Quando a cortina cai, o cenário se mostra um deserto.
Como a memória. Abandonada por todos.
FM
1.
As sombras saem para caçar seus reflexos
na noite escura. Duelam com alguns fios de luz como quem traslada sua presença
de um corpo a outro. Os pequenos monstros cultivados pela realidade passeiam
nas ruínas da memória. A noite permanece escura sem que o medo possa tornar
visíveis suas moedas de gozo. Duas marionetes se libertam de seus cordões e
atuam fora do roteiro. A praça central se enche de gente para ver os primeiros
passos de liberdade delas duas. Porém não são propriamente passos de liberdade,
mas antes passos temerosos. Como alguém que não sabe o que acontecerá no
instante em que caminha. O medo do espaço não nos liberta do tempo. As
marionetes começam a desconfiar que a ausência isolada dos cordões não lhes
garante liberdade alguma de ação ou pensamento. Elas devem buscar na realidade
as esquadrias sinceras que lhes permitam descobrir de que é feito o horizonte.
Não há livros que ensinem por onde começa o mundo. Não há elevadores com quem
compartilhar a ansiedade de chegar ao cume ou ao subterrâneo da existência.
Sequer os relógios repetem as horas. Os nomes são outros sempre que
pronunciados. A gente na praça aplaude o olhar de espanto das duas marionetes.
Ninguém imagina o que o medo fará com elas quando todos dali se forem.
2.
As duas marionetes são tão iguais que
parecem uma só. Talvez sejam gêmeas. Ou talvez foram criadas dentro de um mesmo
espelho. Uma mesma caixa de acrílico. De onde podiam ver o mundo, porém ninguém
podia vê-las. Um mundo horrível criou as imagens mais arrepiantes dentro de
seus olhos de madeira. As mais obscuras crateras foram semeadas como um campo
de alucinações. Muitas vezes as duas gêmeas se confundiam entre elas mesmas.
Como atrizes que embaralham as frases do roteiro. A repetição daquilo que
jamais seremos. A repetição de uma fantasia. Os códigos secretos da repetição
de quem sequer elas serão. Dentro e fora da caixa de acrílico. Dentro e fora do
teatro que acidentalmente incendiamos em nossa alma. Desde então todas as
noites são iguais. Não importa quanta gente vá até a praça central ver as meninas.
3.
As trevas se engasgam como um mito
arruinado. Como uma frase solta, que não sabemos a que hora dizer. Uma das duas
deve gritar, antes que as máscaras comecem a identificar nossos rostos. Toda a
gente que veio nos ver clama por um número excessivo de máscaras. Meu rosto
está preparado. Meu corpo assumirá a forma correspondente de cada máscara. Tecido
velho com olhos luminosos e cabelos de gravetos de uma árvore incendiada. Há
demasiada luz em meus olhos. Não posso ver tua máscara. Porém escuto o quanto
falas com todos e imagino os traços de giz em sua testa. Uma cascata de giz
moldando a ira de um olhar perdido. Há nomes perdidos em sua voz. Labirinto de
nomes que desconhecem o próprio destino. Quero mudar de máscara, porém antes
nós duas temos que descobrir a origem desses nomes esquecidos. Quantas noites
escuras cavam a madeira desnuda de nossos corpos? Quantos personagens virão ao
centro da praça desmentir nossos temores renitentes? Faz de teu rosto um lago
que apague a luz do meu. Necessito ver a próxima máscara. Não posso perder o
curso de minha representação. Ajuda-me a reconhecer quem ainda não pude ser.
4.
Olho para todos na praça e vejo que não
há máscaras. Cada um deles deveria ter
trazido a própria. De outro modo, como podem nos ver? Seus rostos nus são como
os nossos, de madeira lisa. Não há reflexo de alma ou sonho ou lembrança. O que
vemos nos demais é um hemisfério perdido de ilusões. Enquanto não aprendermos a
olhar não saberemos quem somos. Uma noite escura no centro do mundo. Duas
marionetes. Toda a gente que já não sabe o que está fazendo ali. Necessitamos
máscaras para revelar quem somos e descobrir o significado de cada coisa no
mundo e desatar os nós de nossa atuação. Larvas mecânicas, o olho aflito de um
vulcão, traços de um ritual indígena. Vamos distribuir máscaras para cada uma
das pessoas presentes. Relógio com todas as horas concentradas na metade de sua
cara, marfim negro de um desenho infantil, paisagem perdendo suas cores desde a
testa até o queixo. Vocês podem escolher qual máscara lhes representa melhor.
