quinta-feira, 20 de abril de 2023

A GRANDE OBRA DA CARNE | Cinzas do sol

 

 

Me falam de Deus ou me falam da História.

Rio-me de se ir buscar tão longe a explicação da fome que me devora,

a fome de viver como o sol na graça do ar, eternamente.

GONZALO ROJAS

 

A Lilia

 

A SÓS COM LILIA

 

Tenho me descoberto minha própria inimiga, quanto mais toco minha intimidade. Estes últimos sinais que venho recebendo: leitura de Georges. Todo aquele riso rasgando as relvas de minha alma. O pavor de ficar sozinha. Não haver a sombra de um só arbusto onde repousar a solidão. A sós entre minhas sombras me sinto esmagada. Protejo-me desconhecendo-me. Porém as palavras de Georges me deixam tonta. Querem que eu me satisfaça com meu fracasso. Que eu me esgote de tanto ser enquanto me destruo. Tenho medo deste jogo que anuncia a noite como uma náusea infinita. Sou meu próprio fim. Encho-me de dor.

 

LAZARUS

 

Saio de ti a desordem instalada em teu corpo. Um único gesto evoca o declínio de tua existência. Os tempos estão tomados de torpor. Minha única chance é mesmo acabar contigo. Cruzo as ruas entre bombas. O planeta tem mil guetos que o massacram. Ridículo dizer que do pó de teu sangue ressurgirei. Vivemos esperando outra coisa da vida. Um pouco mais de fundamento talvez na própria debilidade dos dias. Tanta resignação me assusta. Entre um disparo e outro me embriago. Em segredo, todo conhecimento se revela angustiado. Saio de ti: flecha disparada a esmo.

 

LIVRO DE ÂNGELA

 

Deitas teu corpo sobre o meu: fragmentos do infinito. A taça de brandy enquanto releio anotações de nossos dias juntos. Rabisco algo. Sinto frio diante do silêncio. O desafio da criação nos reduz ao inevitável. Nossas vidas estão repletas de pequenos desastres. Tenho consciência de tua morte a cada tremor de teu corpo. O gozo me furta a chave de novos sofrimentos. Sou tua sagração. Tua linguagem que desaparece a cada palavra que escrevo. Também a noite suprime a simplicidade dos corpos que buscam refúgio em sua arca. Se concordas comigo é o fim.

 

EVOCAÇÕES DE ANTONIO

 

Jamais abandones o interrogatório. Indagar sobre o vazio. Até que ponto o espírito retém em si o essencial? Que outra verdade o homem opõe a Deus? Livre de seus braços posso ordenar o destino conforme meu desejo. As evidências cegam. A que aspira tal posição? Quanto mais provisória a lucidez mais adverte contra a vaidade da existência. Ideais tornam a razão inacessível. O recurso à ordem é ingênuo? Duplicar significados é isolar a consciência. O desejo é carnal. Sua fonte, a superação dos sentidos. Que desafio o levaria à renúncia de seus dons? A negação é a condição do ser. Sou um observador.

 

GABRIEL RINDO DE SI MESMO

 

Toquei uma a uma as falhas de meu suplício. O ponto de desequilíbrio que não pude exaltar. Meus limites me levam à ruína. Precipito-me em um deserto que me fere. Que requer de mim defeitos além de meu pobre rigor. Tudo em mim entra como uma morte que me queima. Como as palavras em brasa de Davi. A força cega dos elementos sujeitos à queda eterna. Imagens de meu suplício se fragmentam mudas diante de mim. Êxtase risível. Sou conduzido pelas visões do espanto que me sacrifica. Nada responde à surda catástrofe de meus dias. Apenas a selvagem beatitude que me arrasa.

 

PESADELOS DE DIANA

 

A imensidão de minha angústia me fez tocar tua pele. Desamparada entre cinzas mal contive a sucessão violenta de meus atos. Teu grito assustado como uma loba ferida em plena escuridão. Jogarei com tal susto até o abismo de teu gozo. A língua em teu sangue. A loba recuperando seus olhos hipnóticos. Duas fêmeas entregues ao furor da sorte. Desfalecida embriaguez de nossos destinos. Mordo os dedos de tua mão. Me ajudas a ficar só, esquecendo quem sou. Entre soluços a vida prossegue nos ferimentos que te faço. Tento não imaginar nada. Até que teu grito me encharca. Loba dando voltas na noite de minha angústia.

