No hay infierno que no sea la entraña de
algún cielo.
MARÍA ZAMBRANO
I – CICLO PRIMEIRO DE SACRIFÍCIOS
1,
Não
havia propriamente um cenário. Luzes se misturavam, desconexas. Quadros, esboços,
situações cabíveis em divergentes relatos. Indagar sobre o passado era uma
abstração beirando o ridículo. Havia um desmazelo na atitude de cada uma
daquelas vidas. Um antes raras vezes identificado. Assemelhavam-se a uma
irrepreensível matéria bruta. Como escrever uma novela a partir daí? Repetir
incessantemente cenas, rostos, memória deixando-se envelhecer, tudo se
desgastando, aos pedaços e sem um mínimo cálculo? Ou um texto devotado à
repetição, porém contra toda forma de ascese? Primícias de nada, céleres afagos
da vertigem. Aquelas pessoas não tinham – jamais tiveram? – a pretensão de
chegar a condição alguma. Quando muito, o testemunho da própria (e ainda assim
vaga) existência, tão logo o tempo escoasse todo um ciclo de sacrifícios,
perversões, abandonos. Impossível definir o que poderemos ser aqui.
Personagens? Decerto. Porém não elegemos essa via árdua, nem viemos dar nela
por não haver outra saída. Nenhum acesso do que se é chega a explicar o que se
alcança: abismo, túmulo ou farol. Entre estudos verbais e estados oníricos, nos
mutilamos e recriamos, em estúpido e franco desatino. O que esperar de uma
novela assim? Nada. Nem se poderia. As novelas não possuem tal função. Não são
estorvos ou válvulas de estupros. Os pobres de espírito é que esperam algo de
Deus. Talvez um pérfido demiurgo, pelo acúmulo secreto de ignomínias, espere
algo do efeito da trama que lhe outorga a crédula horda. Adiantemo-nos todos
até uma próxima coxia, a esperar algo, com ar introspectivo, cientes de que o
acaso – ou mesmo um simples caso, o fato sem transcendência alguma – nos visita
com parcimônia em uma ensolarada manhã de domingo. Sentados, escreveremos uma
mesma e atônita novela de nossas vidas. Ensolarados e anônimos, não somos senão
mofo e presunção. Uma novela se faz assim? Quem tanto as lê, deverá sabê-lo.
II – CÉUS REMOTOS
2,
Duas
ou três ligações. Logo já estávamos no hospital. O largo e minúsculo corpo de
Eudoro Antunes lentamente escurecendo sobre o leito. Em meio à agitação de
olhares, o derrame agônico dos murmúrios, lágrimas mal dissimuladas, pude
entrever seus últimos instantes. Há muito – na verdade – já estava distante de
tudo aquilo. Acreditavam todos que seu diálogo único era com a bebida, poucos
sabendo tratar-se de outra matéria a solidão. Jamais conhecera pessoa
igualmente disposta a fundir-se na experiência alheia. Estranhado, foi
destilando mordacidade até encontrar-se com a rejeição. Tio Eudoro sempre
aparecia na casa da avó, com a enorme pasta, mostruário de drogas caseiras.
Levava consigo o gosto de álcool no hálito.
– Pequeno, sonhei tanto com alguma mínima
forma de transcendência. Mas vou acabar meus dias matando os outros. Vender
remédios foi tudo o que pude fazer na vida.
Na velha cristaleira na sala de refeições
havia uma garrafa de licor, cujo conteúdo tio Eudoro cuidava de fazer
desaparecer, a cada visita, até que novamente, sem que ele percebesse, a avó o
completasse.
– Sabe o que diabos vejo na bebida? Não,
não sabe. Ninguém sabe.
Outras vezes desatava a falar de amantes
que jamais conheceu. “As danadas são como vetustas sombras do desejo”. Da
mulher dizia ser a antífrase da razão. Para ter-se com uma não havia maneira
mais dada senão desfazer-se da outra.
– Por vezes penso que fui regurgitado por
ambas senhoras, vestais iníquas e estouvadas, safadas bíblicas.
Todas aquelas pequenas cenas projetadas
pela memória foram dissipadas de uma só vez pela súbita dor no braço, uma das
tias-avós me retirando do quarto do hospital.
– Isto não é lugar para uma criança.
Em casa, Mãe Dolores era a única
a me reconfortar. Com ela, criança podia tudo. E não hesitou em me dizer que
tio Eudoro havia morrido. Sentei-me a seu lado, no chão, a cabeça baixa, a mão
cuidando de algumas lágrimas em meu rosto. Toda a memória voltada para aquele
tio, recordando-lhe as palavras:
– Toma, filho.
Então fazia com que a moeda
desaparecesse de suas mãos. Nada mais havia ali para ser tocado.
– Tudo o que vemos, Pequeno, é o
intocável. Na virtude o que vemos não é senão a impostura, a hipocrisia. A
ingenuidade nos chega sempre na forma de ignorância. Um dia compreenderás.
Tio Eudoro trazia alegria àquela
casa. No entanto, todos lhe recebiam com ar suspeito. Por vezes ouvi da boca
das irmãs:
– Dá pena ver um homem tão bom sendo
desfeito pela bebida.
– Tio, me deixa tentar pegar a
moeda outra vez.
Impossível. Era um sacerdote de
meus enlevos. E encantava-me ainda com inúmeras histórias:
– Um dia o deus do tempo engoliu
uma pedra mágica acreditando que lhe fosse o filho. Ao descobrir o engano a
cuspiu o mais longe. A pedra converteu-se em um objeto sagrado, cultuado por
quantos vissem nela a imagem de uma deusa presciente.
E logo completava:
– Que coisa absurda, cuspir o
próprio filho como se fosse um pedregulho…
E ria o mais que ria.
Na noite em que morreu acordei
atormentado por um pesadelo. Muitos dos livros que eu já lera estavam sendo
escritos naquele exato momento, os autores espalhados por um lugar sem fim,
sentados em pedras, troncos de árvore, agachados, derreados, recurvados,
deitados, a escrever as páginas que para sempre me acompanhariam. Fyodor
ocupava-se das pesarosas consciências, Hyde disfarçava-se em Stevenson, Swift
traçava as andanças de Gulliver, Edmond rasurava e refazia o périplo de Dumas,
o enigmático Doyle dissecava o improvável, e todos se embriagavam e riam com
estardalhaço. Páginas e páginas se misturavam, germinantes e germinadas, e
asfixiava-me um odor múltiplo, híbrido, vindo de todas aquelas garrafas e da
tonitruante revoada de risos, esgares, imagens, rapsódias da vertigem, devaneio
instigado, suores fétidos, Unkas, Lord Jim, Drácula, páginas e páginas se
misturando, Bruce Wayne e Lady Macbeth, anjos caídos nelas, emboscados,
trocando bebidas, salseiro de risos, aflitivos engodos, motim, saltério e poções
mágicas, roteiros esgarçados, sabás e múltiplos teoremas, meu peito ardendo,
arfante, o ar rumorejando, faltando…
– Chama o médico, rápido. Pequeno
está com crise. Deus! Não quero perder mais este filho.
Ao despertar me deparei com dupla
aflição: a da mãe e a de meus pulmões em busca de ar. Desfazia-se ainda, não
sem relutância, a angustiante cena em que personagens e autores se mesclavam em
um mapa imaginário da memória, entrançados, como paradigmas embaraçosos da
própria existência humana.
A luz vinda do teto desfazia com
violência todo juízo estético. Não havia senão a perspectiva de morte por
asfixia. Todo o meu ser estava possuído por uma quase absoluta falta de ar.
Gritava com todo o olhar. E a cada átimo, recolhia insuspeitas fortunas da eternidade,
estojos miraculosos do infinito com as ramagens precipitadas sobre o acaso.
Tudo ali, como na autópsia de um caracol.
– Filho, responde!
A voz da mãe era como o som
ferruginoso de pesados ferrolhos sendo destravados. Aos poucos me precipitava
de volta, interrompendo o perigo e as impudentes diversões. Redesenhava
sombras, contornos, aos poucos os rostos ao meu redor. O do pai nunca entre
eles, sempre em suas viagens.
– Fala comigo, filho!
Naquela noite não pôde vir tio Domênico, ausente da
cidade. Logo trouxeram outro médico, porém já me encontraram nos braços da mãe,
reconfortado por seu amor.
3,
Não recordo angústia mais latejante provocada pela asma. Ou
talvez tenha sido uma ambição maior do espírito. Chafurdar-se em agonia até não
poder mais entender a totalidade do céu-templo. Tornar os sentimentos uma
intensidade de mal-entendidos. Há uma ironia em tudo isto: o homem se fez um
antípoda de si mesmo. Julgamo-nos inconfessáveis. Não há continuidade em nossos
feitos. Limitamo-nos à dor da perda momentânea, a um aniquilamento em face do
súbito desenlace. Satisfazemo-nos com a melancolia, uma diaconisa da veleidade.
Morto tio Eudoro, embaralho toda a minha vida. Torno-me um espectro hipócrita
em fulgurante estupidez. O morto conserva o crânio de nuvens, vôos de flores,
um quartilho de essência a renovar-se, uma cisma, no mínimo. Um morto nunca
morre
4,
Adorava quando íamos àquela casa. Um sinuoso caminho
desenhava-se como a aventura maior em dias tão iguais. Um velho me aguardava
para o jogo de cartas. Sempre ouvia a mesma sentença:
– Não te esqueças, menino: ele
não deve ser contrariado.
Claro estava que o vício maior
não era o relancinho, mas antes o ludíbrio. Não podia suportar o mundo sem uma
boa trapaça. Certamente havia sido um mestre entre burlões, hábil histrião no
remate de ilusões. Com o tempo, já bem velho, dera a cartada final: ensandecia
quando contrariado, dava de berrar e jogar ao chão tudo o que encontrasse pela
frente. Todos em casa se deixavam levar por aquele último golpe. Nada ou
ninguém deveria contrariar o Coronel Argemiro. As mãos trêmulas agiam sem
precisão ou elegância. O roubo não era mais ilícito, protegido agora por
estatutos ainda mais cínicos.
– Olhe ali, menino.
Apontava com o dedo. Ao meu olhar
desviado, engordava a mão de cartas. Todos na casa endossavam-lhe a insolência
ao converter velhacaria em infância reconquistada. “Naquele tempo, para ele,
conquistá-la não foi tão simples”, diziam as filhas, imprudentes. Agora se
vinga de tudo. Talvez fosse esta a razão de minha admiração por aquele patife.
De alguma maneira eu me divertia sendo trapaceado por meu bisavô.
– Pronto, pronto. Já chega de
jogo por hoje.
Ir vê-lo era um hábito que
preenchia as tardes de sábado. Lindalva era a pessoa mais nova da casa. Cuidava
de tudo, da comida e das estranhezas de Argemiro. O velho consumia as horas do
dia em um relicário de rabugices e artrites. Fumava desregradamente cigarros
sem filtro, e tossia como se expurgasse a própria alma. Logo descobri que até
mesmo a patente que ostentava era uma farsa. Não passava de um amalucado chefe
de estação ferroviária, que obrigava a todos a chamá-lo de Coronel. Lindalva
dava-lhe banho e o punha na rede, bem penteado. Aquietava-se atento à voz dela, lendo François Villon: “Je plaings le temps
de ma jeunesse, / Ouquel j’ay plus qu’autre gallé…”
Indaguei-lhe algum dia a razão
daquela leitura em francês, alegando não compreender o que diziam os versos.
– Uma bobagem qualquer sobre a
juventude. Tenho tudo isto de memória. Mas gosto de Lindalva esquartejando o
ritmo do poema, o olhar mal disfarçando horror e temeridade diante da ingrata
tarefa. É com o que mais me divirto. Os poemas já não me interessam tanto.
Na varanda balançavam-se em
cadeiras três de suas filhas. Desfiavam os queixumes de sábado. Ali fui
recolhendo sombras, vultos, fantasias, como figuras de um álbum de recortes.
Aos poucos tornava-me íntimo de parentes que ainda não havia conhecido. Ouvia
contadas histórias de Alfredo Aquilino, o louco irmão, segundo diziam. Entre
elas, a dos nós que deu nos cabelos de uma mulher, no ambulatório onde ambos se
encontravam, enquanto esta dormia. Chateara-se porque a infeliz não lhe quis
ouvir uns poemas. As irmãs desfilavam aflição. Nutriam pelo irmão uma
benevolência assustada, sem um zelo mínimo de afago. Eu ria guardado em mim,
ansioso por conhecê-lo.
Uma tarde, enquanto ainda ouvia a
voz de Lindalva:
Hé Dieu! Se j’eusse estudié
Au temps de ma jeunesse
folle,
Et à bonnes meurs dedié,
J’eusse maison et couche
molle
Mais quoy? Je fuyoie
l’escolle,
Comme fait le mauvais enfant…
En escripvant ceste parolle,
A peu que le cueur ne me
fent.
Deus deve ter se
entretido com os versos de Villon ou a displicência indisfarçável de quem os
lia, trotando um francês coxo, e não deu por conta de um verdadeiro ato seu: um
homem ateando fogo em si mesmo. Era o que se ouvia:
– Corre a ver o que se passa com
esse cheiro de queimado.
– Alfredo, Alfredo, meu irmão!
Batiam na porta do último quarto
ao final do corredor e a fumaça desarranjava o pôr-do-sol. Em meio ao pânico
desatado, o que parecia repudiável era a ameaça à parcimônia de uma tranquilidade
apeada naquelas tardes. Mas parecia mesmo haver algum fogo.
– Com que diabos…!
O Coronel acendia mais um cigarro
e resmungava. Era uma correria desmedida. Lindalva tentava acalmá-lo. As três irmãs
afligiam-se.
– Ah meu Deus, o que terá feito
ele?
– Alfredo, abre essa porta. Abre,
por favor.
Lindalva saltava de seu posto:
– Melhor chamar seu Conrado. Não
há quem possa arrombar uma porta entre nós.
– Quero o meu Villon…
– Coronel, é seu filho, Alfredo,
que está pondo fogo na casa.
– Pois que o faça. Que diabos me
importa o fogo… Sem meu Villon eu me cago todo.
– Alfredo, anda, abre a porta.
– Calma, Coronel.
Logo chegou o jardineiro que
trabalhava na casa de Conrado, o vizinho de frente. Era perto das seis. Não
haviam servido a fornada costumeira de pastéis, ladeada pela jarra de suco.
Começava a ficar com fome.
–
Não!!!
O velho começou a peidar alto e a
sujar-se por inteiro. Bramia em francês irado e banguela:
Je plaings le temps de ma
jeunesse,
Ouquel j’ay plus qu’autre
gallé…
– Ah meu Deus!
Aníbal, o jardineiro, esmurrava a
porta, espancava e esmiuçava as reais condições de socorro.
– Daqui não se passa, senhoras.
Não faço ideia do que tenha por trás.
Lindalva não suportava tanta
atribuição e fedor.
– A janela, a janela…
Correram todos. Ficamos, o velho
cheio de merda e eu, sem nada entender. Fui atrás de ar, ainda sonhando com
meus pastéis. O musculoso jardineiro acabara de arrombar a janela.
– Graças a Deus!
– A mangueira, rápido. Traz a
mangueira aqui.
O guarda-roupa havia sido
empurrado até a porta. O fogo ateado nas roupas. O ar queimado por completo.
Empurrado o móvel, aberta a porta, um corpo desacordado na cama.
– Villon… Villon… ou me…
O velho já estava como ameaçara,
o que tornou o rastilho de incêndio um drama menor naquela tarde de rapinagens
em que acabei sem os pastéis. Olhava, no entanto, o célebre e desorbitado
Alfredo Aquilino, fidedigno ao falatório a seu respeito. Era uma figura
marmórea, quase fúnebre, mas certamente pude entrever ali – ou fantasiar,
decerto – uma reserva incurável de lucidez.
A esta altura a tarde já havia
caído de si. A avó tinha que voltar, e me fui dali o estômago roendo de fome,
marcado pela ventura de haver conhecido o tio tão falado.
5,
A rede armada ao canto. O imenso quarto era da avó, onde eu
dormia, ante o enigma de duas portas que me assustavam. Aquela era uma imensa
casa tomada de portas por todos os lados. Percorria-lhe os capítulos sob o
signo da ansiedade, do quase-dogma, da verdadeira aventura por desvelar novas
reentrâncias e desnudezes da matéria de que era feito aquele meu mundo. Algumas
passagens me eram vedadas. Outras, de tanto ouvir bagaços de conversas,
descuidos de rumores, exerciam sobre mim uma descortinada sensação de temor.
Ao lado de minha
rede havia duas portas mantidas fechadas. Davam na sala maior, o grande cômodo
onde reinava a ocultação-mãe. Tudo era mistério ali, e o piano, enfurnado em
tal gruta, assemelhava-se a um dragão, sempre dormindo, cuja lenda apregoava
que, de tempos em tempos, despertava a exigir uma virgem em sacrifício, sob a
ameaça de aspergir uma ira flamejante por toda a aldeia. Talvez eu gostasse de
ver as coisas pelo lado oposto. O inacessível era o terreno em que me sentia
mais à vontade. Ouvia histórias sedutoras, entre confusas e improváveis:
– Os dois guardas estiveram aqui
ao fim da tarde. O moleque havia entrado em casa, não se sabe por onde. Parece
que ia roubar de tudo durante a noite. Pegaram-no escondido detrás do piano.
Não sei quem viu. Deve ter sido a maluca que cuida dele.
– Uma noite acordei com aquele
piano. Tocava uma música consternada, uma angústia, um aperto enorme no peito.
Assustei-me. Saí procurando quem era. Dormiam todos. Engolindo o susto,
entreabri a porta da sala: a coisa tocava sozinha, toda fechada.
– Aquele piano é o diabo. Acho
até que nem existe.
Mantinha-me às voltas com o
imperativo: o que existe? Como não confundir a semelhança com a inexistência? O
que somos é o que existe ou o que desejamos? O piano existia de fato ou de
vertigem? Se o via ou entrevia quase todo dia, jamais o ouvi, no entanto, sendo
tocado. Ouvia, isto sim, as histórias dedilhadas por toda a casa:
– As duas irmãs ganharam o piano
do pai. Viviam a disputar valsas e noturnos. Com a morte do velho Antunes,
fizeram um pacto. A primeira a se casar jamais voltaria sequer a espaná-lo.
