. BARBÃO ⎼ Assim me deixas em tuas mãos.
CADERNÃO ⎼ Ao contrário, segues nas mãos de
teus escritos. Ainda que eu seja a tua semelhança, respondes por um outro em
teu íntimo que ao deixar-se forjar em tinta sacrifica a própria existência e se
multiplica como um ninho de oráculos sobre os quais nenhum de nós tem mais uma
só réstia de domínio. Agora voltemos para o encontro de todos, pois caberá a
ti, e somente a ti, evocar um encadeamento lógico de relatos, uma tripinha
mínima que seja de roteiro, uma cordinha com que amarrar os sopros e resmungos
de nossa viagem subterrânea…
OLUTÍPAC 4: A MAGIA SOBRE OS TRILHOS
ANGINO VENTURIS ⎼ Fechem rapidamente janelas e portas, não deixem
entrar os malditos mosquitos.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Malditos, malditos,
malditos mosquitos…
MUNDO ⎼ Ah que
absurdo é morrer antes do tempo!
DR. BARBÃO ⎼ Pois precisamos de um mata-mosquitos!… Telefonarei
pro Instituto Oswaldo das Cruzes.
EUDÓXIO [entra, fardado de
guarda-mosquitos, com bomba flit e bandeirinha amarela] ⎼
Não precisa telefonar, Dr. Barbão, cá estou eu, o vosso fiel guarda-mosquitos.
DR. BARBÃO ⎼ Mas ora, Eudóxio, você é Ponto!… Porque se
fantasiou de mata-mosquitos?… O-Ro-Ro-Roooooooo!…
EUDÓXIO ⎼ Eu
ERA Ponto, Dr. Barbão… Mas minha profissão está sumindo…. Face à nova
tecnologia eletrônica, que dispensa nossos serviços… Resolvi então adotar uma
profissão de que a atividade esteja garantida… Pois, enquanto houver banana, o
mosquito aparece. E, enquanto houver mosquito, será preciso mata-mosquito.
DR. BARBÃO ⎼ Mas… se os guarda-mosquitos matarem TODOS os
mosquitos… extinguirão sua própria profissão.
EUDÓXIO ⎼ Já
temos organizado um plano de sobrevivência… Passaremos a ser… mata-baratas.
DR. BARBÃO ⎼ O Mata-Barata é uma profissão multissecular… É o
tema, aliás, da imortal epopeia hindu: O
Mata-Baratha.
EUDÓXIO ⎼ Não
te esqueças que há muito eu sou um ponto fora do ponto, pois neste trailer não
há ponto e apenas no azulão de tua pluma é que me torno visível. Sou um
personagem de teu devaneio. O que quiseres resolver por aqui, terás que fazê-lo
com o roteirista. Mas agora, como mata-mosquitos sindicalizado, eu me sinto de
volta à ativa. Onde estão os diabos zunidores?
ANSELMO PÍCARO ⎼
Sob a orientação de Olegário Trombeta, todos ajudam na limpeza de um
espaço no vagão-restô, e trazem a urna de vidro com a cama de pregos e as duas
cobras. Agora finalmente teremos o início do jejum de Adelaide.
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Limpem bem este canto. Eudóxio já desinfetou tudo.
ADELAIDE ⎼ Toda a minha vida foi uma
preparação para esta exibição em movimento. Mesmo que eu tenha sido eleita a
campeã mundial de jejum feminino, não há desafio maior do que jejuar em
trânsito, melhor ainda em um trem que une o Brasil à China, duas repúblicas de
passa-fomes. Mas não pensem que utilizo meus dons como uma arma política.
Tampouco como uma ascese em busca de novos discípulos. Tudo o que faço é para a
completa diversão de todos, e inclusive dispenso quaisquer contribuições. Não
se deixem enganar, tudo o que eu preciso é da atenção de vocês, pois somente ao
desafiar a morte é que mais me sinto viva.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Sob o aplauso emocionado de todos,
ela se deita na urna que é então lacrada. Tudo funciona, ventilador, tubo de
respiração, o lacre, as cobras… Com vocês, Adelaide, a faquiresa de nosso vagão
perdido.
DR. BARBÃO ⎼ Adelaide
é uma heroína das artes de Circo!… Mas… temo pelas cobras!… Não sei se as
cobras terão a mesma capacidade de jejum. E… no desespero da fome, talvez
acabem atacando Adelaide!…
EUDÓXIO ⎼
Tenho um truque pra fazer entrar sub-repticiamente na urna de vidro moscas e
mosquitos, que serão apreciados pelas cobras.
DR. BARBÃO ⎼ Mas quem garante, Eudóxio, que cobras comem moscas
e mosquitos?… Isso é coisa pros sapos.
ANGINO VENTURIS ⎼
Quanta ignorância, sobretudo da parte do prático mata-mosquitos. As cobras
podem atravessar longas jornadas sem se alimentar, assim como os ursos. Elas
praticamente hibernam na urna dos faquires. O susto que elas provocam é que
funciona como a beleza do truque. O medo quase sempre é o maior perigo. Imagino
a profundidade da douta ciência desse Barbão de araque!
DR. BARBÃO [digno] ⎼ Tenho diploma, de pyrosophysico pela Universidade
Mímica de Brocoió, com laudo, alvará, e nihil
obstat, do Professor Ednésio Porventura. E saiu minha foto, com autógrafo,
no Clarim Azteka.
EUDÓXIO [com brio] ⎼
Onde houver banana, logo, por indução bioquímica, há uma geração espontânea de
mosquitos; onde houver mosquito o sapo surge por partenogênese batráquia; e o
sapo é o prato predileto das cobras: urutu, jiboia e cascavel.
ANGINO VENTURIS ⎼
Ah a fanfarrice dos papers! Que
conflito imenso não deve ser para a Akademya a arte anônima! Dos poemas
chineses às fotografias belgas. De acordo com os meus exercícios de falta de
estilo toda semelhança se baseia na localização de páginas faltosas na edição
príncipe de um compêndio sobre fluidos e desgovernanças. Lázaro dos Anjos vive
a encontrá-las em suas peripécias marinhas, páginas quase afogadas, com suas
dores ainda legíveis, a depender da tinta em que foram lavradas.
LÁZARO DOS ANJOS ⎼
Da última vez que fui ao Córrego das Pedras, bermudas a postos, aprendi que ali
não se deve chamar as coisas pelo nome. São incontáveis as possibilidades de
jamais darmos notícia da remada imediatamente anterior. Todas as miragens
perdem seu esmalte. Porém com o tempo reparei que algumas folhas náufragas
vinham a mim como uma mosca apaixonada pelo calor da lâmpada em uma padaria.
ANGINO VENTURIS ⎼
A vida espontânea berrando por sobrevivência! Será que nossa faquiresa pode nos
dizer algo a respeito?
EUDÓXIO ⎼ Hoje, Angino, põe-te a caráter, ajeita os
cachos, faz cara triste… Hoje… é o Dia dos Mortos!!!…
DR. BARBÃO ⎼ Vou botar uma grinalda nas barbas e tocar ao
piano-sem-rabo… uma Fuga de Baco…
CADERNÃO ⎼ Enquanto eles se entretinham com
suas tolices, Adelaide avançava em faminta convicção. Eu mesmo tratei de passar
algumas páginas de nossa aventura. Já íamos com mais de 30 dias de jejum e
fanfarronice, quando Adele Castanheira preparou para o jantar sua tradicional
sopa de ostras. Até mesmo Travadão Limeira abandonou seu posto, deixando a
máquina nas mãos de seu piloto automático, e veio para o vagão-restô, trazendo
consigo duas garrafas do licor Quaresma, o quentinho que revela a alma de quem
o bebe.
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼ Uma coisa eu aprendi nessa vida de maquinista: a
natureza humana desconhece a misericórdia. Por isto não me separo de uma boa
garrafa de Quaresma. Bebe comigo, Adele, que esta noite eu esquento as tuas
panelas.
CADERNÃO ⎼ Angino Venturis improvisa uma
corneta com as mãos, acompanhando o piano do douto Barbão.
ADELE CASTANHEIRA ⎼ Bem sei que apreciam a minha canja de algas ou o
assado de pintado… Trouxe comigo um cardápio que quase se assemelha a um
manifesto barroco. Tinindo de alusões às mais requintadas naturezas mortas. Até
chegarmos à China não nos faltará uma iguaria. E desafio a todos a sugerir
misturas e novas temáticas. Os meus temperos humanizam mais do que a arte. As
minhas ervas são um simulacro divino de tudo quanto imaginemos ser. Valetinho
dourado, sirva um pouco mais de ostra e renove as taças. Proponho um brinde à
nossa viagem.
TODOS [em coro] ⎼
Evoé… Baco!!! Tracatá-tracatá!!! Rumpa-Rumpa Tereré!!!… Tereré…
EUDÓXIO ⎼ E
me tragam uma cerveja… Caravaca!!!
ANSELMO PÍCARO ⎼ As alegrias transbordam como
estrofes felizes de um improviso. Decerto os deuses guardam consigo um
espelhinho de bolso, para quando se encontram a sós. Quais deles estariam
rabiscando nossa jornada? Sem que ninguém perceba o trem invade a sisudez de um
túnel como quem presta contas com o acaso. O breu lá fora devora todas as
miragens possíveis. Nem mesmo o Diabo arrisca mascar um naco da paisagem. Sem
alimentar ilusões, seguiu dedicado à sua taça de espumante em algum terraço da
última curva antes do túnel. A escuridão é um osso sem tutano. A escuridão é o
cartório onde as teologias falsificam sua identidade. A escuridão é o refúgio
das perdas mais desoladas. Quando enfim o trem adentra uma parede viciada em
truques cinéticos, uma névoa começa a repetir seus murmúrios no interior do
trem, que gradualmente reduz a velocidade até a completa inércia.
LILI FONG ⎼ Acho que
estamos perdidos! Alguém abra uma janela.
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼ Vejam que estranho lugar. Parece que estamos fora
do tempo.
ANSELMO PÍCARO ⎼ O maquinista não está nem um pouco
longe da verdade, embora ainda não reconheça a exatidão de sua impressão. Na
estreita rua que a janela acolhe a névoa permite ver hidrantes e carruagens,
cães despenteados e varais repletos de sungas e outras peças adultas. O trem
permanece imóvel ante a passagem de dois policiais, seguidos por um corcunda
que leva consigo um cartaz meio amassado onde ainda se pode ler: Whitechapel, 1888, terceiro capítulo.
LILI FONG ⎼ Estamos
perdidos! Alguém feche a janela.
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼ Se é verdade o que veem meus olhos, preparem-se
para um denso e perigoso entreato.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Antes que o maquinista consiga
fechar a janela, é surpreendido pela súbita e ágil entrada de uma exótica
beleza em seus rendados e miçangas. Há muito não se via uma mulher naqueles
trajes e seus olhos azuis refletiam o espanto de todos. A cena, no entanto,
larga mão do encantamento e toma um curso aflitivo.
JACKIE THE STRIPPER
[fingindo desespero e sedução] ⎼ Por favor, me ajudem. A polícia me persegue, porém
não cometi crime algum que não seja o de cobrar pela visão de meus atributos,
mmm, como podem ver. Por apenas umas poucas moedas de cobre eu faço valer a
noite de cada um de vocês. Ahm-hahm, mas antes me ajudem, me deem guarida, não
deixem os policiais me levarem… Eu imploro…
OLUTÍPAC 3: WHITECHAPEL, 1888
DR. BARBÃO ⎼ Mas
claro, minha muito boa amiga… Em nosso Trem, sempre damos asilo aos perseguidos
pela Polícia!… Entre neste saco de pelúcia… pra Polícia não ver…
JACKIE THE STRIPPER ⎼ E
se a Polícia quiser examinar o saco?…
DR. BARBÃO ⎼ Não se preocupe, amigona, o saco tem fundo duplo…
EUDÓXIO ⎼
Depressa!!! A Polícia está chegando!!!
JACKIE THE STRIPPER
[pula dentro do saco] ⎼ Quando a Polícia sair… me soltem.
DR. BARBÃO ⎼ Por via das dúvidas vou fechar a cadeado… ZAPPT!!!
ANSELMO PÍCARO ⎼ No entanto, não veio polícia
alguma. Angustiantes minutos se passaram, pouco mais de meia hora… Nada. Barbão
concluiu que já não havia perigo, que poderiam tirar dali a mulher. Eudóxio usou
um grampo para abrir o cadeado, e… O saco estava vazio. Não, não de todo vazio,
havia algo. Eudóxio ergueu a mão com o suspeito conteúdo: uma calcinha rendada
transparente. Cadernão não se conteve e entregou: ⎼ Mas esta é uma calcinha da Lili Fong, suas
rendas são inconfundíveis, como o mapa de uma cidade misteriosa.
DR. BARBÃO ⎼ Onde diabos se meteu a bela dançarina? Vasculhem o
trem inteiro, descubram o paradeiro dessa cuja. Maldição, onde diabos estavas
com a cabeça, roteirista dos infernos! Ah Olegário, o que fazemos aqui nesta
maldita cidade, de volta ao passado e em uma situação ridícula como esta, sendo
enganados por uma prostituta zombeteira! Alguém me explique algo. Valete, traga
o meu gengibre, rápido!
EUDÓXIO ⎼ Barbão é um sonhador… Um mix de Quant e Dão
Calçote… Quer consertar o Mundo e estabelecer na ONU o Tratado de Paz Perpétua…
LÁZAROO ⎼ Ficou desesperado com o
desaparecimento de Lili Fong… Ele tem um coração bom e sensível…
EUDÓXIO ⎼ E uma paixão secreta,
enrustida, pela Lili…
DR. BARBÃO ⎼ Não te metas a besta comigo, Eudóxio. Vai tirar do
prego a Delta Larousse e lá verás que os nomes certos são Dom Quixote e Kant, o
filósofo das razões incompreensíveis. E alguém pode me dizer quem raios é esse
Lázaroo! Talvez tenha sido expulso de outro roteiro. Mas isto aqui não é Lar
São Francisco de Pádua, para recolher todos os famintos do mundo. Notem: não
foi a minha doce Lili Fong quem desapareceu e sim a escaldante Jackie,
dançarina de lupanar que veio nos pedir asilo. Acho que este mergulho em 1888
está nos deixando a todos com os miolos moles.
MUNDO ⎼ Ah que
absurdo é morrer antes do tempo! Eu não estou quebrado. Ninguém ouse me
consertar!
LÁZAROO ⎼ Doutor Barbão é um ingrato… Não se lembra
mais do quanto o ajudei quando ele prendeu o pé num dormente do trilho… Não
fosse eu, ele seria hoje um perneta…
EUDÓXIO ⎼ De
perneta, ele ganharia certo charme de pirata… Perderia essa cara de Doutor
Abestado… E por que ele trancou a mocinha Jackie na mala, se ele sabia que ela
estava disfarçada de meliante?…
LÁZAROO ⎼ É
um perverso, acobertado pelos laureias acadêmicos… Ele nutria, pela indefesa
mocinha, os mais nefandos intuitos…
ANSELMO PÍCARO ⎼
Não se esqueçam que a inércia é um hímen! Estamos aqui engasgados em um tempo
que não é nosso, cuja história já se injeta em nossas veias e não damos pela
conta. Desapareceu inexplicavelmente a stripper, mas o que mais nos deveria
inquietar é a sua chegada e não a inusitada partida. Mesmo que não regresse.
Mesmo que permaneça um mistério em nosso roteiro. Do que nos devemos ocupar
agora é dessa provação outra, afinal o que fazemos em 1888?
GUMERCINDA ⎼ E
não me falem de mocinha indefesa. Acaso já esqueceram que eu fiz o parto de
todos vocês que aqui estão? Lili é quase a razão de nossa viagem. A rigor, é a
razão do destino. Não fosse essa sua paixão inexplicável pelo ditador chinês
certamente iríamos para a Mongólia ou para as Ilhas Fuji. Anselmo tem razão.
Precisamos dar um mínimo de inquietude ordenada para o curso de nossa
existência comum. Quem se habilita a expor as primeiras letras?
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Entram os dois anões manipanços, Xim e Xum. Sorrateiros, inescrupulosos,
com aquele ímpeto quase natural de bandidos protegidos pela faustosa lei dos
subornos.
XIM ⎼ A , B , C…
XUM ⎼ D - E - F…
DR. BARBÃO ⎼ A grande Sabedoria Oriental!… Eis que ora ganhamos
dois sábios Zen, pra nossa trupe!… Xim, propicie-me um Satori…
XIM [acerta-lhe
a chinela na careca] ⎼ PAFFFFFFFFF [aqui a dúvida: quem faz a sonoplastia,
o anão ou o chinelo?]
XUM ⎼ Agola… o Satole pla xegá… demola
um poko.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ O mote estava armado. Ninguém
suspirava mais diante da pagodeira daquela sabedoria de baixa estatura. Quando
os extremos se tocam não nos resta mais senão acolher o esplendor da
semelhança. Como eles se parecem com as imagens perdidas que cada um tem do que
somos! Como alcançar a harmonia sem antes passar pela insurgência que eles
incorporam?
XUM ⎼ Um pastel quer levar uma vida de
parábola. Antes de mascado o desbocado quer ser atirado em mil bocas como uma
presunção fanática de conselho e alimento.
XIM ⎼ As letras absorvem a resignação
de cada sentido. Nada importa mais do que errar em um estado absoluto de paixão
pela vida.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Eu não posso crer que agora o mito
ressone como um personagem mal parido. Quem nos dá a morte por renascimento e
os dentes podres pelas terras boas para o plantio de milho?
ANGINO VENTURIS ⎼
Ajustemos o calendário dessa máquina. Não podemos ficar parado aqui à espera de
que algo nos determine o curso. Já reconhecemos o imperativo de nossa ida a
Pequim. Como demos fora do tempo e caímos em um modorral como este que as
janelas soletram, não creio que nos valha qualquer explicação. Maquinista, como
saímos daqui? Toca fogo na máquina, toca alegria no fubá, um pecado a mais ou a
menos não nos impede de chegar onde sonhamos por tantas noites que agora é
melhor parar de sonhar. Toca fogo na caldeira.