Não tenham medo. As máscaras trarão a todos para nosso mundo. E então
repetiremos a cada cena o volume das mais incessantes descobertas.
5.
Agora, todos nós podemos conhecer o medo.
Sentir as máscaras farejando nossos corpos. Recuperar a pele perdida. Agora
podemos recordar os cantos, os rituais orgíacos, os cheiros de atração e
repulsão. Uma serpente em cada espinhaço. Uma terra incógnita em cada passo. Os
humores da carne sendo tecida pelas vertentes do desejo. Cortar os membros.
Embaralhar as dores. Cometer os crimes para os quais tanto nos preparamos.
Espalhar as cinzas da repetição pela casa inteira. A praça ondulada como uma
residência viva. Ossos e orgasmos confundidos. Uma das duas deve retirar da
caixa de acrílico os cordões e recortá-los. A outra cuidará de dar vida a toda
a gente que veio nos ver. Agora é a verdadeira hora de aprender a ter medo.
6.
O segredo está bem guardado. O medo
coleciona ruínas no centro da praça. Seu primeiro nome sorteado é Escuridão. A
segunda ameaça saiu correndo em busca de nossos fatores. Na terceira noite a
lâmpada do mito começou a gotejar uma curiosa toxina. O cérebro das marionetes
se escondeu no fundo falso da caixa de acrílico. Pequena multidão de cérebros
prensados com seus motores emocionais dando início a um último ciclo de sua
existência. As marionetes não dão pela falta do cérebro e pendem de seus
cordões, silenciosas, esvaziadas de qualquer pensamento. Seus corpos de madeira
começam a apodrecer, sepultados pelo vazio e a incredulidade. Os cérebros
perderam seus corpos. Não há dedos para pressionar o botão correto que possa
reiniciar o espetáculo. As máscaras abandonadas no centro da praça se
entrelaçam e não identificam o que possa ser irreal ou não. O silêncio dorme e
sonha com a cena seguinte: qual será o entreato? O segredo está bem guardado.
7.
Não temos medo da loucura. Não temos medo
do silêncio. Não temos nenhuma oportunidade contra o tempo. Não temos o que
comer esta noite. Não temos como fazer amor com tantas máscaras. Não temos medo
de cair ou subir. Não temos medo de frases pronunciadas ao contrário. Não temos
para onde ir caso o inferno caia de cena. Não temos uma gota de sol em nossas
sombras estiradas. Não temos como morrer em momento algum. Não temos medo da
praça central. Não temos medo do medo. Nada restou de nós duas.
∞
A GRANDE OBRA DA CARNE
A poesia de Floriano Martins
1991 Cinzas do sol
1991 Sábias areias
1994 Tumultúmulos
1998 Autorretrato
2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]
2004 Antes da queda
2004 Lusbet & o olho do abismo abundante
2004 Prodígio das tintas
2004-2015 Estudos de pele
2004-2017 Mecânica do abismo
2005 A queda
2005 Extravio de noites
2006 A noite em tua pele impressa
2006 Duas mentiras
2006-2007 Autobiografia de um truque
2007 Teatro impossível
2008 Sobras de Deus
2008 Blacktown Hospital Bed 23
2009-2010 Efígies suspeitas
2010 Joias do abismo
2010-2011 Antes que a árvore se feche
2012 O livro invisível de William Burroughs
2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]
2013 Anatomia suspeita da realidade
2013 My favorite things [com Manuel Iris]
2013 Sonho de uma última paixão
2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória
2014 Mobília de disfarces
2014 O sol e as sombras
2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil
2015 Enigmas circulares
2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]
2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]
2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]
2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]
2016 A vida acidental de Aurora Leonardos
2016 Altares do caos
2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]
2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos
2017 O livro desmedido de William Blake
2017 Antigas formas do abandono
2017 Manuscrito das obsessões inexatas
2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]
2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra
2018 Atlas revirado
2018 Tabula rasa
2018 Vestígios deleitosos do azar
2021 Las mujeres desaparecidas
2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]
2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]
2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]
2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]
2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]
2023 Inventário da pintura de uma época
2023 Letras del fuego [con Susana Wald]
2023 Primeiro verão longe de casa
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1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]
2013-2017 Manuscritos
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Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.
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OBRA POÉTICA PUBLICADA
Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.
Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.
Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2. The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.
Alma em chamas. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.
Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.
Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.
La noche impresa en tu piel. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.
Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.
Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.
Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.
A alma desfeita em corpo. Lisboa: Apenas Livros, 2009.
Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.
Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.
Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.
Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.
Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.
Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.
O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.
A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.
Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.
A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.
Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.
Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.
El frutero de los sueños. Wilmington, USA: Generis Publishing, 2023.
Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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