Logo casaram-se ambas, porém uma das alianças não durou muito e meses depois a
mais velha voltou para casa, desfeita em mágoa e mistérios.
– Apanhava do marido, a zarolha,
essa é a verdade.
– Fugiu de casa em plena noite,
depois que ele a quis sufocar com o travesseiro.
– Deixa eu contar… Era estrábica
a irmã e voltava para casa, infeliz. Chorava pelas noites adentro, pronta para
morrer pela falta de um homem. O desmazelo alastrava-se e ninguém o
interpelava. Para aquietar-se, pediu então à irmã o piano de volta.
– Dane-se o acordo?
– Sim, claro. Era aquilo da
felicidade que exige sempre sacrifícios. A irmã mais nova sentia-se aturdida
pelo peso da felicidade conjugal. Aquiesceu de vez.
– O piano retornou à casa de
origem?
– Não, nunca chegou a mudar de
lugar. Sequer houve tempo. De alguma forma, o destino ardia
Ouvia e ouvia histórias, sob
todas as condições. A vizinhança impregnava o juízo por toda a cena. Vinham me
dizer coisas, surpreendia falatórios, topava com pretextos infundados, maneiras
e enganos intercalados. No entanto, jamais ouvi a mãe tocar piano. Se é certo
que nossa existência atropela-se à procura de provas… Há inúmeros casos
injustificados de papéis que são sofridos e martirizados e… Os fatos se dão
cegamente, medulares, periféricos, impossíveis… O acaso torna risíveis todos os
valores…
As vozes seguiam pela casa,
encascando a memória, futricando por toda a umidade do entendimento:
– A caolha escalava o piano em
busca da felicidade extraviada.
– Só a desventura quer dormir com
Deus!
– Não havia música nos dedos
daquela mulher. A mesma meia dúzia de boleros entrevados enjoava as festas de
família.
Nem mesmo uma única vez, jamais
ouvi a mãe ao piano. Sequer o álbum de família trazia fotos dela em fugas ou
sonatas. Que piano, afinal, havia tocado um dia?
6,
A casa nem sempre era a mesma. Quando o pai viajava eu dormia
em outro quarto, ao lado da mãe. Algumas crises de asma interrompiam as noites.
Não muito frequente, o balão de oxigênio remediava algumas dilacerações da
quietude. Tudo indicava uma grande exasperação minha. O médico entendia de
pulmões. Era um desses abnegados que iam de uma parte a outra, atendendo a toda
espécie de enfermidades. O médico de família é deus quando cura uma gripe e a
própria encarnação do demônio quando falha ante o inevitável. Chagas Domênico
não me ensinou propriamente a respirar, mas aprendi com ele algumas
inesquecíveis noções de ritmo. Magro e alto. Graças a seu estetoscópio, que me
exercia o fascínio de uma serpente metálica, jamais lhe fixei o rosto.
Historietas familiares? Dizem que mudou de nome inúmeras vezes. Viajou por muitos
lugares, estudando e estudado, curioso e fugidio. Já bem idoso, sem melhor
opção, acabou morrendo. Renderam-lhe então discretas homenagens. Para alguns, a
morte tece um cânone solene e incontestável. Chagas Domênico não deu a vida a
alimentar o hipocondríaco banquete familiar.
– Respira fundo.
– Quem vai ficar comigo?
– Bem sabes que vou embora. Morde
aqui. Fecha os olhos. Quando eu não estiver mais, deves pensar em teu íntimo e
pausar a respiração. Não irás a parte alguma sem este entendimento com o ar. Não
é uma doença, Pequeno, mas sim algo intratável dentro de ti, uma teimosia, uma
errância, uma vontade de expulsar de si todas as ânsias de uma só vez.
– Posso rir?
– Desde que não percas o
andamento do…
– …riso.
Era um homem sério e que sabia me
divertir sem privar-me da agudez de suas palavras. Depois a avó me mostrava
aquelas naturezas-mortas nas paredes da casa: frutas mescladas com peixes,
flores com cabeças de aves, e a nudez assustadora daquela mulher vista de
costas inclinando-se sobre o piano. Eram pinturas do precioso cunhado. Um pargo
abraçado por malvas-rosas. Um sanhaço resmungão capturado por uma bandeja de
siriguelas. O piano silencioso devorando o corpo daquela mulher que apenas o
instigava com sua nudez. As coisas mais simples assumem sempre uma dimensão
inconfundível. Saltam de si em busca de comida e fala. Aquele derrame de
imagens me açoitava. Uma, contudo, me era mais desafiante, quase emulsiva. A
cerca quebrada, sobre a qual pendiam os galhos de uma frondosa árvore, e a
curva da vereda que ia seguramente dar em lugar algum, estampa que foi uma
ramagem indecifrável ou desatino arbóreo de minha infância. Enfebrecia diante
da mínima trilha insinuada a caminho do não-lugar.
Ao ir-se Chagas Domênico,
ficou-me no braseiro dos dias sua voracidade mestiça. Enquanto me auscultava
traçava um círculo de fantasmas, uma estranha mesa onde imaginava impossível
poder aquele homem conversar com o autor das ceias fantásticas que pintava. Era
um tio desatado de si mesmo, segundo me parecia. Trazia consigo à mesa todas as
figuras das telas e mais os instrumentos cirúrgicos e fotos inúmeras de céus e
paisagens recônditas. Propunha-me dar àquilo um recorte abissal.
– Nada no mundo existe senão em
função de misturas. Não há composição verdadeira que não seja baseada na
diversidade. O orgulho tece mofo e mofa da existência.
– Tio, e se recorto tudo isto e
não encontro nada que se encaixe?
– Aí então estás enroscado,
Pequeno, pois não há réstia de cor ou fragmento de luz que não traga em si a
chave de toda a paleta.
Tempos depois compreendi que suas
ideias políticas haviam sido erroneamente confundidas com um ideário humano.
Não era o comunista emblemático, mas antes, bem antes, o homem consciente de
seus limites e da raiz de suas atitudes.
7,
As histórias mais fascinantes vinham todas de Alfredo
Aquilino. A tesoura enfiada na enfermeira em uma das inúmeras escapadas das
clínicas onde a família teimava
Alfredo Aquilino
era um homem doente, que merecia cuidados humanos. Ninguém o queria por perto,
isto é fato. Às vezes ia visitar a irmã, quando nos encontrávamos.
Inesquecíveis as manhãs.
–
Escute estes versos: “chama enfurecida, / queima a si mesma / e não ao que te
busca / como a um guia”. Parece tão antigo. O mundo inteiro nos parece tão
remoto, cada vez que lhe ouvimos as verdadeiras notícias. Somos tão reles,
ínfimos. O único sentido de doação que entendemos vem dali, daquela cruz na
parede de todas as salas. Símbolo desprovido ou gasto de sentido. Todos aqui
somos frutos de uma imunda piedade, uma fraudada compaixão. Somos a porcaria de
Deus.
– De quem são aqueles versos?
– Quer ouvir mais?
Nas manhãs em que ia visitar a
irmã eu estava ali. Soube depois que indagava sempre da avó se eu estaria em
casa.
– Minha irmã gosta muito de mim.
Vou pedir que tragam meus livros para cá. Quero que fiquem contigo, que os
guardes para mim, pois não tenho onde deixá-los. Hoje trouxe apenas este para
ti.
Não gostava de falar em nomes de
poetas. Interessava-se pelo sentido extraído dos versos. Ao me ler trechos de
poemas eu não sabia nunca se eram dele ou de outros. Uma única vez me trouxe
poemas declaradamente seus, publicados em uma revista dirigida pelo irmão,
Anselmo Calamares. Os olhos estavam sem guia.
– Tenho um grande carinho por
minha irmã. Somos mais de dez na família. Se quero falar com algum tenho que ir
até ele. Sei que não tenho casa. Que vivo de favores. A nenhum deles interessa
saber onde isto começou. Querem, quando muito, ser mais piedosos uns do que os
outros. Não tenho onde guardar meus versos. Misturam-se com a memória de uns
poucos livros lidos. O Anselmo me disse que tem mais de dez mil livros
– E os teus livros?
– Meia dúzia. São roubados. Ou
então umas porcarias que o Anselmo vez por outra me dá. Observa isto: “Quando
se esvai o olho da mulher não há outra maneira de se ver o mundo”. É uma imagem
imensa. Talvez excessiva, mas não de todo mentirosa. As mulheres sabem ver o
mundo. Os homens sabem como fazê-lo, talvez. Mas não terão o que fazer se não
forem levados por uma visão. Os poetas são este paradoxo: homens de visão.
Alguns. A maior parte apenas escreve versos.
Era hora do banho. Tinha que ir
para a escola. Alfredo também deveria retornar à pensão em que a família o
havia colocado. Recolher-se àquele quarto de vida.
Um dia, quando cheguei na casa da
avó, Mãe Dolores me levou até o pequeno móvel de madeira e vidro que recolhia
os livros de tio Alfredo. Revistas, livros velhos, alguns rasgados. Papéis
amassados, rabiscados. Um mata-borrão, caixas de remédio, bosta de baratas.
Trechos quase ilegíveis de cartas, manuscritos de poemas. Uma valiosa herança,
decerto. As traças haviam devorado irregularmente as páginas de Macbeth. “Prudência?
Abandonar…” “Vãos esforços! Pois mais fácil…” – nada se concluía naquela
leitura.
– Toda a biblioteca do mundo mal
cabe em uma estante. Não importa o que podes ler, mas sim o que verdadeiramente
transfigura tua vida. Poucos livros ajudarão nisto.
Sem embaralhar a memória, diante
de tudo aquilo tão pouco comecei a pensar de onde vinha toda a força de Alfredo
Aquilino.
– Por que tocaste fogo no
guarda-roupa na casa de teu pai?
Jamais o vi rir tanto. Não
deveria ter feito a pergunta? E se não quisesse mais me ver? Faltava dizer que
eu estava ali, justo naquela tarde, e que o vi desmaiado sobre a cama, com a
asfixia mal disfarçando um riso salteador. Logo assumiu um ar estranhamente
sério.
– Todas as coisas têm seu tempo.
Estão no mundo e servem para algo. Aquela não era a casa de meu pai, e sim a de
duas de minhas irmãs. Meu pai morava ali com elas, como moro hoje em uma pensão
a duas quadras daqui. Desde a morte de minha mãe que o velho vinha sem rumo.
Meus pais viveram juntos até os oitenta anos. Quando se é tão teimoso assim e
de repente se perde o pé de apoio, não mais é possível imaginar forma alguma de
apego à vida. Ou se enlouquece de vez, ou se torna submisso aos dilemas
cristãos. Meu pai era agnóstico. Os agnósticos são miseráveis criaturas que
precisam de algum empurrão para cair na fé. Não tenho nenhum desapego pela
vida. Entendia que deveria matá-lo. Preso àquele quarto em que eu estava,
imaginei como única maneira possível, de cumprir algo que me soava como um íntimo
sinal de justiça, atear fogo ao guarda-roupa. Não queria matar a mim mesmo. Vê
como toda forma de julgamento é uma injúria? O entendimento alheio não define
nossos próprios atos. Um erro só acoberta outro.
Silenciou um pouco e logo indagou
se não gostei do presente. Salvou-me a avó do indisfarçável constrangimento.
Era uma daquelas horas de rompimento de nossos encontros. Os olhares ficaram
algo estranhos.
“Os livros são atos essenciais de
escritura e não de leitura.”
Fisgou-me esta, entre inúmeras outras
anotações nos breviários reflexivos, disformes alguns, iluminados uns poucos.
Contudo, achei que estava ali apenas para ouvir.
8,
–
Preste atenção, preste atenção! “Uma vez torturada por teu amor / terás que te
refazer a partir dele.” Apenas ouça. Tem algo surgindo aí. Meu irmão quer me
deixar sem isto. Ele entrecorta minha vida. Tenho uns versos, me surgem,
surgem… surgem. Vou escrevendo, anotando aqui comigo. E… Não, não vou
escrevendo tanto. Vou escrevendo na memória. Meu irmão não encontra tempo para
lê-los. Diz: “vamos ver se há aí algum fundamento poético”. Sempre foi um
burocrata do verso. Claro, o poeta da família não poderia ser outra coisa. A
busca desenfreada de essencialidade é um distúrbio patológico. A imagem poética
surpreende pelo que oculta em si, pelo que apenas sugere. Toda beleza é
perversa.
Assim me recebeu tio Alfredo,
logo na porta da casa da avó, na semana seguinte. Sempre me deixava algo
perplexo diante de tantas observações. Por vezes atropelava o próprio
pensamento. Senti-me obrigado a retomar a estranheza com que fatiamos a posta
anterior de nossa conversa.
– Gostei dos livros. Só me veio
uma curiosidade: não são apenas estes os teus livros lidos. É só isto aqui? Tua
vida, é só isto?
– Bem poderia ser. Não somos
exatamente o que lemos, mas antes, antes mesmo, a maneira como o lemos. Que
livros querias? Como os restos da biblioteca de meu irmão. Por que não falo em
nomes? Porque não leio nomes. Sei de um Claudel – o burocrata cretino que pôs a
própria irmã em um manicômio -; de uns versos mal escritos, porém dilacerantes,
de um Artaud; da soma de tudo que soube ser Baudelaire. Notícias tão vagas,
sempre tão excessivas, deslumbradas. Leio os versos que estão ali. E duvido
comigo mesmo se é preciso ler algum verso. Se versos não têm tanta importância,
o que dizer então de seus autores? Meu irmão é que vive de versos e de nomes e
de escolas. Só leio versos roubados, da livraria ali da praça ou da biblioteca
de Anselmo.
Alfredo Aquilino destrinçava o
ocioso e o desconhecido em minha vida. Tudo em mim irrompia fuçando dúvidas,
desconfianças, um pesponto de inquietude, desperta justamente pela interlocução
delineada. Na verdade, não sei se me ouvia, porém me deixava ouvi-lo. E isto
para mim já era uma forma primogênita do diálogo.
– Não aguentava mais a clausura
naquele quarto. Pedi a Firmina uma revista, qualquer uma. Não podia seguir
olhando para o teto o dia inteiro. O teto tem um momento propício a ser
observado. Depois começa a produzir monstros à revelia. É quando então desaba sobre
nós. Firmina talvez fosse alheia à queda de tetos. Tentei conversar com ela.
Estávamos ali pela mesma razão, o doente e a enfermeira. Hipótese mais risível
não a encontraríamos tão fácil. Desleixado com a higiene, Firmina vinha cuidar
de mim como uma deusa reparadora.
– Olha o teto, vai cair.
– Que teto, seu
doido?
– As pontas metálicas e
persistentes da tesoura de unhas me convenceram de que a coitada poderia
facilmente ser convertida em uma porta de saída. Queria apenas fugir. Espero
que a tonta, tão adorável Firmina, não leve em conta senão o requisito da
tesoura cravada na garganta.
Não tínhamos encontros
propriamente habituais. A princípio vinha com mínima frequência: umas manhãs de
quarta-feira, uns dias saltados, até que foi se chegando, com o pouco cabelo
colado à cabeça, a mão esquerda sempre mantendo o talho, a justa separação dos
fios. Tio Alfredo era julgado mais e mais como intratável pela família. Certas
doenças dispensam tratamento médico. São ajuizadas à luz da moral familiar. A
condenação é sempre a mesma: irrestrita solidão. Não sei se ele escrevia os
próprios versos, se os roubava do irmão ou de outros poetas que lia. De uma
coisa sempre estive certo: aquelas ideias expressavam uma agonia pessoal.
9,
− As idades se misturam na memória.
Não havia propriamente a ideia de uma novela. Quando tudo é memória, nada mais
é memória. Memória, memória, memória. O homem é a única catarse possível.
Afeiçoa-se a destilar a compreensão de si mesmo: um pai velho entregue à
solidão, irmãos desamparados, os filhos distantes.
Alfredo
Aquilino mantinha os olhos fixos no teto enquanto falava com vagar cada
palavra.
−
Impressionava-me que trouxesse tudo aquilo de memória. A cunhada havia ido
embora, levando consigo toda a mobília da casa, talheres, quadros, piano,
mesas, o cão, tudo, tudo mesmo. Renunciara apenas aos livros do marido, às
imensas prateleiras carregadas de livros. Aquele santuário certamente
significava o centro da ruína de seu casamento. A renúncia era a afirmação de
um desprezo. E para que não morresse de sede o poeta, deixara também uma
moringa d’água. Alfredo imaginava o monólogo que certamente teceria o irmão,
tão logo os olhos se amoldassem ao vazio do cenário.
(– Como disfarçar vergonha
extrema? Como evitar que saibam o que houve os filhos e irmãos e amigos? Como
me sentir amanhã tendo os alunos diante? E com tantos, o que fazer, com os que
me espreitam cada partícula de vida e sonham rindo com minha queda? Por que
terá ela feito isto, em meio a tantos anos de apaziguado casamento? Não tocava
a sós aquele piano melodramático? Amigas emplumadas e ridículas, acaso não
tinha as suas? E não cuidava dos horrorosos canapés de tantas e tantas e
repetitivas festas, nas previsíveis e lastimáveis datas, todas? Vivia, isto
sim, a abusar de adjetivos. Como achar então que tudo em nossa vida era seu,
exceto os livros e aquela afrontosa moringa? A quem confessarei minha dor? Como
Adelaide poderia pensar que tudo o que eu sentiria diante do vazio seria sede?
Como entupir-se de tanta mordacidade?)
Seguia olhando para o teto,
encarando um invisível monstro dependurado sobre nós. A voz encarnava a do
irmão, em um ritual desconcertante.
(– Os filhos decerto apoiarão a
mãe. Dirão impiedosos de minha permanente ausência. Também eles a pensar que
livros e livros e uma moringa d’água são alimentos suficientes para um poeta.