XIM ⎼ Precisamos, porém, escrever uma mensagem solene ao
Presidente, mostrando nossa mística admiração por sua fulgurante personalidade
de heroico guerreiro, revolucionário indomável, e ídolo da Juventude…
XUM ⎼ … E o Pai dos Pobres… e a Mãe dos Aflitos. E em seguida…
apresentamos nosso pedido de que nos propicie o sonho luminoso de podermos
entrar no Paraíso Vermelho.
GUMERCINDA ⎼ Os
dois gêmeos só podem estar de pagodeira. Cuidado para não estragar os planos de
Lili e a majestade vermelha decifrar a troça por trás dessa simpatia
escancarada.
LILI FONG ⎼ Meninos, não
despachem nada sem antes me mostrar.
XUM ⎼ Mas assim qual é a graça!
XIM ⎼ A Grécia, onde está a Grécia?
XUM ⎼ A grossa lição do dia é não
deixar que ninguém perceba a galhofa em que está sendo metido.
XIM ⎼ Egresso na pantomima, quando
menos dá por si, toda a gente se diverte, alguns com cara de palhaços.
LILI FONG ⎼ Loucos! Não
me aprontem.
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼ Vou por lenha nas caldeiras!
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Incrementarei umas páginas novas em nosso roteiro.
XIM ⎼ Ponha uns panegíricos ao nosso Presidente!
XUM ⎼ E um retrato na capa do roteiro
de Nosso Motoqueiro Paternal!
XIM ⎼ Acenando gentil pro Leitor…
XUM ⎼ E o espelho retrovisor da moto um
verdadeiro espelho.
XIM ⎼ O Leitor verá seu rosto refletido
no espelho da moto…
XUM ⎼ …e saberá então que é pra ELE que
o Presidente está acenando…
ANSELMO PÍCARO ⎼ A carroça recomeça a andar… Mas,
como sair de 1888?
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Saímos de mansinho, em silêncio e
fechamos a porta. Se alguém perguntar, a gente faz um sobrolho de maestro
ofendido e levemente irritado… As outras pessoas olham reprovativamente pro
perguntador… que mete a viola no saco.
VALETE DE OURO ⎼ Aproveitem que agora servirei a
todos um coquetel de relâmpagos, receita que me foi dada ao sonhar com o vento
desmarcando as fronteiras no deserto. O hábito é uma encomenda dos espíritos
amestrados. Somente em movimento os ossos germinam gerânios, pão fresco e
outras frutas descalças.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Esta é a hora em que nos damos as
mãos em busca de um novo mistério. Talvez uma foto para a improvável
posteridade. Quem sabe um carvão de tão insólita viagem, que enfatiza nossos
conflitos como uma arte poética. Um dia é bem possível que sejamos adaptados
para um cinema automático, a memória improvisada a partir de uma única imagem…
XIM & XUM ⎼ Cine Azteka! Cine Azteka! Cine Azteka!
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼ Nenhuma paisagem ultrapassa a metragem da janela.
Se mudarmos de ângulo o olhar os rumores do que vimos se dissipam e em seu
lugar surge outro aroma. Ao que parece, estamos entrando no mapa do Inferno.
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Vamos entrar no hemisfério inferior, corpos enterrados com as pernas de fora,
rufiões transformados em cipós enredados no espinhaço de um precipício, chagas
atormentadas, travessias imprevisíveis… Suspeito que para onde vamos a todo
instante seremos abordados por uma contradição.
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼ Larga a mão, Gumercinda, que queres?
GUMERCINDA ⎼
Eu quero um cadinho que seja dessa proeza toda que guardas entre as pernas, meu
carvoeiro desalmado. Não cegue meu entusiasmo, varão dos diabos, dá-me logo
este teu ditirambo…
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼ Pega com jeito… Melhor deixar a máquina acertar o
passo e todos estarem adormecidos…
GUMERCINDA ⎼
Espero que venha breve um túnel… No
escurinho… Vale tudo!…
DR. BARBÃO ⎼ No fim do caminho, começa o túnel…
XIM ⎼ E no meio do caminho?…
XUM ⎼ No meio do caminho já estamos,
paspalho!…
RÁDIO ⎼ Os dois Anões se atracam aos bofetões. Ou mudamos a
frequência ou não sairemos jamais desse beco escaldado.
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼ Deixei no piloto automático, com essa pirada me
assaltando as posses como está. É torcer logo pelo túnel e lá eu me atraco com
ela, faço farelo de sua tara.
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Mais cedo ou mais tarde daríamos aqui, nessas águas de fogo, como condenados a
um crime comum, do qual também somos vítimas. Toda testemunha é também um
algoz. Assim como os retratos antigos ocultam um personagem no qual não nos
reconhecemos. O sonho se disfarça em tantos trotes que acabamos pedindo abrigo
em uma mesquita ou paróquia, cercados de pequenos deuses e um séquito de anjos
impotentes.
RÁDIO ⎼ A demência é a última quimera.
MUNDO ⎼ Ah que absurdo
é morrer antes do tempo!
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
As meninas se banham nas águas do Estige. Lavam seus pecados, antes de subir
para o inferno superior. Um turbilhão de almas evoca a luxúria em seus metais
mais terríveis. Os amores sombrios são um prodígio que fazem da liberdade a
mais estrábica das aventuras humanas.
RÁDIO ⎼ Quem deixou entrar esse relâmpago tão confuso?
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
A paisagem carbonizada antecipa seu fim. O musgo toma conta das janelas. O trem
se entrega aos tentáculos de cada catástrofe anunciada há milênios em apócrifas
escrituras.
XIM ⎼ Dá-me um beijo profano.
XUM ⎼ Dou-te uma palmada sagrada.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Tão facilmente nos deixamos arrastar pela dispersão.
Um dia comendo o capim da nostalgia, outro moendo os minérios indeterminados da
culpa. Recorremos aos céus como famintos e afogados, dieta de pontes para os
abismos mais crispados. Que pobre desgraçado não seria o infeliz profeta que se
metesse a besta com a charada de nossa viagem! Inventamos um trem submerso em
manchas de espasmos, gaiolão de esquisitices, surto de personagens renascidos
de aborrecimentos e obscenidades. Será mesmo laica a morte? Olhando bem a urna
vítrea onde se guarda de si mesma a silenciosa faquiresa ⎼ já
o próprio perfil de uma vagem, passados os primeiros 57 dias de jejum ⎼, o
que vemos é o júbilo atrofiado de seus dons, o purgatório em banho-maria com
que se deixa ali esquecida de todos. Nem mesmo cobras e pregos se apiedam de
seu mítico desvario. Adelaide jamais poderia ser protagonista dessa fictícia
imersão no pesadelo. Por onde corre o trem? O que busca afinal esse chacoalhar
de aflições? Haverá acaso, ao final de cada curva, sofrimento suficiente para
todas essas almas empenadas? Como acomodar os fastios e as exaltações em tão
estreitas cabines? Dormiremos, em algum momento da viagem? E se um dia
entregarmos Lili Fong à guarda real de Xipong, qual fatia do destino nós
daremos por cumprida? Proponho um brinde ao vívido desconhecimento que temos
todos da vida que supomos levar.
RÁDIO ⎼ Os totens se encrespam fornicando com seus tabus
preferidos.
LÁZAROO ⎼ Não sei se a Loucura do Mundo está
invadindo o Trem, ou se o Trem está empestando o Mundo com sua loucura… Todavia
a Loucura do Mundo aumenta a cada dia de modo flagrante e manifesto. Tão mais
flagrante e manifesto, porque ninguém vê nem percebe a Loucura Desembestada… O
perigo não é percebido nem pelos passageiros do Trem, nem pela população do
Mundo… Uma é o fiel reflexo da outra. Essa total ignorância da própria demência
é a prova mais cabal de sua furiosa existência… Os Cavaleiros do Apocalipse tomam seu vinho na estalagem,
conversam e jogam dados, porque não precisam fazer mais nada… O Mundo emana
suas pestes e se dana em suas próprias emanações… Os Quatro Pangarés podem
assim tranquilamente pastar ao léu, numa paisagem de colossais Moinhos de Dom
Quixote. O Sol se coça, boceja, e afunda no fundo quintal.
ANGINO VENTURIS ⎼
Quase todos os bilionários do mundo são herdeiros. Um dia a história herdará a
fortuna humana que vocês estão acumulando agora.
XIM ⎼ Quanto cinismo na cuia!
XUM ⎼ O próprio pastor de cobras.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Antes que a tensão se apodere do vagão, Lili Fong
toma em suas mãos uma bexiga e lhe sopra até que alcance o tamanho de um balão
de aniversário. Em seguida espeta-lhe um alfinete e o ar estupefato se amplia
quando todos veem diante de si a dançarina que ressurge como um astro
excêntrico.
XUM ⎼ A tal da Jackie, quem diria!
XIM ⎼ Mas está nua, a cuja.
LILI FONG ⎼
Ainda estou aprendendo este truque. Deem-lhe algo para vestir. Certa noite fui
ao Circo Cyclame e vi o Mago Kefir iludindo a todos com inúmeros personagens
que trazia de volta à vida: Borges montado em um tigre cego, o Barão von Richthofen cuspindo fogo,
miss Naglowska ocultando um ás na manga, três
bruxas queimadas vivas e um coelho soprando sua flauta-cenoura…
JACKIE THE STRIPPER
[enrolada em um guardanapo] ⎼ Não distorçam as palavras de Lázaroo. Por onde
tenho passado é fato que a duração da vida é auferida pelo incremento da
Loucura como forma de controlar o Mundo. Por isto que o Grande Prodígio é o da
repetição fatigante, destinada a esgotar todos os esforços de compreensão. Aos
poucos perdemos a sabedoria dos instintos e a demência se instala com uma
notável e popular astúcia. Nem creio que se trate mais da Loucura como a
conhecemos e sim de um feixe atordoante de incongruências, da arte meticulosa
de extração do sentido de tudo à nossa volta.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Trac-trac, truculeta, toque lerdo,
Desde que parti nunca mais te vi,
Passarinho de além mar…
Trac-trac, truculeta, truque lento,
por onde vais ninguém te pega,
Passa-passa, avião, sejas ele ou não!
BOCARRA ⎼ Olha o Clarim
Azteka!!! O vespertino com letras vermelhas de saaaangueeeee!!! Alvejado o
Bispo Moreno ao levantar a hóstia sagrada. Os três pistoleiros aprisionados
pela Polícia confessaram que não o queriam matar. Estavam apenas fazendo uma
aposta em quem acertaria o tiro na hóstia, mas… atirando de costas, e mirando
pelo espelho. O Prefeito Macedo condenou o ato nefando, como uma aventura
irresponsável, porque os três magarefes estavam bêbados, e não são atiradores
de qualidade, que possam fazer tal aposta sem por em perigo a vida do
sacerdote. Olha o Clarim!! Olha o Clarim Azteka!!!
XIM ⎼ Isto aqui virou uma feira livre!
XUM ⎼ Livre de quê?
JACKIE THE STRIPPER ⎼ Eu
vi coisas lá fora nas quais ninguém pode acreditar. A morte existe porque não
se preocupa com a verdade ou a moral. Os cadáveres não podem nunca escolher de
que lado ficar. As noites são gélidas como a pança de um crocodilo. Os
humilhados cozem os trapos da esperança. Eu vi o poder das esferas escavadas. O
medo contrabandeando evidências. Eu vi a multidão implorando por cura,
crucificando mil deuses, destruindo espelhos antes que delatem suas culpas. Não
me deixem voltar para lá novamente. Digam-me seus desejos. Posso me desdobrar
em tudo que queiram. Só não me deixem mais voltar para Whitechapel.
BOCARRA ⎼ Venha comigo, Jackie… Eu levo você
embrulhadinha na minha maçaroca de jornais, entro na Whitechapel, e enquanto
berro e vendo os jornais, você s’escapa de mansinho, e se mistura com
as beatas, e ninguém perceberá que você está lá. Pensarão que você é uma
notícia sobre você mesma, no Rex Mirror…
JACKIE THE STRIPPER ⎼
Tenho medo da corte me realçar os maus hábitos, medo do cenáculo me decepar,
das dobradiças do poder me atarem uma masmorra na alma. Mesmo embrulhada em tua
pele noticiosa, com tuas manchetes me disfarçando, mesmo assim, eu temo vir a
ser transformada em um truque de revelações sigilosas guardadas para uma última
hora. Dá-me cicuta, peçonha de medusa ou língua triturada de pastor evangélico,
qualquer coisa que me mate de uma só vez. Voltar a Whitechapel é como morrer
mil vezes e já não suporto mais tantos vazamentos de fogo no inferno.
XUM ⎼ Toca fogo, toca fogo, toca fogo,
coreto!
XIM ⎼ Cianureto, cianureto, pr’acabar
com qualquer prega!!!
DR. BARBÃO ⎼ Pois
agora então os dois anões de Pekim resolveram fazer a Rebulição Gutural do
Presidente Zé Dong dentro do nosso Trem… Já aprontaram a esbulhação
atmosférica com suas oficinas de bonecos de celuloide, seus sabões de batata e a fumaceira de suas
fábricas de charutões habaneros… O Dalai Bonga já fugiu pelas escarpas do
Tibeco levando o Nirbana, que é um balão colorido colossal amarrado num
barbante… O Rei Xong da Boréia tentou furá-lo, com um foguetão de último tipo,
mas o Nirbana é vazio por dentro, não tem nada… E o Nada é mais leve que o ar,
por isso que o Nirbana voa… O Nirbana é o Nada que é Tudo, porque Tudo afinal
acaba no Nada… Mas o Nirbana é o Nada que não é nada… Ou seja, é tudo o que
ainda não foi…
BOCARRA ⎼ E nem será, porque não vou
gastar primeira página anunciando o que não virá. A boa notícia dispensa a
opinião privada. A última tentação é que deixa melhor na surdina a luz do
bordel. Quem quiser varar a noite com suas meninas que traga as preferidas. Já
chega de agitar a viagem antes de usar. Se a experiência persiste não é porque
queira extraviar a inocência. O mundo é uma desgraça fora de esquadro. Um
labirinto repudiado por todos os pesadelos. Uma agulha extraviada na circulação
sanguínea de uma bailarina.
XIM ⎼ Um saco de farinha molhada!
XUM ⎼ Um absurdo desterrado!
MUNDO ⎼
Que os demônios não persistam, pois aqui não repetimos exorcismos. A navalha
destroça os voos vacilantes. O pecado sobra sua trombeta e tropeça nas cartas
viciadas. Façam seus jogos. A liberdade não tem a menor ideia de sua conduta
criminosa. Fogo na máquina! Vamos passar desta para melhor. Mudemos nem que
seja de capítulo. Onde está o infame do roteirista?
ANSELMO PÍCARO ⎼ Destravaram a língua do papagaio! Agora é a nossa
deixa!
OLUTÍPAC 2: UMA SAÍDA PASSADA A LIMPO
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Voa que esvoa o Trem Carthago,
pula louco nos trilhos, apitou, bufou, sumiu. Parece que entrou no túnel sem
saída. Muitos trens entraram nesse túnel sinistro, mas nenhum saiu. Adiado o
início do próximo entreato. Aproveitemos
este intervalo pr’alguns anúncios: Beba Cerveja Caravaca, a preferida do
jornaleiro Bocarra. Você não acredita que ele goste duma Caravaca gelada?… Pois
então pergunte a ele, e verá como reage o rapaz.
EUDÓXIO ⎼
Ninguém se atreva a esfarinhar o meu jabá. Sumiram com a minha caixa de
Caravaca. Raios! Não penso que tenha sido o Bocarra, como querem me fazer
acreditar. As linguiças Nilomne eu troquei por uma natureza morta de Pedro
Claridade. Quem delas um dia provou sabe bem que há momentos em que tudo é
mesmo nada, e que não há nada melhor a fazer do que comê-las com uma Caravaca
estupidamente gelada.
BOCARRA ⎼
Sumiram com tudo, até mesmo com meus pasteizinhos Sonhação. Toquem a corneta.
Há um ladrão em nosso vagão. Preparem as rotativas. Última notícia! Última
notícia! Bomba! Há um ladrão em nosso trem!
XUM ⎼ Entupiram a corneta com pólvora seca!
XIM ⎼ Vão dizer que fomos nós!
BOCARRA ⎼ Não se preocupem!…. Vocês são dois chins progressivos
da Destampação Gutural!… Escreverei um artigo panfletário no pasquim Ratão Fugaz, defendendo vocês dois com voracidade
cívica!!!
XIM ⎼ Mas Bocarra, você não é jornalista, você é jornaleiro…
XUM ⎼ E notório agente do Bicho… Um herói que traz a esperança da
fortuna pros pobres!…
BOCARRA ⎼ Não
sou jornalista, mas escrevo furibundos artigos… Faço um furo na primeira página
e grudo no furo o meu verruguento artigo.
DR. BARBÃO ⎼ Vamos
logo com esse entreato que o trem prossegue. Onde diabos se meteu o
ouriço-cacheiro? Melhor hora não há para recolher as apostas. Cada um que
escolha seu bicho e vá sentar-se a seu lado na janela. Há ilusões para todos.
De onde estamos até a China tudo pode acontecer.
ANGINO VENTURIS ⎼
Próxima parada: Fort Lauderdale. Ali passaremos a noite no Motel Triângulo.
Deixem seus pertences no vagão, mas não esqueçam de levar consigo o bicho
escolhido. De acordo com o furo mágico do Bocarra, todas as pistas são falsas,
porém a realidade jamais será uma só.
XAVIER CHAVIGNY
⎼
A Realidade é um dado de sete lados:
lado 1, do vizinho ⎼ É
sempre mais gordo; lado 2, da Sogra ⎼ Pior só
o lado seguinte; lado 3, da Morte ⎼ Vou
ali, volto já; lado 4, da Glória ⎼ Só dá
pra quem quer; lado 5, da Posteridade ⎼ Quando
a bundaça chega o defunto já era; lado 6, da Fortuna ⎼ Faz mais bico-doce que a Glória; lado 7,
de Saturno ⎼ Melhor velho torto, que defunto
elegante.
ANGINO VENTURIS ⎼
A Dona Realidade não faz ideia do que está por vir. Ninguém pode lhe ajudar,
nem mesmo chamando Charmine Pampulha.
