terça-feira, 25 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Labirintos clandestinos

 

 

Se a história é viva, certamente encontrará interpretações. É o mesmo que se passa com a interpretação da realidade.

JORGE LUÍS BORGES

 

Eu creio nas palavras que podem criar suas próprias circunstâncias.

FM

 

 

1.

 

Ao tocar fogo em meu corpo pela primeira vez,

uma lua foi evocada para conter seus infortúnios.

Lua demasiado grande para caber em uma só noite.

Uma pequena urna de motivos deixava rastros por onde passava.

Urna-animal rastejando por entre as mortes que saltavam de um corpo incendiado.

Sangrei fogo por um mês inteiro.

Na manhã em que despertei nada em meu corpo recordava o que houve.

A cama estava intacta como uma fadiga sem uso.

Meus instintos começaram a orquestrar outro incêndio.

Não importa quantas vezes me livrem de mim mesma.

Voltarei a comer minha carne e a beber meu espírito.

 

2.

 

As sombras escutam os passos de nossos anseios.

Nenhuma delas sabe como voltar para casa.

Por onde quer que olhemos serão sempre as mesmas,

debulha de formas antecipadas,

nutrição de acasos,

aforismas dilapidados.

As sombras queimam por dentro os perfis lacrimosos das visões,

árvores fazendo pose onde o quarto simula uma selva.

O que supomos nesse engodo de horizontes?

As sombras vasculham embaixo de cada corpo.

Nunca vamos além de nosso varal de trevas.

Esperamos a luz em falso.

Faz frio nos ossos da tempestade,

na concha faminta dos sonhos.

As sombras confessam as noites que perderam.

É quase dia.

Nós nos deixamos tocar pela grafia do mito.

 

3.

 

Uma delas mascava seus paradoxos afetados pelo pânico.

Já não distinguia entre crânio e útero a casa secreta de seus tremores.

O dia encarniçado. A noite hemorrágica.

O silêncio aviltante com que eletrocutava suas marés delirantes.

Cinema mudo de angustiantes escavações.

Uma delas fazia de seus lençóis uma cabana e em seu íntimo escondia o milagre dos corrimentos.

Os paradoxos, no entanto, se reproduziam com lesões pretéritas.

O corpo em desordem. A alma em chamas.

A evidência inarticulada temendo ser desovada.

O breu no centro da luz.

A história incerta do que apenas uma delas ousaria prever.

A porta lacrada.

O rito inútil.

 

4.

 

Nós somos uma reserva de vidas corrompidas.

Um galpão de instintos alimentados pela ferrugem.

Se uma de nós foi Cibele, ninguém saberá.

Hermínia, Joana, Dalva — chegamos todas encapuçadas.

As noites cegas traficam nossos desejos como uma selva aflita de ramos e gumes leitosos.

Quem dera o isolamento corrigisse alguma vertigem.

O ócio apela a um tribunal de ossos precários.

Tudo dói. A janela com o horizonte empoeirado. O enfermeiro com suas mãos orgíacas. O cimento sujo que acolhe nosso inferno. Tudo.

Nenhuma fome. Nenhuma sede.

Apenas um rio de cicatrizes feridas.

E uma sílaba desgovernada que ninguém mais escuta.

 

5.

 

Inversão que se repete.

Um cacho de enigmas.

Hortaliças do mais oculto desejo.

A outra havia colado a cama na janela fingindo ser o espelho de tudo quando seu olhar imaginasse.

Inversão de formas anestesiadas.

Lágrima fora de ordem.

Nós a víamos sempre de costas para todas, retratando as mentiras que contava a si mesma,

ao regar sonhos e saborear náuseas.

Ela inteiramente avulsa entre seus mitos.

Gorjeio de estigmas que decepam as noites.

Caravana de açoites que baniam a janela do alcance de seu olhar.

Ela então se repetia como uma mentira implausível,

uma sósia farsesca,

um passado inexistente.

 

6.

 

Cinco camas. Uma janela tingida de ilusões.

O escárnio de uma porta invisível, por onde adentrava a comida e outras formas de tortura.

A profecia austera de nossa infertilidade.

A tosa de tantos pelos renitentes,

nudez salpicada de frágeis espasmos.

A água era cuspida por uma ducha que pendia do teto no centro do quarto.

Dissabores da luz. Frenesi de sombras alienadas.

Uma de nós desfiava um grito abafado.

Parecíamos flutuar no mais convincente vazio.

Submissas como um pêndulo devoto.

Espectrais como uma súbita implosão.

Réstias de suor imprimindo rostos nas toalhas puídas.

Plena assinatura do nada.

Nossa herança naufragada e a suspeita de um sopro que nos atravessa de um corpo a outro.

 

7.

 

A maldade imita suas vítimas,

parecia repetir a mais velha.

Suas frases perambulavam como sentenças vigilantes pelo quarto imenso.

As paredes eram surdas como a enfermeira coxa que atropelava a mecânica dos dias.

Cada uma de nós imitava as lesões do abismo ao qual fomos atiradas.

O abismo com suas rotas separadas que traduzem a maldade que mascara o que somos.

Ao repetir sua sentença múltipla ela mal separava uma passada de outra,

a caminho do centro do quarto onde avultava a poça de mijo de seu rito intransigente.

E nela quase se desfazia,

não fosse a urgência de seguir repetindo aquela máxima insaciável.

A maldade imita suas vítimas,

não importa quantas vezes tenhamos acreditado apenas no que existe.

 

8.

 

Eu também não tenho nome.

Ao percebê-lo convoquei o fogo para banhar meu corpo uma segunda vez.

Eu tinha as falhas inflamadas,

a silhueta difamada como um teatro em ruínas.

Não sabia mais a quem representar.

Os meus traços eram os de uma agonia perjurada.

As noites riam dos dias.

As lágrimas invertiam meus suplícios.

Lembro haver sonhado com um nome só para mim.

Mas ali, naquele quarto-sarcófago, era impossível separar o vislumbre da febre,

as lascas cranianas dos espasmos uterinos.

Eu sou a fera vigilante do paradoxo.

A corredeira de convulsões ludibriadas.

Eu não tenho nome.

Nem mesmo o fogo me reconhece.

 

9.

 

Nós somos uma só.

Mas acaso seremos tudo o que vemos umas nas outras?

Talvez fosse preciso rever nossos gestos involuntários, porém não intuímos quais deles se repetirão.

Em quantas o enigma se torna visível?

Ao indagar pela fisionomia do almoço na bandeja,

em quantas nos fragmentamos como uma imprevisível colheita?

Somos um mudo tambor oracular, com um simulado vício de remissão.

Mas o que esperamos surgir a qualquer custo?

Do que nos livramos quando esquecemos quem somos?

Uma dieta de sigilos, cápsulas de silêncio, a tumba-útero de nossas confissões — quem deixamos de ser quando uma de nós regurgita uma página dupla de sua existência?

Nossos corpos soletram a hemorragia do tempo.

Nem mesmo as sombras sabem há quanto estamos aqui.

Ou se um dia retornaremos à figuração de nossa intimidade devassada.

Até lá refletimos a deriva como uma causa impossível,

como um bagaço alheio a sedução e risco,

como um açoite delirante a quem mostramos a língua antes de dormir.

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

 

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