terça-feira, 25 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Antes que a árvore se feche


 

VOZ DE ALBERTA HUNTER

 

Não me deixes maltratar a tua mente.

Qualquer dúvida é um obstáculo desnecessário, uma dor descompassada.

Ao sair, não te esqueças de se desfazer de toda memória.

Estamos sendo escritos por ela sem que tenhamos outra oportunidade.

A tua sombra não deve repetir um só movimento.

O dilema começa quando roço a mão em tua nudez assustada.

Uma selva de arrepios se ocupa de meu desejo quando me iludes estando e não estando a meu lado.

Mesmo que um dia descubra quem és, de que me adiantará?

Um semblante que surge e logo desaparece em tudo quanto avisto.

Quantas noites se passam ao ouvir tua voz dentro de mim?

Quanto silêncio imaginando decifrar o que talvez nem tenhas dito?

Um conflito de trevas, esqueletos da ausência, inventário de enigmas.

Tanto planejei que não voltarias a me castigar que não apago teus passos circundando minha loucura.

Não quero que saias nunca daqui.

 

Este corpo não é teu domínio.

 

LÁBIOS DE ALEJANDRA PIZARNIK

 

Ao tocar suavemente os lábios da noite intuí como ela dançava dentro de si.

As gotas de vinho sobre a mesa refletiam o milagre daqueles seios.

Ali dentro a música tremia com a paixão do vento pelas árvores mais altas.

Tudo nela era uma floração de mistérios.

Suas pernas alcançavam os melhores agudos.

A noite convulsa soletrava a voragem de suas ancas.

O ritmo sempre antecipado de cada vertigem.

Juro que pude ler a oração que rascunhava seus mamilos na pele interior do vestido, como se fosse escrita em meu próprio peito.

A noite me beija como um espelho repleto de memória, sonho transbordando imagens, lábios roçando a paisagem de corpos flutuantes entregues aos gemidos que escorriam pela toalha mesa abaixo.

E ao beijar-me pude entender o quanto a vida suplica para estar ali em sua fonte, aos pés do mito que alimenta com seu fogo líquido.

 

Não houve mais como regressar dos lábios dessa mulher.

 

MÚSCULOS DE ANNIE LEIBOVITZ

 

A minha sombra passeia por dentro da tua.

A memória muda de nome para não ser reencontrada.

As ruas despedaçam a raiz de todos os caminhos.

O mar fica sempre longe.

A dor diz que lá não quer estar.

O medo prefere não revelar residência.

As horas acabaram de passar por aqui.

Era mesmo uma noite de sol quando nos despistamos pela penúltima vez?

Verão em Sidney, eu fui aprender a arte da rapinagem com as gaivotas e lá estavas.

 

O mundo não cessa de tornar-se teu.

 

PULSOS DE ANJA LECHNER

 

O teu corpo recebe em seu leito um verbo distinto a cada noite.

Pequenos afazeres da casa protegem o dia de outros assuntos.

Recosto-me na sombra gasta do abismo a contar teus beijos.

O primeiro me ensina os segredos da pólvora.

Outro me faz crer que posso voar.

São como desafios silenciosos os pequenos rostos boiando no espanto de cada olhar.

Sinais de desordem que a vida elege no trânsito fugaz pela prosperidade do tempo.

Palavras com que escavo a invisibilidade de teu vulto.

Silêncio que abrigamos ao lado delas para que preservem o que sabem a nosso respeito.

O movimento pendular de teus beijos acentua o labirinto que tecem por dentro e por fora de meus lábios.

Um braseiro descreve as imagens do desejo como amuletos vorazes.

Rebatizo teus ritos como quem desvenda as virtudes da tempestade.

O teu corpo sofisma os disfarces da noite com seus espectros verbais.

Reconheces a volúpia indecifrável de cada pantomima?

Ainda recordas o nome com que me fiz passar por ti?

 

Eu mesmo tratei de esquecer-me, para que não tivesses como voltar.

 

PERNAS DE ANNE DARWIN

 

Quando me encontras estou entre a loucura e o silêncio,

como quem sussurra inutilmente o próprio destino.

Não faço ideia do que perdi em tuas mãos.

Preciso de um nome onde te esconder.

Um corpo apropriado à confissão que não gostarias de ouvir.