CHARMINE PAMPULHA ⎼
Como costumava dizer, antes que lhe arrancassem a língua, meu reverendo guia em
seus vislumbres edipianos: Deus no céu e
a carcaça da mãe na terra! Não é outra a realidade que nos domina.
ANGINO VENTURIS ⎼
A charada do dado de sete lados, nobre lírico que nos acompanha, alenta sem
salvar, remedia o ânimo sem curar o risco de vida. É como o enigma das
ligaduras. Dizem que o homem, desde que nasce não faz outra coisa que seja
desatar seus nós. E romper conexões, a depender do estilo, pode ser instaurar
uma desgraça. Os laços matrimoniais, o cordão umbilical, a palavra dada, a
ânsia de domínio, quantas são as ligaduras que impedem o homem de reconhecer os
artifícios de seu universo inferior? E como confiar nas falas esfarrapadas de
um bispo acusado de ser um caçador negro, com seu caduceu enfermo, a julgar
pela língua seca das serpentes que ali ostenta, decaídas?
CHARMINE PAMPULHA ⎼
A tua ideia já nasce torta, desventurado Angino. Não se trata de salvação ou confiança.
O mundo já perdeu a senha de sua própria exumação. Tanto nos sentimos ameaçados
pela ambiguidade que confundimos proteção com maldição. As assimilações com
frequência evocam a nossa queda, disfarçadas como manifestações sedutoras da
alegoria e do sublime. O homem não corresponde senão a si mesmo, e quanto mais
foge do que está determinado a ser mais se revela o gênio maléfico que nos
arrasta para os leitos das trevas…
MUNDO ⎼ Oh quantos ainda virão dar nas
portas deste túmulo em movimento?
XUM ⎼ Alguém diga a esse idiota que não estamos em um túmulo e sim
em um trem!
XIM ⎼ Ora, ora, quem sabe desta vez ele não tenha razão. Para um
papagaio que antes vivia a repetir a mesma frase, ele agora está me saindo bem
espertinho.
DR. BARBÃO ⎼ Papagaio
por papagaio, o melhor é o de Frei Feijão, que sabe praguejar em latim.
XAVIER CHAVIGNY
⎼
Deveria o papagaio do frade antes rezar, do que praguejar, mesmo que seja
em latim. O fim não justifica os dúbios meios pr’aprender novo idioma.
DR. BARBÃO ⎼ O papagaio César, de Frei Feijão, antes pertencia a
uma tasca do porto, e só sabia praguejar. Com sua passagem pro convento,
aprendeu latim, mas segue praguejando.
XAVIER CHAVIGNY
⎼
Provavelmente, quando sozinho em sua cela, pragueje Frei Feijão, e com
seu novo dono aprendeu César bocagens eruditas.
DR. BARBÃO ⎼ Dai a César o que é de César.
XAVIER CHAVIGNY
⎼
E a Frei Feijão?…
DR. BARBÃO ⎼ Um prato de arroz e farofa.
GAUDÉRIA ⎼ Ai que tá faltando um bocado de sacanagem. Um roça-troça, um
rala-buxo, um esquenta-canto. Eu sinto uma coisa dentro de mim, esse vagão
fervendo, subindo montanha, descaroçando nuvens, a paisagem regurgitando
molduras… Eu quero um homem! Diabos, como eu quero!
GUMERCINDA ⎼
Desde cedo aprendi que o que se põe aqui também se tira. Por profissão eu só
tiro, quem bota são os outros. Tem algo errado no corredor extemporâneo dessa
viagem. Ninguém me bota nem a mão na consciência. Um bom bocado, qualquer coisa
bem botada, eu quero, eu sou uma quero-quero da savana…
JACKIE THE STRIPPER ⎼ Eu
já tirei tanto a roupa que nem sei mais como é vesti-la. No camarim como no
palco eu sempre vejo o mundo como uma aquarela invertida. O que pende do galho
é o nome da fruta, pois ela própria se guarda dentro de mim, sem que ninguém a
desfrute. Uma vez na vida, eu quero trocar de lugar no mundo, quero outro
papel, outra bênção, outra maldição.
LILI FONG ⎼ Todas as
noites eu rabisco os gestos ardorosos de meu presidente em meu corpo. Com
tintas e arabescos, eu entranço desejos e pecados. Minha vida não dá um passo
sem que meu Xiponguinho me ecoe no útero os sinais de sua querência. Já estamos
chegando, meu amado. Eu me reservo inteira para ti.
ADELAIDE ⎼ Todos os meus sonhos se
acostumaram a viver nessas urnas de vidro ou acrílico. Jamais vi o mundo que
veem em mim. Quando olho para todos o que vejo é apenas uma mescla de desprezo
ou curiosidade ácida pelo que faço. Mas certamente ninguém sabe o que eu faço,
ninguém compreende o que me põe aqui a jejuar dias semanas meses a fio.
DR. BARBÃO ⎼ Calma,
moçoilas!… O maléfico cozinheiro botou cantárida no feijão… Aguentem só mais um
pouquinho, que já mandei chamar Frei Feijão pra prover-lhes um piedoso sermão.
Ei-lo que enfim despontaa!… Pois então, Frei Feijão, trouxestes vosso sermão
redentor?… Avante, meu Frade!… A Retórica Sacra poderá salvar essas almas
fragilizadas pelas cantáridas… Presto, meu santo sacerdote!…
FREI FEIJÃO ⎼ Pois é… Mas antes de eu começar a soltar minhas
sacras endeixas, pra confortar os ouriçados corações… convém distribuir umas
rolhas de champanha Viúva Pivot, que sempre guardam uma espuminha gostosa,
consoladora, pra abrandar as vorazes efusões da fugaz juventude… E o fiel
sacristão Honório já está a postos, para tocar ao órgão uma celestial Fuga de
Baco…
ANSELMO PÍCARO ⎼ O
trem atravessa agora uma pequena cadeia de montanhas e em seu sobe e desce move
o instrumento de Honório para lá e para cá, por vezes a fuga quase se
concretizando, com ou sem Baco… As harmonias, estas fogem de vez, enquanto
nosso quinteto de madames em cio masca as rolhas da Viúva Pivot e se inquieta
em olhares e trejeitos febris.
VALETE DE OURO ⎼ Ai gente, não olhem assim, esta carne não me apetece!
ANSELMO PÍCARO ⎼ Talvez
devêssemos apelar a Travadão Limeira ou mesmo ao próprio Trombeta. Ou matamos a
fome que está matando essas senhoras ou então mudamos de vez o roteiro.
XIM ⎼ Fogo na sacristia!
XUM ⎼ É fogo no rabo, Xim!
TRAVADÃO LIMEIRA ⎼ Se as meninas quiserem, e Frei Feijão deixar, eu
posso tocar uma fuga para dentro.
ADELAIDE ⎼ Só não me vá quebrar essa urna!
LILI FONG ⎼ Meu
Xiponguinho jamais entenderia! Tenho que me fazer forte.
XAVIER CHAVIGNY
⎼
Que mulher!
ANSELMO PÍCARO ⎼
Adelaide e Gumercinda são um bom páreo para o maquinista que lhes sopra
as brasas com êxito! Gumercinda não deixa mais Honório fugir, nem para lá, nem
para cá. Seus dedos recuperam todas as harmonias perdidas. Porém a sorte maior ⎼ para
gáudio da comunidade católica ⎼ foi a forma como Jackie e Gaudéria
encurralaram Frei Feijão numa mesa de canto. Pela janela esvoaçavam sermões,
mantéis e uma puída batina… Sob a risada infernal do roteirista…
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Não pode haver gozo maior do que mover as peças no tabuleiro da estética.
Anselmo Pícaro, meu poeta, me ajude com uma tarantela nessa vitrola que acabo
de desenhar sobre a mesa. Cuidemos que a casa aguente o sacolejo que lá vem
mais montanhas. Estamos sobre a Cantábrica. Nosso destino ainda não está
assegurado, mas fatalmente um dia desembarcaremos na China. Música!!!
BOCARRA ⎼ A desacorrentada
fúria das muchachas impõe um pandemônio no trem. Mas eis que agora…
TROMBETA ⎼ FOOONNNNNNNNNNNGGGG!!!
FREI FEIJÃO ⎼ Soa a Trombeta do Armagedoooommmmmmm!!!!
BOCARRA ⎼ Trombeta do Armagedom um nabo!… Foi o Valete quem
tocou.
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
E porque tocaste a trombeta, paspalho??? Quem deve tocar trombeta aqui
sou eu!!!
VALETE DE OURO ⎼ Foi pr’avisar a chegada do Rei Miroldo.
REI MIROLDO [entra] ⎼
Bons dias, meus súditos… Feliz me sinto de vos ver ora reunidos pra me
saudar. Fazei pois uma fila pra vir beijar meu anel de rubi. Primeiro as damas,
depois os marmanjos… Alguém se faça de súdito e me traga um espumante.
OLEGÁRIO TROMBETA ⎼
Não fure a fila, Bocarra!…
BOCARRA ⎼ Eu só quero mostrar ao Rei o jornal com a reportagem
de sua chegada no Trem.
REI MIROLDO ⎼
Mas eu acabo de chegar!… E já saiu a reportagem?…
BOCARRA ⎼ Sim, Majestade, o jornal Paparrato grampeou a Lanterna de Saturno…
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Tragam um mapa, depressa, sobre a
mesa. Temos que desvendar o maldito mistério dessa viagem de loucos.
BOCARRA ⎼ Ainda não, mata-borrão, deixa eu vender meu pastel de
cativeiro. A notícia ainda está úmida na página. Todas as luzes piscam na mais
fajuta denúncia: sem grampo não há mais um só relógio de parede que funcione.
REI MIROLDO ⎼
O tal do mapa, o que queres?
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Há semanas estamos a dar voltas por toda parte e não sabemos o
rumo. Preocupam-me a pobre passa-fome, que não sei quanto tempo mais aguentará,
e o que sucederá conosco se acaso desagradarmos o presidente Xispong que espera
por sua amada.
LILI FONG ⎼ Xipong. Meu
Xiponguinho, que já deve estar preocupado com minha tardança.
REI MIROLDO ⎼
Ora, mais aqui temos os verdadeiros atrativos da viagem: a apreensão e a
incerteza! Xote na máquina! Vamos manter a pressão! Foguista, carvão nas
ancas!!! E as bebidas! Tragam-me as bebidas!!! Vamos lá, mostrem a tralha desse
mapa, agora quero saber onde estamos!!!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Ninguém mais sabe onde
estamos. Nem sequer o maquinista. Vejo pelas janelas peixes voando lá fora.
REI MIROLDO ⎼
Ora, Xavier, nada mais simples: trata-se de um cardume de
peixes-voadores…
BOCARRA [admirado] ⎼ Rei Miroldo tem uma sabença
verdadeiramente enciclopédica!
REI MIROLDO ⎼
Não se deixem enganar pelos falsos encantos de um mapa. São feitos de truque
para nos levar cada vez mais distante do impossível. Só aquilo que não se pode
ter é que deve ser buscado. As melhores mulheres do mundo serão sempre aquelas
que não teremos jamais.
XUM ⎼ Que filosofia de lavanda! Samba
de cativeiro!
XIM ⎼ Dinastia de Alcatraz! O Zé da
Coroa mais parece um pastel murcho!
REI MIROLDO ⎼
Chamem o síndico! Melhor, o mata-mosquito. Se queremos ser um trem de verdade
temos que nos livrar dessas mazelas. Purifiquemos nossa latada de sonhos! Tragam
aqui o tangedor de pragas!
BOCARRA ⎼ Extra!!!
Extra!!! Rei Miroldo pôs-se desesperado a chorar… Precisamos socorrê-lo!!! Lili
Fong!!!… Adelaide… venham socorrer o pobre Monarca!…
LILI FONG [entra correndo] ⎼
Que se passa, meu Rei
Miroldo??? Pobrezinho!… Não choreis!… Meu gorducho!… Vinde pro meu colinho de
seda!…
ADELAIDE [pela primeira vez deixando seu ataúde, ops, sua urna
sacrificial] ⎼ Rei
Miroldo!!! Cá estou pra vos socorrer!!! Que se passa com Vossa Majestade?…
Vinde cá, meu coitadinho, pra Mamãe vos dar pra mamar!!!..
REI MIROLDO [em lágrimas
borbulhantes] ⎼ Estou
tristíssimo, minhas gentis mocinhas… Sinto-me morrer!… De Tristeza!!!… De
solidão!!!… Oh, Dor insaciável!… Levem-me, por favor, boas fadinhas, pra minha
cabine.
BOCARRA ⎼ Lili
Fong e Adelaide apoiam o Rei e o vão levando pra sua cabine. Mas, e o médico???
Precisamos de um médico!!!
REI MIROLDO ⎼
Não, não! Muito grato,
Bocarra, por teu cuidado, mas não preciso de médico!… A gentileza celestial
dessas duas mocitas é o Bálsamo que implora meu Coração sofredor…
BOCARRA ⎼ Lili
Fong e Adelaide entram na cabine do Rei, levando o agonizante Monarca e…
PLAFFFF!!!! Fecham a porta. Agora, prezado Público, mudança de cena. A ação se
desenrolará na cabine fechada a sete chaves. [desengonçado silêncio, enquanto o
público se coça em seus assentos] Na cabine,o Rei e suas assessoras passam em
revista todas as posições do Kamasutra na versão especial para três pessoas… No
fundo da sala há um imenso malão de formato vertical.
REI MIROLDO ⎼
Ai!!! UUUUUiiii!!!
Minhas dondocas, eu acabo de ter uma ideia!… Vamos continuar os folguedos
dentro do malão… Lá… ficaremos mais… apertadinhos!… O-Ro-Roooo… ZAFTTT!!!
Pronto!… Abri a tampa!… Observem o luxo da forração, maciiiiaaaa… Poderemos
trampolinar pra cima e pra baixo… O- Ro-Roooo… Adiante, dondocas!!!… Ladies first!!!… Experimentem o forro…
PLAFFFTTT!!! Pronto!… Fechei a tampa… Podem ir começando a função… Vou fazer
pipi-cocô, já volto já… O-Ro-Ro-ROOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO [poc-poc-poc,
batem à porta da cabine] Quem éééééééé?…
CHINA TAL [voz em off] ⎼ É o Chinês da lavandelia… tlago seus 44 telnos lavados e
passados e vossas 32 camisas engomadas…
REI MIROLDO ⎼
Muito bem, rapaz, ponha
tudo dentro do malão.
CHINA TAL [entra com o carrinho empanturrado] ⎼
É muita coisa,
Majestade… Onde devo botar isso tudo?…
REI MIROLDO ⎼
Aqui mesmo no malão,
meu bom rapaz.
CHINA TAL ⎼ O malão é enorme, oh majestoso monarca, mas o pacotão de
loupa é colossal… Será que cabe tudo lá dentlo?…
REI MIROLDO ⎼
Mas claro, rapaz… [abre
a tampa] Zappt… O malão é enorme e está vaziiiiooo… Pode enfiar o pacotão. [o
chinês bota o pacotão no malão vazio, recebe um gorgetão e sai, Rei fecha à
chave a tampa do malão, abre a porta da cabine, sai, bate a porta e…] … e… FIM…
O-RO-RO-ROOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!…
[Mais um desses silêncios quase
constrangedores. Os atores desaparecem todos, como em um passe de mágica. O
público se coça indeciso, sem saber se a coisa terminou mesmo. Também as luzes
vão se retirando, uma a uma. Tudo às escuras, o monarca retorna, com uma vela
na mão.]
REI MIROLDO ⎼
Não creiam em mim. O inferno não iria acabar nunca assim tão fácil. Eu
distribuí roupas e maquiagens, naturezas e descalabros, para cada um dos
personagens. Não era tanta gente assim. Um barco de nada, sobre rodas, uma rota
sem a menor credibilidade. O maquinista chegava a rir, dizendo que o bom da
coisa é que ele adorava aquele London Dry Gin que lhe serviam num estalar de
dedos. Talvez tenhamos ido muito além do que qualquer um de nós possa ter
imaginado. O mundo é um descalabro retórico. Ter um mapa no bolso nos dá tanta
segurança quanto visitar parentes que há muito não encontramos. Querem ficar
para a próxima sessão? Pois fiquem. Só não sei quando começa. Ou podem passar
para a sala ao lado, onde talvez aconteça algo. Nunca se sabe. O-RO-RO-ROOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!…
[Rei apaga a vela e desaparece.]
XIM [em off] ⎼
Quero meu dinheiro de volta!
XUM [em off] ⎼
Esqueceu que entramos sem pagar?
REI MIROLDO [no escuro] ⎼
Os espasmos são todos iguais. Ajustem-se à queda de quaisquer
expectativas. [Silêncio de poucos segundos, logo subitamente cortado por uma
quebradeira de vidros, e então entram em cena Barbão e Lotério:]
DR. BARBÃO ⎼ Xim
é um argentário, e Xum um proletário.
LOTÉRIO ⎼ Se
Xum é argentário ele é de Xangai.
DR. BARBÃO ⎼ E
se Xim é proletário ele é de Nankin.
LOTÉRIO ⎼ Trabalha
porventura Xum numa Fábrica de Tinta Nankin?
DR. BARBÃO ⎼ A
fábrica de Tinta Nankin precisa ter aos fundos um extenso prado, e estrebarias,
para um grande rebanho de milhares de burros peludos.
LOTÉRIO ⎼ Mas
praquê tanto burro?… Pra transportar os barris de tinta nankin?
DR. BARBÃO ⎼ A
fabricação de tinta Nankin é um trabalho árduo e perigoso. A matéria prima da
fabricação é caldo de rabo de burro. Mas prum caldo de qualidade, os burros
peludos devem ter um tratamento de biopecuária… Devem ficar soltos… Então, a
parte mais perigosa dos proletários é caçar os burros, agarrando-os pelo rabo.
LOTÉRIO ⎼ E
a Carmita Piranga?… O senhor já viu ela dançar?…
DR. BARBÃO ⎼ Eu não sou burro de ficar no mesmo celeiro que ela.
Tenho que zelar pelo meu próprio rabo.
