terça-feira, 25 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Vestígios deleitosos do azar

 


Quando a cortina cai, o cenário se mostra um deserto.

Como a memória. Abandonada por todos.

FM

 

1.

 

As sombras saem para caçar seus reflexos na noite escura. Duelam com alguns fios de luz como quem traslada sua presença de um corpo a outro. Os pequenos monstros cultivados pela realidade passeiam nas ruínas da memória. A noite permanece escura sem que o medo possa tornar visíveis suas moedas de gozo. Duas marionetes se libertam de seus cordões e atuam fora do roteiro. A praça central se enche de gente para ver os primeiros passos de liberdade delas duas. Porém não são propriamente passos de liberdade, mas antes passos temerosos. Como alguém que não sabe o que acontecerá no instante em que caminha. O medo do espaço não nos liberta do tempo. As marionetes começam a desconfiar que a ausência isolada dos cordões não lhes garante liberdade alguma de ação ou pensamento. Elas devem buscar na realidade as esquadrias sinceras que lhes permitam descobrir de que é feito o horizonte. Não há livros que ensinem por onde começa o mundo. Não há elevadores com quem compartilhar a ansiedade de chegar ao cume ou ao subterrâneo da existência. Sequer os relógios repetem as horas. Os nomes são outros sempre que pronunciados. A gente na praça aplaude o olhar de espanto das duas marionetes. Ninguém imagina o que o medo fará com elas quando todos dali se forem.

 

2.

 

As duas marionetes são tão iguais que parecem uma só. Talvez sejam gêmeas. Ou talvez foram criadas dentro de um mesmo espelho. Uma mesma caixa de acrílico. De onde podiam ver o mundo, porém ninguém podia vê-las. Um mundo horrível criou as imagens mais arrepiantes dentro de seus olhos de madeira. As mais obscuras crateras foram semeadas como um campo de alucinações. Muitas vezes as duas gêmeas se confundiam entre elas mesmas. Como atrizes que embaralham as frases do roteiro. A repetição daquilo que jamais seremos. A repetição de uma fantasia. Os códigos secretos da repetição de quem sequer elas serão. Dentro e fora da caixa de acrílico. Dentro e fora do teatro que acidentalmente incendiamos em nossa alma. Desde então todas as noites são iguais. Não importa quanta gente vá até a praça central ver as meninas.

 

3.

 

As trevas se engasgam como um mito arruinado. Como uma frase solta, que não sabemos a que hora dizer. Uma das duas deve gritar, antes que as máscaras comecem a identificar nossos rostos. Toda a gente que veio nos ver clama por um número excessivo de máscaras. Meu rosto está preparado. Meu corpo assumirá a forma correspondente de cada máscara. Tecido velho com olhos luminosos e cabelos de gravetos de uma árvore incendiada. Há demasiada luz em meus olhos. Não posso ver tua máscara. Porém escuto o quanto falas com todos e imagino os traços de giz em sua testa. Uma cascata de giz moldando a ira de um olhar perdido. Há nomes perdidos em sua voz. Labirinto de nomes que desconhecem o próprio destino. Quero mudar de máscara, porém antes nós duas temos que descobrir a origem desses nomes esquecidos. Quantas noites escuras cavam a madeira desnuda de nossos corpos? Quantos personagens virão ao centro da praça desmentir nossos temores renitentes? Faz de teu rosto um lago que apague a luz do meu. Necessito ver a próxima máscara. Não posso perder o curso de minha representação. Ajuda-me a reconhecer quem ainda não pude ser.

 

4.

 

Olho para todos na praça e vejo que não há máscaras.  Cada um deles deveria ter trazido a própria. De outro modo, como podem nos ver? Seus rostos nus são como os nossos, de madeira lisa. Não há reflexo de alma ou sonho ou lembrança. O que vemos nos demais é um hemisfério perdido de ilusões. Enquanto não aprendermos a olhar não saberemos quem somos. Uma noite escura no centro do mundo. Duas marionetes. Toda a gente que já não sabe o que está fazendo ali. Necessitamos máscaras para revelar quem somos e descobrir o significado de cada coisa no mundo e desatar os nós de nossa atuação. Larvas mecânicas, o olho aflito de um vulcão, traços de um ritual indígena. Vamos distribuir máscaras para cada uma das pessoas presentes. Relógio com todas as horas concentradas na metade de sua cara, marfim negro de um desenho infantil, paisagem perdendo suas cores desde a testa até o queixo. Vocês podem escolher qual máscara lhes representa melhor. Não tenham medo. As máscaras trarão a todos para nosso mundo. E então repetiremos a cada cena o volume das mais incessantes descobertas.

 

5.

 

Agora, todos nós podemos conhecer o medo. Sentir as máscaras farejando nossos corpos. Recuperar a pele perdida. Agora podemos recordar os cantos, os rituais orgíacos, os cheiros de atração e repulsão. Uma serpente em cada espinhaço. Uma terra incógnita em cada passo. Os humores da carne sendo tecida pelas vertentes do desejo. Cortar os membros. Embaralhar as dores. Cometer os crimes para os quais tanto nos preparamos. Espalhar as cinzas da repetição pela casa inteira. A praça ondulada como uma residência viva. Ossos e orgasmos confundidos. Uma das duas deve retirar da caixa de acrílico os cordões e recortá-los. A outra cuidará de dar vida a toda a gente que veio nos ver. Agora é a verdadeira hora de aprender a ter medo.

 

6.

 

O segredo está bem guardado. O medo coleciona ruínas no centro da praça. Seu primeiro nome sorteado é Escuridão. A segunda ameaça saiu correndo em busca de nossos fatores. Na terceira noite a lâmpada do mito começou a gotejar uma curiosa toxina. O cérebro das marionetes se escondeu no fundo falso da caixa de acrílico. Pequena multidão de cérebros prensados com seus motores emocionais dando início a um último ciclo de sua existência. As marionetes não dão pela falta do cérebro e pendem de seus cordões, silenciosas, esvaziadas de qualquer pensamento. Seus corpos de madeira começam a apodrecer, sepultados pelo vazio e a incredulidade. Os cérebros perderam seus corpos. Não há dedos para pressionar o botão correto que possa reiniciar o espetáculo. As máscaras abandonadas no centro da praça se entrelaçam e não identificam o que possa ser irreal ou não. O silêncio dorme e sonha com a cena seguinte: qual será o entreato? O segredo está bem guardado.

 

7.

 

Não temos medo da loucura. Não temos medo do silêncio. Não temos nenhuma oportunidade contra o tempo. Não temos o que comer esta noite. Não temos como fazer amor com tantas máscaras. Não temos medo de cair ou subir. Não temos medo de frases pronunciadas ao contrário. Não temos para onde ir caso o inferno caia de cena. Não temos uma gota de sol em nossas sombras estiradas. Não temos como morrer em momento algum. Não temos medo da praça central. Não temos medo do medo. Nada restou de nós duas.

 

 

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 

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