Eu sigo o teu vulto por entre as sombras,

por entre árvores que rastejam sob a chuva.

A noite encharcada de mistério.

Um rosto revelado a cada gesto murmurado.

Preciso de um lugar onde guardar as cenas vividas em teu nome.

A memória amontoando os corpos perdidos sem que pudéssemos ouvi-los.

Ainda procuras por mim?

Eu não saberia dizer quem fui.

Teus pecados não me comovem mais, porém me assustas com a tua ausência.

Quantos ainda poderão rever-te antes que voltes a ser ninguém?

O teu nome me confunde.

 

Eu simplesmente embaralho suas letras e não soletro mais onde tudo começou.

 

ESPINHAÇO DE BJORK

 

Meus olhos reconhecem a paisagem guardada em tua voz.

A colina acidentada do tempo que tão logo a escalamos dá em outra com sua imensidão de reflexos hospedados no desejo.

A folhagem líquida de meus olhos reconhece os segredos que fomos esquecendo enquanto me perdias por trás de cada beijo.

Escrevo que vim apenas te buscar,

e tudo à nossa volta transcreve as vertigens mais íntimas.

Os meus olhos abrigam a paisagem refeita,

o lápis numinoso de tua voz onde o tempo recobra suas árvores.

Silhueta ancorada no abismo com seu plano decifrado pelo acaso.

Escrevo o que soletram as tuas costelas,

eco entrecortado de silêncios onde a noite transborda.

Quantas luzes deformam os vultos que foram por ti compostos para meu regresso?

Será verdade que já estive aqui alguma vez?

Quantos ficamos antes da multiplicação de tua voz?

 

Ninguém saberia dizer o que acontece agora se começas a cantar.

 

CALCANHARES DE BONNIE PARKER

 

Suponho que o céu não saiba nada de si mesmo.

Fomos atirando em tudo que víamos até que a ignorância se sentisse reconfortada.

Pajeávamos a sordidez, a frustração, toda forma de clandestinidade da hipocrisia.

Os corpos iam se amontoando como sempre, em nome do bem comum.

As minhas meninas sabiam que a imaginação era seu salvo-conduto.

Buscassem o requinte, porém nunca a coerência.

O que fazemos não é para ser compreendido jamais.

Conversamos sobre o perigo de que escrevam cartas ou rascunhos de memória.

Que se entreguem, sejam permissivas, se anulem, sofram as minúcias da perversão, se deixem devorar como pratos de um suculento cardápio.

O mito já foi estabelecido, lavrado e benzido.

As três tábuas da lei garantem virtude a quem possa pagar por ela.

As minhas meninas não causam desconforto algum à história.

Somos como uma ampla filosofia de costumes, que atende a renegados e regenerados.

Um dicionário de vertigens anotado na pele de seus clientes.

Homens de letras, não se decepcionem conosco.

 

Há palavras demais no mundo. Podemos passar uma vida inteira sem nos reencontrarmos.

 

MÃOS DE CLARICE LISPECTOR

 

Uma última noite contigo e as palavras se foram todas.

As tuas mãos sempre atuaram como um narcótico porque deixei diversas vezes o mundo passar frente a meus olhos.

O que fazemos são anotações de um incerto fogo que nos guia.

Guardo teu nome e com ele me movimento de uma sala a outra de um labirinto que ainda não sei ao certo se compreende sua razão de ser.

Toco a tua pele quase invisível e me deixo invadir pelos rumores de sua inquietude.

Gosto de começar a viver pelo teu nome.

Um dia imaginei um bosque em que os teus lábios traduzissem toda a folhagem.

Não somos uma fábula, somos?

Sempre penso em ti como uma infância perdida.

Difícil aceitar que seja a minha.

Eu te amo como um plano de fuga ou foste exatamente a primeira mulher em minha vida?

Ler é o que toca aos olhos e tudo o que vemos se transforma em aturdida miragem.

Talvez as palavras se gastem menos que a realidade de seus temas.

Porém não fazemos ideia se o que tocamos não é senão a palavra.

 

O mundo sempre se desfez por um excesso de bíblias.

 

BUNDA DE NINA SIMONE

 

Acaricio as primeiras silhuetas do espelho ao fechar os olhos em reflexiva intimidade.

Onde se meteu o passado?

Quando será ontem?