REI MIROLDO [gritando] ⎼
Calem-se, tontos. Aos diabos com tanta asnice. Meu reino por um abacateiro
florido e um chá de relvas orvalhadas. [acalma-se] A maneira como cada um de nós se
admira do retrato dissipado que recordamos de acordo com as necessidades… Ora,
a memória é isto. Esqueceram? Um caderno de receitas as mais variadas. Por
vezes um tempero novo e mudamos de lugar ou época. Eu não quero me arrastar ou
ser levado por enigmas que não compreendo. Mudar de capítulo, sonhar com furtos
inimagináveis, soletrar os dados que são portas para outras aventuras. Eu adoro
isto. Mas como livrar-se das queixas internas, gente com quem contamos e não
sabe a menor distinção entre ser e ter? Eu não quero morrer aqui, tão
facilmente. Quem sabe outro plano, outro grupo, outro assalto. Este não, por
favor. Não me façam durar aqui. Eu já não suporto esta cena.
ANARQUISTA RASPOK [entra com uma
granada] ⎼ Pois então, Rei Miroldo, tenho uma solução pra te dar
sossego… [Lança a granada na boca do Rei] CAPONGAAAAAAAAAAAA!!!!
DR. BARBÃO ⎼ Mas…
Rei Miroldo… Sumiu!…
ANARQUISTA RASPOK [aponta] ⎼
Sim, mas veja lá, Doutor,
sobrou a coroa, de ouro e o relógio, de prata…
DR. BARBÃO ⎼ Precisamos
telefonar pro seu Reino… O Parlamento precisa ser avisado do misterioso
desaparecimento do Monarca!… [Angino Venturis orienta um quarteto de fuinhas a
desencaixotarem algumas peças do cenário. Ouve-se um trim em uma das caixas
fechadas. Ao abri-la a fuinha pega o telefone e o entrega ao Dr. Barbão:] Sim,
nós havíamos deixado um recado. Avisem ao reino que o rei sumiu, engoliu uma
granada e nunca mais foi visto. Não, não creio que interesse explicação.
Deixemos o caso como está. Rei sumido é mais charmoso do que rei deposto.
Certamente encontraremos outra forma de governo. Vou reunir o conselho dos
anciões.
OLUTÍPAC 1: ENIGMA DE UMA APÓSTROFE INVISÍVEL
ANGINO VENTURIS ⎼ Não deixem nada fora de lugar. [O quarteto de
fuinhas já quase conclui a disposição do novo cenário. Sala vitoriana com a
parede de fundo repleta de quadros à volta de uma imensa tela central que exibe
o percurso de um trem em verdejante pradaria. Completa o quadro algumas
poltronas, uma mesa de centro, tapetão com motivos militares e quinquilharias
de toda ordem.] Não esqueçam o arranjo de begônias sobre a mesinha de canto.
[Entram em cena, sempre desajeitados, os dois anões budistas:]
XIM ⎼ Onde foram desencavar este
cenário tão cafona?
XUM ⎼ Fico a imaginar o figurino dos
bofes que vêm por aí…
ANGINO VENTURIS ⎼ Comportem-se, penitentes do inferno! Logo entrarão
os convidados, honoráveis conferencistas que desfrutarão um último chá e
retocarão seus improvisos para o glorioso discurso que brindará a redenção de
nosso reino.
ANARQUISTA RASPOK ⎼
Precisamos dum Bastoneiro pra bater o bastão na entrada dum convidado de honra.
E um berrador pra berrar o nome do distinto.
LOTÉRIO ⎼ O
Bastoneiro sou eu!
BOCARRA ⎼ O
Berrador eu sou!
XUM ⎼ O pote da direita eu sou!
XIM ⎼ O pote da esquerda sou eu!
ANGINO VENTURIS ⎼ Pode até ser, mas que cada um cumpra seu papel.
Desta vez não temos ponto. Os convidados exigiram que tudo fosse conforme a
mais severa lei dos improvisos. Berrador, prepara a garganta, aguarda o toque
do bastão e solta o verbo. Lá vem o primeiro convidado:
BOCARRA [tão logo ouve a pancada seca do bastão] ⎼
Respeitável público, com vocês o escaldante, temperamental, o próprio pavilhão
dos disparates, o incorrigível medalhudo das controvérsias, pastelão primeiro e
quase único, Xavier Chavigny… Que entre em cena!
XIM ⎼ O que faz um pote da esquerda?
XUM ⎼ O que faz um pote da direita?
XAVIER CHAVIGNY [entra com o folgado ar de
displicência e toma acento em uma poltrona] ⎼ Pelo que entendi nos prometeram um público maior. Sempre a
mesma coisa. Falaremos para as paredes e as baratas!
ANGINO VENTURIS ⎼ Atenção, Bocarra. Lá vem o outro convidado:
BOCARRA [tão logo ouve a segunda pancada do mesmo
bastão seco] ⎼ E agora temos ⎼ temos mesmo o quê? Já não me lembro, arre! ⎼,
ah sim, temos a preocupação de apresentar o estrepitoso, retumbante, polemista
mandingueiro, o grande mestre das trapaças, Anselmo Pícaro… Será que é isso?
Pois que entre!
XUM ⎼ Já sei, eu te chuto e te quebro todo!
XIM ⎼ Mas se me quebras, como é que eu te chuto?
ANSELMO PÍCARO [passa direto para
a poltrona vazia, sem dar por conta da existência de ninguém] ⎼ Algo me diz que nos meteram no
mesmo fiasco de sempre. Não sei por que ainda aceito essas honras de nada!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Os
dois anões são a metáfora perfeita da esquerda e da direita no parlamento. Se
dilaceram, quando chega o Nap… [Bastonada PAFFFF!!!]
LOTÉRIO ⎼ Pssssstttt…
Silêêêêêêêênnnnncioooo… O Berrador anuncia o próximo convidado…
BOCARRA ⎼ EXTRA!!!
EXTRA!!! OLHA O APITO VESPERAALLLLLL!!!!
Adentra no salão Almirante Laureto, diretor do APITO VESPERAAAALLLLLLLLLLLL!!!
XIM ⎼ Diabos, um milico de mediador!
XUM ⎼ Agora estamos para tudo. Vou buscar meus grampos.
ANGINO VENTURIS [visivelmente surpreso que não seja
ele o mediador] ⎼ Bem, devemos agora esvaziar o recinto. As câmaras
estão ligadas, o magnânimo Laureto tem a palavra, ele que conduzirá este que
certamente será o encontro do século, entre Anselmo Pícaro e Xavier Chavigny.
Saiam todos. Todos. Eu disse todos. Os potes devem ficar de fora, claro… Fora,
traponautas furibundos…
BOCARRA ⎼ Operação fácil… Pouquíssimas pessoas… Zaft-Zaft…
Lotério matou as baratas, só sobraram moscas. O local já foi esvaziado. O povão
quer romance de 400 páginas de amores infelizes, diabos de groselha, anjos de
chocolate, soft-sacanadge… Vou picando a mula. Deixo vocês entregues ao acaso.
Um dia alguém me contará o que houve. E darei ao relato a minha melhor
manchete.
OLUTÍPAC 0: SENTANDO A POEIRA
ANSELMO PÍCARO ⎼ Uff! Pensei que não íamos nos
livrar tão cedo da massa desse empadão insosso. Muito bem, meu caro Xavier, é
muito fortuito tê-lo aqui entre moscas e um milico aposentado. Enquanto se
desmanchava a bagunça estive olhando este quadro na parede. Curioso que lhe
tenham dado o nome de Trem das Revelações, como se anunciasse o fim dos tempos.
Veja bem naquela janela mais à esquerda, é a parteira Gumercinda com seu
sorriso desleixado. Considerando que a criação não deixa de ser um parto,
desconfio que ela é a verdadeira autora daquela nossa viagem, e não o
roteirista Olegário Trombeta. Mas claro, é uma tolice preocupar-se com autoria.
É um tema risível, como a ordem e a piedade. Temas, no entanto, fascinantes,
sobretudo porque nos despertam a negligência e o riso. A que mais devemos
devotar nossa incrédula existência senão ao riso?
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Por mais sérios que tenham sido ilustres
damas e cavalheiros, o que sobra no fim é o riso interminável das caveiras…
Todas as caveiras riem às gargalhadas… Por que elas riem tanto?… Talvez seja da
iniquidade dos sonhos de ordem, piedade e justiça de seus antigos donos. No fim
de tudo… Só resta essa gargalhada interminável…
ANSELMO PÍCARO ⎼ Não parece engraçado que Dom
Quixote seja mais lembrado do que Cervantes? O mesmo se passa com Sherlock
Holmes. Quem se lembra de Conan Doyle?
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Cervantes é importante por causa
do Quixote. Então, o Quixote é mais importante e mais famoso que o Cervantes. É
o mesmo caso do Conan Doyle: Sherlock é mais real que Conan Doyle. Sherlock, a
bem dizer, inventou o Conan Doyle.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Ora, mas se o Diabo não
estiver por perto Deus estará sempre longe, sempre fora de alcance.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ O Diabo sempre quer andar por perto, ele gosta de se
enturmar, e aparecer pessoalmente em sabazinhos
na noite de sexta pro sábado. Mas Deus sempre está oculto, ele quer pôr à prova
quem acredita, sem que ele apareça. Todos acreditavam nele, mesmo que ele nunca
aparecesse. E também acreditavam no Diabo ao mesmo tempo temido e… desejado,
pelos prazeres proibidos que prometia: o Jardim
das Delícias. Isto até a virada do Século 19 pro 20, quando, com o triunfo
final do racionalismo científico, Deus passou a ser uma sublimação de beatas de
procissão, e o Diabo uma grosseira superstição. Todavia com a mutação das
camadas geológicas próximas ao centro ígneo da Terra, o Inferno se deslocou pra
superfície de nosso planeta. O Diabo e seus funcionários têm agora pleno acesso
à nossa sociedade de consumo liberal globalizada. E, dada a ignorância
metafísica que embasbacou definitivamente a Humanidade, o Diabo e seus capangas
não são identificados, e preparam aceleradamente o Fim da História, com a
destruição do Meio Ambiente, pelo envenenamento plástico de aves e peixes,
desflorestamento e poluição atmosférica, roubalheira desenfreada de magnatas
industriais e banqueiros, terrorismo salafista internacional, e proximamente…
terrorismo nuclear. Este fim de festa, que já começou, da Terça-Feira Gorda
Final, conta com a nossa presença, porque afinal, qualquer prazer nos diverte,
e nem toda a tristeza nos faz chorar…
ANSELMO PÍCARO ⎼ O mundo não se pôs de perna para o
alto à toa. O que estamos vivendo hoje, mais do que de algum modo, é um reflexo
do que prevaricamos e não soubemos frear. Os calos ideológicos mal se disfarçam
e há registros por toda parte de trapaças, negociatas, comboios monetários,
blackouts, quedas de governo, estopins em safras e retentoras. A expectativa
humana será sempre a de um dia após a conquista, como um sonho que reflita uma
nova sociedade. Não há lugar para os desastres sociais na inocência com que o
homem pensa em seu futuro. Ninguém sonha em ser um fauno cozido. Os pesadelos
demarcam a cartografia da existência. Por que a terra cai por terra? Porque não
damos a mínima para as variações crepusculares. Não me comovem os membros
decepados de uma vítima fora de esquadro. Os cárceres se entopem de conduções
de julgamento. Talvez sejamos todos terroristas hoje em dia. Todos queremos
destronar alguma fraude. Não sei se viveremos muito tempo assim, até que nada
mais se justifique.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Sempre haverá qualquer coisa que se justifique: a
justiça não é tão cega quanto parece. Deixa sempre uma bordinha da fenda
levantada e acerta o porrete na cabeça dos descontentes com o sistema jurídico
vigente. E a ordem jurídica será sempre preparada pelos donos do poder, que são os protetores da
Justiça e da Verdade pro bem do Povão. Quem reclama é subversivo. Se o
subversivo for Doutor trata-se dum louco, vai pro Hospício. Se for pé-rapado,
leva o porrete. É o modelo do Juízo Final. Pros Bons, o Paraíso. Pros Doutores
e Loucos, o Purgatório. E pros Rebeldes Pé-Rapados, o Inferno.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Onde já se viu que destemperado
abuso de inocência imaginar que o mundo viesse a ser distinto do que reza
aquela cartilha redigida em nome de todos os santos! Aqueles que se julgam
inocentes guardam em si a verdadeira chave da culpa. E acabam por cometer os
crimes de que são acusados. A razão de ser das religiões se encontra na
contradição caprichosa de seus deuses. Todo aquele que procura um motivo para
escapar do ambíguo tempo do esquecimento, repete um velho truque previsível das
dissimulações. Não pode haver beleza na retidão.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Ungido pelo Bispo, por Direito Divino, o Rei engole a
chave da culpa, e guarda pra sempre sua inocência impoluta. Além do apoio
sagrado do Clero, tem o Rei os seus canhões prontos e soldados a postos, para
defender o Reino contra eventuais Potências apóstatas… E na esfera nacional os
Juízes sancionam a Lei e, com o aparato policial bem equipado, pra manter a
Autoridade Constituída e baixar a borracha em ladrões de galinha, receber
magarefes traiçoeiros e empastelar pasquins subversivos.
ANSELMO PÍCARO ⎼ O Rei é a chave do Reino. E
tremula dentro de si o lábaro do orgulho. O Rei degusta pastel de silicone
diante das câmaras em horário nobre. E manda cunhar seu perfil nas moedas
falsas que distribui ao povo. O Rei é o ovo confiscado na primeira hora da
madrugada. A lei zomba daqueles que nela acreditam, enquanto o Rei manda cortar
a cabeça das ratazanas do antigo império. E tornou julgamento do século o caso
intrigante de um juiz de futebol de várzea que pichou no muro do campinho: Rei que é Rei dá rasteira em sucuri.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Com a decadência da Europa, os Reis estão passando pro
Oriente-Médio e Extremo-Oriente. A Turquia elegeu o Sultão Oberdan, que abriu
um bazar pra trocar refugiados com os que aportaram na Grécia, e querem ir pra Alemanha, mas os húngaros e
macedônios não deixam passar. A troca de refugiados é como se fosse uma troca
de selos por filatelistas. Rainha Nerkel da Alemanha coleciona refugiados
sírios. O Papa Pancho iniciou agora sua coleção, e só quer refugiados
muçulmanos, pra prestigiar o Ecumenismo. O Dalai Lomba ultimamente não tem
obtido muito sucesso nas Cortes europeias, porque Presidente Xuzong de Peking
corta as importações chinesas do Rei que ao Lomba ofereça grandes homenagens e
banquetes vegetarianos. Mas na área literária, Dalai Lomba é um best-seller e
segue aprontando best-sellers de bons conselhos orientais, de como sentar de
pernas cruzadas sem cadeira, e escolher a cor mais favorável das chinelas. Mais
favorável… pra quê? Isso, o Lomba não contou, e, em vez de falar, aprontou um
sorrisão com seus ebúrneos dentões.
ANSELMO PÍCARO ⎼ O Papa Pancho é o Rei do
Garrancho. Julga que o que rabisca vira lei e se põe e borrar os cadernos do
mundo com suas letras esmiuçadas cujas bordas ninguém soletra. O Papa Gancho
acredita piamente que a Realidade não pode se interpor no caminho acidentado da
Fé. E borda os costados da terra com seus manuscritos invisíveis que em nome de
um mito que ele sacramenta decide com quantos pecados se compra uma inocência.
Por isto que o Papa Ponche segue com seu roteiro de mediunidades apócrifas,
consagrando ao rei de cada lugar um assento a seu lado desde que se converta em
humilde refugiado em seu tolerante coração. O Papa Concha escolhe as cores de
todas as chinelas do mundo, mesmo que não venda mais tantos santinhos quanto
seus antecessores.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Realmente, devemos reconhecer que a venda de santinhos
vem caindo progressivamente, e as famosas Estampas Palestrina, com belas
garotas em poses provocantes, estão vendendo mais que a produção devocional. Seria mesmo inútil querer negar esta
crua realidade, porque a Editora Palestrina alugou loja defronte à Loja
Beatífica. O sacristão Tancredo tentou maleivosamente trocar o roteiro das duas
filas de modo a canalizar a multidão filosófica da Palestrina em direção à Loja
Beatífica, mas seu estratagema foi desmascarado logo após as primeiras vendas,
e a multidão, explodindo numa rebelião das massas, esfacelou o pobre sacristão
que, moribundo, no Pronto Socorro pronunciou suas últimas palavras, que foram?…
ANSELMO PÍCARO ⎼ Não tanto por ser crua, mas antes por ser nua. O filósofo Alberto
Teleco soube através de um repórter que foram estas as últimas palavras do
sacripanta sacristoso, e logo tratou de desenvolver tese e antítese a respeito.
Ao publicar o livro, em discurso de lançamento, após dizer que o mesmo em breve
estrearia adaptado à sétima arte, abordou o que chamou de inclinação casuística
para a queda, segundo ele a marca de nosso princípio de século, em que toda
forma de discórdia é um estratagema malévolo. Ao final exclamou que as redes
sociais preparam a volta do Anticristo.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Estariam as redes sociais preparando a volta do
Anticristo a sabendas? Ou inconscientemente, por pura ignorância e
irresponsabilidade?… Não creio que o Anticristo quisesse que a manobra fosse a sabendas, porque teria ele
então de aturar as homenagens entusiásticas das abestadas massas fanatizadas.
Por outro lado, se a manobra fosse feita por simples ignorância, não creio que
o Anticristo fosse querer se aproveitar duns pobres palermas para propiciar sua
volta. O Anticristo volta por conta própria, sem dar comissão a ninguém, e
muito menos ao Alberto Teleco. O Anticristo já se instalou na Torre da
Babilônia, de maneira grandiosa e terrível. Só que nem as redes sociais nem o
Teleco nada percebem. O-Ro-Ro-Ro-Rooooooooooooooooooo!!!…
ANSELMO PÍCARO ⎼ Há até mesmo que defenda que a
pobre alma desencarnada não passa de patético figurante em um opúsculo que o
falastrão Teleco escondeu em sua gigantesca morada-biblioteca antes de morrer.