Criamos filhos para tanto? Para afinal julgarem o pai e não simplesmente
apoiá-lo? Já sei que minhas irmãs dirão que negligenciei o casamento. E isto
dirão justo aquelas que jamais casaram. Os amigos mais cruéis serão os cercados
de adoráveis concubinas. Já lhes ouço os risos cortantes. Da moringa bem
imagino o quê. E o que levas de tudo isto, minha confusa Adelaide? Talvez tenha
guardado, confesso, as melhores exclamações para meus versos. Mas todos traziam
teu sabor inconfundível. O que mais poderias querer? Não fui teu grande cantor?
O que são as musas? É tão pouco assim o que te dei e que agora trocas por nada?
A conta bancária, os móveis, a cumplicidade dos filhos, pensas mesmo que tudo define
tua vida e anula a minha? Talvez o Rembrandt legítimo em sua ronda noturna. Mas
não lhe repetirei a miserável vida nos últimos anos. Não procurarei mulheres
entre músicos ou qualquer outro tipo de círculo de vagabundos. Farás isto,
tenho certeza. Os filhos ficarão contigo, embora já bem crescidos os
falastrões. Tão-somente sentirei imperturbável saudade daquele sábio exercício
de iluminação de uma cena: o raro Rembrandt que tínhamos na parede da sala.
Pensas que te foste com toda a luz? Que tonta, Adelaide, o que te passou pela
cabeça? Que eu não poderia viver sem ti?)
Enquanto falava, por vezes tendia
a transtornar-se. Abria um disperso sorriso. Suspirava um tanto, logo
recuperando a própria voz.
–
Certamente um dia transformará tudo aquilo em um de seus indefectíveis poemas.
Já imagino a vazante pouco gustativa das imagens. Pobre poeta, meu irmão. E
agora um trapo, uma cárie, um esgoto entupido, abandonado pela esposa. Esquece
que fez tanto por essas metáforas extenuadas…
Em
um outro dia, mostrou-me as páginas arrancadas de um caderno, a letra trêmula,
garranchosa. Pediu-me que lesse em voz alta.
(Chego da aula e encontro a casa
completamente vazia. Assusto-me. Penso
– Quer o suco agora, meu irmão?
Balançava a mão, negativamente, agitado com
a interrupção da irmã.
– Leia de novo. Não. Aquilo do telefone é
uma graça. Ele não sabe passar sem um telefone. O dia só se justifica quando
liga para alguém e diz: “ouça que estou fazendo o dia”. Idiota. Deveria dizer,
quando muito: “ouça o que estou fazendo do dia”. Continua dali.
(Ligar para os filhos a indagar o quê?
Enquanto isto, que vinho tomar, que tango ouvir, em que poltrona aquietar-me?
Dar pela falta dos tecidos imutáveis de que é feita cada vida leva o mesmo
imprevisível tempo que fiá-la. Aos poucos algumas aflições foram golpeando a
tez da realidade, em decursivo rondel: quem me faria os hábitos da mesa?
Quantas cartas teriam hoje chegado? Os versos de fim de noite, onde os
comporei? Amigos recriminam que tenho publicado livros demais. A caminho de
casa, entretanto, ideias tantas me surgem sempre, e tantos poemas, tantos…
Talvez seja um poeta de imagens demasiado simples, confesso. Hoje mesmo vinha
pensando em uma ode ao homem imóvel na praia, vinha já com uns versos prontos: “esta
manhã um homem estava imóvel na praia / com toda a vida salgada por silêncio e
infortúnio”.)
– Alfredo, toma o suco…
– Merda, merda, merda… Ele vai exasperar-se
e dizer que é um homem tão simples, um merda tão simples. Não pára de ler.
A avó não fazia ideia do ritual que estava
interrompendo. Eu seguia lendo.
(Tenho sido um homem tão simples. Os poemas
não passam disto: um reflexo de nossa simplicidade diante da vida. Os poetas
somos todos a encarnação do puro Francisco. Nos desfazemos de tudo em um
exercício diário, permanente. Nossa tragédia vem de nossa abnegação. Desejamos
profundamente que todos os homens sejam felizes. E o desejamos com nossos
versos. Por que então arriscaria algo contra meu amor? Com amor componho minhas
odes e versos mínimos. Diante daquela moringa me sinto julgado por crimes
sequer pensados. Não teria dado a Adelaide toda uma vida? A que devo minha lástima,
irrefletida, desassossegada, entontecida? O que peço à minha memória que
desvele sem trama? É certo que raramente a procurei como a uma mulher deveria
seu homem procurar. É provável que desconhecesse muitas de suas sílabas,
possivelmente as mais crepitantes, jamais por mim debulhadas. Mas era uma deusa
a luniforme Adelaide. Apunha signo a signo. Podia escrevê-la com os cabelos em
versos, as volutas intermitentes, os lábios tomados de seiva sugerida pelo
hálito. Adelaide parecia benzer cada cadinho de espaço que seu espectro
preenchia. Possuía diabólica santidade.)
– “Diabólica santidade…”. A mulher era
insaciável, e a lubricidade desprezava qualquer sublimação retórica. Olha a
tolice que ele vai dizer agora:
(Lembro do vinho com que me procurou certa
noite para um banho. Estava tão embevecido de Verlaine. Sedução possível não
havia mais. Toda a embriaguez do mundo estava ali, nos versos. Batia palmas
para Verlaine e não me acendia Adelaide fogo algum. Talvez fosse o maldito
piano que acreditava parte de si. Sim, sim, era o piano, não resta dúvida, a
mínima. A todo instante cercava-me com uma sonata estilhada. Tantas histórias
poderia contar, mistérios e dissabores essenciais, embaraços da paixão, viços
de personagens que me inspiram, lembranças, não mais… E as insípidas sonatas
acesas até altas horas. A poesia já trazia consigo toda música. Adelaide a
desmerecia com aquela versalhada teclada.)
– E toda a parvoíce que benze com a água
pútrida em nome da poesia? Reduz-se a nada. Não compreendeu jamais a coerência
do ardor de Adelaide. Daquele corpo eu arrancaria toda a alma do mundo.
(Por que se perder em acordes tão frágeis?
Era um absurdo, aquilo. Em algumas festas de família, as primas pedindo para
ouvir o piano. Um Schubert mal dedilhado despertava atenção que um Valéry
autêntico sequer suspeitaria. Jamais li meus poemas em tais festas. Entre a
inúmera bebida e os indeclináveis canapés, todos preferiam as histórias
alheias, e me pediam que contasse a trágica morte de Isadora ou detalhes do
desengano de Padre Ramírez. Quem conta histórias não pode ter a sua própria
narrada, exceto se a enovela no fio das demais.)
– O safado não entende que ganho é
conquista e não herança ou trapaça. Fala sempre em prêmio, subordinando tudo na
vida a um mero reconhecimento da reles existência. Palhaço… Lê o resto.
(Vejo agora que não eras nada em minha
vida. O que lamento então? Quando escapamos milagrosamente de um acidente
aéreo, de retorno ao lar após larga viagem, tínhamos tão-somente um ao outro.
Abri os olhos diante de Adelaide e a deusa hesperídea, áurea, averbou-se em
busca de um telefone no aeroporto. Eis o primeiro impulso diante da
ressurreição: dizer aos filhos que mamãe está viva. E papai? E nós? De que
servíamos nós? E todo aquele pânico? A imprensa nos recebia no saguão do
aeroporto. No dia seguinte porejavam notícias do poeta redivivo. Tudo era
imortalidade
–
Chega. Vê como ele se livra rapidamente das responsabilidades? Meu irmão traçou
um círculo a seu redor. Percorre-lhe o dentro e o fora, irresponsável,
fraudando um discurso, mesmo ciente de que o êxtase que supõe é a falência das
duas partes. Busca um terraço no céu, uma laje fantástica que o proteja do
engano de si mesmo.
–
O que foi feito dela?
–
Adelaide foi levada a achar que o piano era nada. Desconhecia-se. Veio me
visitar uma tarde. “Estou sentindo uma forma me apertando, pedindo que eu a
deixe de lado.” Me chamava de Fredo. Estava tão linda. Tomada de angústia, mas
tão linda. Disse-lhe: “Jamais esqueço a noite em que tocavas em tua casa a Chansons
d’amour de Grieg”. Sorriu com pesada lentidão, mas ainda assim envolvente.
Não sei por que não a beijei. Morreu logo depois. Tanta infelicidade lhe
despertara um câncer.
Ele
estava certo. Parece que despertamos nossa morte. Ou somos estúpidos o suficiente
para nos sentirmos imortais e desprezarmos a vida.
10,
Nas conversas com Alfredo Aquilino o mundo ia se descascando
sem pressa. Um dia percebeu que o melhor delas é que eram entrecortadas. Pôs-se
então a tracejar um elo silencioso entre as inúmeras interrupções.
– Como são as mulheres?
– Eram. Não me pergunte como as
coisas são, mas sim como alguma vez foram. Já não me sinto dentro do que quer
que seja, não tenho sido mais nada.
A avó indagava se tudo estava
bem, se queríamos mais um suco. A manhã mal disfarçava seus traquejos de
alçapão.
– Eu gostava de pentear os
cabelos. Ficava ali diante do vazio, penteando, tempo indo e vindo, desavisado
de outro tempo. Aleuda sabia que eu tinha essa mania. Quando vinha trazer o
comprimido eu a confundia, dava uma de esquisito, olhava o teto sem muito
gosto, aí ela passava a mão nos meus cabelos. “Se eu pudesse, cuidava do senhor
de outro jeito.” Bem sei que achava que eu não ouvia. Que não entendia. Ela que
não sabia: eu cuspia o comprimido fora tão logo a porta se fechava. Tudo é tão
igual no amor. Não importa que se mude a loucura de nome.
Casa e tempo eram outros.
Confundiam-se os relatos da memória. Alfredo Aquilino piorava a olhos vistos.
Esbravejava que o irmão o estava matando. Queimava, rasgava, feria. Não
suportava nada ou ninguém à sua frente. Recordo incidentes pesados, quando
esmurrou uma das irmãs, por havê-lo chamado de doido. Mas tudo mesclado a uma
fascinante presença de espírito, a exemplo do motivo de sua expulsão de uma das
clínicas de repouso: acordou no meio da noite e antecipou em uma hora todos os
relógios do lugar, alterando medicações e outros cuidados.
– Tropeço em tanto infortúnio.
Dou com miseráveis carpindo minha vida, capinando com belos moldes em rostos
turvos meu arrastar-se pelos dias. Que se desfaçam, ou se entreguem a seus
demônios. Não posso matar a todos como me pedem… as vozes que me rogam: morte,
morte, morte. Uma obscura missão que não saberia cumprir.
As manhãs salgavam-se de
mesmices. Pequeno Ansioso apenas sabia notícia das crises, o leva e traz da
vara familiar. Conhecia um único Alfredo Aquilino: o que via, ou melhor: ouvia.
O grande fantasma era o outro. Se havia uma loucura teria que haver também uma
não-loucura. O contrário resulta sempre na melhor afirmação do que se é,
segundo uma aborrecida legenda.
– Às vezes ele fica uma manhã
quase inteira sem dizer palavras. Balança-se na cadeira. Tamborila os dedos,
suspira, quase solfeja, um salmo, talvez, ou mesmo um rumor de inquietude.
Simplesmente parece não estar ali.
O embate com os monstros que se
desenham na fixidez do olhar. Alfredo sabia que aquelas criaturas não sairiam
dali senão através do espírito, o fio condutor de toda realidade possível,
visível ou não. Sabia. E apenas sabia.
III – MARGEM IMPERTURBÁVEL
DO SILÊNCIO
11,
As entranhas da casa. Mãe Dolores nua por inteiro, celebrada
por si mesma no recolhimento de todos os sítios, logo após o almoço. Pequeno
Ansioso percorria o largo corredor, estimando-se intérprete de incontáveis
mistérios. Esguelhando-se no pavio da caminhada, vislumbrava finalmente o
sortilégio anunciado: como amar outro Deus senão aquele corpo quase em
levitação? Era uma esplêndida totalidade, trazendo consigo até mesmo a
insustentável impossibilidade de alardear-lhe os meneios, dividir com quem quer
que seja a visão primordial.
–
Vem cá.
Quebraram-se mil taças, todo o
vinho do mundo ao chão. Desfez-se o último enigma que sustentava a existência
humana.
– Anda, Pequeno. Larga de ser
tonto.
Não demorou a entender que ali
tinha início um estágio mais elevado do mistério. Uma nova letra se desvelava
no espírito.
– Quero ser teu fado, tua sombra,
teu ritmo. Quero ser tua fala, teu ofício.
E dançava, molequeando, sorriso
largo.
– Quero ser tua cuia. Beija aqui.
E mostrava onde.
– Não sabes? Não sabes isto! Não
deves saber outro tanto.
As tardes passaram então a ser
historiadas por um mapa secreto. Despertar invisível. Transcorreram beijos e
suores, o deslizar dos dedos, o refúgio da língua, mínimos apertos, o ardil dos
beliscões, uma primeira floração de mordidas. Pequeno Ansioso era um aprendiz
de corpo e espírito. O melhor aluno de sigilos com que poderia sonhar Mãe
Dolores. Fez tanto segredo de suas preleções que por vezes pôs-se a duvidar de.
– A casa me exercia um enorme
fascínio. Insultava-me a desvendá-la, a tocar em um ponto e outro daquela
geografia carnal. Da escadaria que a iniciava aos tanques de peixe ao final de
sua cauda, contorcia-se e parecia assumir formas tão várias que jamais dei por
conta de todas elas. Mãe Dolores vivia a cuidar de suas multicores escumilhas.
Era uma mulher lindíssima em longos cabelos ondulados. Diziam-na cigana, porém
nunca me quis ler a mão sequer, nem soube jamais de um pandeiro em seus
requebros evocativos. O certo é que andava pela casa como se dançasse um pouco
de tudo.
Pequeno Ansioso, ainda sem o
saber, mostrava-se aplicado na maior das lições: deixar que tudo seja e
desapareça.
12,
Enroscado em um galho maior da grande árvore, Pequeno
Ansioso atiçava Mãe Dolores, jogando-lhe o caroço das frutas, enquanto lá
embaixo ela punha roupas a quarar. O quintal era imenso e, como tudo naquela
casa, espichado e tomado de sinuosidades, reentrâncias, ardis de espiadelas. O
tanque de roupas ficava à sombra, um avarandado com colunas e telha-vã. O
menino corria por todos os cantos.
– Quer brincar?
– Vem cá.
Encostava-se nela, que o
espicaçava com voz melosa.
– Quero um beijo.
– Onde?
– Deixo escolher.
Baixava-se e erguia o vestido,
sempre nada por baixo. Os lábios treinavam em carne de sobra.
– Beijo bem grande, demorado.
Amolecia o corpo, um pouco,
depois se virava e o empurrava com um pé, mandando-o brincar sozinho, tinha
ainda muita roupa que lavar.
– Eu quero gozar.
– Me deixa trabalhar, moleque.
13,
“Nada se compara ao amor que eu fiz.” Pequeno Ansioso
repetia a frase, saltitante, entre miúdos risos. “Nada se compara ao amor que
eu fiz.”
– Vem cá. De onde é isso?
– Está em um livro que li: As
sobras de Deus. A mulher queria tudo para ela. O homem ia tomando algo de
volta, aos poucos. Umas coisas ela nem dava por conta. Queria seu amor. Ela
dizia que era dele. Mas ele é que foi fazendo com que fosse.
– Vai buscar.
De volta o menino, Mãe Dolores
encostou a vassoura na parede. Sentaram-se juntos no largo banco de madeira em
um canto da copa.
– Lê um pouco.
–
Quando teve o amor, disse para si mesmo: “Esta é a minha emancipação. Agora
posso fazer de tudo.” Sentia-se o tal, porque havia entendido o êxtase. Andava
nu pela casa, gesticulando alto.
– Ela também?
– Tem umas partes em que estão
sempre sem roupas. Acho que até andam pelo quintal, pela sacada, assim. Ela se
dizia escrava da paixão. Vivia ávida por algo, qualquer coisa, sempre. Ele a
olhava com ares estranhos, alternados. Acho que queria anulá-la, de alguma
forma. Queria tornar trágico o êxtase. Acho que o artista acaba por destruir
tudo o que cria. Não quero ser artista, Mãe.
– Quer ser o quê?
– Teu amor.
– Lê mais, safado. Depois te faço
uma coisa.
Mãe Dolores punha-se no calção do
menino. Sorrateira a mão se aninhava com extremo zelo. Pequeno Ansioso fechava
os olhinhos, trocava de página, retomava:
“– O homem passou a ser uma visão
para ela. O anúncio de algo. A mulher já havia perdido tudo. Ele era o centro
de sua catástrofe, porém ela o tinha como a um deus. Gravemente enferma da mais
profunda ilusão, começou então a ser as sobras, os sobejos de uma divindade
falseada.”
– Ela morre?
– Nada. Vai sofrer angústia e
vertigem por muito tempo ainda. Não é isto o que Deus faz com a gente? Leva
tudo consigo e nos põe a viver de espanto? Eu também não queria ser Deus.
– Queria ser meu?
– Eu quero gozar.
– Vou te fazer um mimo. Traz o
livro junto.
Quase ao lado dos tanques de
peixes havia um pequeno quarto, para o menino uma misteriosa casa dentro de
outra. A porta era guardada por um pesado cadeado. Em suas andanças demarcara
aquele cômodo isolado como sendo o coração do mistério. Além da porta, havia
uma janela igualmente cerrada. As frestas na madeira carcomida só permitiam ver
a profunda escuridão que habitava as entranhas do enigma, sempre desperta,
inconspurcável. Os dois pararam diante da porta, Pequeno Ansioso com o apetite
espigado sob o calção e um dedo entre páginas do livro, como se marcasse algo
para não esquecer.
– Espera um pouco.
Mãe Dolores voltava com a chave
na mão. O menino sentia-se lançado ao vazio. Insubordinação, pecado, quimera, a
emancipação, de tão próxima, o atordoava. Jamais teria imaginado a profana
simplicidade com que se tece um abismo. Aberta a porta, entrava no outro lado
inigualável do mundo. Os lábios deixaram escapar: “morrerei em condições
espantosas”.