Como preparar-se com um leque para os calores do instante se já não recordamos quem fomos?

Improviso o futuro como ruídos suspensos.

Descrevo a sombra de teus instrumentos como se a cada movimento ganhassem outra forma.

Como disfarçar seu invisível refrão?

Onde repousar o eixo sorridente de tanta complexidade?

Eu me despeço com os olhos fechados de tudo quanto não pude ser.

Onde pensas que estamos quando avulta o sonho em primeiro plano e a previsão é que não deixemos de cair?

 

Com um alfinete na pele conservo o piano submerso na excitação do tempo e a onisciência de tua música.

 

UMBIGO DE LEE MILLER

 

Meu corpo medita sobre a temperatura da tarde.

A doçura com que me tocas a palidez da face ou com que me beijas o suor a iluminar-me o pescoço, tudo me faz crer que és o que melhor sei fazer.

As transcrições do desejo vão de uma curva a outra do tempo.

Ali sempre estás, revelando meus anseios e tremores.

Porém nenhum relógio me diz a hora de teu regresso.

Eu me reviro no mapa, a confundir-me com a estrada.

Tu não passas e ao que parece já me leste inteira.

Suponho que em algum momento descanses e aproveito para roubar-te os manuscritos do que vivemos.

Vasculho por toda sorte de feitiço sobre a mesa, onde encontro inúmeras partes minhas, rascunhos sem títulos, truques para enlouquecer-me.

Levo a mão aos lábios sem saber ao certo se me excitas ou deprimes.

A tarde traduz a eletricidade de meu corpo.

Refaço-me ainda atordoada pelo relâmpago de meu confronto com teu silêncio.

Por que não me satisfazem as variações de meu corpo que encontrei em teus escritos?

 

Dói-me o conflito de pensar em demasiada beleza.

 

MEMÓRIA DE CONSUELO BENEVIDES

 

Toma demasiado tempo saber onde a dor guarda seus ossos.

Recortar os verbos, reconhecer as vozes melhor identificadas com cada conflito, sussurrar pequenas mudanças de comportamento.

Os rostos foram se resignando a uma expressão teatral.

Eu não te via senão como fatias de sombras, resquícios, pormenores da memória, onde eu ia rabiscando a minha dor.

Quando avistei o primeiro sinal de tua vida, eu já havia desistido de ser humana.

Fui reconhecendo teu ser aos bagaços.

Muito do que me chegava se confundia com o que eu passei a imaginar como sendo meu filho.

Não creio que tenhamos deixado nada um para o outro em manuscritos.

Por vezes o que recuperamos na vida tem a ver com seu sentido abissal de imitação.

Nunca saberei se és meu filho perdido ou a imagem idealizada do mesmo que acabo de encontrar em um lote de réplicas.

Imitamos o futuro.

Como acreditar no passado?

Não importa.

Tu estás aqui em algum lugar.

 

Eu já não estou em parte alguma.

 

JOELHOS DE DORA FERREIRA DA SILVA

 

O mito se vê bem daqui. É tarde da noite e ele acende a lanterna esquecida.

Em tuas pernas chorei pelos fragmentos do sol que se perderam.

A elas agradeço que nada permaneça.

Como a menina queimada na pele de suas sombras, em meio ao vozerio do fogo pude finalmente compreender o que ela um dia quis me dizer.

Rascunhos de cinzas e seus gritos carnívoros.

A pedra aos poucos foi aprendendo a deixar de ser pedra.

A luz ainda estava nos planos do farol esquecido.

O mito não faz ideia do que podemos fazer sem ele.

Fui anotando destroços, migalhas, descuidos, sem que a escrita desse por conta.

Era para estar ali um dia, entre todas as coisas perdidas.

Não estive.

Perdi a conta do mito.

 

Ainda recordo seu rosto, mas não sei quem sou quando ela transcreve as letras do sol em suas pernas.

 

ANCAS DE EMILY BRONTË

 

O teu sorriso ia desaparecendo no fundo de meu olhar.

Aos poucos já não distinguia os acenos de tua memória.

Eu disse que viria quando o sol te ensinasse a brilhar,

porém as nuvens foram me guiando para um outro ninho de escombros.

Um pequeno mercado de cicatrizes. Noite recostada em uma árvore.

A pele abandonando os cuidados com a vida que ainda guarda em si.