Já não importa. Se há um Anticristo entre nós é astucioso o suficiente para
confundir-se com o Criador. E nossos pecados nós os mascamos como se fossem a
mais dourada e crocante fatia dos biscoitos consagrados de Dona Carmosina.
Também a verdadeira arte é a que não se faz notar, a que nos alimenta com a sabedoria
imperceptível de seus caprichos. Dona Carmosina foi quem nos ensinou a tirar o
cavaco do pau.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Nossos pecados são os pastéis volantes da carrocinha do
Anão benfazejo… Que se dissolvem em divinais delícias em nossas bocarras escancaradas…
O Deus Rascazumba nos transforma em dragões terríveis com lâmpadas na goela, de luz ciclame fulgurante,
na entrada monumental do Cinema Acapulco, onde a bilheteira Romita Martírios,
com seus peitões suculentos pousados na pracinha do guichê barroco mexicano em
forma de sacrário oficia a venda de bilhetes pra tifosada em delírio que se
imprensa contra a boca do guichê e luta de faca, cada um querendo ser o
primeiro a chegar ao sacrário de Romita. Alguns mortos e vários moribundos que
em seus finais estertores sussurram Romita!
Romita!… E morrem em estado de graça, com alentos de santidade e tequila.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Enquanto isto a turba que não
conseguiu ver os peitões nem mesmo nos telões armados em volta da praça grita
com o batuque bizarro de suas vozes: Golpe,
golpe, golpe!!! O guarda Pascal era um moralista de fachada (ah o reinado
fulgurante dos pleonasmos!) e achou por bem levar para o xilindró um papagaio
de pirata que escondia sob as penas umas pedrinhas suspeitas. O bichinho ao ser
fichado repetia: E digam ao verde loro
dessa crônica… Já ninguém mais falava em Anticristo, Teleco ou Papa Sancho.
Todos queriam provar daquelas pedrinhas, desde que alguém afirmou que era o
caminho mais curto para os atributos de Romita Martírios. Minutos depois, a
cadeia inteiramente depredada e vazia, ainda se ouvia a voz quase afônica do
gravador caído ao chão: Golpe, golpe,
golpe!!!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ O gravador parece estar gravando agora!…. Pra não nos
comprometer, vamos ligar a Rádio Lambada, que transmite futebol… A partida
final da Taça Brasil, no Estádio Candango de Brasília: o Perua Verde, campeona del
Cálcio em San Paolo, joga contra o Galo Proleta de Belo Horizonte. A Perua
Verde, apoiada por colossal tifosada carcamana, vai ganhando o jogo de cinco a
zero, e já estamos na prorrogação, de três minutos… Conseguirá o Galo ainda
fazer uma reação milagrosa e fulminante? A treinadora do Galo está preocupada,
e a torcida proleta brada: Golpe, golpe, golpe!!!
ANSELMO PÍCARO ⎼ O juiz de várzea Aristófanes
Tribeca por três anos presidiu o Sindicato da Sacola Furada, e sobre ele recai
agora a suspeita de haver levado o jogo para o terceiro turno, contando com o
desgaste da torcida e o efeito da água Passadena distribuída no vestiário do
Perua Verde. Rádio Lambada brada e ecoa todos os pequenos vícios da retórica
desportiva, o jogo mantendo o empate até que aos tantos de tempo ⎼ já ninguém contava nada ⎼ o ponta Rigoleto se vê diante do
gol e chuta meio sem força a bola que iria direta para as mãos do goleiro não
fosse o inesperado fato de que o mesmo… Desapareceu! O goleiro simplesmente
sumiu e a bola entrou, sob os gritos destampados e famintos da torcida: Golpe, golpe, golpe!!!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ O tumulto engrossa barbarescamente!… Eis agora César
Lanterna, o enfurecido locutor da Rádio Tribuna, que toma a palavra, espumando
de raiva contra o time do Galo Proleta, rola no chão e morde o microfone,
babando e vociferando ensandecido contra a treinadora Wilma, do time
esquerdoso. E de que lado se posicionará Mustafá Aluf, o chefão do Partido
Libanês? Certamente tal Leônidas nas Termópilas, a favor da Perua Verde. O
poeta neoclássico Ridobaldo, defensor da Perua, recita para o estádio
embevecido: Verde que te quero, Perua
Verde… Aplausos dos peruas, apupos dos galos. Começa o quebra-quebra.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Certos enigmas ninguém se arrisca
a decifrá-los. Um dia Abigail Cervantes foi encontrado em um passeio público,
descaminhando de tão a esmo que foi visto. Samanta Sirius conversou com ele.
Suas palavras, muitas delas desencontradas entre si, davam notícia de um
alarmante caso de abdução. Quem não recorda o mistério do desaparecimento
súbito do goleiro do Galo
Proleta de Belo Horizonte, no instante em que ia facilmente defender um chute a
gol? Aos ouvintes da Terceira Rádio, contou-nos Samanta que Abigail havia
descoberto o significado das coisas verdadeiramente perdidas. Certos símbolos sugam de nós até mesmo a
pronúncia do desejo. Pairamos na névoa como monstros assustados. Todas as
nossas crenças são revertidas. A inteligência não encontra saída para nada.
Nossas vacilações por fim nos asfixiam. Os sonhos perdem suas palavras
amorosas. E sempre que estamos a ponto de vislumbrar um outro modo de ser, a memória
se refaz por um instante e traz à tona a lava atormentada de nossas escolhas.
Um relato comovente, embora não tenhamos entendido lá muito bem o que houve.
Compreendeste algo, Xavier?
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Creio que o desvalimento do Abigail Cervantes se deve à
ausência de Pancho Santos, seu fiel assistente que saiu prumas merecidas férias
após 20 anos de ininterrupto e devotado serviço. A loucura genial do Abigail
precisava do contrapeso da burrice prática de seu escudeiro. Enquanto isso, a
treinadora Wilma segue pressionada pelo astuto Mustafá Libanês Esteves e seu
Gato Angorá.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Até onde o imprevisível tem voz na
tessitura de uma fábula? A memória entoa seu cânticos de conveniência. Mustafá
é o grande regente da memória. Suas falas como gemas da fecundidade agindo em
sentido contrário. Tudo nele é uma extensão do que jamais será. Wilma se sente
acuada, descalça como está, não quer pisar na passarela de vidro moído que ele
preparou para ela. A casa cobra em dobro pelos dados viciados. Alexandre o
Pequeno fuma garboso a paisagem de seda em seu tabaco bem socado. A lua se
espatifa lá fora. Aqui dentro todas as cartas cavalgam em busca de um ideal sob
encomenda.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ E o Galo Proleta será empalado no meio do campo do
Estádio Candango pela sardomazorquista Perua Verde!… É o Fim do Sonho?… Ou é o
Sonho do Fim?… A Ztória do Gigante Pindorama é na Roda Gigante do Luna Park,
onde o Progresso avança num trajeto circular… É o Eterno Retorno!… A História
avança pra se repetir indefinidamente… O Gigante subiu, subiu, e… De repente…
O-Ro-Rooooooooo!!!…
ANSELMO PÍCARO ⎼ Quanto talento perdido! Bem
poderiam ter sido aproveitados na versão zip-zap eletrônico do Circo Cyclame. Tantos personagens de
quermesse! O futuro mais parece uma traqueia entupida. O Luna Park tem aqueles
palhaços mecânicos movendo a cabeça desafiando quem lhes acerte a boca aberta.
Ninguém acerta, claro. Ou percebe que o truque está no vento que sopra pela
lateral mudando sutilmente o trajeto das bolinhas ocas. O modelo de Eterno
Retorno que temos hoje veio da fábrica de elipses e espirais Harmonia Quântica.
Talvez esteja na hora de começarmos a nossa conferência. Já temos público?
OLUTÍPAC -1: ANTES QUE A CARAVANA PASSE
ALMIRANTE LAURETO ⎼ Não há quem possa conter o avanço da multidão. O ciclo está
tomado de hipóteses contraditórias. Vamos ao povo! Abram-se as cortinas. Hora
da retórica beber água. Com a palavra, Xavier Chavigny, nosso proeminente
lírico!
XAVIER CHAVIGNY ⎼ É com mal contida emoção que tomo a palavra ante tão
ilustre plateia… Perdoai-me, pois, se devo puxar meu lenço janpatu do bolso e
fungar FOOOOONNNNNGGGG pra desentupir as fossas nasais umedecidas e entupidas
qual trincheiras da
primeira Guerra Mundial, quando Guillaume Apollinaire levou um tiro na cabeça,
enquanto o Kaiser e o Tzar acompanhavam no rádio as peripécias de seus bravos
soldados, que se estripavam com as baionetas caladas… (os gritos eram dos
espetados) Assim também eu, vosso Sentinela de Pompéia, aqui me perfilo para o
que der e vier, e vos defender do Vesúvio que está lançando larvas de bosta e
burrice complacente iluminista, trazendo luz pras trevas ⎼ Mais Luz! Mais Luz!,
brada Goethe em seu leito de morte em Weimar ⎼,
pra acalentar vossos belos sonhos de desenvolvimento pra todos, direitos
humanos, ecumenismo mundial, os pobres receberão dos ricos suas bananas
recicladas. os chineses comerão pastéis mexicanos, o Sultão Oberdan parará de
fazer exigências descabidas a Dona Nerkel, e haverá uma troca de coleção de
refugiados árabes… Até aí tudo bem. Mas quem trocará os refugiados pretinhos
que chegarão em breve, segundo prediz Doutor Cascavel, em cargas de milhões de
milhões?… Passo a palavra ao nobre colega Anselmo Pícaro.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Junto com a palavra também me
passas uma enrascada. Como alguns já devem saber a União dos Sete Reinos
recebeu a encomenda de três aviões com nove asas que rebocarão as cargas
famigeradas para que apodreçam na América. Por mais que se abuse da piedade não
haverá refúgio suficiente para tanta miséria em transição. Todas as leis se
ajustam aos músculos aleatórios das mais vis consciências. A única espada que
persiste é a do Eterno Paradoxo. Uma espada desnuda que reflete mil lábios
antes de rasgar a carne que se ponha à sua frente e não comparta o horror de
seus beijos. Não há mais necessidade de julgamentos. Todos os culpados já foram
identificados. Muitos foram escolhidos. Outros tantos se voluntariaram,
ansiosos pela sopa alucinógena que ouviram dizer seria servida durante a
viagem. Deus tratou logo de por a viola no saco e ir escrever outra fábula o
mais distante dali. Para muitos as revoluções foram uma perda de tempo. Tanto
sonho derramado dentro de corações que logo esqueceriam as razões daquelas
tempestades. Queres a palavra de volta, Xavier? O homem sempre achou o
subconsciente um mecanismo demasiado extravagante.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Obrigado, Anselmo. Eu havia te passado uma enrascada
bem embrulhada em papel celofane dourado com barbante verde e tu a escancaraste
e mostrastes todos os podres para nossa horrorizada assistência. Eles vieram
pruma matinê de alegres pasquinadas e foram confrontados e esfregados nas
cândidas faces com a sucessão insuportável dos pavores globais e cósmicos de
uma comédia dantesca de inexorável realidade física e metafísica. Os gritos,
choros e lamentações de crianças apavoradas, mães de família ultrajadas e pais
e sacerdotes indignados, ameaça provocar uma rebelião das massas
descontroladas, quando toda a candura de súbito se transforma numa fúria
bestial contra os oradores. Vamos sair com um sorriso de adeus e rapidamente
desaparecer nos bastidores. O bravo Almirante Laureto, enquanto isso, com sua
força e autoridade tranquila, saberá conter o público. Senhoras e Senhores,
Respeitável Público!!! Anselmo e eu vamos sair um pouco prum intervalo, e o
Almirante vos contará algumas piadas e o Anão venderá a todos sorvetes, pipocas
e amendoim.
ALMIRANTE LAURETO ⎼ Todos que estamos aqui já devemos ter em mente que a realidade
é a verdadeira caixinha de caramelos atômicos de Pandora. Uma mulher ⎼ de seios robustos e um enxame de
caracóis na face contemplativa de seu desejo, três vezes saída do mesmo vestido
⎼ passeava distraidamente pelo
jardim quando tropeçou em sua descuidada sombra. Por que te pões assim à minha frente, sempre que o sol me beija as
costas? Com um frio na alma, a sombra recostou-se em um caramanchão, sem
saber o que dizer. [O público ria, o Anão faturava.] O jazigo de família era
pleno de imperfeições. Todos os parentes se foram deixando um rastro de
insatisfações, muito mais do que a dor letárgica da perda. [O público não viu
graça, o Anão faturou dobrado.] Em noite chuvosa a mulher entra no ônibus vazio
e toma assento justo em um lugar cuja goteira lhe pinga compassadamente no
ombro. Durante todo o trajeto o motorista observa a cena pelo retrovisor, até o
momento em que a mulher deixa o ônibus, não sem que ele lhe indagasse o motivo
de não haver trocado de lugar. E com quem
eu trocaria, se o ônibus estava vazio? [O público gargalhava, o Anão vendeu
tudo.]
ANSELMO PÍCARO ⎼ Não te empolgues, Almirante. Já
descansamos o bastante. Deixemos que fale agora nosso lírico:
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Respeitável público!!… Eis que o Coveiro arrasta o
caixão do Conde Vosferato pro meio do picadeiro. O Anão, trazendo enorme
grinalda, acompanha a desesperada viúva que chora e soluça num branco lençol de
rendas. E eis senão quando… PLAFTTT!!!
a tampa se abre, e surge Conde Vosferato, que se perfila de casaca e medalhas.
A viúva geme em ecos vesperais. Aproveita-se o Conde do espanto geral, salta
fora do caixão, toca ao violino uma sonata de Paganin e, enquanto o público
aplaude em delírio, s’enfia nas cortinas e foge pros bastidores. Porém Frei
Feijão não quer interromper a cerimônia fúnebre. Mas o defunto fugiu, Frei Feijão!, exclama o Almirante. Pouco me importa!… Com defunto ou sem
defunto, o enterro não pode parar! O Almirante tem uma ideia luminosa e
estala os dedos: Plek-Plek!!! Eureka!!!
Coloquemos o Anão de defunto!… O Anão quer fugir, mas o Coveiro Hércules o
agarra com garras de aço e gargalha terrível: O-Rô-Roooooooooo!!!… Temos agora um defunto fresquinho pras nossas
Pompas Fúnebres!…
ANSELMO PÍCARO ⎼ O que andaste fumando no
intervalo, Xavier? Quanto pagaste ao Frei Feijão para vir do Circo Cyclame dar uma canja em nossa
viagem? [Gargalhadas] Veja a bagunça em que deixaste o cenário. Acho melhor
chamar o quarteto de fuinhas para limpar tudo. Enquanto retomamos o rigoroso
roteiro de nossas improvisações. Como evitar envolver-se com o sexo ao
ensaiá-lo para uma cena no palco? E com o horror? Como separar a realidade de
sua ficção? Quando o mecanismo da perversão ou da psicose é posto em evidência
de forma tão crua, como apagar a luz do teatro, sair dali e ir para casa
brincar com as crianças?
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Pois é, Anselmo, este é justamente nosso metadrama… Não
conseguimos mais separar a realidade da ficção, como o fazem, na sua feliz
inocência, as romancistas de renome, e os escritores vencedores do Prêmio
Norbel. Justamente!… Como VOCÊ colocou
em evidência o mecanismo da perversão psicótica de forma tão crua, agora não
podemos mais apagar a luz do teatro, e tampouco conseguimos sair.
COVEIRO HÉRCULES ⎼ Fechei
todas as portas!!!… NINGUÉM PODERÁ SAIR NUNCA MAIS!!!! O-RO-RO-RO-RO-ROOOOOOOOOOOOOOOOOOOO!!!!!!
PÚBLICO [em pânico] ⎼ SOCORRO!!!
SOCORRO!!! SOCOOOOORRRROOOOOOO!!!
ANSELMO PÍCARO ⎼ Reparou como as noites andam com
aquela cara de cadafalso encomendado? Por mais que a gente prefira um
picadeiro… Xavier, a realidade azucrina qualquer um, é uma paliçada de papier
mâché, um jogo da
macaca para cadeirantes, uma procissão na qual foi roubada a charola da
padroeira Socorro Quilavengente… A realidade não conversa com negociadores e
faz chacota das portas fechadas. Por mais fundo que cavemos, jamais
encontraremos sua contraparte. A realidade não possui sombra ou reflexo no
espelho. Não ouve toque de recolher ou conselhos de cura. A realidade é a
lembrancinha que ainda hoje o Diabo sonha em ganhar…
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Pois é, Anselmo, a Realidade é
assim mesmo… É chata de nascença, mas temos de aguentá-la, porque é nela que
existimos… Mas, quando ela cisma de aporrinhar demais, sempre podemos ir pro
lado da Fantasia. A Ciência sempre quer ficar junto à Realidade. Mas a Poesia, sem a Fantasia, não
pode achar graça na Vida. Como dizia o Sócrates, qualquer prazer me diverte,
mas nem toda tristeza me faz sofrer.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Esse Sócrates certa vez deu chá de
cicuta para o juiz de um campeonato de várzea onde ele batia bola. O pobre
parecia a engrenagem estropiada de um foguete de quermesse… Era um
frasista-relâmpago, como aquele sonolento dramaturgo brasileiro, os dois tinham
uma quedinha pelo futebol, a verdadeira arte do povão. Segundo ele a
consciência da ignorância tornava qualquer um sábio. Há quem diga que declarou
que queria morrer em um domingo em que o Corinthians fosse campeão porque se
sentia imortal. Toda vez que a Poesia bate uma asa pela Reza de Salão dá nisso.
Talvez seja este o motivo por que Ciência prefira beber sozinha. Mas talvez nem
seja metida a besta e não se enturme apenas para não procrastinar seu destino.