– O que é?
– Não sei ao certo. Devo ter lido
em outro livro. Creio que é o que o personagem diz quando o chão lhe falta aos
pés.
– Um sinal de Deus?
– Um miolo de pão.
– Meu pequeno doido.
Mãe Dolores fechava a porta e a
golpada da escuridão celebrava novo triunfo. Todos os sentidos se concentravam
em um só, estuário das sensações miraculosas que passavam a reinar manhosas.
– Me dá o livro.
Ela cuidava com tato infernal de
ambientar o desejo de ambos.
– Deixa eu tirar o calção. A teus
pés, Pequeno, não deixarei que te falte nada. Vem com tua mãezinha. Quero ser
teu poço, tua lua a brilhar, tua guarda do labirinto.
Eis ali toda condição espantosa,
a própria medula do espanto. Jamais poderia imaginar que a verdadeira sensação
de ser equivaleria a sentir-se em parte alguma. O ponto extremo da inquietude.
Mal se ajeitara em seu casulo. O corpo sem noção alguma de tantos átomos à
deriva. Julgando-se autóctone e dado a falar com as plantas.
– Assim.
Tinha nas mãos todo o corpo de
Mãe Dolores. Detinha-se nos seios insaciáveis. Tremia e sentia os pés inchados,
uma onda de assombros lhe emaranhando o sexo. Tudo queimava e talvez jamais
voltasse a ser um indivíduo. Mãe Dolores apenas gemia, balouçante, lasciva,
desfeita de toda cartografia.
– Mais assim.
– Mãe.
Foi quando a totalidade pareceu
improvável. Animada por uns pretextos carnais, abundava no relicário: crime,
loucura, baixeza.
– Morde.
A escuridão era o centro de tudo.
Pequeno Ansioso era um cego rodeado de escuridão. Sofria e gozava escuridão.
Lambia e fornicava escuridão. Outra lei não havia. Não era mais o Pequeno
Ansioso e todas as formas ascendiam a um caráter difuso. A escuridão comerciava
as mais diversas formas de tremor. E epigrafava cromos cruéis, falantes
farsantes, milharal do pânico.
– Go fuck your mother. Your desire is your
pain, damned child. Your flesh is burning. Your spirit doesn't know where he
went in. Everybody is the women of your life. You’re the only serious dream.
Quem estava ali, além deles,
estalando em meio ao braseiro da escuridão? Murchava-se assustado o menino, já
de todo fora do concílio carnal de Mãe Dolores. Decaído por usurpação do trono.
– Mãe!
O que era tudo aquilo? Uma
queimação trocando os sentidos da vida. Uma erupção do indecifrável que
trazemos dentro de nós. O menino não tinha como pensar em nada. tremia por
inteiro, de uma vez por todas perdido integralmente de si. Mesmo o clamor era
um estrépito desapegado, uma fagulha perdida.
– You’ll never live inside me.
(Não aguento de vontade de
intrometer-me em tal maluquice. A narração brilha a cada passo e não se sabe de
onde vem. Nem mesmo quando falha o narrador é lembrado. Talvez não passe de um
funcionário público da tragédia, do dramalhão, da comédia de costumes. Antes de
pegar este emprego, conheci uma gracinha de mulher. Estava de passagem por
minha cidade e logo tratei de mudar-me com ela para o lugarejo de onde viera.
Era uma mulher ardente. Quando se conhece uma mulher imersa em tanto fervor, é
natural que ela seja mãe e Deus e todas as formas à altura da imaginação.
Cibele era assim, com longos cabelos e o olhar feito um golpe de machado. Já no
meio da viagem, no pouso em um motel de estrada, a caminho de uma mítica
Palhares, deu de falar comigo diferente. Não em outra língua, mas em outro
linguajar. Justo quando me encaixava em seu íntimo e amassava-lhe o corpo e
tremíamos… Em meio à cena tornava-se outra e rejeitava-me como se não
suportasse um instante, o mais célere, de felicidade. Era um espírito sofredor,
um lagamar purulento. Morava bem ali naquele corpo que esvoaçava de ansiedade,
crepitante na plumagem de gozos, e que veio pousar em minhas mãos. Não sumia
quase nunca. O diabo é entender que não se deve ficar ali um minuto a mais. A
plenitude é feita de uma exímia sequência de abandonos. A insuficiência é ainda
não haver perdido tudo o que se tem a perder. A perda é o único sentimento que
determina a existência de uma pessoa. Sofri mais de um ano nas mãos dessa outra
mulher que surgia sempre quando buscava Cibele para o amor. Até que um dia fui
embora. Entre enjôo e enojo, frustração e aniquilação, tudo parecia o mesmo. As
coisas nos encantam parecendo iguais, sempre. E assim nos martirizam e traem.)
– Mãe.
– You’re nothing. You’ll fall if I just raise
my hand. I’m your anxious will.
– Mãezinha, responde. Brinca assim não.
Talvez a escuridão não soubesse o
que tinha em suas mãos. Pequeno Ansioso estava no centro do nada. Ou de nada.
Queria uma palavra cálida, uma ocupação vulgar, algo que o agitasse e
justificasse todo aquele suor. Quem estava ali?
– Mãe!
Ninguém respondia. Em nada
repercutia seu dilema. Não importava em que língua o insultasse, mas sim que
estreitava laços rompidos com algo de que era possuído e ainda desconhecia. Em
pleno assombro, no entanto, só tateava ausências.
14,
O menino chorava acaçapado e nu ao lado do último dos três
tanques de peixes. Afundava-se em choro e medo. Não tinha a mínima ideia de que
espécie de fronteira havia cruzado. Dele aproximava-se, ajeitando a roupa sobre
o corpo suado, Mãe Dolores. A figura já não lhe era mais um atrativo. A
essência, agora, emanava o mais simples terror. Pequeno Ansioso humilhava-se
ainda mais junto ao lodo que de muito residia naquelas paredes. Miudeava ali
todas as formas do pânico. Revelava-se a ele um outro caráter do êxtase, ao
tempo em que ruminava um verdadeiro conhecimento do exílio.
– O que houve, meu menino? O que
eu te fiz?
Mãe Dolores era toda estonteante.
Não dava por um mínimo do havido. O menino não fazia senão chorar. Levaram
nisto uma eternidade. Uma náusea vociferava por todo o tablado. Os peixes nos
tanques. As frutas nas árvores. O incerto tempo em si mesmo. Onde então
estivera Mãe Dolores quando nela estivera Pequeno Ansioso? E onde estivera ele?
Para onde fora quando lhe fisgou o desejo? E o que lhe parecia ainda pior:
estaria fazendo as perguntas certas? Tal inquirição acaso não seria um desvio,
artimanha, uma falsa luz? Foi-se acalmando e veio até ela, derramar-se no colo.
Dissimulavam-se as verdades mais translúcidas. Mãe Dolores brincava com a mão
em seu rosto. Dava-lhe um seio para o afago, pedinte. Apertava-lhe o nariz.
Pedia que lhe mordesse o lábio. Os dois enchiam-se de fraquejos.
– Eu não te faria mal algum.
Dizia isto e lhe entrançava os
dedos no sexo.
– Quantos são os dedos? Quero em
mim apenas o que é teu.
Deitou o menino no chão e lhe
cobriu com o corpo. O vestido deixado ao lado, pôs-se a remexer-se em
convulsiva aleluia. Apenas os dois. Até o fim.
15,
Uma enervação dolorosa havia se formado na memória de
Pequeno Ansioso. Não foram poucas as noites em que se deixava afligir por um
coro atonal de vozes e o ranger de uma porta que separava dois mundos. A
expedição diária pelos vigamentos da casa começava a assumir uma natureza
teratológica. Aos poucos tornava-se um vigilante insone. Algo comprometia a
beleza e não sabia ao certo se ocultava-se naquele pequeno quarto ao final da
casa ou se disfarçava-se na desordem afetiva de Mãe Dolores. A frase lida em um
livro despontava na lembrança: “quando a beleza se torna um signo nefasto não
há mais o que buscar no homem”.
A primeira decisão
foi montar guarda austera àquele portal, que simbolizava, segundo os cálculos
de seu espírito, o marco da agonia. Ali estava, entretecido pela inelutável
convicção. O valente guerreiro ou era uma pérola rara da presunção ou
supunha-se acolhido pela sorte. O fato é que mantinha a aparência inerme. A
casa dormida, precipitava-se pelo extenso corredor, abria a pesada porta de
saída para a área descoberta, e dirigia-se a um quadrículo de cimento onde se
recolhia água para o cuidado com os peixes. Dali estava defronte o mistério.
Cobria-se com um lençol e mantinha a atenção esbugalhada na porta, já recolhida
ao cadeado habitual. A noite inteira, intactos, ele e o que houvesse por trás
da expectativa.
Nada.
Nada por três noites.
Tudo lhe parecia crer que a
vigília não é um emplasto eficaz contra a inquietude. Não se interessava por
conclusões. Estava exausto. Mãe Dolores não o deixou quieto dia algum. Aquele
garoto lhe revelara um acordo com a ventura. Pequeno Ansioso começava a pensar
que um conhecimento pode ter fim, sendo bastante observar a ruína de seu
reverso. A verdade é que não conhecia ou desconhecia praticamente nada. Era um
garoto exânime pela crença de algo que não podia intuir e que o afligia como
uma tempestade. Desvalido de suas resistências, dormira ali mesmo no quintal,
na terceira noite. Não fora acordado por exéquias, mas sim pelo aviltante
vozerio de aparições embaçadas e o ranhoso movimento da porta. O exorcismo
seria acaso uma forma de cabotinagem? Foi o que lhe deu a pensar, por alguns
instantes. Na verdade, era apenas a casa que despertava com as tarefas mais
rotineiras: comida aos peixes e galinhas, um tio aplicado em seus alteres, o
destrancar de mil portas e janelas.
– De quem procuro livrar-me?
Longe de ser um fabulista,
Pequeno Ansioso arriscava-se a questionar com o próprio ser a mínima coisa que
punha o homem
– Como deixar a mercê do horror
os riscos da paixão?
Não era tão simples. A audácia
não passava de uma vaga resposta, embora totalizante a cada mínimo gesto.
– Devo estar de todo perdido.
Minha única meta é aguardar por um sinal que seja desta porta.
Esgotado, não via mais nada à
frente. Ao lado da geladeira havia um louçário onde enlanguescia de pouco uso a
chave do cadeado do mistério. Sabia disto. Sempre o soube. Podia alcançar a
chave, porém o mistério oculta-se na aparição ou na guarda de seus limites
indecifráveis? A mão trêmula diante do cadeado é a mesma, medida por toda
essência do abismo. Os olhos pesados davam a tudo um preço gasto. Veria o que
viria ou não veria nada além do invisível? A ousadia ou limite possível
debatia-se com a lástima de uma justiça inócua. Único limite possível: abrir a
porta e vasculhar as entranhas do mito.
Decidiu não se deixar de todo
entregue ao destino. Não levou consigo lanterna ou fósforos. A escuridão
deslizava, o enigma se ajustava ao novo imprudente juiz, o abismo mostrava-se
indistinto, a evidência ria – tormentos e aflições não levam a Deus, a
felicidade não passa de felicidade, de agonia a agonia. Não havia nada ali. Não
há nunca nada onde esperamos que haja.
– Comida de peixes, mangueira,
ferramentas caseiras, sacos de cimento, um carrinho de mão, saco de pregos,
ração para aves, uma escada, o que mais vi?
Eis o inventário possível do
mistério. As coisas caem de nada. O menino se horroriza diante do encanto
espatifado. Uma voz a um canto
lhe dizia: “this cheap one should be fucked until dying”. Outra
chicoteava a escuridão com gemidos indecifráveis. Não há teatro mais portentoso
que o da casualidade.
16,
– Mãezinha, me prende de novo em teu corpo.
Um riso comum
chacoalhava a manhã.
– Tu não prestas,
Pequeno safado.
– Eu fico bem
quieto. Não mexo um nervo.
– E o que tens
mais?
Ria e agitava-se,
fugidia, cavilosa.
– Vem deitar aqui.
Ajeitava o menino
no centro de seu quarto.
– Tens que me
prometer ficar bem quieto, sem um sinal de vida antes que eu diga.
Salpicando
ansiedade, inerte e despido de qualquer fragor, gesticula a concordância com um
mínimo esgar facial.
– Aqui vou eu. Que
nada te escape, meu lindo.
Pousava o desenleio
com maciez e precisão, descendo meticulosa, enrediça, uma lúbrica escuridão se
desenhando, litúrgica, sobre o rosto felicitado de Pequeno Ansioso, já quase
todo ladeado pelo acetinado toldo daquele mágico anfiteatro em que se
constituía o vestido de Mãe Dolores, caindo, caindo, preparando a coerciva
tela, os passos da trama, as falas silenciosas, fragrante murmúrio de cada
movimento, a ordem confusa de tanto contentamento, lábios se tocando já sem
nenhum pudor, oferenda conclamada, o menino por beijar aquele precipício de
carnes, aguardando um sinal, corpo rijo, vítima esperando ser santificada.
– “Ajeita contigo
todas as formas de ver. Não deixa que nada te sufoque. Qualquer desafio condena
o homem à morte. Risco é condenação. Não se pode simplesmente abandonar um
sofrimento. O que pensas estar à mão é sempre o inacessível, a ocultação de uma
potência, o êxtase em que radica toda prosaica existência.”
Pequeno Ansioso
seguia ouvindo a ladainha algo impostora, minguando sob o vislumbre da desordem
encantada, o sexo absurdo derramado no rosto, colado a seus lábios, pináculo
que súbito despencava daquela iluminativa bestialidade, descria no sentido
incerto de cada coisa, porém algo mais íntimo lhe impedia a reação. E assim
como florescera o desejo recolhe-se agora a charada. Lentamente ergue-se aquele
toldo delirante, sem que se tenha escrito uma única frase de gozo ou deleite.
Os olhos esbugalhados do menino procuravam alguma resposta. A ludibriante
mulher refazia-se da arborescente condição, embruxando os eufemismos, ainda com
um livro na mão, de onde certamente pescara aquelas aves de limo, meneios da
retórica, Mãe Dolores, que ler não sabia, sábia de ecos e da clara inocência
bem dormida.
– O que esperavas?
A hóstia consagrada?
Riam-se, quase com
demência.
IV – ALGUM SILÊNCIO VINDO
DAS MARGENS
17,
– Por que não veio hoje o tio Alfredo?
Alguém
se apressava a dizer que estava doente. Era o suficiente. Porém a resposta não
bastava ao menino, já de muito acostumado a guiar-se por um ouvido interno.
Desandava a falar só, em largas passadas por toda a casa.
–
Choro porque choro, e da mesma forma o faço quando me agito nas melhores
risadas. Quantas mães tenho? Sei que quase não vejo meu pai, embora deguste sua
herança livresca e casual com denudada veneração.
–
Sai daqui, gabiru. Me deixa arear as panelas.
–
Quantas mães? Tenho crescido em um mundo enevoado, onde êxtase e tragédia
tendem a confundir-se. Devo ter mil delas, que se afastam e se misturam a mim
quando menos percebo. Tenho tantas quanto casas. Quanto livros.
–
Sai daqui, fuleiro. Me deixa benzer os santos.
–
Não me dou descanso em morada alguma. De tanto ir e vir, por vezes me deparo
com objetos deslocados ou suponho entrar em cômodos disfarçados. A isto não
tomo por infortúnio ou penar. Decerto que são sorrateiros os disfarces de uma
casa
–
Sai daqui, meloso. Me deixa cerzir os rasgados.
–
Também com as mães não reconheço pecado ou vaidade. Não são reflexos do espanto
ou representações da agonia. São todas elas, indo e vindo em sevícias e
consumição. E, como mães, lançam-se todas ao vazio. Não há imensidão engendrada
ou capítulo extraviado de uma doce vida. Confundem-me, é certo, bem mais que
cômodos e vasilhas.
–
Sai daqui…
O
garoto parecia não suportar a falta de Alfredo Aquilino. Sabia que o tio não
estava doente. Se não veio naquela manhã, decerto estava amarrado ao leito de
uma clínica por cordas e remédios. Por que lhe mentiam? E por que tanto empenho
em enlouquecê-lo?
18,
O pai viajava
muito, mas deixara-lhe uma alentada biblioteca, repleta de livros, traças,
revistas. A mãe vivia às voltas com os cuidados exigidos pelo irmão mais novo,
com suas deformações genéticas. Pequeno Ansioso amiudava os dias revezando as
casas dos pais e da avó materna. E embalava-se nos braços desta e de Mãe Dolores.
A descoberta de Alfredo Aquilino lhe urdiu uma urgência de vida. Quando estava
na casa dos pais, os livros lhe eram o abismo inigualável. Quando na outra,
aconselhava-se com a bela Dolores, douta em profanos assuntos. Aquilino lhe
dava a compreensão do não-lugar que habitava. E trazia para diante de si um
novo mistério: a vontade de ser.
O
tio mantinha consigo, em invisível algibeira, um tufo de estranhezas. Até
atingir a idade adulta, sua vida é uma incógnita. Nenhum parente recorda-se de
nada. Sabe-se que escrevia versos. Um dos doze irmãos, convicto de idêntica
atribuição divina – depois se soube que mais vassalo do trocadilho do que
feitor da essência poética, como se orgulhava de ser –, animado por uma crença
de que cada família suportaria apenas um único poeta, aviou-se a fraudar o
ânimo de Aquilino, atribuindo-lhe astuciosamente uma fragilidade racional que
acabaria sendo habilmente diagnosticada como distúrbio patológico.
Não
é novidade que a inveja seja a base da loucura alheia. Não se trata de derrisão
do destino, mas sim de solecismo da realidade. Uma briga entre guardiões,
decerto. O fato é que Alfredo Aquilino foi dado como louco. Seus versos, sem
que houvesse míngua, foram desacreditados. Sua palavra não contava para mais
nada. O irmão aprimorou-se em falsetes e logo acedeu a todas as baixezas do
encômio. Em brevíssimo tempo, Anselmo Calamares tornou-se o inquestionável
poeta da família.