 

ESCULTOR

 

Um constante erro humano: acreditar na conclusão de seus caprichos. Os devaneios são a medida de nossa verdade inatingível. O segredo das coisas é o vazio das fórmulas que as guardam. Miguel esculpia pedras. Delirantes granitos da vaidade. Um animalzinho de Deus comia em sua mão. Ao sentir-se tomado pelo obscuro expunha o coração de argila. O perigo era o peso das pedras desabando sobre suas mãos. As divindades de pedra que o sacrifício exaltava. Entregue ao absoluto, Miguel parecia um imbecil. Há um ponto em que toda catástrofe é natural.

 

CARVÕES DE EDUARDO

 

Contemplo a máscara de suas ações. A inconcebível face em que os mortos denunciam as linhas de um artifício fugaz. Os rostos sempre falam demais. Um único traço e seus planos se revelam. A loucura finca espelhos no deserto. Me espantam os meios. Nossa estratégia de permanência no útero do caos. Nada me apavora tanto quanto a miséria de nosso trabalho na terra. Indesejável como toda ocupação. Nunca saberemos a moral de tantos rostos. Reconhecemos com todo o corpo os lugares em que estivemos. Toda essência sangra. Como feridas do absurdo. Trazemos no rosto as marcas dos acidentes. A mortuária máscara que exige de nós a beleza elementar.

 

CARTAS DE ADRIANO

 

Tenho recebido tuas cartas. Transformamos a vida de encanto a engano. A relativa alegria do mundo é pura impotência. Ando pelas ruas como se ardesse em uma eterna fogueira. Tuas palavras ecoam em meu espírito. Eras bela e em ti eu respirava a doçura do abismo. Lembro o quanto nos amávamos sem tormento. A queda dos corpos tem ocupado nossas vidas em recolher restos. Esgotamos nossas forças nessa tarefa. Não há limites para a morte quando deixamos de rir. Meu corpo não vê nada. Sigo como que arrastado pela memória. Sem respostas. Como tuas cartas.

 

AGONIA DE DAVI

 

Esta noite refiz as últimas páginas. A mão de Hécate sobre o livro aberto. Assim tão nua a escuridão me enfurecia. Nudez capaz de matar um deus. Ao seu redor a arquitetura gloriosa dos desastres que forjam a base de toda existência humana. A sangrenta alma do mundo. O olhar de Hécate me indica o abismo onde devo me esgotar. Ávido vazio onde paixão e horror procriam suas criaturas carregadas de ódio. Fui relendo cada página de seu corpo satisfeito. Sua nudez confundia jogo e inocência. Tive que gritar. Com o fulgor de um abismo que se refaz a si mesmo: um único fio de cega luz e o livro um vasto espólio das mentiras tão essenciais à vida quanto o amor.

 

FLOR NO CABELO DE LILIA

 

Há um tempo em que não nos resta senão cedermos aos caprichos de nossa natureza. Amamos de outra maneira. O desejo se disfarça em total abandono. É possível tocar o rosto do abismo. Tremo quando penso no inconfundível carinho deste momento. A luz de um candeeiro no quarto. A morte é a queda de um sonho. Grito ao abismo que não sou quem sou. Seus beijos me deixam nua. Jamais acreditará em mim. Nega-me como em vida os filhos o fizeram. Sua paixão por mim é minha ruína. Já não busco senão afagar a flor em meu cabelo.

 

UMA CRIADA DE ERZSÉBET

 

Seu rosto de pedra despertava a luxúria de uma deusa. Repetia seu nome entre ervas e o sangue de outras moças em sua taça. Sou sua incidência mais eventual. Amo a vertigem desta estranha mulher que nos mata uma a uma. No banho, Amy ouve a senhora: estes animaizinhos que sangro me esvaziam como um céu perdendo suas estrelas. A pele abrindo-se como um riso. A febre de uma mulher que não se contém em si. Amy dissimulada entre a crueldade excessiva de Erzsébet. A evidência é a miséria dos seres. Sirvo-lhe a taça escarlate todas as manhãs antes do banho.