Isto em tese.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ A Ciência é parecidíssima com Madame Curie. E
vice-versa, ninguém mais parecida com Madame Curie do que a Ciência. Seu marido
Juliot também era cientista. Mas não jogava no primeiro time, nem ganhou o
Prêmio Norbel. Mas um excelente rapaz, mantinha nutrida correspondência com
Omar Khayan. Isso porque Omar Khayan era um matemático extraordinário. Mas
tinha mania de escrever uns livrinhos de sacanagem… Por isso… não ganhou o
Prêmio Norbel. Um cientista precisa ser sério, pra receber aprovação de seus
confrades. E, eventualmente, sacar um Prêmio Norbel. Doutor Oswaldo Cruz, outro
grande cientista. E… revolucionário. Criou um batalhão de soldados chamados
Mata-Mosquitos. Tinham uma Bandeira Amarela. E Dr. Oswaldo Cruz outorgou-lhes o
direito de entrar na casa de todo mundo, pra matar os mosquitos. De preferência
na hora do trabalho quando os maridos estavam trabalhando. O que deu margem a
suspeitas maldosas, e a uma revolta da população do Rio de Janeiro. Foi preciso
que o General Carranca, à frente de um batalhão de cavalaria, os Dragões da
Independência, invadisse o subúrbio pra acabar com a furibunda batalha. Os
mosquitos, nessa confusão, aproveitavam para continuar sua sádica difusão da Febre Amarela.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Certa vez estive com madame
Marcela Zarate, uma divertida jornada no Bateau-Lavoir onde os convidados
desfrutavam o melhor vinho da casa e o excitante jogo “Quando te vi pela
primeira vez”. Noite de inspiradas confissões. Soubemos do encontro de Jayme
Ovalle com uma das amantes de Picasso, quando o músico brasileiro se muniu de
um punhado de pincéis e se pôs a imitar o pintor espanhol por todo o corpo nu
da bela mulher. Rimos do relato desajeitado de Sulamita Rosa recordando a
fatalidade de sua primeira aventura extraconjugal, no Hotel Lutero, quando foi
surpreendida pela morte do amante em pleno orgasmo. Teresa Penaforte saiu do
jogo aos gritos e logo percebemos que não era ela quem estava ali, mas sim uma
das vítimas de suas confidenciadas trapaças. Foi nessa noite que conheci Valentine
Curió, que presidia a Sociedade A Mão do Artista. Ela me garantiu que em outra
encarnação eu fui um demonólogo, de nome Pierre-Maurice, que sabia de cor as
manias do pançudo Behemoth, do esbaforido Forcas, do irrequieto Marchocias e
muitos outros. Ela me disse que como poucos eu sabia reconhecer os demônios
sagazes que nos enganavam a todos metidos em suas formas divertidas. Valentine
Curió contornava docemente meu rosto com o dedão de seu pé esquerdo enquanto me
contava da coleção de chifres, caudas, unhas, pênis, cascos, línguas, os
atributos que fui conquistando cada vez que desvendava o disfarce daqueles
diabos todos e meticulosamente os desfigurava. Foi assim que descobri que a
Ciência não pode ser de todo uma inimiga da Arte. Mas certamente que
alquimistas e demonólogos jamais poderão ganhar o Prêmio Norbel. Assim como
futuristas e ufólogos.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Os ufólogos, com o desaparecimento dos discos voadores,
foram perdendo seu prestígio. Mas conviria saber por que os discos voadores de
repente deixaram de aparecer. Duas hipóteses se levantam: a primeira, de natureza
comercial, é a de que a fábrica de discos foi à falência. A segunda, pouco
favorável ao nosso prestígio no Cosmos, é a de que os extraterrestres se
desencantaram com nossa ignara empáfia e espírito destrutivo, e acharam que não
havia maior interesse em aproximarem-se duma espécie que está destroçando
aceleradamente o próprio planeta.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Ou talvez já estejam entre nós, de
tal modo que não necessitam mais de naves e não se revelam porque ainda não
chegou a hora. Devo confessar de público um mal de que padeço: Enfadus Repentinus. Não, não é latim, é
apenas uma troça. Fazíamos muito isto no Colégio de Patafísica. Recordo agora
que tanto lá quanto esta noite, jamais me alcança tal enfado. Extraterrestres
devem comer em nossas tigelas, deitar em nossas camas, flanar por nossos
pastos. Ter ciência disto e desconhecê-lo é um estímulo para nossas
peregrinações por terras as mais distantes, por mundos tangíveis ou imaginários.
Veja, Xavier. O quadro
do trem ali na parede. É apenas a lembrança de uma viagem, mas como dói.
Qualquer plagiário de quitanda diria isto. No entanto, o que me inquieta é o
motivo verdadeiro de sua ousada meta não haver se cumprido. Por que o trem não
teria chegado à China? Quais obstáculos mascam os sonhos antes que eles se
realizem?
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Nossa única esperança é que os Marcianos EMBURREÇAM,
com o contato prolongado e contínuo com os Terrestres. O Macaco Ancestral nos
protege… Comendo suas bananas no Zaztral.
ANSELMO PÍCARO ⎼ Acho melhor sairmos logo de vez
para pescar.
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Pois vamos pescar!… Almirante, feche bem o trem, e
ponha na porta o cartaz:
FECHADO PRA CONSERTO
OLUTÍPAC ∾: O FUTURO A TODA PROVA
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL
NICOLAU SAIÃO
FLORIANO – Ouvi dizer que a nossa viagem seria
finalizada com uma declaração de corpos da parte de seus feiticeiros. Onde?
Sempre tivemos a ideia, naquele rojão sobre trilhos, de que o tempo não se
converteria jamais em maleta metálica de oferta. Aos diabos menores a ideia de
que tempo é dinheiro. Nosso trem partiu de um lugar inexistente no mapa e
vislumbrava atender a uma realidade geográfica faturada por caprichos que até
hoje desconhecemos as razões. Quem trouxe Lili Fong para nossa máquina e
definiu os planos de rota? Alguém não acha que deveríamos falar disto antes que
os pais dos mistérios cedam entrevista a um, ora, soube agora, a um português,
justo a um português…
ZUCA – Mas afinal… foi um português quem descobriu
o Brasil!… Imagine só se fossem os espanhóis… Estaríamos todos de poncho,
seguindo a procissão de Santo Azteco, e cantando boleros pra Maria Felix…
FLORIANO – Ah quem sabe não foste tu, Zuca, a trazer
Lili Fong a bordo! Ou aquele ouriço-cacheiro, o tal de Angino Venturis, de quem
sempre desconfiei! Tivéssemos sido descobertos por espanhóis não seria garantia
de que estaríamos hoje empanzinados de tanto comer farinha e menos ainda que já
teríamos passado do Mobral. A realidade se equivoca sempre que faz planos para
ela mesma. Quem diria que dos maxixes que deram no samba canção e na bossa nova
nós acabaríamos chegando à música caipira e ao pagode!
ZUCA – Friedrich Nietzsche sempre comprava bilhete
de trem de ida-e-volta. É o Eterno Retorno. Quem trouxe pro trem a Lili Fong,
suspeitam que foi o Frei Feijão, que se esforçava em catequizá-la, para que se
livrasse dos pecados fenomenais, abandonasse as vãs fumaças do Budismo, e
abraçasse a Fé Verdadeira pra salvação de sua alma imortal, o que serviria de
estímulo pra catequese do Xibet. Quando ela já estava quase aderindo… tomou-se
de súbita paixão pelo Presidente Xipong e pela Rebulição Gutural da China. O
retratinho no frontispício do livrinho grená do Presidente de fardão abacate
contra fundo abóbora tem um poder hypnótico, que mesmeriza o leitor e, mais
ainda, a leitora, no caso a Lili Fong, numa fúria de fatal paixão cívica.
FLORIANO – Fartos de
tanto revender suvenires de barro nos Picos de Europa e na Serra da Meruoca,
nossos heróis sem fronteiras pensaram em inventar um novo país, mesmo cientes
de que a história nunca foi bem sucedida em tal empresa de fachada. Para tanto
precisavam de um transporte transcontinental acima de qualquer suspeita. Nada
melhor nessas horas do que a mala diplomática, esse acumulador orgiástico de
pecados cívicos. Tudo funcionava muito bem no reino das mutretas, não fosse a
velha usura sobre a qual tanto já havia alertado o poeta engaiolado dos cantos
tortos. Inevitável. Enquanto uns faziam serão, outros perderam a receita de
vista. Quando enfim desvelaram a senha da caixinha preta do desastre ecumênico,
encontraram ali repousando parda eminência de um envelope sem lacre, contendo
em letras gregas uma única frase: “O guardião saiu para pescar”.
ZUCA – Nosso tramalhão é
nietzscheano… o Eterno Retorno!… Nunca conseguiremos acabar a peça!… Nosso
teatro é uma Máquina Infernal!… É o realejo perneta do Seu Mateus e seu
macaquito que passa os bilhetinhos da
sorte pras lindas caboclas da pracinha… Seu Mateus gira a manivela, gira a
manivela sem parar e a música volta e revolta e nunca se acaba… E nunca se
acaba…
FLORIANO – Desde a primeira palavra que o roteiro
aprendeu a caminhar através de todas as coisas. Eterno Retorno, Ouroboros, Moto
Perpétuo, Ciranda-cirandinha… Nossas aves já nascem voando. Nossas sombras
acasalam com miragens. A cada noite, antes de adentrar o véu dos sonhos,
desfrutamos um chá de chaves elementares. Nossas letras estão destinadas a
substituir. Nós somos o espírito da multiplicidade. O globo primordial que
guarda a quintessência de todas as almas…
NICOLAU SAIÃO – Começo com a expressão proverbial: “Quem
somos, de onde viemos, para onde vamos?”. Como é que vocês, poetas dobrados de
entidades repletas de senso-de-humor, se posicionam ante esta proposição tão
cheia de sugestões de diverso recorte?
ZUCA – Boa
pergunta, Nicolau… Quanto melhor a pergunta, mais difícil é de responder…
Justamente dado o caótico trajeto do trem, já não sabemos mais se vamos pra
Carthago, ou pro Popocatepel, e donde viemos, dado o caos do trajeto, já não
sei mais exatamente donde, e me pergunto se o Floriano, mais jovem, e de melhor
memória, mais catimbado, poderá nos responder, com maior precisão do que cá
este desmemoriado velhote…
FLORIANO – Com os
seis sentidos bem afinados e sem que a posição
seja ortodoxa, sob qualquer ângulo. O mundo, no que diz respeito à espécie
humana, é uma casa de loucos, de modo que tempo e espaço são as duas arapucas
mais tolas que existem, muito embora haja tolos suficientes no mundo para
mantê-las em funcionamento.
NICOLAU SAIÃO – Fala-se, frequentemente, de “máquina do
mundo”. Qual a vossa versão, ante esta ideia-chave, da “máquina-da-escrita” e
como é que atuais poeticamente juntando uma à outra… ou vice-versa?
ZUCA – A
máquina-do-mundo nós já a encontramos funcionando antes que nossos antepassados
da Pré-História soubessem fazer um saca-rolhas… ou que do primeiro ovo nascesse
a primeira galinha, ou a primeira galinha botasse o primeiro ovo… Mas a Macaquinha Lucy já teria talvez
inventado suas primeiras graças… bailando nos galhos da macieira, e inventando
assim a Arte. E a Arte, por sua vez, criaria o Homem.
FLORIANO – As
nossas maquininhas desde cedo aprenderam a sair de casa faceiramente, ouvir o
mundo, assim que integrar-se uma à outra é puro jazz. Sempre desconfiei que é
indispensável ouvir o outro, aceitar as nuanças infinitas da existência, para
que assim a vida alcance uma fluidez que acasale desafio e satisfação.
NICOLAU SAIÃO – “Longos são os caminhos da vida…” diz a voz
popular. É isto mesmo verdade ou apenas uma concepção imaginária, ou ilusória,
na existência de um escritor desenquadrado como o vosso melhor estro nos
indica?
ZUCA – Os
caminhos da vida fenomenal e da vida imaginada se entrecruzam e se alimentam um
do outro. Sem a vida imaginada, a vida fenomenal seria meramente mecânica. E
sem a vida fenomenal, a vida imaginada seria gratuita inanidade.
FLORIANO – Mas o
que não é ilusório em nossas vidas? A começar pelo próprio conceito de verdade,
não é mesmo? Creio que esta consciência da ilusão é a combustão ideal para que
nosso trem esteja em permanente movimento.
NICOLAU SAIÃO – Dizia o
Outro que há os líquidos de fora e os de dentro… Os que nos banham, onde nos
banhamos e os que nos banham o interior… Quais os líquidos de dentro que os
meus manos mais estimam, ora com amor ora com alguma nostalgia e/ou também
alegria (as festas… as fruições…) no dia ou na noitinha amável?
FLORIANO – Os
turcos, os japoneses. O hamame árabe e sua orgia de vapores. A fúria sutil de
pétalas dos ofurôs. As infusões sem objetos medicinais. O ouro líquido da
concupiscência. As páginas soltas, esvoaçantes, do mundo dos mitos.
ZUCA – As
águas de meu Mundo Interior são as Águas do Mytho… da minha visão mítica e
totêmica do mundo… Um bosque maravilhoso onde me encontro com meus amigos e
amigas, vivos e mortos, gnomos, figuras mythicas e históricas num tempo do
Sempre Agora… me refastelo numa imensa
banheira de bronze com as Três Damas belas, grandes e gordas, a Glória, a
Fortuna e a Posteridade… Num banho de champanha Viúva Pivot, e as espumas do
sabonete Araxá.
NICOLAU SAIÃO – E já que
estamos em maré de festejos, o que melhor os pode acompanhar – acalentando
iguarias?
ZUCA – Feijão,
arroz e farofa… Pastéis e Cerveja Caravaca… E pra sobremesa uvas de Baco e um
vinho do Porto rosé… E pra completar, um palito e um café galão, ouvindo uma
Fuga de Baco, no realejo roufenho de Seu Mateus.
FLORIANO – Música,
maestro. O espírito gozoso de todos os ritmos. Criar é viver e vice-versa. Tudo
o que criamos e/ou vivemos é antes de tudo uma afirmação de ritmos, um bailado
do espírito que se revela em todos os sentidos.
NICOLAU SAIÃO – Ouço um de
vós (ou serão os dois?) a rir devagarinho… Até onde deixais ir esse pensamento
maroto? Hein?
ZUCA – Se
não fosse a Santa Alegria, pra que serviria viver?… O choro é livre e tristezas
não pagam dívidas… Como aconselhava Sócrates, qualquer prazer me diverte, mas…
nem toda tristeza me faz chorar.
FLORIANO – Não
vamos a lugar nenhum sem humor. É um engano pensar que a tragédia seja a
negação do riso. A tragédia é uma complexa forma de mistério de risos embaralhados,
uma rede com suas tramas milenares. Ou, em uma análise mais apressada, a
tragédia é o riso fora de lugar. A realidade é farsesca. Por isto o nosso trem
se abre para as mais tresloucadas formas de percepção dessa matrona do
apocalipse.
NICOLAU SAIÃO – Às vezes há coisas e ritmos, conceitos
aparentemente pequenos, que nos acompanham a vida inteira. Por exemplo: Do
cerejo ao castanho bem me amanho; do castanho ao cerejo mal me vejo! Ou o
som da sirene duma fábrica que todos os domingos, a serviço do município, apita
às cinco da tarde. Não é isto verdade?
ZUCA – Pois
é. Há também o galo que canta pra que o Sol definitivamente desperte, e resolva
se levantar. Já está velho o Sol, mas sempre de cabeleira ruiva, e sempre
alerta, de olho na Lua. Mas… que vexame! Ele é o Rei dos Planetas!… Os demais
estranham essa obsessão do Rei pela Lua, uma caprichosa, ora está gorda, ora
está magra, ora está branca, ora está preta… Mas é justamente disso que o Sol
gosta… Gosta que se enrosca… A lua sabe da paixão do Rei, e quando ele gruda
nela em cega paixão, em pleno gozo, ela lhe diz: Ora pois, Rei podes ser pros teus planetas, mas pra mim tu és o meu
galo carijó… o Sol geme e suspira… Ai,
malvada!… E tu és minha galinha dangola!…
FLORIANO – A
história é viciada em modelos, sempre se deixou fascinar por mimetismos de bom
calibre. As artes e as liturgias, quanto mais populares, mais cativas dos
bordões. Se as artes plásticas souberam desmontar os mecanismos do tempo, foi o
teatro quem melhor revelou os truques do instante. No entanto, não devemos
esquecer que em meio a uma densa floresta de símbolos, nada nos atrai mais do
que a ressonância da arbitrariedade, cuja significação tem o aspecto de um mistério.
NICOLAU SAIÃO – E aquela do Éluard, que disse um dia à
amiga do Picasso que, no fundo e enquanto palestrante, o que mais gostaria era
que o convidassem para uma em que não tivesse que falar com tema certo, mas
deambular pelas recordações, pelos pequenos apontamentos de que se faz uma
vida?!
ZUCA – Ele
tinha lá suas razões… Mas essa obsessão pelo tema não deve impedir a digressão…
e as fintas estratégicas… El trabajo de
la mano izquierda, como dizem os aficionados da tauromaquia, as belas
verônicas… O mesmo encanto da esquiva pode se utilizar numa palestra seríssima…
Os carrancudos talvez se irritem… Mas os verdadeiros amantes da Arte têm um
culto pela fantasia… O ideal seria talvez um bom balanço entre o Rigor e a
Fantasia.
FLORIANO – Eu não
chegaria a dizer que o tema acanha a imaginação. Até porque a liberdade não é
um ganho e sim uma conquista, muito embora no fundo não passe de uma falácia.
Agora, o Millôr Fernandes já havia deixado claro como uma faísca que “livre
pensar é só pensar”. De modo que me atrai mais a ideia jazzística, de
improvisação sobre um tema dado.
NICOLAU SAIÃO – E agora, meus manos preferidos, neste
momento, nesta horinha, não posso passar em branco o minuto (é uma maneira de
falar) que fruí ao ver numa Agulha [Revista de Cultura] os deliciosos,
suscitantes e encantadores bonecos do
Zuca. Perdoem, mas este detalhe de humaníssimo recorte não o posso calar, ou
estaria a atraiçoar a minha capacidade de me emocionar. Mano Flory, não vale
bem um sursum corda?
FLORIANO – Tanto
quanto um nessun dorma, ou seja, Zuca
sabe como poucos como nos deixar inquietos com seu traço instigante, com as
agulhas flexíveis e profundas de sua pluma, cuja resultante satírica nos sugere
buscar mais e mais ângulos em cada cena com que nos brinda.