Pequeno
Ansioso já conhecera Aquilino solapado em suas convicções. Em visitas à casa de
Anselmo – anotações mínimas dos passeios pela vida com o pai –, o ouvia falar
de Houdini e Claudel, prestidigitadores capazes de tornar Deus ainda mais pobre
de si. Talvez a poesia carecesse de demônios mais audazes, que não se
esgotassem em ansiedades tão vulgares. O menino então via em Aquilino uma
negação de toda fajuta aspiração de seu irmão. Não lhe era um deus,
propriamente, mas antes a aventura do reconhecimento, do proveitoso diálogo
quase consigo mesmo. Não deixava de ser, já se sabe, um desconto em relação a
tanta obscurecida vertigem.
–
O tio não vem…
Pequeno
Ansioso era tomado por uma incerteza dos diabos. Nada possuía sabor ou textura
definida se acaso em uma manhã miúda faltasse ao encontro ele ou Alfredo.
Resmungava em voz alta, batendo em tudo que achasse pela frente.
–
O que encontro em um livro pode ser apenas farsa, sua própria farsa. Quando se
ateia fogo ao corpo de alguém o que queima é apenas o que lhe dói, o que perde,
o que sofre. Nenhuma morte significa além da dor. Não morro dos outros. Morro
de mim.
O
menino vivia na beirada do trágico e seu relicário de últimas possibilidades.
Pouco se interessava pelas glórias da inquietude. Hegel, Descartes, quaisquer
dos anjos caídos, sentava-se à mesa com todos, desde que o diálogo estivesse
acima da languidez ou da felicidade envaidecida de si. Quase nunca ria. “Não há
mais jeito no ser que sê-lo”, dizia. Era um fedelho de apenas treze anos. Já
não suportava ter que ir à escola. Ajuntava-se então aos baderneiros de toda
ordem…
–
…uns tontos que respiravam ar melhor que os presbíteros da turma. A felicidade
sobra de todos os lugares. Ninguém a alcança. Habitualmente somos uma ou outra
vertente.
Pequeno
Ansioso não pretendia levá-las
–
O tio virá amanhã.
19,
Mãe Dolores agitava-se fagueira pela casa. Cuidava de tudo.
Seu íntimo lapidava com sobressaltado tino uma fonte de inquietudes. Ou estava
ali para ser o farol de todos nós. Passava as mãos pelo corpo inteiro. Às vezes
agarrava uma parte do vestido, sôfrega, quebradiça, como se exumasse algo
– Menino bobo. Pensa que estás
aqui. Sabes o nome deste pintinho?
Descarnava a sofreguidão de
Pequeno Ansioso.
– Parte alguma.
Me importunava desconhecer a
condição de seu pensamento. Decerto era minha a insuficiência. Onde então
aquela mulher existia?
– Posso morder com força?
Os dias não suportam a
estabilidade, tremem assombrados como se diante de um monastério de
resignações. Mãe Dolores emaranhava-me os dias. Minha vontade de ser treinava
com o imprevisível e o improvável. Naquela idade tudo me parecia vir daquelas
coxas. Na entranhável forquilha dormitava toda a realidade alcançada, furtiva e
fustigada.
– Uma porção de amor pode fazer
um homem acabar com a vida. Um pensamento forte, o cheiro bom que tens em teus dedos,
uma sentada, umas palavras, um jeito de atrair o danado, pronto. Eis o homem
aqui em minhas mãos, me amassando e amando.
– Sem nem saber disto?
–
Não há consciência no amor, docinho.
Enganava a si mesma, não havia
dúvida. Mas qual a inspiração do disfarce? O menino sondava a fixidez dessa
abstração, com o esmo possível de percepção que uma sequência de cenas
propiciava. Mãe Dolores surgia desaparecia ressurgia a um diminuto estalar do
receio de ser compreendida.
– As pessoas se tornam loucas,
confusas, incertas, erráticas, espantosamente anônimas. Todos os desvios são
dados como inevitáveis. Até parece que o único sentido alcançado pela
experiência humana é o inevitável. Então por que se queixam de seus erros? Por
que se julgam uns aos outros, solapam tramas, esmiuçam pretextos? O que são os
acessos de Deus? Crime, insanidade, baixeza, intriga, insegurança… Não. Apenas
a agulha do inevitável. Beleza, amor, entrega, renúncia, ascese… Nada. A droga
do inevitável. Deus é o grande tormento? O não-significado sagrado de todas as
coisas? O momento em que não importam tempo e lugar? …mas se Deus rejeita toda
compreensão…, de seu poder ou de sua insuficiência! Deus acaso não combate a si
mesmo? Ou não passa da bosta do inevitável, que não se permite ser nada?
Mãe Dolores mal cabia no olhar.
Naquela manhã estava tomada de uma entranhada e confessa confusão. Seguia
falante, da cozinha ao quintal, filosofava aos tropeços. Eu a seguia, como um
coroinha capturado pela falta de fé. Subimos pela árvore e fomos dar no telhado
acima da lavanderia. Não parava um minuto de falar:
– O que tenho sido para Deus não
é o que tenho sido para mim. O assédio de tantas vozes que querem me afastar do
que sou, qual deus pode querer isto para si?
Agarrou-se a mim, de súbito e
quase em prantos, o rosto se desfazendo. Parecia uma mulher perdida de si, sem
mais uma gota de nexo. Quase sempre eu tinha a dificuldade de saber se estava
com ela ou com outra. Aquela era a primeira vez em que me parecia não haver
ninguém. Nenhuma delas. E do olhar extremamente vazio saltou o gesto que me
empurrou dali do alto. Ao inclinar o corpo, já sem apoio algum, senti umas mãos
firmes agarrando-me pelos pés. Me vi dependurado e ao resto do mundo ainda mais
desalinhado do que sempre me parecera.
– Quantas Dolores
Seguia ouvindo aquela novena de
tormentos, de ponta-cabeça, os braços ridiculamente pendidos, combinando apenas
com uns clamores desentoados:
– Mãezinha, me tira daqui!
No fundo, sabia que não havia
nada ali para me salvar. Olhava para o chão e pressentia que a altura não seria
o suficiente para me matar. Vinha-me à mente as trágicas sequelas de uma queda
tão idiota.
– Não quero ser o que queres de
mim! Te afasta daqui! Deus, o que se passa…!
Mãe Dolores urrava, chorava,
agredia o invisível, bradava, mas felizmente não me largava os pés. Aos poucos,
bem aos poucos, foi se recuperando, retornando e percebendo que estava com
minha vida em suas mãos.
– Ah meu menino, eu disse que
jamais te faria mal. Como posso ter chegado a isto? Não posso com…
Antes que concluísse ou caísse em
um ardil qualquer da aflição, beijei-lhe os lábios. E novamente beijei-lhe os
lábios. E uma vez mais lhe beijei os lábios. Era ela que estava ali, rediviva,
lambuzada de irreflexão. Com os lábios prontos para serem beijados.
20,
Pequeno Ansioso detestava a escola. As horas passadas ali
significavam livros a menos lidos na biblioteca do pai. Entre as centenas de
livros e revistas, sem que o soubesse, ia avolumando na memória os devires
essenciais da existência.
– Hora da aula, Pequeno.
Adoecia. Faltava a respiração,
murchava os olhos, caía de si com jactanciosa preocupação. A leitura lhe era
uma melhor comunicação com o mundo. A perplexidade do dia era um abismo sem
interesse em si mesmo. Nas leituras firmava uma dedicação potencial pelo desvão
das coisas.
– Meu filho, seus amigos
perguntam por que não vai à escola, por que não brinca na rua…
– Quem fala?
– Sou eu, Pequeno.
– Mãe?
– Sei que estive pouco contigo.
Teu irmão requeria cuidados intangíveis. Não podia ser de outra forma, meu
filho. Não elegemos sequer a dilaceração. Parece que não damos um passo à
frente, que tudo é reserva e quitação. Cuidei de um filho que seria perdido, ao
passo em que lentamente agora perco outro do qual deveria ter cuidado. Nem sei
ao certo com quem estou falando. Uma mãe não pode ser rigorosa com sua
honradez. Rendemo-nos à estupidez mordaz do instante. Creio que somos vítimas
plantadas, deve ser isso.
– Sabes tocar piano?
– Não, não quero falar nisto.
– Tocas ou não?
– Não, meu querido. Não toco
mais. Não posso tocar mais nem mesmo no assunto.
– Então não vou à escola, nunca
mais.
– Não faças isto comigo. Sei que
não tenho sido boa mãe.
– Nunca mais.
– Teu pai já volta de viagem,
Pequeno. Terás que seguir em teus estudos.
– Nunca…
– …
O diálogo era mesmo improvável.
Pequeno Ansioso agarrava-se às páginas de Swift e desconhecia a mãe surgida à
frente. Nunca houve aquela mulher, porém a desejou como o que de mais sagrado
poderia haver na vida de uma pessoa.
21,
O quarto de Mãe Dolores arrumava-se de maneira incomum. Há
dias eu não me aguentava, corroído pela inexatidão, fuzilado pela estranheza.
Com tudo de mim eu era atraído por aquela mulher. E sentia-me como se arrastado
para um ramo de abismos, uma descendência de agonias. Seríamos todos ceifados
por uma crendice. Há muito a família já dava sinais de. Quando vi o quarto de
Mãe Dolores tomando outro vulto, enfeitando-se à revelia do hábito, temi ainda
mais. Ouvi sinos e logo pressenti decuriões encapuzados, o ar ondulando em
incenso.
Apenas afastara a
mobília para um canto. Só então percebi que um largo cano de metal varava o
quarto de uma ponta a outra, na parede contígua à da cozinha. Ali havia duas
correntes. A nova decoração concentrava-se na anunciação de um rito. Era um
dois de novembro e graças à minha condição asmática eu seguia sendo poupado das
lacrimosas visitas ao mausoléu da família, no cemitério Batista.
– Entra, querido.
Estava
completamente nua, vicejante, descrita apenas por uma jactância mística, o céu
em plumas de corvo, as letras através das quais percorremos salmos, um fino
bordado do mistério. Como pode ser tão lasciva e inóspita a um só tempo?
– Quero te mostrar
uma coisa, um guardado.
Um ínfimo porão
madeirado sob as mãos, miniatura de uma sala de ocultação. Caixeta talhada em
voluteados traços. Um dentro de penas tão múltiplas que disparatavam qualquer
olhada. Um rabisco do infinito das aves. Ao lado, outra caixola, contendo
minúscula pedra. Qual o significado de tudo aquilo? Que amparo buscavam aqueles
símbolos diante da nudez luzidia de Mãe Dolores?
– Não quero nunca
mais te fazer sofrer. Tu és a minha pequena jóia salva do mundo. Quero que me
prendas naquele cano e que me ajudes a enxotar a desgraça que trago comigo,
essa indesejável presença.
Eis o que eu teria
que fazer: acorrentar aquela mulher, escolher uma pena qualquer e usá-la sobre
o corpo desnudo, despertando-lhe o viço, até que provocasse a sorrateira
entidade, quando então, sem nada indagar, deveria apenas enfiar a pedra na
boca.
– Tão simples…
Preparados os
apetrechos, a pedra aguardando a hora, nos iniciamos em um culto que jamais
imaginara. O riso afrouxando-se em contorcidas dobras do corpo, espasmos de uma
alegria provocada, cujas reentrâncias me eram assustadoras. Havia escolhido,
por motivo em tempo algum estimado, a pena de uma pomba-espelho, possivelmente
atraído pelas incisões violetas em negra lâmina. Não demoramos muito a sós.
Tinha que me controlar. A pretidão veio de vozes despejando insultos,
desamparos, abjeções. Pensei o pior que pude e tentei me ajustar àquele
patético clima de impropérios.
– Your mother is a fat cow. All the women are here.
Biblical flesh. Rotten flesh. Fathers and mothers and sons and daughters,
everybody climbing together for all the eternity. It threads you in me, poor
bastard, and you’ll have my past and my future in your hands.
– O que queres de
mim?
Eis o toque sublime
da tontice. Um levante qualquer me demoveu de uma tarefa tão simples: pôr a
pedra na boca de Mãe Dolores.
– You shouldn’t ask me anything. I’m your shade, I’m
your intrigue, I’m your mother. Fuck my body. You’ll never fuck my spirit.
Senti-me inteiro
enredado, limado pela vileza do rito, culpável. Como alcançar a divindade e
desarmonizá-la? Há momentos em que o ímpeto descrê de si mesmo. Olhava a pedra
ali aguardando por sua função.
– Não és minha mãe…
– Flesh is mother.
Dizia isto e abria
as pernas assediante. Queria meu gozo, a imagem sofrida, o salto no impossível.
– Não és nada. Não
reconheço teu vulto. Não poderás jamais ser o que não aceito.
– Fuck my body…
Queria
representar-me por inteiro em seu jogo. Não sei que forças eu reuni para a
ruptura, possivelmente a maior delas: o abandono. Foi o que fiz, afinal:
entreguei-me àquela pedra inserida bem fundo por entre os lábios de Mãe
Dolores.
– Fuck you…
Bradava com todo o
corpo. E embaralhava os selos de seu abismo.
– …Noi prosciugammo intero le forze del dio… Je n’écris pas mes viandes pour votre rise…
Engasgava, tentava
cuspir a pedra, contorcia-se. O corpo se debatia com tudo o que lhe era
possível.
– …Votre doleur… Ich bin lhr Schmerz…
As pernas iam ao
mais alto, incertas, rasgadas. Peleja em seus tropeços o encosto desgostado,
ferido, decaindo.
– I’m your pain… Tengo el deseo de un mundo sin recusas … As sobras, as
sobras de Deus…
– Que Deus buscas
agora?
– …Idiota senza
cominciando…
E desfazia-se,
escrita mínima, sumindo, os vitupérios já dissipados, toda aquela babel
agonizante, a pedra embaralhadora de sentidos, a língua confundida, o absurdo
de ser todos contra um só, contra cada um. O suor fluindo por toda a Mãe
Dolores, um banho de forças.
– Schmer…
Escoava-se, não
importando para onde fosse todo aquele dobrado da ansiedade.
– Me abraça com
força, meu pequeno.
– Quem és?
– Não te assustes
mais, meu menino…
A mulher estava
ensopada de suor. Pequeno Ansioso chorava, chorava, como se diante de um desejo
inacabado.
– Um beijo. Vem me
dar um beijo, vem.
Deixou-se então
acolher entre os seios de Mãe Dolores, soluçante.
– Me tira dessas
correntes…
(Alguma
conclusão diante de todo aquele horror? Não era boa hora para isto. As
conclusões vão se dando com o tempo. Vão também se perdendo, e raramente
aceitamos que de nada valem. Apenas a mais vulgar literatura explica-nos o que
foi fortemente expresso por aquele corpo decomposto em falas alheias. Ermos da
crendice? Com que espécie de vitalidade um rosto se oculta por trás de seu
rosário de falsa moral? De que se ocupa a beleza quando não nos recebe em sua
casa? Eu preferia o gosto do puro cansaço, o desuso de certas figuras de
linguagem, a morte de um ente querido. Deixo que o abismo me tome pela cintura.
Não é outro o meu emprego: narrar o alcance da vertigem e dos gestos mais
cortantes. O narrador jamais será espectador de si mesmo, porém terá que iludir
o suficiente para que a vida de cada personagem não lhe desaprove o sobressalto
diante do espelho da cena.)
– Abraça tua
mãezinha com força. Nada mais de ruim vai te acontecer.
Ainda havia incenso
queimando. Por entre os dois corpos já não se sabia o que corria mais, lágrima
ou suor, a cena consistida pela imunidade plena do sal, logo pontuada pelo invisível
pleito da sede.
– Tonto. Que fazes
aí todo vestido em cima de mim nuazinha? Deixa eu tirar essa roupa e te dar um
banho.
Era ela mesma,
inconfundível, virtuose da sedução, astuta por todas as partes, gozosa
maroteira. E lá se foram nus em direção ao quintal. Banharam-se por boa parte
da manhã no último dos tanques de peixes, por uma vez quase única. Coxas e
pernas pontilhadas por acarás-bandeira em defesa de seu território. Também os
amantes se beliscaram entre si, redescobrindo cada mínimo tecido esgotado.
Batismo tópico. Repetidas vezes, até que cessasse toda vontade. Enquanto o
resto da casa pranteava por seus mortos.
V – ESCURIDÃO NUMINOSA
22,
Ouviu a campainha tocar ao longe. Buscava refúgio sempre nos
livros, uma intrigante caravana a prover-lhe os treze anos de vida. Cedo ainda
para se investigar a forma última das coisas? Corre-se o risco de espatifar-se
bem diante da própria forma, sem tocá-la por um momento sequer, como se às
voltas com uma miragem. A forma última das coisas reside em seu contrário.
Era
mesmo a campainha. Pequeno Ansioso ia encerrar a leitura e caminhar um pouco
pela casa, fazer a ronda pelo exterior insensato da vertigem. Aqueles últimos
dias foram de uma angústia tortuosa. Desfazia-se na resolução de uma ínfima equação
diante do abismo: por que o viço de Mãe Dolores havia perdido os traços, a
nervura do encantamento, desde que as manhãs se fizeram sem a presença de
Alfredo Aquilino? Indagava-se:
–
O que não se tem será sempre um signo do desfalecimento? Uma condição
desfavorável acaso não se deixa alimentar pela outra face? A partir de que são
escritos os livros?
Perambulava
pela casa, envolto
–
Tio!
Jubiloso
aproximou-se, quase em êxtase redivivo.
–
Pensei que não viesses mais. Estava a pentear os cabelos matutando sobre o que
fazer desta manhã.
Pequeno
Ansioso debatia-se, tentando escapar do naufrágio. Alfredo Aquilino desviou o
olhar em direção à velha cadeira de balanços. Recuou e sentou-se.
–
Estive escrevendo algo.
–
Disseram-me que estavas doente.