O tempo remodelando as sombras esquecidas sob os corpos.

A dor se aproxima como um raio. Já não escuto mais nada.

Deixo a tua mão sobre meu peito, sem saber ao certo o que ainda podes fazer por mim.

Livro-me por um segundo ou dois do mistério da morte,

mas logo recupero as vozes confiscadas por antigos presságios.

Jamais dissemos o nome do deus que faltou com sua palavra.

 

Aos poucos já não distinguia as cores de tua ausência.

 

BRAÇOS DE JANIS JOPLIN

 

Recorto teu corpo uma vez mais, até que a memória revele a música por trás de seus truques.

Seios me dizem quais luas irei encontrar a caminho, os traços sutis do vento, a vegetação anotando planos sobre a pele que talvez não sejam cumpridos.

O olhar descreve um secreto ninho de acidentes.

Onde estás? Os objetos à volta recusam a tua ausência.

Os dias estão desaparecendo e já não reconheço a cor de tua queda.

Pérolas apreendidas na bagagem do mito.

Sombras escorregadias no leito da oração com que tinges a palidez de minha dor.

Respiro o teu nome e volto a conferir os rascunhos que fiz de teu corpo.

Eras nuvens ativadas dentro do espelho da paisagem, fragmentos de abismo que não chegamos a mastigar.

Sonhos empoeirados que guardamos para outras noites.

Um tufo de imprevistos deixado embaixo da cama sem motivo algum.

Os teus dias passaram todos comigo. Jamais saímos daqui.

Ao recolher aqueles esboços um deles resplendia no arquivo como uma fagulha.

 

Dediquei-me então à façanha de criar esta tua última astúcia.

 

OMBROS DE LEILA FERRAZ

 

Movo tuas sombras com a lentidão da desordem e suas casas contíguas abrindo janelas para ruas em bairros distintos.

A noite não consegue viver sem tecer mares em nossa pele.

Eu digo que é noite, porém os teus ombros soletram um sol bem acariciado a cada gole do espelho por onde nos revelamos.

Eu não sei mais em que pensar, e por isto te renovas.

As ruas foram simplesmente passando e tu as recolhias como flores em um vaso.

Que nome dar a cada beijo?

Assim como me escrevias saías de casa e quanto retornavas trazias os bolsos confirmados de encantos.

Há noites em que não sei onde começam teus seios.

Outras em que desconheço o que resta de mim em tua memória.

Quem está por trás de cada sombra?

Meu olho tem uma falha que te reconhece.

Sonho contigo quando o olho alucina.

Eu quero te amar a noite inteira, porém a noite inteira tem outra ideia a este respeito.

Temos que sair daqui rapidamente, antes que a árvore se feche.

Teu nome está repleto de abismos cujo enigma ninguém desconfia.

Eu te beijo sem que percebas e esqueço um silêncio em teu olhar.

 

Qual de tuas sombras afinal percebeu o que vim fazer aqui?

 

OLHOS DE LINDA PORTER

 

Ela sempre esteve ali.

Reconciliada com seus abismos, dando vida às minhas obsessões.

Parecia flutuar na memória, em proporções que mal eu traduzia assumiam formas distintas.

Como permaneceu linda com o tempo afeito ao vinho de seus lábios.

As canções que escrevemos foram entrando em casa como noites possuídas por uma doçura incomum.

Ela me dizia seu nome apenas com o olhar, onde em seguida eu anotava outros versos, pequenas luzes sob o arco de nossas costelas.

Ao lado do piano deixamos cair seu vestido, assim como deixamos de contar os murmúrios do tempo.

Mesmo quando as dores se foram, com suas gotas cortantes, ainda assim, ela sempre esteve ali, e não pude jamais deixar de tê-la comigo.

 

Com o passar dos anos, sua música aprendeu a vagar sozinha pela casa.

 

VEIAS DE MATTIE ROSS

 

O armário repleto de almas, todas elas sem rosto.

Imóveis, como se à espreita de uma cena propícia a seu retorno.

Um aquário afasta a realidade de seu mito.

Explora meneios, semblantes suspensos, pequenos atritos entre sol e verbo, algumas falas soltas como detritos imperceptíveis.

Indecifráveis os murmúrios que vazam dessas caixas onde a vigília é guardada como um sonho raro.