ZUCA – Meu
bom Nicolau, teu velho mano está muito feliz pelas tuas palavras referentes às
ztampas e bonecos do Zuca. É pra mim um grande privilégio ter em ti e no
Floriano, dois artistas de alta sensibilidade e refinada percepção, um tal
apreço pela minha arte de nacos-de-papel e museu-de-bolso. Gracias Miles.
Evoééé… Baco!… Abraxas muchas!…
BOCARRA – Alto
lá! Isso aqui está parecendo uma sauna de periferia! Um rapapé com direito a
sarapatel com pitada de faísca. Sei não! Até aqui ninguém falou de nós, os
personagens da trama, sua razão de ser. Ninguém comenta sobre as
artimanhas do poeta, os peitinhos da faquiresa, os tamancos da parteira, onde
andará Lili Fong, o que planeja Dr. Barbão… Como é possível passar em linhas
transparentes essa trupe de falastrões, esse bordel de muquiranas, essa carroça
aloprada de ilusionistas… Parem as rotativas, precisamos apimentar a primeira
plana. Sangue nas letras, o público exige sangue nas letras…
XIM – O lírico, o garçom, o
maquinista, o entalado do papagaio, a bailarina, aquele tesão de domadora, ai
meus cachos, aquela mulher…!
XUM – O reverendo, o mediador, o
mata-mosquitos, o ouriço-cacheiro, o pai da presunção, o tal, o flibusteiro do
rei, ai que horror, que trapo de gente…!
NICOLAU SAIÃO – Ergueu o rosto e disse com ímpeto
carinhoso: É que Lili Fong tem uma
espécie de rival, pelo menos uma concorrente de se lhe tirar o chapéu: Maruska
Falokrata, por alcunha a borboleta de Agosto! Sosthène levantou a mão e viu-se que
estava entesado: Quando fores lá em casa
não te esqueças de vestir cuecas de malha amarelas! Isso impedirá que te saiam
malmequeres pelas orelhas! E ambos desataram a rir como se o diabo viesse
sobre os seus passos.
ZUCA – O Diabo tem seus
dias de bom rapaz… E oferece seus prêmios, sobretudo os noturnos, que vêm em
pacotes deslumbrantes… Os prêmios são as tentações?… Depende se Ele gosta do
compadre… Se ele gosta, tudo bem… Mas se não gosta, a tentação, tão pronto se
desembrulha o pacote, logo vira um pavoroso pesadelo. Agora, pra competir com
Pai Gepeto da Mansão Celeste, também tem o Príncipe Plutone os seus eleitos…
Trata-se de um caso de predestinação… E Depois??? O que vem depois, ninguém
sabe… Dante esteve no Inferno, e contou horrores… Comentando o caso com nosso
Repórter, o Príncipe disse: Ora, o
Dante!… um ignorantaço… Só lhe mostrei a oficina com escravos proletas, e
fundos de bairros miseráveis, e fábricas de lixo… Mas o divinal Hotel-Cassino
Averno… ele nem sabe que existe… Ah-Rá-Rá-Rô- Rááááááááá!!!…
FLORIANO – Essa conversa se repete como um gravador engasgado com
a tecla play, o Diabo se rindo pela bexiga, as calçolas de Lili Fong revoando
acima do varal arrepiando o mormaço e dando os beiços para quem ouse dela
duvidar. Aquele que leva a verdade aos lábios deve estar pronto para soletrar
os mil nomes do fel. Uma paisagem bem passada nos deixa com os lençóis
encardidos de tanto desejo amargado. As visões viram bagaços. Os horrores
desconhecem suas vítimas. O destino passa correndo sem saber aonde ir. Quem de
nós disfarçaria agora a voz que nunca escutou?
NICOLAU SAIÃO – Na minha
frente o quadrado lilás com pintinhas cinzentas; atrás de mim um pano adejando
na frescura da manhã. Um pouco difusa, ao longe, uma voz que de repente
proclamou como se estivesse com apetite de muitas coisas sublimes: E eis que os gafanhotos romperam a cantar!
ZUCA – Trata-se de um
caso raríssimo!… Os grilos, sim, gostam de cantar… E os vagalumes de alumiar…
Já os gafanhotos!… São um bando de esfomeados, só pensam em devorar nossas
plantações!!!… Mas agora que cismaram de cantar… que farão os grilos então?
Perguntamos ao nosso Repórter, que nos esclareceu: Justamente, os Gafanhotos decidiram abraçar a vida artística!… E
agora virão então… terríveis Pragas de Grilos!… Atacarão o Egito e a Mesopotâmia!… Até que… a deusa Ishtar resolva…
dançar!… E então…
FLORIANO – Então a selva sairá para pescar piabas nos lodaçais de
desencantadas mitologias. As enciclopédias serão editadas com páginas extras
para anotações das pragas mais imprevisíveis. Vírus regurgitados pelos deuses
que tostaram grilos falantes para uma festinha atrás do muro do Olimpo. Ishtar, morena rosa, / que antes de mim era
toda prosa, / bem comida a deusa loba, / de repente se vestiu com outra estopa,
/ e me deixou, samba lê-lê, / com sete palmos de memória por saber…
Tamborilei esse repente a noite inteira, a casa caindo, o roçado açoitado pelo
fogo, as misérias indo e vindo, sem saber onde ficar.
NICOLAU SAIÃO – Está
muito frio para uma menina andar sem roupas pela rua, meu caro Bocarra. Era um
rapaz alto, de olhos arregalados e com uma pequena porta aberta nas costas.
Olhando-se por ela via-se uma ampla sala com duas largas janelas dando para um
jardim onde pastavam cavalinhos. Quando estava cerrada, uma espécie de cicatriz
como um rio estreito brilhava levemente na luz da tarde a crescer. Vocês sabem
que música era a que se ouvia? Pois nem mais nem menos que a Toada para porquinhos indefesos, dos
ingleses românticos! E tu, Bocarra, meu chapa donairoso, como foste parar à
tropa?!
ZUCA – Confidenciou-me Dante que o Bocarra é um jornaleiro
falastrão e façanhudo, e no mais um vão paspalho, só de bafo, e berros
orgiásticos pra vender seus pasquins. Mas… completou o mestre, com amertume… Não conseguiu vender sequer um único exemplar da minha Divina
Comédia!… Um paspalho analfabeto esse
Bocarra!!!… Vai parar no Infeeeeernoooo!… Pra acalmar o Vate, eu lhe
perguntei: Mas como podemos saber se o Bocarra vai cair mesmo no Inferno?… E
Dante, com sádico brilho no olhar, lugubremente me retorquiu: Porque, com a total exclusividade que o
Príncipe me ofereceu, sou eu quem escreve a História do Inferno!…
BOCARRA – Este
espertalhão a todos está a levar na meia boca. Tergiversa como uma putinha nova
descendo escadas em salto alto. Ouviu de longe o nome de Lili Fong, porém o que
saberá de seu romance malsinado com o imperador chinês?! Perguntem a ele, sobre
qualquer um da trupe…
MARUSKA FALOKRATA – E como ousa o alentejano das Arábias
dedilhar as sílabas de meu nome como se eu fora um pastel de feira!
FLORIANO – Saiotão, talvez seja a hora de indagares sobre dois ou
três dos personagens de nossa trama, antes que provoques aqui uma celeuma geral
e esse bando de loucos vire o trem e comece outra viagem. Está em tuas mãos
acalmar a malucada…
NICOLAU SAIÃO – Reparem: em certas noites, logo após o
crepúsculo, espalha-se como que uma leve música nos parques da povoação. Será
ilusão dos nossos sentidos, ou melhor, desejo intemerato de maravilhas
desconhecidas, mas que se intuem no mais íntimo de nós? Certa vez perguntei a
Maurício Tavastabir o que pensava do que lhe expunha. E ele, com uma sombra
doce no olhar, retorquiu:
MAURÍCIO TAVASTABIR – Algumas noites são agressivas ao
telefone. Mesmo aquelas meninas fagueiras de botõezinhos em flor, cuja voz
possui um frescor diurno. As noites com seus corpos à mão e sua melancólica
acústica. Algumas delas escondem os espelhos atrás das cômodas.
ZUCA – Telefone tocando a sinete, Criado-Mudo batendo a gaveta,
agita a noite pruma Tragédia Azteka… Nosso Trem Fantasma, mesmo encalhado e
abandonado, nalgum recanto perdido duma estrada sem fim nem começo, é sempre o palco sagrado preferido pelas
cruéis Deusas de Acapulco, pra perfazerem sua Dança Macabra.
FLORIANO – A imensidão do quarto sugere ao criado-mudo não dar um
pio com a comadre. Gerânios começam a brotar de um copo vazio. A memória acode
a tudo o que pensa ser fruto da imaginação. O rei está nu… E tem um guaxinim no
bolso à esquerda de seu umbigo expatriado.
NICOLAU SAIÃO – O engendro… era formado por pedaços
dispersos de corpos ligados – e não unidos! –, pelo ardil da eletricidade. Daí
que o enamorado de Lili Fong ficasse de repente com uma cara de parvo que só
visto! Ele nada conseguia saber… Saberia o que dizer, quando o extremo calor
tivesse abandonado o percurso do dia que alguns dificilmente aguentavam?
ZUCA – Lili Fong é duma atroz persistência em sempre reaparecer. E
tem o dom de criar uma paixão obsessiva, que agora então agita os esqueletos da
plateia que, provocados pelos meneios dela, se pegam num pancrácio de ultra-tumba…
Rola uma caveira aqui, um fêmur acolá…
FLORIANO – Vítor, Vítor, até hoje o bom pastor desconhece a origem
da rabeca que lhe deixou vesgo. Errou na quantidade de sombra que pôs em seu
Frankenstein. De sua garganta ecoavam rios espessos de equações aos tropeços.
Há um momento na criação em que todas as frontes são tomadas por uma lodacenta
identidade. Quem esteve aqui até agora? Quantos ainda virão?
NICOLAU SAIÃO – Olá, meu tão seguro comparsa de viagens!
Olá, meu noitibó das florestas! Ergue o teu braço como se estivesses num
aeroporto dos que abrem os horizontes dos sete pontos cardeais. Pega neste pano
e agita-o na direção Norte, enquanto todavia olhas para o Sul. E registra: os
meus dois confrades, amigos de aventuras e de estúrdias em ilhas de que não se
conhece a descoberta, sentem de repente vontade de gritar baixinho! Capici?
ZUCA – Gritar baixinho pra Morte, o Capitão do Trem Fantasma, não
nos ouvir e querer nos catar antes da hora… Oh, Morte, nosso Capitão!… O
telefone está chamando, não ouves?… Certamente é Caronte pra te dizer de não recolheres passageiros por ora, nem
sequer voluntários, porque sua barca está fazendo água…
FLORIANO – Nem todo fim sabe a quantas deve seu começo. Ante os
conselhos da verdade o mundo é surdo como uma porta. A fantasia não larga mão
de seus caprichos mais fugazes. Viver não necessita paraquedas, trata-se de
ficar íntimo de todos os abismos e precipícios. Bota mais uma aqui…
XAVIER CHAVIGNY ⎼ Bota nada. Acabou. Já chega. C’est fini, bonitões. Vamos parar por aqui. Alguém quer fazer as
malditas considerações finais? Quem se atreve?
NICOLAU SAIÃO – Atrevo-me com alguma doçura e certa dose
de malandrice: de que forma aceitar indulgências perenes e solenes por detrás
da nuca do Padre Santo? Este, que arrola certificados de mau comportamento como
se fosse um buquemeiquer citadino, um dos que veem nas apostas a melhor forma
de ganhar a suada vida, que engrola orações por detrás de vidros fumados, não
faz mais que elevar aos altares avestruzes e girafas. Mas já santificadas pelo ergo sum da inspiração jesuítica. Já munidas de
meias pretas nas íntimas parcelas de um cavanhaque delicado – enquanto São
Pedro e São Paulo descascam amendoins para serem pelo menos tão sagazes como os
mandris do deserto do Calaári. E depois disto que dizer mais do que “agarra aí no volante” ou, com a mão
esquerda firmemente colocada no cangote de São Malaquias, rezar para que as
cervejas tenham um sabor tão suave e arremelgado como uma hóstia de fina
farinha de mandioca?
ZUCA – Realmente, seria esta uma
bela modernização do culto: cerveja substitui água benta; empadas substituem as
hóstias; e os pecados são esponjados com Sabão Baco. Boas sugestões, Nicolau.
Bravo!… Com essas audaciosas
inovações, talvez a Santa Madre ganhe alguns novos paroquianos, porque as igrejas
estão ficando desertas, e são vendidas à prestação pra instalação de novas
mesquitas. Mas o Paraíso mourisco tem belas Huris, Odaliscas belíssimas, pra
receber os fiéis. E nós, em nosso Paradiso?…
O que nos oferecem?… Aproveitemos então agora umas boas cervejas, e vamos comer
as carpas do dia!…
FLORIANO – Cerveja? Sim, vamos
logo resolver essa parada. Eu quero a minha bem gelada. Todas as minhas falas
têm apenas um propósito: calar na hora certa. Não envelheçam nos lendo. Eu não
direi mais nada.
ZUCA – Alea jacta est. Faites
vos jeux. Rien ne va plus. Uma só ficha no tapete, lançada no número treze.
A Fábula se acabou. Levantai-vos, esqueletos!… Queremos aplausos!…
FAIXA-BÔNUS: REPIQUE ELÉTRICO DA MEMÓRIA
FLORIANO MARTINS – Relembro uma antiga frase
vista de relance em algum sonho: A fantasia é a melhor fatia da Realidade.
Graças a ela a imaginação amola suas adagas e acende as minúcias em cada forma
descoberta. Por onde procuras por ti quando queres te encontrar?
ZUCA SARDAN – Acho que procuro mais me
perder nas entrelinhas do pensamento, pra escapar da realidade prática que
sempre traz embrulhadas as ideias e sábias instruções dos variados Pais da
Pátria e da Verdade, seja o Cardeal Sacamuelas, seja o Doutor Lening. O esotérico
deve permanecer mesmo secreto, se fazendo de meio louco, ou fingindo que lê o
Tratado do Pai dos Burros, senão ele acaba virando um Prometeu Acorrentado no
Monte Popocatepel, com o fígado devorado pelo Condor do Deus Zakapuko.
FLORIANO MARTINS – Sair das páginas de um
livro para as varandas da história e logo em seguida vadiar pelas ruas, tudo
isto me interessava na medida em que podia fazê-lo sem a guarda de fronteiras
da razão. O romance era a grande aventura da infância e recordo que costumava
embaralhar os personagens das diversas narrativas e que não me detinha em seus
autores. Tinha atenção muito particular em alguns deles – José de Alencar, por
exemplo, porque em casa tínhamos praticamente tudo dele, ou o Stevenson da Ilha
do Tesouro e o estranhíssimo caso de Hyde & Jekyll –, mas em geral era
comum embaralhar tudo como se fosse um roteiro único e delirante que me atiçava
a imaginação.
ZUCA SARDAN – Na infância eu gostava
dumas revistas de comics americanas, porque o colorido me fascinava, e
achava os personagens mais interessantes porque falavam palavras misteriosas… O
inglês então era para mim tão indecifrável quanto o sânscrito ou o hindu… Então
as ztórias ficavam muito mais misteriosas e interessantes que as dos comix
brasileiros… de que os enredos eram óbvios e sem graça… Eu fazia uma leitura
mágica e captava ztórias secretas… Acho que vem daí minha poesia, com essa
ideia de que as palavras devem criar OUTRA ztória, que paira secretamente sobre
a ztória que ztá no livro.
FLORIANO MARTINS – Aí está a meca. E a glória
da merreca. Comics que faziam a festa da minha infância eram as sagas do Príncipe
Valente e uma série de faroeste italiano, não recordo o nome. E havia uma
arte animada que me atiçava a ver o mundo com outros olhos. Em casa, os
desenhos do Gato Félix na televisão. Nas manhãs de sábado, a ida ao Cine Art,
com meu pai, quase sempre para ver Laurel & Hardy, o Gordo e o Magro (ainda
hoje tonitroa a gargalhada que dei ao saber que a dupla era conhecida em
Portugal como Bucha e Estica). Misturando isto com O Conde de Monte Cristo e O
último dos moicanos, dentre muitos outros, as minhas histórias foram saindo
de uma e entrando em outra, de tal modo que aos poucos eu ia rabiscando um
roteiro outro, onde as identidades se embaralhavam todas. Recordo que a poesia
demorou muito tempo para chegar na forma de poema. Na primeira adolescência fui
presenteado com três coleções fasciculadas deliciosas: Teatro Vivo, Gênios
da Pintura e Povos & Países. Dramaturgia, pintura, música e
culinária, verdadeira paleta de maravilhas. Desse modo, assim como evocas as
tuas ztórias secretas, eu refiro o mix louco de tudo quanto pousava em minhas
mãos, e vejo que a resultante, nos dois casos, é que a narrativa fez mais
efeito sobre nós do que a lírica. Hora de citar nomes?
ZUCA SARDAN – Lewis Carroll, a maestria
dos diálogos e o humor envolto com etérea melancolia; Wilhelm Busch, o inventor
da história-em-quadrinhos; Edward Lear, o desenhista-poeta; Alfred Jarry, a
singularidade do humor de fim-do-século 19, com irônica impostação de burguês;
Guillaume Apolllinaire, o verso vivo e musical; Chopin soltando do piano as
Syphides… que entram rodopiando na minha fantasia; Ludmila Tchérina, estiradona
na gôndola em Veneza, e cantando árias de Hoffmann… Napoleão com Josefina, numa
berlinda; Salvador Dalí, o Gênio da Auto-Paródia; e a Gioconda… vista do outro
lado da tela.