–
Quem sabe doente de Deus…, de seus gritos em minha cabeça. Doente da
intolerância de Deus… Certas armadilhas demoram a ser desarmadas. Temos que nos
deixar capturar, para então destruí-las, quando se tornam confiantes e
displicentes. Assim parece ser com este senhor que me atormenta. Talvez não
passe de um ogro errante ou de um matuto cheio de si. Já imaginou descobrir-se
cercado de absolutamente nada? Nada, nada mesmo. Estou bem aqui e não há nada
ao meu redor. Não posso perder-me ou perder o que seja. Não posso salvar-me ou
salvar coisa alguma. Simplesmente não há nada para se fazer. Esta é a
prestidigitação em que se agarra este mago ordinário, entregue a truques
banais, tramoias sem substância.
–
O que estava escrevendo, tio?
–
Nada. Inevitavelmente nada. Fiquei pensando em como ultrapassar a lei de Deus.
Arranje alguma coisa para anotar o que vou dizer, rápido, antes que passe.
Pequeno
Ansioso apressou-se em criar as condições para o êxito do acaso.
–
Na vida não há limites para a dor e não há nada que não esteja
–
Pode di…
–
…estou para estourar o crânio do juiz. Não quero unir-me a seu desapego pela
vida ou tornar-me redutível a seus humores. Vacilo. Como se pode rapinar
desejos alheios! Não há limites para o próprio desejo. Posso amar,
apaziguar-me, debater-me em agonia, rir a consumir todo repouso, desvanecer-me.
Mas dedicar-me a afanar o desejo de outros…
–
…é isto o que Deus faz?
–
Escreve: uma mulher reencontra-se com um velho conhecido. Com ele está um
companheiro de aventuras. Os dois estão de partida para uma longa viagem.
Embora surpreendida pelo convite, a mulher aceita seguir com ambos. Em todo o
percurso eles se descarnam, por dentro e por fora, como forma de questionamento
daqueles preconceitos mais agarrados à pele do tempo. Além disto, imaginava pôr
tudo isto em verso, dando ao texto uma indispensável tensão trágica. Pensava em
montar um triângulo amoroso, armado a partir de uma ideia difusa que cada
personagem tinha de si e dos demais. A vida não mais entendida pelo prisma
dual, buscando uma terceira face.
–
Anoto isto?
–
Não. Não mais. Toda viagem é longa, algumas intermináveis. Os dois rapazes
românticos queriam o mesmo de sempre: descobrir o mundo que traziam dentro de
si. A garota detalha os bastidores dessa aventura. O desejo reparte-se em
gênero ou em grau? Era o que tinha
–
O que houve, tio? A avó já virá anunciar o almoço. Conta o que houve com tudo
isto.
–
Dava uma caminhada pela praça e peguei um jornal para ler. Sempre leio os
jornais na banca do Oswald. Tinha ali uma entrevista com meu irmão, em que
falava de um novo livro. Eu havia lhe contado minhas ideias, havíamos
conversado sobre alguns planos. Confidenciou-me umas aflições em torno de suas
manobras literárias. Arrisca-se demasiado no arranjo que faz para a obtenção de
prêmios. Endivida-se a dar festas. É um parasita bastante empenhado. Sempre o
recriminei por isto. Agora o leio, insolente, a falar do novo livro. Tudo me
parecia muito próximo, estranhamente íntimo. Falei com o Oswald: “já tens o
livro?” “Sim, está aqui.” Li cada palavra. Arrebanhou as ideias, porém
desconhecia que o cercado, a demarcação de território, possui vários
significados, entre eles o da usurpação e o da conquista. Não escolheu nada que
lhe desse muito trabalho. Pura e simplesmente apossou-se de meus rabiscos
mentais, certo de que a arte é feita tão-somente de ideias. Salafrário e bobo.
–
Onde está o livro?
–
Deixei com o Oswald. Era dele. Está certo que as ideias não têm dono. Pensamos
e pensamos. O que realizamos é forma sobre o pensamento. Ação é forma. Se abro
um jornal ou converso com alguém na rua, recolho ideias e dou-lhes forma. Somos
todos ladrões uns dos outros. Perguntei ao Oswald. “Acaso sou um ladrão?”. O
coitado não soube o que responder. “Estou sendo roubado, Oswald. Isto faz de
mim um instigado ladrão?” Entendeu menos ainda. Me entendes tu?
–
Entendo que Deus não é Deus. Entendo que não consegues descobrir um grito.
Entendo que o tio Anselmo publicou como dele uma ideia tua. Entendo que matarás
a ti e nunca a ele.
Sem
o saber de todo, Pequeno Ansioso retirava o esmalte do insustentável enigma.
–
O tio irá matá-lo?
–
Não tenho virtude suficiente para isto.
–
Bater nele?
–
O infamante acaba sendo o infamado. Não… Sim… Não consigo pensar em bater em
ninguém… O que uso para matar uma pessoa?
–
O tio pode pedir a alguém…
–
Posso escrever tantos livros, ter tantas ideias.
Calava
por segundos, como se articulando novos gestos, convocação cênica, tudo em
indisfarçável sigilo.
–
Falta uma música aqui. Minha irmã não põe uma música para nós. Não deve fazer
ideia das ondulações sonoras da vida.
–
Quem dá por conta disto?
–
É verdade. Que importa se um irmão me roubou a ideia de um livro?
–
Nã…
–
Sim, meu garoto animoso. Tudo deveria ser um reflexo de errâncias. Deveríamos
aglutinar beleza e horror a cada mínimo gesto. No entanto, tomamos de nós
mesmos, a todo instante, o que ainda não conquistamos.
–
E o que aprendemos com os dias…
–
…o que se aprende, de fato? Não vivemos mais em função de uma constatação do
que não sabemos? Bosta, o que deu em Anselmo?…
–
O tio Anselmo precisava disso?
–
Quem precisa provar o que é? O idiota acorda destinado a ser apenas uma
insignificância qualquer. Imagine alguém preparando desde a noite anterior um
assalto. Qualquer ladrão quer apenas usufruto de algo. O mundo está aquartelado
por ladrões. Não há mais nada que se pense ou faça que não possa ser pescado
por alguém ou, o que é pior, usurpado por uma central motriz que se considera
uma revigorada casa de ilusões. A circunstância foi convertida em um estado
perpétuo de fraudes. Sou preciso em meu esquema de alucinação, assassínio ou
direção de uma peça de teatro. Não busco uma visão plena do mundo, mas antes um
emaranhado de tramas, onde um equívoco justifica o outro, uma cadeia de
fraudes.
–
Onde matar é natural?
–
Matar é natural. O que não é natural é a pormenorização da morte. A morte
feita, a morte aparente, a morte reflexa.
–
Lá vem a avó.
Não
houve como seguir no assunto. Alfredo Aquilino demorara-se bem mais no encontro
permitido com o sobrinho. A irmã declarara ao médico que ele se sentia muito
bem ao balançar-se ali e contar histórias ao menino. De retorno após uma larga
ausência, em função de crise que o fizera amordaçar o carteiro no banheiro e
fugir disfarçado de uma clínica, não parecia propriamente um dissidente da
razão, mas antes alguém afligido por seus conceitos irrefutáveis.
–
A loucura não é uma forma da beleza. Nem mesmo é seu fulgor.
Não
havia como escapar. Era quase meio-dia.
23,
O início das noites era um novelo único. Mãe Dolores contava
histórias. Pequeno Ansioso lia para ela algumas passagens secretas daqueles
livros todos.
– O que tinha a avó
ontem?
– Acordou de
madrugada com um barulho. Percebera alguém mexendo na geladeira, um homem
procurando comida. Havia entrado por aquela janela ali. A avó disse que era
feio entrar assim na casa das pessoas. Fez com que ele sentasse e lhe preparou
algo para comer. Conversaram o necessário, até que se fartasse e fosse embora.
De manhã, um policial bateu à porta. Queria permissão para revistar a casa. Um
criminoso havia fugido da prisão. A avó garantiu ao policial que não ouvira ou
vira nada. Ao fechar a porta, foi ao quintal e viu ainda ali as grandes e
fundas marcas dos pés do invasor. Foi preso no dia seguinte. Os jornais diziam
que já matara mais de vinte pessoas.
– A avó lhe deu comida?
– Diz que conversou um largo
tempo com ele, e até ofereceu umas roupas velhas do avô. O homem não quis nada,
só comer. Quando a avó soube da prisão, tremeu-se toda. Não fazia ideia do
tamanho daquele desabuso. Nem comigo, coitada. A avó também me deu guarida,
coisa que não esqueço nunca.
– Também fugiste da cadeia?
– Não, mas deveria ter ido para
lá se a avó não me ajudasse.
– Quero saber.
– Outro dia, querido. Dá aqui um
livro. Lê uma coisa bonita para a Mãe Dolores.
O menino mesclava um pouco de
cada leitura, somado à incurável imaginação. O livro aberto era só um
paramento.
– Gotardo ouvia muitas vozes.
Onde morava o conheciam como o velho das vozes. Era uma figura toda recurvada,
e mais parecia arrastar-se pelas ruas. Sabia de tudo o que se falava em toda a
aldeia. Não pelo vício da espreita. As vozes vinham todas dar com ele.
Achavam-no, onde estivesse. O que para uns parecia um dom, para o pobre Gotardo
era como se algo houvesse falhado em sua vida. Deveria gritar, mas não aviava
um único ruído. Ao contrário, era assombrado por vozes de toda sorte. Ouvia
confissões veladas, ameaças de morte, declarações de amor, rompimentos de
acordo, a aflição de meninas curradas, blasfêmias, gozos, subornos,
represálias, cânticos, bazófias. Nada lhe escapava ou evitar podia.
– O coitado era mudo?
– Não. A voz só lhe faltava ao
tentar remediar o que ouvisse. Como ouvia de tudo, só conseguia falar de si.
– Será que ele está ouvindo a
gente?
Ria, enaltecida pela inocência.
– Eu te ouvi essa noite gemendo
enquanto dormias.
– Foi um sonho teu.
– É verdade que a mãe vê
assombração pela casa?
– Como sabes disso?
– Devo ter algo de Gotardo.
– Não sei se é assim. A mãe vê
sempre uma mesma aparição. Uma mulher silenciosa que surge no meio da noite, de
seu lugar nenhum, encaminha-se até ela e fica ali por um tempo.
– A mãe fica com meu irmão a
noite inteira acordada?
– Ele é insone, Pequeno. É parte
de sua doença. A visão dura alguns instantes, sempre medidos. Depois se vira e
segue até um determinado ponto daquele quarto. Indica com a mão algo sob o piso
abaixo do guarda-roupa. O sinal também tem seu tempo preciso. Logo ela se volta
e desaparece parede adentro, pelo mesmo lugar de onde surgira.
– Isto não é um sonho?
– Não. A mãe está sempre ali,
cuidando do filho doente. Talvez seja o fantasma de alguém que guardou um
segredo e agora quer recuperá-lo. Talvez um tesouro. Onde nasci as mulheres,
algumas mulheres, recebiam sinais de botijas ocultas sob o chão. Escavavam e
encontravam guardados valiosos. Umas entregavam tudo à igreja. Outras cuidavam
melhor de si.
– O que fez a mãe?
– Nada. O pai não acreditava
nessas coisas. Não quis cavar nenhum milagre para sua vida. A aparição foi se
desvanecendo até sumir de vez.
– Não é engraçado? Nossas
histórias são sempre uma curteza da vida, um cúmulo de impossibilidades.
– Nos livros também?
– Mas não deve haver diferença
entre o que está escrito neles e o que vivemos. É que nem sempre compreendemos
o que se passa conosco.
– Os livros não são histórias?
– Tanto quanto a vida. Se digo
que Gotardo é um tio meu e que li em um livro a história de um tal Alfredo
Aquilino, o que muda?
– Assusto-me com uma coisa e
divirto-me com outra.
– Li em um livro: Heitor
retornava para casa com sua jovem mulher. Um acidente de trânsito forçara-lhe
um aborto. Abraçado a ela, enquanto um cunhado os trazia de volta do hospital,
não percebeu estranheza alguma até ouvir a sentença gutural proferida pelos
lábios da mulher – “matei um filho teu e matarei quantos teimes em fazer” –,
tudo em um estrondo momentâneo de sentidos. Assustara-se ainda mais ao
reconhecer na esposa a voz de Berenice, com quem primeiro vivera. De onde a
fala? De onde o fato?
– Eu conto as histórias que
aconteceram. Não quero saber… desse sumiço que dá na gente. O que fazes agora é
provocação, não quero saber mesmo. Eu tinha esse sumiço e quando voltava… não
sabia por onde andara. Não quero…
– Mas isto é uma história ou é
tua vida?
Agora sim, provocava,
explorava-lhe a súbita disfasia, um disparate de queixumes.
– É tudo junto. Mas não sei de
onde vem. Uma mulher me disse uma vez que eu seria “a protetora”. Dizia assim,
destacando bem: “a protetora”. Só conseguia me apaixonar por homens casados.
Era um ensaio de inferno: constrangimentos e dissimulações. Vivia um enxame de
relações frustradas. Recomeçar passou a ser o aspecto mais odioso de minha
vida. Dei-me a bonitões de toda sorte, andantes, párocos, salafrários,
matreiros de casaca. A todos “protegia” contra mim mesma. Precisava de uma
escuta, evocar a natureza de uma escrita ulterior. Uma outra mulher me disse
ser uma combatente de homens. Seu nome era Berenice. Já sabias disto, droga.
– Juro que não.
– Que nada.
– Sério, Mãe.
– Eu disse a ela que queria sua
guarda. A partir de então dei de ser sumidiça de meus atos. E o dia a dia
recolhia as mortes sorteadas pelo escurecimento de minha memória. Fui sumindo
de mim e ressurgindo informada de um perturbador extermínio. Três mortes. Gente
que nem conhecia direito.
– Não sabias fazer algo?
– Minha mãe me ensinara a
cozinhar. Os melhores temperos, sem mesmo dar por conta.
Na verdade, indagara sobre alguma
providência que lhe parecesse urgente tomar, porém deixou a conversa tomar um
outro curso.
– Foi como dei de trabalhar.
Estava há uns dias na casa de uma amiga da avó. Ela estava lá. As duas
conversavam sobre desconfianças. O marido merecia a morte que lhe dei, que
alguém em mim lhe deu. Mas só me lembro dele querendo me amarrar, um mal hálito
horrível, os olhos famintos saltando sobre mim. As duas mulheres chegaram ainda
ao quarto com o jorro de sangue.
– Mataste o velho?
– Eu me recobrava e me recobria,
pasma, gaguejando inconsciência ante a indiscutível cena, pontos arroxeados no
corpo, a faca de cortar papéis ao meu lado. Ouvi a voz da avó, surpreendente: “deixa
ela ficar comigo”. O que a avó viu em tudo isto, em mim?
Pequeno Ansioso põe a mão de Mãe
Dolores em seu rosto. Leva-a de um lado a outro, descendo ao pescoço, dando-lhe
volta. Não ouve nada. Segue guiando-lhe a mão a caminho do umbigo. Passeios
circulados. Mansidão improvisada. As duas mãos descendo, já cúmplices, quase
uma só. As pernas se abriam como um portal do fogo, ansiosas pelo ritual. Dez
dedos encostavam-se pelas bordas. Era tudo o que havia: bordas e dedos. Nenhuma
voz sumia ou ressurgia. Nenhuma visão dava-se
– O que quero que comece aqui…
Era nada. Os dedos passando em
triunfo, um círculo de desafios, ir e vir, lábios soletrando cada mínima
narração, vigília do abismo, a escrita não é nada até que lhe assine o júbilo,
leis sagradas, sofismas, meandros da profanação, não importa. Os dedos se
ambientavam e dentre eles um mais aguerrido distinguia-se investigante. O que
teria ali? Quantas vezes o infortúnio repete a mesma palavra, uma só, a mesma,
a irritante, nunquismática? Melhor não saber. Seguiu friccionando, mesmo assim.
Mãe Dolores contorcia-se, vibrava as pernas, o corpo inteiro, sofria constrita,
agarrada com todo o sexo a esse ritual purificador. Nenhuma folha tardia, uma
fala que tenha fugido ao ponto, bem dada, querente de que tudo passasse por si.
Justo ali. Só um corpo deitado. Que história melhor contar? Era noite já
grande, então.
24,
Nada do que houve aqui seria aceito como um último encontro
entre Pequeno Ansioso e Alfredo Aquilino. Como afastar o havido de seu
contexto? Dizer-lhe apenas “isto se dá” e expedir outro assunto? Quando a dor é
flamejante ela vulgariza a moral.
– Cada dia me é
mais difícil. Anselmo se esmera em me mortificar. Pode descrever cem espécies
de monstros em que me quer converter. Sei que pode, e já tenho pela casa de
cinco ou seis dúzias. Quer um monstro que procure, outro que se arraste, o
adorador de sofrimentos, um simplesmente destruidor, um monstro desmemoriado,
outro que se orgulha de sua voracidade, o que se disfarça e a todos confunde,
um que marca suas vítimas, outro que não faz nada sem testemunhas, o que
fotografa sua coleção de peles humanas, um. Não passa de mórbido prazer
enumerativo. Esquece que também posso divisar o refúgio de suas fraudes. Sou
mil vezes mais o que ele pode ver em mim, e cada um destes pode vislumbrar as
centenas de vezes em que o poeta mal consegue ser a própria sombra.
Tudo aquilo requeria uma pausa,
um átimo, para que não desatinasse de vez. Alfredo estava transtornado. Era uma
manhã de segunda-feira. Na tarde do domingo ouvira a avó ao telefone retrucando
algo em torno de uma visita que Anselmo havia feito a Alfredo. Os irmãos não
leram fraternidade alguma (nunca) um na palavra do outro. Não coube hipérbole
ou elipse redentora. Tampouco sobrou nada por decifrar. Não houve como Anselmo
agir apenas em função do texto, segundo um velho hábito.
– O que houve, tio?
– Jamais pude criar-me
Agitava-se na cadeira. A irmã
indagou se havia algo de errado. Pequeno Ansioso pôs-lhe a mão no braço e disse
à avó que tudo estava bem. Sabia que a discussão com Anselmo dera em sopapos,
rapidamente controlados por enfermeiros.