No entanto, amontoam-se as caixas de tal forma que toda expressão sugere ser outra.

Enquanto me beijas, o armário sussurra uma anatomia de caprichos.

Quantos somos ali, já não importa.

Enquanto me dizes que me amas, os timbres se multiplicam por todo o quarto.

O mito se diverte em manter a realidade em distintos aquários.

Há portas que são espelhos e esgares tão enevoados pelo vidro que não reconhecemos sua origem.

 

Ainda te beijo, mas começo a duvidar do que me diz o armário.

 

VENTRE DE RUTH UNDERWOOD

 

As ruas estão entrecortadas de olhos com seus ângulos assimétricos mascando a essência de quem por ali passa.

Uma palpitação frenética de símbolos faz com que todos caiam no detalhe fugaz da nostalgia,

reunidos à sombra da memória,

culpando o poente por ser melancólico, a catedral por ser retilínea, o abismo por ser impreciso.

As notas mais simples se repetem.

Há acordes que sabem soletrar uma imagem distinta em cada ponte ou palco.

Quando dobras as notas, a paisagem estremece.

A pele dedicada à transcrição do delírio.

 

É quando se escuta a solidez da semelhança, os planos encantados de tudo quanto escrevemos apenas de relance, a magia vital ao alcance de todos.

 

SEIOS DE SARA SAUDKOVA

 

Ela me fazia voar, com todo o corpo e as inúmeras sombras.

Suava como se fosse um segredo de seus vestidos rasgados.

Eu a reconhecia em mim, a porta indefinidamente aberta.

Uma lágrima compondo a memória de seus arquejos.

O corpo com que me sublinhava a alegria.

A pele realçada no quarto escuro entre gemidos.

Ela um dia e outro, em doce artimanha, se escondia em meu olhar.

Tocava-me como se o feitiço não pretendesse nunca ir embora.

A noite nos despia a qualquer hora.

Eu a invejava sempre que ia, porém mais ainda ao regressar.

 

Quantos de mim foram e voltaram é conta que nunca fiz, tanto que disfarcei sua ausência com as sombras que não partiram.

 

OSSOS DE SUSANA WALD

 

Começo a imprimir teu nome por onde passo.

Visito a noite de teus olhos.

Saboreio com as nuvens o salto de uma imagem a outra do que ocultas em teu íntimo.

Plantamos ali um jardim onde sentar para refazer pequenos mitos.

A tua selva escura como uma verdade oculta.

Por vezes os títulos são a única nobreza da arte.

A vida raramente consegue igualar-se a ela, embora não se saiba até hoje o quanto essa relação expresse algo além de um ornamento.

Sento-me aqui a teu lado para que pensemos nos objetos de um colecionador de miragens.

Rimos quando me contas que os seios de sua mulher foram roubados de uma galeria em Montreal.

Roubar aquilo que a ninguém pertence.

Não paro de imprimir teu nome por onde passo.

A imagem fiel a suas vertigens.

Não importa a fratura de seus vidros.

A tua selva escura me diz que és a favorita do abismo.

Imprimo teu nome como um sinal de que não deixaremos jamais de passar por aqui.

A pedra não se move, sonha com melhores musgos ou expressa felicidade quando lhe acaricia o orvalho.

 

Eu estou aqui e quando visito teus olhos as réplicas se afastam.

 

COXAS DE ZOFIA BESZCZYŃSKA

 

Esta noite quebrei um corpo.

Ao voltar para casa não soube mais onde me encontrar.

Foi quando te vi, cruzando o horizonte que antes não estava ali.

A noite abriu em mim um modo estranho de se revelar.

Comecei a eliminar da memória tudo o que não me diz respeito.

Pretendia que me beijasses apenas o essencial, a reserva mais íntima de tudo o que flui.

Resumir em um beijo todo esse ninho de cataclismos.

A tua doçura criou uma inundação em meu ser.

Não te vás. Ainda não quero que saias de dentro de mim.

Só então percebi que começava a delirar:

A noite reconhece suas pequenas sombras vagando pelas calçadas incertas.

Com elas disfarça a solidão com que gravita nos pomares do tempo.

Os espelhos espalhados contemplam como danças em uma pele fina de algodão quase transparente.

 

E não parei mais. Nunca mais.

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

 

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