FLORIANO MARTINS – Busch entrou no Brasil
pelas mãos do Olavo Bilac. Desconfio que graças à influência de Max und
Moritz é que surgiu a tradição das piadas apimentadas do Joãozinho. Em
alguns lugares do Brasil o Joãozinho é conhecido como Juquinha. Juca e Chico é
como Bilac traduziu os personagens de Busch. O Zuquinha sabia disso? Já o
mestre Lear, com seus nonsenses fabulosos, este sim, me parece uma das matrizes
fascinantes de tua poética. Lear, intensamente satírico, processado com Dalí,
que bela combinação! Certamente não cabe aqui falar em influência, ao menos da
maneira tão simplória como o tema costuma ser evocado. Em meu caso, a primeira
grande pulga atrás da orelha que me deu a ilusão de um Norte foi o conflito de
Raskólnikov, que me atropelou como uma Maria Fumaça desgovernada. Creio que
graças a ele o espírito trágico se instalou em meus escritos.
ZUCA SARDAN – O desenho já me vem dos cinco
ou seis anos de idade… Já se vão assim aí mais de 70 anos de atividade… E a
poesia começa nos meus 20 ou 21 anos… Mas o desenho custou mais a tomar
impulso… tendo sido muito recusado no meio artístico não figurativo que imperou
no Brasil nas décadas dos ‘50 e ‘60… Creio que há uma certa rivalidade entre os
dois… O desenhista passou décadas exclusivamente de fornecedor de ztampas pro
poeta, até que um dia… proclamou sua independência. Dada essa dicotomia, fico
eu querendo harmonizar os dois.
FLORIANO MARTINS – Eu fui um copista
improvisado pela curiosidade. Antes dos 10 anos eu imitava rostos e corpos em
movimentos com lápis e guache. Também dublava vozes em um show bem rústico de
fundo de quintal. Os primeiros escritos devem ter sido pela casa dos 14 anos,
recordo que eram breves contos transpirados pela irrequieta leitura dos 120
dias de Sodoma. As leituras da época estimulavam a ilusão de que era
possível criar algo próprio. Uma adolescência entre músicos e gente de teatro
me levou por uma trilha de insaciabilidade, que eu chamava de volúpia
existencial. Só muito depois dos 20 anos é que decidi dedicar-me unicamente ao
poema. No entanto, é um poema que pouco a pouco ia temperando uma alquimia
juntamente com elementos do teatro, da ópera, do cinema, da narrativa, dos
comics etc. Jamais dei pela presença de alguma dicotomia. Eu não vejo distinção
entre o teu traço e o teu verbo. Não creio que careçam de harmonia.
ZUCA SARDAN – Fazendo as vozes do
repórter Cascão, da Rádio Lambada, indago: por que, Floriano, você, tendo um
maravilhoso acesso à música e ao teatro, decidiu se dedicar à poesia, a mais
esquecida, esnobada e incompreendida das artes?… Não é preciso se tornar milionário,
mas o Artista deveria poder viver da própria arte!… Se você é músico, ator ou
dramaturgo, você certamente pode. Mas de poesia?… Nem Drummond, nem Bandeira,
nem Cabral, os Gigantes Consagrados de nossa Poesia, jamais conseguiram viver
da poesia, foram todos, com sua Glória resplandecente, parar no Serviço
Público. A Poesia… é a Nossa Putinha Santa!… Por devoção a Ela, vivemos como
artistas do Circo Cyclame, que, no fim da ztória, sempre acaba abandonado,
queimado e destroçado…
FLORIANO MARTINS – De santa essa putinha não
tem nada. Tanto é que acabou por me arrastar para o serviço público, onde
amarguei por 15 anos. Tempo suficiente para compreender que por mais que a vida
tenha esse jeitão de circo de horrores, as feras mais belas nós somente as encontramos
no espelho inacabado das fábulas. Foi quando me demiti e me desfiz da carteira
de trabalho. Há muita coisa que um poeta sabe e deve fazer, além de parir seus
versos e sonhar com a imortalidade. Passei então a ser domador, contorcionista,
lavador de piano, afinador de pratos, mulher barbada, descobri-me um pouco em
cada função de nosso Circo Cyclame. Como um Coringa, Floriano The Joker…
E ainda não cheguei sequer na metade da história. Agora, o desenhista também é
um aprendiz de passa-fome, não? Assim que foste arrastado para a diplomacia…
ZUCA SARDAN – Vesti cartola, punhos de
renda e embarquei na berlinda. Apliquei-me com esmero em minhas atividades
diplomáticas. Mas ninguém acreditava que eu fosse o Marquês de Carabás. A
princípio fiquei ressentido, mas… aos poucos fui compreendendo que assim era
melhor… O perigo não era tanto que eu não fosse reconhecido… O grande perigo
era que, sendo muito aprovado, eu acabasse pensando que eu era mesmo o Marquês
de Carabás… e deixasse a Poesia, sempre esfarrapada… abandonada no meio da
estrada.
FLORIANO MARTINS – Assim que sabiamente
passaste tu por turista aprendiz dos itamaratysmos. Bela cartada. Eu não tive o
mesmo ás na manga. Caí no truque mais banal, levei tudo a sério, e amarguei a
cilada para inventores de pólvora úmida. Tardou até que aproveitei um momento
em que o destino estava mais perdido do que eu e saltei fora do tanque.
ZUCA SARDAN – Em 1955 eu estava ainda
completando meus estudos de arquitetura e trabalhava de desenhista de projetos
arquiteturais, as chamadas plantas, desenhadas em papel vegetal com um aparelho
chamado tira-linhas… Era uma espécie de pinça de alta precisão que segurava uma
bolha de nanquim na bicanca regulada por uma rosquinha mínima que controlava em
décimos de milímetros a bicanca que segurava com infinitesimal pressão uma gota
de nanquim para traçar as linhas do projeto na folha-vegetal… Mas a bolha não
devia tocar a folha-vegetal, senão tangenciá-la num gesto helicoidal até que
mal roçando a folha-vegetal, ela por fim fosse baforando um espaço
infinitamente pequeno junto à folha-vegetal que a atraía por capilaridade. A
partir daí… a bolha começava a rolar dentro da bicanca, e a se transformar numa
linha de nanquim sobre o papel-vegetal. O próprio pensamento, se não estivesse totalmente
voltado à operação, faria a bolha explodir e… todo o trabalho estaria perdido e
teria de se recomeçar em nova folha-vegetal. Nunca consegui acabar uma folha, e
após a destruição de centenas delas, que eram caríssimas, o chefe do escritório
decidiu me passar pra tipografia. Ali eu deveria trabalhar com um mimeógrafo,
que era um tambor perfurado por milhares de buraquinhos e girando num eixo
acionado por uma manivela manual. No tambor embrulha-se uma folha de estêncil
de natureza semelhante à do papel vegetal, em que se escrevia com máquina
datilográfica sem fita, de modo a que as teclas perfurassem o estêncil. A
folha datilografada sem fita, toda furada das teclas em letras ocas, era
enrolada no tambor giratório, que cheio de álcool, rolava espremendo a matriz
datilografada contra folhas em branco que eram assim imprensadas entre o tambor
e um tubo de borracha. E zlapt!!!… Lá na caixa receptora caía a folha impressa
num roxo maravilhoso… Foi pra mim a invenção da imprensa!… Comecei então a
fazer folhetos de poesia, e ilustrá-las, usando um lápis-prego metálico de
ponta aceradíssima, que traçava furando a folha-estêncil. Iniciei assim minha
carreira de poeta-desenhista.
FLORIANO MARTINS – Até hoje eu desconfio que
não tinha a ideia de que viria a ser um escritor. Eu gostava da vida
eletrizante em turma, gostava de agitar, inicialmente inventei de ser músico,
depois me aproximei de grupos de teatro, produções de pequenos eventos, enfim,
tudo indicava que eu não teria inclinação para a vida monástica de um escritor.
Mesmo assim eu escrevia, e um dia me vi reunindo poemas para uma primeira
publicação. Ao mesmo tempo, mantinha a ilusão de que poderia ser um
percussionista e secretamente sonhava em ser dramaturgo. Quando escolhi me
dedicar o poema, a decisão foi dada pelo fato de que então eu acreditava que
seria impossível cuidar de muitas coisas ao mesmo tempo, tratando então de
descartar as áreas em que o meu talento era visivelmente menor. Fiquei com o
poema, e os livros começaram a surgir. Vejo hoje, no entanto, que demorei muito
tempo até a chegada de uma voz própria. O mais curioso é que ela se mostra
justamente quando teatro e música, ou melhor, ritmo e estrutura cênica,
tornam-se elementos essenciais ao poema. Ao mesmo tempo em que deixo de ser um observador
lírico do mundo e me torno personagem de minha criação. Tudo isto surgiu no
momento em que eu atravessava uma tragédia familiar, o coma de minha avó-mãe, e
em poucas manhãs escrevi a prosa poética que conforma o livro Cinzas do Sol (1991). Foi justo ali que
surgiu a minha poética, e aos poucos fui incorporando ao poema elementos de
todas as outras áreas, ao ponto de há poucas semanas haver concluído um livro
em que tenho a sensação de havê-lo pintado e não escrito.
ZUCA SARDAN – Embora tenhas te decidido a
dedicar-se à poesia, a tua energia e perene agitação seguiram tão presentes, e
exigentes, que a poesia teve de absorver os teus prismas plástico e dramático,
além da parte de agente e agitador cultural. Justamente a Poesia é o primo
motor que aciona e coordena todas as tuas manifestações.
FLORIANO MARTINS – É verdade. Até hoje sou
movido por essa gula existencial. Mas eu queria saber como surgiram os teus
livros, como começaste a publicá-los?
ZUCA
SARDAN – Comecei
a fazer folhetos no escritório de meu pai em 1955, num mimeógrafo tambor. Levei
décadas e décadas distribuindo pessoalmente, ou via postal, esta série
inesgotável de poemas e ztampas que tinham uma sequência mais ou menos definida
pelos personagens-orixás que sempre reapareciam… Aos poucos fui aperfeiçoando
minha técnica, mas sempre em função duma poesia narrativa, retomando a linha de
Homero, Virgílio, Dante, Camões, Santa-Rita Durão, Barão de Itararé, Totó,
Fellini, ztórias-em-quadrinhos, surrealismo, esoterismo, metafísica e cordel.
Não tendo tido muito público, por várias e várias décadas… fui ganhando um…
público invisível… que me acompanha sempre, e me dá o mais poderoso apoio.
FLORIANO MARTINS – Mas este público invisível
é o grande público da poesia, sempre foi assim. O mercado trouxe essa ilusão de
que a poesia poderia alcançar as massas e engordar o bolso dos poetas. A dupla
Mercado & Mídia fez imenso estrago no ludismo inebriante dos poetas. E
abriu terreno para um sem número de oportunistas que passaram a lidar com o
verso como se fossem iluminuras vulgares.
ZUCA
SARDAN – Com a
Internet e o Facebook aumenta colossalmente o número de poetas improvisados,
leitores desavisados e saldos do facilitário… É boca-livre pra todos!… Mas o
público invisível da poesia vai se evaporando sem que ninguém perceba, face à
furiosa gritaria do poleiro…
FLORIANO MARTINS – Este ciber-galinheiro tem
sido o grande ouro de tolo de nosso tempo. E como sempre, um pastel de duas
faces, pois há na ferramenta em si uma bela perspectiva humanística, que acaba
sendo naufragada pelo próprio usuário. O que talvez prove que a espécie humana
foi um erro de cálculo na mesa de Darwin. E como não há balcão divino que
aceite de volta a mercadoria, vamos semeando infortúnios no ventre das três
graças, antes as meninas mais assanhadas da corte – miss Arte, miss Ciência,
miss Religião –, hoje três madames repletas de rugas e varizes.
ZUCA
SARDAN – As Três
Peruas Chiques vão envelhecendo, mas disfarçam, porque o espetáculo não pode
parar. Plutone anda meio arreliado, e reclama que ele não tem mais freguês pra
tentar… Porque não há mais pecado… Hoje vale tudo, e Liberdade, de tetinhas de
fora e comandando a malta dos Sem-Cuecas, abriu as portas da Bastilha da
permissividade pra todos… Não há mais pecado!… Então… Qual é o Prazer?… Os
Chineses já estão cruzando maçã com banana pra produzir o fruto proibido
original que você poderá saborear em casa, ouvindo no seu ismartfone a Quinta
Fuga de Baco pela Orquestra de Flautas de Bambu de Nankin.
FLORIANO MARTINS – A Organização dos
Espartilhos Arregaçados hoje se preocupa muito com o fato de que as três
marrecas ensopadas sozinhas arrebanham a quase totalidade da verba do
Ministério da Saúde Planetária para cuidados com a renovação da espécie. A
família de Angino Venturis, o ouriço-cacheiro que trabalhou conosco no Trem
Carthago, para ater-me aqui a um exemplo caseiro, está a viver de favores no
esquife palaciano de Adelaide, desde que ela retirou-se de sua vida espetacular
de passa fome. É inadiável implodir o galinheiro e descolar novos panos pras
mangas.
ZUCA
SARDAN – Acho
que as Três Peruas Chiques ouviram na Rádio Bexiga a notícia alarmista, na voz
ensebada do locutor Roberval Quaresma, de que perigosos extremistas planejam
implodir o galinheiro nacional!… As Três Graças correram apavoradas a pedir
apoio ao Galo Egrégio, que lhes disse: Não
vos preocupeis, oh Magníficas Dondocas!… Se os terroristas subversivos
implodirem o galinheiro… virareis… Relíquias Santas!… Idolatradas pela
esclarecida cidadania liberal democrática sempre alerta no seu empenho civil
pra ilustração e defesa de nossas Instituições impolutas, a que se refere a
Magna Carta.
FLORIANO MARTINS – Será desta vez o queima
das relíquias transnacionais? E a macumba dos cartéis? E a Liga das Concubinas
pela Paz? E a minha coleção de falsificações premiadas do Santo Sudário? E o
jogo do Vasco, marcado para hoje? A Carta Magna jamais deu importância a essas
relíquias que são o verdadeiro sustentáculo de seus eufemismos pátrios. Nós
precisamos de um reboliço no terreiro, não há dúvida. Mas qual a moral do Galo Egrégio
quando se sabe que várias raposas estão em sua folha de pagamento?
ZUCA SARDAN | Flor
de Coca, sim, é que era Concubina de verdade, do Rei Kopek de Macho Picho. As
concubinas de hoje não têm mais aquele zelo e devoção das antigas… Estamos
num mundo em acelerada decadência, moral e erótica, com a pasteurização
demagógica dos valores éticos e a vulgarização brega do Eros… O que diria o
Marquês de Sade se baixasse hoje numa mesa kardecista?… Melhor era no tempo do rádio, o locutor Gozzoli babava o microfone no
orgasmo do GOOOOLLLLLLLL!!!… A bola era de couro com uma bexiga de pino, e o
Peracho, num jogo em Bicas, no interior de Minas, com um chute tremendo matou a
mula do padre, que estava amarrada na cerca do campo. A notícia causou
sensação, e Perácio foi contratado no
dia seguinte pelo Flamengo.
FLORIANO MARTINS | Virou lenda.
Pena que a cena do sacrifício da mula não tenha sido gravada. Que bom que
passamos para as quadras, onde a Liberdade também fez das suas. Graças a
ela é que foi criado o Ministério do Suborno (fusão das antigas pastas do
turismo e dos esportes). Dona Liberdade era a musa da CarniOficina. Mas antes
de falarmos das barganhas olímpicas, lembro aqui que o Pavilhão das Traças, ao
reunir sua infausta corte, tem por hábito batizar de marginal o poeta que não
faz versinhos de saguão. Dizia o Roberto Piva que não era marginal e sim
marginalizado. Alguma vez já bateram em tua porta com algumas dessas duas
comendas?
ZUCA SARDAN | De comendas só tenho as de cartão que eu mesmo
fazzo e pinto de dourado… e que uso com uma casaca alugada no Rolha’s, pras
solenidades de maior circunstância… Por exemplo, uma visita do Papa
Ptolomeu, ou do Rei da Babilônia a algum de meus sucessivos velórios (sempre
ignorados pelas Peruas-Chiques e pelo padre da paróquia). A vida é difícil, mas
não tenho paciência de ficar morto. O Inferno só é bom pros amigões do Plutone…
E o Purgatório… é um saco total… Um asilo severíssimo em que não se pode contar
nenhuma bocagem, onde o diretor Catão de Útica vive a passar reprimendas
moralistas.
FLORIANO MARTINS |
Sim, o Purgatório é a sala de suplício das almas menores. Já com o Céu não há
quem possa, lugar onde a essência de todos os espíritos fica de fora. Somente
são aceitos os que se converteram ao oratório de São Clemente. Tens razão, meu
querido, permanecer morto requer um talento além do que tomamos emprestado do
Acaso. Permanecer morto definha o ser tanto quanto ser otimista. Este é um dos
pontos altos de nossa afinidade. E como já disparou o luminoso minúsculo dizendo
que esgotamos o horário, eu queria referir-me justamente ao balaio de
rendimentos cósmicos dessa afinidade. Sei o quanto que nos valem o Surrealismo,
a Patafísica, o Teatro do Absurdo e outras pedras furta-cores. Mas sei também
que são ambientes insuficientes quando não damos a eles a mescalina de nossa
alma. Basta ver o quanto a nossa afinidade é fruto de duas poéticas tão
distintas entre si. Passamos pela entranhável experiência do Circo Cyclame e viemos dar no Trem Carthago. Não sei a quantos deuses
e demônios eu devo agradecer por nosso encontro, mas confesso que ele deu mais
letras ao teclado de minha imaginação.
ZUCA SARDAN | Também
eu agradeço,… pois no final saímos ganhando os dois de tudo o que
perdemos, cada qual de seu lado, por não termos tido o bom senso de abandonar
essa quimérica luta contra os moinhos de vento da obviedade satisfeita da
Modernidade… Pasteurizada e multiplicada na Globalização Ecumênica. Abraxas!…
∞
ZUCA SARDAN (Brasil, 1933). Poeta, dramaturgo, desenhista, o mais eletrizante criador possuído pelo espírito da Patafísica no Brasil. Entre seus livros, estão: Aqueles papéis (poesia, 1975), Os mystérios (fábulas, 1979), Visões do bardo (graffitti, 1980), Ás de colete (poemas & desenhos, 1994). É autor, juntamente com Floriano Martins, de 8 peças de teatro automático, onde se destaca a trilogia O iluminismo é uma baleia (2016).
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
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