– Quantos números pode arrancar
de mim? Quantas máscaras, quantos infelizes disfarces da própria imagem? Olha
para mim como se para si mesmo. Não quer de mim senão o que não tem. Sou a
refeição diária desse demente. E se pinta mal, ainda que seguindo o modelo,
tirando a lápis sobre o papel manteiga. Vinga-se então transferindo para mim a
sorte que lhe foi reservada. Esquece que não há sorte reservada. Rasga-se um
texto em plena conversa. Nenhuma utopia resiste a pormenores.
Ia falando e se agitando ainda
mais. A avó se aproximara.
– Tens que ser mais forte que
ele…
– Não me deixo apanhar como em
uma festa. O que estou… dizendo? Uma roupa para vestir? Sobra. Um livro? Já
sabes disto. Uma compota de doce? Sinto-me encantado pelo permitido. Há irmãos
que não vejo há dez anos. Fogem até do assunto os demais, quando indago sobre
eles. Uma girândola de enganos. Tornaram-me perpetuamente satisfeito no
domicílio da classificação. O que escrevi? Sabes o que é o cúmulo de alguma
coisa? … Domínio é perda. Não estão me dando nada deles. Estou conquistando a
partir do momento em que me tomam. São convenientes. Sou apenas o que sou.
Erguia-se da cadeira, a mão
esquerda enfiada no bolso, sacando o pente. A irmã reconhecia os sinais de
crise. Penteava mecanicamente os cabelos.
– Não há ordem construída a
partir da perda. Tomam o que bem querem de nós. A linguagem confessa a
impossibilidade diante do real. O que tenho escrito? Uma essência desfigurada
duplamente pelo medíocre Calamares, o poeta querido por todos, autor de
desqualificadas momices, de molambos estéticos, rasuras, farândolas em
remendos… Que grande porcaria estúpida de longevidade busca o homem se não
suporta a si mesmo? E quantos monstros sou?
Fixava o olho na irmã, quase
explosivamente, enquanto seguia indagando:
– …o monstro que decepa
enfermeiras, que ilude as próprias irmãs, o que negocia com chamas, que força
os homens ao luto, o antigo pedinte de sacrifícios, que mata nem que seja de
desgosto, o que recolhe as atas de todos os conclaves, que entorpece crianças,
o estridente garanhão de lâmpadas…
Penteava os cabelos e seguia
naquela cantilena sem fim. Minutos depois que a avó discara um número o toque
da campainha assombrou a casa de um branco temível. Eram três os enfermeiros
que vieram buscar Alfredo Aquilino. Não deu, contudo, o mínimo trabalho à abjeta
operação.
– …o que ensaia proporções, que
se julga célebre, o irreconhecível, aquele que se compraz simplesmente em
forçar alguém a recuar, o habilidoso que faz com que todos desacreditem em suas
ameaças, o que em momento algum solta as rédeas…
Fiquei comigo, sem um pleno termo
de vida. O que vi ali me desabrigou de tudo o que me… ia dizer “me ensinaram”…
o que aprendi. Serão assim todas as famílias? Não? Haverá uma ou outra que
saiba apagar as pistas até mesmo internamente?
– …o que torna o impossível um
joguete, o que não dispensa uma criancinha, o obscuro que favorece outros
crimes, o deus esverdeado cinzento sorridente venerável que não passa de um
filho de uma porca, o sucessor de todos eles…
25,
As histórias são escritas pelas mãos do egoísmo ou da
piedade? Que maldita falsificação do ser buscam atrair? São a imposição de algo
ou a exibição de queixas? Distribuem papéis e aspirações, enovelam tramas,
desencadeiam complexas semelhanças. Levam o tempo inteiro a deduzir ou comentar
que a vida era pouca ou errônea ou impossível. Como se tudo não passasse de um
resultado desta ou daquela simulação de tramas, sua conclusão e psicologia
apregoadas. “O homem não passa de uma história, de sua forma literária de ver o
mundo, obediente a seus caprichos, emparedado por ela, atormentadamente
previsível”, dizem umas. “Não faz nunca nada por si, pela existência entre
homens”, concluem outras. O que diz Hamlet: “vejo a morte iminente de vinte mil
homens que, por uma fantasia e um jogo de glória, marcham a caminho de suas
tumbas”. Trata-se aqui da história do homem. O personagem nos faz entender que
estamos dentro e fora de cada um de nós, fora e dentro de cada história. A
história do homem só existe por ser a história do indivíduo que não perdeu a
humanidade.
– Não sei desde quando me chamam
Dolores. Há muitas histórias em minha cabeça. Sinto-me desatinada por elas.
Jamais soube de meus pais. Não localizo a vontade de viver senão em meu sexo.
Creio que é o que me faz gostar de mexer todo o corpo, um arrepio de dançar.
Nunca penso na realidade ou na alucinação. Há sempre uma música tocando em meu
juízo. Gosto de ouvir o menino lendo aquelas histórias. A música pára um
pedaço, mas logo fico pensando em pegar nele.
As histórias ruins denotam acaso
uma falta de vontade do homem em relação a si mesmo? A perversão torna os
livros juízes do homem, graças aos seres monstruosos que povoam os relatos?
– Não me sinto diferente de
outras mulheres. Nem parecida com elas. Às vezes me pego surpresa pela exatidão
com que algumas buscam cumplicidade. O mundo é tão esquisito para que alguém se
sinta igual a outro alguém. O mundo parece uma fábula. Uma composição de muitas
vozes. Uma peça com mais personagens do que atores. Não sei quantas imagens de
Deus consigo representar. Não damos nunca as cartas. Dizem que matei três
pessoas. Não julgo certo ou errado. Eram personagens deploráveis. A esposa de
um deles até me agradeceu, a seu modo, acobertando o crime, imaginando uma nova
vida expressa no olhar e longe do infortúnio compartilhado com o cafajeste do
marido. Deveria me sentir bem. No entanto, não tive consciência do momento
daquelas mortes. Não sei de onde vêm tantos espíritos. Não os procuro. Tenho
minhas rezas, pedaços de crença, um naco de uma e outra fé.
Rimos ou desacreditamos das
histórias. Porém não fazemos o mesmo em relação a nós mesmos. Por mais que nos
identifiquemos com o personagem de uma comédia, não cruzamos nosso olhar com o
da imagem ao espelho e dizemos: – quão patético somos!
– O meu menino me despertou uma
ideia de personalidade. Queria descobrir a si mesmo através dos outros. E para
tanto os outros precisam existir. Pequeno Ansioso me ensinou a ser para que
assim se confirmasse a própria existência. Foi quando percebeu que eu fugia de
minha imaginação, que não havia constância em mim.
O que são as coisas que se passam
na vida de cada um, senão um resíduo do entendimento com o mundo, um fragmento
da aflição diante do desconhecido, partícula da obsessão por desvendar o
improvável, um cadinho de petulância diante, a soma de tudo isto? As histórias,
por melhores que sejam, não passam de. O mesmo se dá com quem nos conta cada
uma.
– Sou agradecida a Pequeno
Ansioso por haver me descrito a bondade do mundo. Estou queimando de formas que
não se assemelham entre si, que não escolho, mas que me recolhem. Sinto-me como
alguém sem biografia. Menos que um demônio inferior. Por mim mesma não chegaria
jamais à boca do Inferno. Por um inóspito amor próprio despertado pelo menino
perdi minhas vozes, as vozes de outros em mim, e agora tenho que suportar o
peso dessa ciência de tudo à minha volta. O próximo passo da aniquilação será
convencer-me de que não posso mais ser personagem. Não haverá mais história
suficiente em mim para isto. Não poder ser mais ninguém, exceto eu mesma. Não
poder escolher o melhor entre o possível e seu reverso. Que espécie de mundo é
este, em que sou salva de mim mesma por ser várias? Com o que me pareço e qual
minha semelhança? Não suportei meus crimes nem meus amores. Senti-me a um só
tempo medíocre e divina. Olho para o céu como algo infinitamente distante. Há
condições suficientes na vida para que uma mulher se sinta humana… deve haver.
Contudo, é desumano tomar-se de vários ou perder-se de si? Minha cabeça
torna-se queimosa. Talvez queira deduzir uma vida inteira, alcançar uma glória
mínima da existência, um jazigo do orgulho. Não sou senão uma maneira de ser.
Uma síntese dispersa? Intuo que não passarei jamais de uma enclausurada
angústia, hóspede exemplar, a pérola de uma generalidade extensiva. É no que
nos transformamos, os estourados de si. Como ser ao mesmo tempo o que acabo de
deixar para trás e um personagem da história de Pequeno Ansioso? E se antes
dele escrevem algo a avó, a mãe, a tia louca, o pai viajante, ou mesmo o espectro
daquele irmão morto-vivo? Não há cuidadosamente uma vida inteira. O resultado
da vida de qualquer um é uma súmula de bagaços. Nossas formas são dedutíveis e
improváveis. Qualquer papel que eu tenha desempenhado alcança uma felicidade
ínfima dentro do reino da história, e a extravasa quando influi em um relapso
ou outro cometido pelo leitor. Não vou naturalmente me deixar influenciar pela
mulher que me sinto hoje, livre de todas aquelas vozes, daquele caldeirão de
tormentos alheios, mas antes pelo palco repleto de misérias humanas, pelo
testemunho da queda, pelo artifício literário da cena. Não suportarei isto.
Talvez tenha conquistado finalmente o meu direito à extinção. Existimos para
algo? Há uma pauta demiúrgica que recorta as inúmeras formas de florescimento
da existência? Não quero ser flexível a seus caprichos. Agora que finalmente
deixo de ser algo, não quero voltar a ser mais nada.
VI – INVISÍVEIS TRILHAS
26,
Pequeno
Ansioso era um autor desconhecido de suas próprias histórias. Não vislumbrava
todo aquele texto que seguia dispondo com os dias. “O espírito é tudo”, frase a
ecoar em seu pensamento. Tira-se daí uma novela? É o que pretendem? Um garoto
cercado por uma sôfrega herança de imolações. Um louco familiar e uma aturdida
de rua, sua educação sentimental, nem virtude ou fuga, apenas um cenário,
inverossímil se muito, um atrevimento do destino, uma vez aceito. Mácula,
renúncia, desgaste, se entendidos na raiz não passam tais conceitos de
manifestações da frivolidade. Pequeno Ansioso percorria a imensidão confluente
daquelas duas casas, a da mãe e a da avó. Não importava o tempo em que se dava
a construção dos dois altares. As demais figuras eram evidências de uma
alteridade. Como o velho das vozes, também recolhia os sinais de tudo à volta.
Teatro, poema em prosa, novela? Não
chegamos até aqui para isto. A palavra se artefaz sem o constrangimento do
gênero. Alfredo Aquilino invocava sempre o próprio testemunho sobre o que se
passara, qualquer havido.
– A noite não privilegia nada.
Minha insônia apruma seu alvo: versos roubados. Eu os escrevi todos durante o
dia, algum dia.
Mãe Dolores não voltou mais a
incorporar nenhuma entidade. O menino voltara a bulir nela de todas as formas.
– Diabinho, não aprende nunca!
Os dias balançavam-se. As noites
não eram mais primordiais que eles, singulares em devoções e prevaricações. Os
livros configuravam-se abismo e altar, âncora e trilha de vidros moídos. O
menino percorria a casa única, mesclando-se a cada mínima história desvelada em
fraturas e requebros.
O que sustenta uma história é o
imperceptível. Tudo em nós não busca senão um símbolo profundo, uma abusada
virtualidade que a tudo comporte e defina. Ao sondarmos nossa lógica ulterior,
não fazemos outra coisa que atribuir a todas as visões os tons e meandros e
consonâncias de nossa plurivalência. Somos, por assim dizer, um engano
totalizante, uma substância radical da improbabilidade do ser. Sucedemos a nós
mesmos e viemos sempre da mesma matéria delirante com que criamos e destruímos
o mundo à nossa volta. Nenhuma imagem corresponde à sua ideia: súmula, semente,
medula: diagnóstico gozoso da queda, mas nunca desassossego suficiente que
implique a renúncia do que somos. Nem mesmo morrendo mil vezes ou tendo
milhares de rostos desfigurados e incontáveis traços de derrota. Sequer parece
ser algo contra si mesmo. O homem simplesmente não aprende a reanimar com seu
mistério interior as ruínas de um legado único: ser vários sendo um só. Não há
nódulo que o engrandeça.
27,
A avó era uma ponte única entre todos. Por onde andasse,
tráfico mínimo de sombras ou enigmas, nada se mantinha – suspiroso, altivo ou
sorrateiro – sem que lhe cruzasse o íntimo, o despenhadeiro secreto da
concordância. Umas raras contas permaneciam a contragosto dela, ou por
resignação aos louvores divinos ou por haver chegado tarde ao selo do destino.
Não gostava que os treze filhos do velho Argemiro tivessem todos distintos
sobrenomes, como se não formassem uma família. Além do que desgostava que se
chamasse Carmem das Torres, não vendo ali senão uma das tantas ironias do pai,
um velho maquinista de trens e cenas familiares. Aos irmãos Chagas Domênico,
Anselmo Calamares, Alfredo Aquilino, somavam-se Florisvaldo Trigueiro, Sílvia
dos Santos, Alice Caviúna, até o caçula, Tomás Quintilha, cujo suicídio abalou
a todos. O que houve: trancou-se no quarto para ouvir Orlando Silva em
altíssimo volume, saboreando o vinho tinto ao qual adicionara um pacote de
veneno para ratos. Nenhuma pista, exceto que mancava de uma perna e rejeitava
mulheres. Não encontraram consigo cartas de amor ou mesmo algum livro aberto em
enigmático poema. Nada.
– O marido da
Sílvia dos Santos também se matou. A avó não gosta que fale nisto. Ele tinha
uma farmácia aqui perto. A mulher tocava o negócio com ele. Um dia soube de
escapadas dela com fregueses e até com um vizinho. Chamou um advogado, destinou
os bens aos filhos, sob a condição de que a mãe não morasse com eles. E logo
injetou ácido muriático nas veias.
– Não entendo isto,
Mãe. As desgraças não são concêntricas. Por mais que exista um rastilho
encantador unindo as coisas de igual signo, o colérico acorda manso, o sadio
morre dormindo.
Mesmo com alguns
enganos, a avó seguia-se ponte imensa com um transcurso obrigatório, fosse a
travessia revelação, agonia ou mera plenitude da obediência. A única flâmula
inaceitável era a da transgressão. Somente a ela cabia discordar de algo. Não
que fosse a primogênita do coronel Argemiro, mas por haver-se descoberto uma
guia dos estigmas, uma cuia que recolhia todos os desvios e lhes dava melhores
motivos.
Contudo, não
cuidava tão bem assim de seus aflitos. Mantinha com discretos exageros
queixumes e benevolências, ciente do enredo canhestro do pacto entre as
próprias filhas, assim como dos ardis com que Anselmo buscava subjugar Alfredo,
os irmãos que mais lhe assediavam.
– Não há nada assim
tão transparente, Mãe, como o rosto transtornado de um deus. Não é simplesmente
alguém que se deixa descobrir em seus nós, mas sim um descalabro de corpos e
sonhos e enigmas e ossos, uma torrente que empalidece ou cega um mínimo gesto
possível. As pontes não passam todas por quem as cruze.
– A avó é uma ponte
bem grande, já não o sabes?
– Que não soube ir
de um canto a outro de si mesma, ao que parece.
Para Pequeno
Ansioso algumas coisas iam se revelando em meio àquele cenário de ludíbrios. As
casas iam se tornando máscaras, roteiro de fugas, um filme entrecortado de
falas sem sentido. Não havia um único ponto de firmeza em tudo o que tocava. De
areia não era o castelo, mas sim os residentes. Não havia propriamente uma
fábula, mas antes um desregramento do ser em alguns personagens dessa tragédia
familiar. As histórias se dão independentes do grau de riso ou lágrima que
usurpam em volta do fogo. Fazem com que nos sintamos personagens ativos, essa abnegada
incongruência. Afinal, todo personagem é passivo.
28,
Uma entrada ali no santuário, quase sempre uma experiência
falida. Cheguei a pensar que não buscava senão o destrutível. Recordo páginas
de exultante felicidade, uns ensinamentos de eficácia em inúmeras matérias,
amores confessos, solidez projetada e refletida. Eram centenas de livros,
palmos completos percorridos por um mesmo autor. O pai colecionava notícias de
guerras, empilhava jornais, livros, mapas de cerco, anotações estratégicas.
– No avanço conta sempre a
insanidade do espírito. No recuo, salvar ao menos o corpo, ou sua imagem. Esta
é a consciência da guerra, não mais que uma das formas de anulação do ser.
Os manuais de guerra, contudo,
não me despertavam maior interesse do que as leituras do Paraíso Perdido
ou Macbeth, trechos da mitologia germânica ou das sagas de dizimação das
tribos indígenas na América do Norte.
– Toda a miséria do mundo é uma
ação projetada. Em alguns casos, por descuido. O bom de uma guerra é seu
anúncio, a declaração de uma atitude. O mundo perde em honradez quando não há
guerra anunciada.
Não creio haver travado nenhuma
guerra com o pai. Os livros lidos ali jamais foram comentados. Quando raramente
estava em casa e dava por sua avidez em devorar súmulas estratégicas,
estranhava que não conversasse comigo sobre todos aqueles livros.
– A arte nutre princípios
pendulares. Um leque de fraudadas minudências.
(– O que concluir daí?)
– Quem fez tal dispersiva
indagação?
(– Não sei o que diabos imaginava
que o pai pudesse significar em tua vida. Naturalmente há um encanto propício
ao desejo. Aquela verborragia de que tudo se dá em nome do desejo. E quando as
coisas não se dão bem de acordo com o desejo? Aí vem o derrame da frustração.
Eu te amo. Tu não me amas. Tu és meu desejo frustrado. Decerto serei teu amor
incompreendido. Uma fábrica de sandices. Teu pai sonhava com uma purificação
sob decreto. Toda a merda da humanidade limpa amanhã bem cedo, antes que a
cidade acorde. O pai não possui uma ideia exata do desdobramento da vida em si
mesma. Talvez porque não a arranque das entranhas, segundo a limitação do
entendimento do que carrega em si mesmo. O pai é uma grande aberração. O pai é
tão pequeno que faz com que a mãe pareça imensa.)
O tempo alimenta sua semelhança e
distrai as exumações. Os livros nos elegem, não há dúvida. Um outro santuário
esboçava-se a cada livro relido. Nas tardes de domingo, o pai abria a janela
que dava para a rua e punha a todo volume Nat “King” Cole ou Elizeth Cardoso
para tocar. Aquela música varria todos os livros para um canto. Não creio que
pensasse
Sem que nos encontrássemos nunca,
fomos nos completando através das leituras.
29,
– Livros que fazem chorar são um tormento indesejável.
Quem conceberia a
ideia de um tormento desejável? A frase sacudira Pequeno Ansioso. “Deus é mãe.
Só assim pode haver panteísmo.” Era o que lhe diziam aquelas leituras. Quando
todos os seres se arrastam sobre a terra somente a mãe se mantém de pé. Osires,
Adad, Shiva, Tesup. Para cada um havia uma mulher que dançava e os conduzia ao
diálogo com o mundo. Uma mulher que compreendia o que se passava dentro e fora
do reino. Uma mulher que fecundavam e que recolhia os filhos perdidos por toda
a terra. Uma mulher que lhes evitava que causassem maior desordem ao mundo.
Essa mulher chamava-se Mãe. Horrenda Múltipla Divina Negra Puta Devastadora Prolífera.
Mãe de língua pendente. Mãe de braços erguidos. Mãe ferida por toda a carne.
Mãe com o corpo recobrindo tudo. Retalhada, conjurada, sublimada. Os números
são pedras de jogo. Não expressam substância alguma. A matéria é susceptível a
mudar de forma. Desvios e deformações não são propriamente uma escolha. Não
importa se está frio ou quente, mas sim quem congela e treme ou arde e sua
diante do tempo.
Como pode haver,
mãe, um tormento desejável? Como posso ser narrador voluntário e protagonista
de uma ação desfiada sem dar substância ao paradoxo? Lia um livro qualquer e
chorava ou chorava e lia um livro qualquer?
– Quero sofrer
apenas um tanto. Que me diga Deus que outro tanto pode ser salvo em nome desse
sofrimento.
Quem diria isto? Os
livros não nos tornam condenados a coisa alguma. Tampouco nos salvam de nada.
São articulações oratórias, círculos de baba, códices restringidos, árvores,
rios, nuvens. Não são senão reflexo do que fazemos de nós. Não podem nos levar
a rir ou chorar ou incentivar ao crime ou causar pena ou nos impelir ao
suicídio. Os livros são objetos de identificação. Não trazem novidade alguma.
Não sugerem uma exótica ramificação de qualquer paradoxo. Não servem melancolia
ou frenesi em seu prato de signos. Os livros não têm complexo algum. Os livros
despertam interesses, são um caldeamento de sensações latentes. Não há sequer
por que escrevê-los. Quando se tornam indispensáveis não é senão sinal de que
uma sociedade decai. De uma certa forma os livros se chamam Mãe.
30,
A avó assustou-se diante da leitura de um soneto em Relva
de estrelas, novo livro de Anselmo Calamares:
Que louca semelhança goza comigo
em tudo o que de mim me desfaço?
Que aborrecida ideia do extermínio
sorvo como cicuta gasta, já sem efeito?
Nada me estreia maior fingimento
ou floresce letargos como fossem cogumelos
distraídos da própria fama e ciência
senão o encalhe de minha alma em si,
desfeita de corpo ou espírito, súbita
irrevogável palavra sem sentido,
abismada com a imagem nenhuma
a contemplar-se em um canto colérico
forjado em trapos de renegada ansiedade
onde se assustam todas as sombras do ser.
Tinha consigo todos
os livros do irmão. Gostava de transcrever alguns versos em um caderno, onde
recolhia pensamentos de toda ordem, relicário secreto da idealização da vida. A
imagem de uma alma encalhada em si era o suficiente para lhe despertar a
lembrança de algo lido. Além disto, guardava em uma caixa de sapatos
fotografias, conchas, relógios velhos e papéis dobrados com alguns manuscritos.
Recolhia de tudo o que não pudera viver. Não havia dúvida a ser tirada. Mesmo
assim abriu a caixa e vasculhou entre os guardados até descobrir um mil vezes
dobrado e redobrado papel em que a letra trêmula do outro irmão, Alfredo,
anunciava: “Nada me anuncia maior fingimento / ou floresce letargos como fossem
cogumelos / distraídos da própria fama e ciência / senão o encalhe de minha
alma em si…”. Qual o verdadeiro embuste, isto jamais se sabe. Cada mínima coisa
perde noção de si, quando mais supõe ganhá-la. A avó sempre foi uma ponte entre
a realidade e o desastre existencial da família. Ponte idílica, que não
correspondia a uma coisa ou outra. Nossa fortaleza era nossa ilusão. A avó
entendia que assim deveriam ser mantidas todas as coisas. O dorso erguido
seminu de uma mulher altiva visto de costas não revela nada além da própria
altivez. A avó poderia ser essa mulher, o cartaz de um filme, o rigor de uma
sensualidade definida a partir do desencanto pelo desmedido. A avó leva consigo
acesos os faróis que impedem o engano alucinante, a torta de angústias, o fio
de lágrimas escorrendo por uma lousa qualquer. Em seu íntimo sabia que a
mudança de uma única palavra era o suficiente para arruinar um poema. E essa
pista única denunciava toda a fraude. Contudo, aquela decepção não iria lhe
arrancar lágrima alguma.
31,
– Nada vem tão calmo, ao gosto de quem recebe. Prefiro a ideia
de me descobrir sozinho, os limites lançados sobre mim. Não escondo nada de meu
dia. Tampouco penso se acaso tal dia exprime algo. Quando alguém se empenha em
defender uma razão de ser, simplesmente deixa de me interessar. O que
aprendemos não o fazemos como argumento contra o ignorado. Não somos furiosos,
alucinados ou equivocados. Estou perdendo a razão possível, misturando-me à voz
geral. Serão os primeiros sinais de uma essência esquizóide estóica? Basta
recordar Fellini: “quem deseja ser protegido, deve resignar-se a ser protegido
até às últimas consequências”. O que esperar da vida senão um pomar de
especulações? Febres, fantasias, devaneios, agonias. Notícias, sempre.
Retaliações, subornos, fraudes. Notícias de toda forma. Dissipações,
maledicências. Notícias as mais inaceitáveis. Paranóia. Notícias da mais
intensa felicidade. A memória, o entendimento e a convicção jamais recorridos
senão em função da notícia. O homem convertido em aviso de nada. Onde buscou
proteção? Devo dar sinal de tudo o que faço, ser reconquistado pela notícia do
que fui um dia. O garoto indeciso diante de tantos fogos de artifícios. A
ilusão de ser que foi construindo como uma recolha de si. O frio que sentia em
seu íntimo, o tremor diante de cada mínima bobagem que lhe marcava a fogo a
existência. Tudo isto não podia ser apenas notícia, um frígido sinal do que se
passa na alma de alguém. Detestava toda forma de submissão do homem ao
enunciado de sua vida.
32,
Soçobrava pela casa imensa. Vário em tanta angústia. Não
havia beleza alguma em todo aquele rastro de ausência, mesmo que sempre
soubesse que um dia não teria mais seus parceiros de abismo.
– Compartilhamos um mesmo vazio,
Pequeno. Não passo de um desmiolado. Tu não és mais que uma criança. Só agrado
a alguém se me desfaço do que mais prezo. Um dia terás que deixar para trás tua
maior riqueza.
Andava distraído, por vezes
estranhando o caminho, as invisíveis trilhas que havia demarcado em todo o
território. Um mapa secreto mesclava uma casa a outra. Logo o cenário se
desfaria, seu coração não lhe dava outro sinal.
– Já começaram a morrer meus
assuntos. Antes se foram tio Domênico e tio Eudoro. Agora foi a vez do Coronel
e de uma avó paterna que morava em outra cidade. Eu a tinha visto uma única
vez, quando aqui lhe trouxe a morte de meu irmão. Todos a achavam uma mulher
rude e enjoada. Lembro-me da cara com que me olhava, como se odiasse a
existência de livros no mundo, e de alguém que os lesse. No dia de sua morte, a
casa encheu-se de parentes. Vieram todos falar com o pai, dar-lhe pêsames. Por
que não se visitam em nome da alegria?
Pequeno Ansioso acostou ao lado
da porta do quarto de Mãe Dolores. Não havia mais nada ali. A porta aberta
revelava o vazio refletido em seus olhos. Sabia-a vulnerável, desancada pela
boa fé.
– Menino lindo, quero achar tua
raiz, chafurdar em teu bosque. Quero armar uma tenda no centro de teu ser.
Ficar ali por uns dias, depois sumir, feito um enxame satisfeito.
– Não foi o que fez agora?
Prometeu a si mesmo jamais chorar
diante de uma ausência. A vida teria que ser preenchida por todas elas. Sabia
que teria muitas, que se multiplicariam como os céus. Nas noites seguintes à morte
de Mãe Dolores, acordava assustado e perdido de toda linguagem. Saía da cama em
silêncio, a caminho do quarto esvaziado. Deitava ali no frio chão e exumava sua
tristeza.
– Não chore. Ela quis que fosse
assim.
– Quem fala? Quem está aqui?
O menino tremia por dentro. Não
tinham sido poucas as visitações de espíritos em seus dias com Mãe Dolores.
– Te acalma. Sou eu.
Como podia reconhecer? Nas poucas
vezes em que vira o irmão ele estava sempre no berço. Tinha quatro anos menos.
Não podia andar ou falar. Quem estava ali em seu lugar? Ou já estava indo de
vez? O morto acaso recupera os sentidos perdidos em vida?
– Não te dizem o que houve. A
mulher se matou. Tomou todos os meus remédios. Não tive como impedi-lo.
Desde aquela noite encostava-se
por horas no berço do irmão. Passava-lhe a mão por todo o corpo, como se
tateasse incógnita figura, um mito, uma representação qualquer. Era como se
escalavrasse sílaba a sílaba toda uma pele à procura de sinais. Dias e dias.
Não fez outra coisa desde então. Uma manhã acordou com rumores, ouvindo uma tia
quase sussurrar:
– Não deixem Pequeno saber…
– Como esconder de uma criança a
morte de seu irmão?
Seguia caminhando pela casa. Um
tio levara todos os peixes embora. O quarto escuro perdera o cadeado. Entrou
ali uma ou duas vezes, mas não se demorou. Havia um insuportável cheiro de
ração de galinhas. Portais confusos. Que invisível trilha enlaçava a rua dos
Oitis à rua do Parque? Por uma vez primeira passou a pensar no traçado daquele
suspeito caminho. Lembrou-se de uma distância de cinco quadras entre uma casa e
outra. A casa da avó ficava diante do Parque das Sombras, de onde recorda
algumas raras fotos suas ao lado da mãe. Da outra casa a memória lhe acena com
um incêndio havido no posto de gasolina à esquina do Bulevar do Livramento,
onde o pai deixava o carro guardado à
noite. Havia algo de subterrâneo que fazia com que não percebesse as idas e
vindas de uma a outra morada. Algum dia chegou a duvidar que fossem mesmo duas
casas.
– Hoje veio alguém ver a casa.
Ouviu as mulheres falando.
Lembrou-se então de Alfredo Aquilino. Toda a sua vida estava sendo povoada por
pequenos vazios. Uma intrusão de vazios. Um discurso.
– Um dia não me deixarão mais vir
aqui. Os irmãos me julgam inconveniente. A família me quer mesmo louco. Estou
escrevendo uma novela sobre todos eles. Dirão tratar-se de uma lorota. A
família não passa de um baile de máscaras. Para eles serei sempre o louco, o
que garante a sanidade de todos.
E não veio mais o tio, desde
aquele engodo das enumerações. Tiraram dali a cadeira de balanço. As palavras
estavam fora de alcance. Também a plenitude. Tudo coincidia com a venda de uma
casa e o destino incerto da outra. Um anuviado lacre em um trecho da memória.
– A família acaba conseguindo o
que bem quer.
O garoto caminhava atônito,
esbarrando em alguns móveis, confundindo as salas, dando pela falta de portas,
o obscuro margeando a andança, perturbava-se, entrado em ofegantes resmungos,
suores, o sono atormentado o ameaçando com visões.
– Mãe!
Um grito seco, mal arrancado da
garganta. Senta-se na cama. A noite silenciosa, inapelável em sua escritura.
Pequeno Ansioso tateia os novos sendeiros da casa. Procura a biblioteca. Não a
encontra em parte alguma. Não há um único livro em todo o lugar.
– Livros que fazem chorar são um
tormento indesejável.
Nada se torna remoto se não
tomado para si por alguém. Não há dúvida de que os céus sejam múltiplos. Mas
temos que torná-los remotos, para que novos céus se entranhem em nossa memória.
Sentou-se no chão. Lembrava-se de Mãe Dolores e Alfredo Aquilino. Jamais
estiveram em lugar algum. Não houve tempo formulado em seus encontros. Tampouco
estiveram juntos em uma mesma conversa. Cada um cuidou de si como um símbolo
mergulhado em seu íntimo. Em qualquer clarão a noite surpreende e se dá por
inteira. Não havia propriamente uma noite, um personagem, uma cidade, uma
novela. Então o que faria de tudo aquilo?
Esteve assim por dias, estancado.
Irresponsavelmente criamos, antes
de buscar sentido para a criação. Deus, Homem, Poema. Não importa qual
entidade. Não criamos senão ansiedade sobre ansiedade. E erguemos um panteão
abarrotado por tudo o que não soubemos ser, um abrigo de nossa inominada
condição. Noites frias, filas da sopa, do agasalho, do leito. Não somos o que
já disseram, o que pensam de nós. A cada instante repetimos a mesma e mesma e
reiterada fala. Nada no homem necessita de história ou sublimação. Esgota-se,
rende-se, entrega-se. Jamais consegue entrar em entendimento com a memória. Não
há um último fogo a ser tocado, uma última chama a nos devorar. Olhando a
paisagem queimando, vemos tudo em fogo, menos o céu. O que falta?
VII – UMA ÚLTIMA CHAMA?
33,
Why cannot the Ear
be closed to its own destruction?
WILLIAM BLAKE
As vozes confundem-se
todas, tormentosas.
Sonhos e
pesadelos comparecem mesclados.
O que
escutamos sob as raízes extraviadas
pode vir de
qualquer um dos seres, terríveis todos.
“Já não
importa”, dirão muitos, não se duvide.
A alguns
outros aturdirá como uma destruição.
As vozes vêm
todas com seus dentes de trevas,
e movem-se
vertiginosas em fulgores horrendos.
Possuem
línguas efêmeras que pouco se agarram
ao que dizem
e quase nada ou nada afirmam.
Aterrorizam
com uma cortante sucessão de incertezas.
“Basta atendê-las”,
ouvimos por todas as partes.
Uns poucos: “Não
querem menos que a imaginação”.
As vozes não
conversam entre si ou sorriem jamais.
Sem um mínimo
deslize, cuidam de seu encargo.
Não estão
exatamente acima de quem as escuta.
Detêm,
contudo, um método preciso de tremor e náusea,
a poção com
que dissipar toda espessura da imagem,
um coágulo
florindo em lugar dos sentidos.
Somem e
regressam, as vozes e seus dilemas,
em cada noite
de Pequeno Ansioso, frias e ásperas.
Proliferam
porque dedilham o vazio, a palavra certa.
Terá mesmo
conhecido o prazer aliado ao terror,
a loucura
conjugada com a potência poética,
o
entendimento do mundo disfarçado em leituras?
E o que fez
dos rostos familiares, indescritíveis?
Quantas
trilhas não terá refeito, apagado pistas,
até reter em
si mesmo toda a essência do mundo?
As vozes
comem sustos, agonias, dissipações,
as mesmas
linhas em que o menino entrançou
memória e
figuras esquivas, de estranhos nomes,
morada
alguma, derramadas sobre intocável tablado.
– “Por que
então devemos crer na existência aludida?”
– “O pranto
talvez requeira sentido, porém não a dor.”
Eis um antigo
diálogo, aviltado por alguma impertinência.
O eco se
esquece da razão escoada de seu canto.
Somos nós a
iluminar ou terrificar a imprópria noite.
De onde vêm
as vozes? Do que somos, estridentes
fantasmas,
somados ao que supomos e negamos.
Um livro
selado, um ardil de vultos, um incêndio
na água
caindo sobre um corpo suado, disforme,
uma solidão
cheia de graça e que aligeire o fim,
um raro
sustenido alcançado.
As vozes, as
vozes,
poucas sabem
como prolongar a alma, bem poucas.
Entre elas
distingo algumas pernas do relâmpago:
um louco
assediado pela infâmia e a inveja,
uma
fraquejada montaria do inferno, o ouvido
afeito a toda
sangrenta ruína, sofridos personagens:
Alfredo
Aquilino, Mãe Dolores, Pequeno Ansioso.
Anjos
fornicando virgens, eunucos de fita métrica
a buscar a
dimensão exata do falo de Deus,
diabos
alegóricos, perpétuos, grotescos, sublimes.
Sempre a
mesma imagem: diante da morte, o céu.
As vozes em
seu obscuro mandato, saliva de trevas,
numinosas
ruínas, purulentas semelhanças.
A sós não
escutamos senão o praguejar da dúvida.
Um corpo
caindo sobre outro corpo e mais outro.
Qualquer
mínima angústia requer um lugar,
o dorso de
uma ave, uma luz crescente, a sombra
patética de
uma imagem, as mãos queimantes.
– “O livro
não é nada.” (Não se esperava outra fala?
O que nos faz
voltar aqui?) “O menino é a soma
de todas as
inquietudes da existência humana.”
Pequeno Ansioso
e suas vozes, quase insondáveis.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
∞
1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
∞
Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
∞
OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
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