 

UMA ÚLTIMA TAÇA COM LILIA

 

O corpo seduzido pela embriagadora inércia. Não há como não pensar a que espécie de mundo pertenço. O abuso de utopias a tudo desfigura. Deus é um livro que já não posso ler. Toda verdade me parece hoje postiça. Alguém suspirando na escuridão. Um imenso lagarto com sua língua voluptuosa por trás de todo orgulho. Algo me diz que a imortalidade é monstruosa. A dialética de todo crime reside no riso lançado sobre a vítima. Pintei meus cabelos durante toda a velhice. Acreditei poder suprimir a morte. Minha cabeça encostada no céu é a afirmação final da comicidade de nossas vidas. Somente Deus adoraria sua própria morte.

 


 

 



A GRANDE OBRA DA CARNE

A poesia de Floriano Martins

  

1991 Cinzas do sol 

1991 Sábias areias 

1994 Tumultúmulos 

1998 A outra ponta do homem 

1998 Autorretrato 

1998 Os miseráveis tormentos da linguagem e as seduções do inferno nos instantes trágicos do amor de Barbus & Lozna 

2003-2017 Floração de centelhas [com Beatriz Bajo]

2004 Antes da queda 

2004 Lusbet & o olho do abismo abundante 

2004 Prodígio das tintas 

2004 Rastros de um caracol 

2004 Sombras raptadas [Coroa] 

2004 Sombras raptadas [Cara] 

2004-2015 Estudos de pele 

2004-2017 Mecânica do abismo 

2005 A queda 

2005 Extravio de noites 

2006 A noite em tua pele impressa 

2006 Duas mentiras 

2006-2007 Autobiografia de um truque 

2007 Teatro impossível  

2008 Sobras de Deus

2008 Blacktown Hospital Bed 23 

2009-2010 Efígies suspeitas 

2010 Joias do abismo 

2010-2011 Antes que a árvore se feche 

2012 O livro invisível de William Burroughs

2012-2014 Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]

2013 Anatomia suspeita da realidade 

2013 My favorite things [com Manuel Iris]

2013 O piano andou bebendo 

2013 Sonho de uma última paixão 

2013-2015 Breviário dos animais fabulosos fugidos da memória 

2014 Mobília de disfarces 

2014 O sol e as sombras 

2014-2015 Reflexões sobre o inverossímil 

2015 Enigmas circulares 

2015 Improviso para dois pianos [com Farah Hallal]

2016 Cine Azteka [com Zuca Sardan]

2016 Circo Cyclame [com Zuca Sardan]

2016 Trem Carthago [com Zuca Sardan]

2016 A mais antiga das noites 

2016 A vida acidental de Aurora Leonardos 

2016 Altares do caos 

2016 Breve história da magia 

2016-2017 Convulsiva taça dos desejos [com Leila Ferraz]

2016-2017 Obra prima da confusão entre dois mundos 

2017 O livro desmedido de William Blake

2017 Antigas formas do abandono 

2017 Labirintos clandestinos 

2017 Manuscrito das obsessões inexatas  

2017 O mais antigo dos dias 

2017-2020 A volta da baleia Beluxa [com Zuca Sardan]

2017-2022 Nenhuma voz cabe no silêncio de outra 

2018 Atlas revirado 

2018 Tabula rasa 

2018 Vestígios deleitosos do azar 

2021 Las mujeres desaparecidas

2021 Museu do visionário [com Berta Lucía Estrada]

2021 Naufrágios do tempo [com Berta Lucía Estrada]

2022 As sombras suspensas [com Berta Lucía Estrada]

2022 Las resurrecciones íntimas [com Berta Lucía Estrada]

2023 A casa de Lenilde Fablas

2023 Caligrafias do espírito

2023 Huesos de los presságios [con Fernando Cuartas Acosta]

2023 Inventário da pintura de uma época

2023 Letras del fuego [con Susana Wald]

2023 Representação consentida

2023 Primeiro verão longe de casa 


 

 

1991-2023 Mesa crítica [Prefácios, posfácios, orelhas]

2013-2017 Manuscritos


 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artista plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957) é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 23 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a ensamblagem e outros recursos. Como ele próprio afirma, o magma de toda essa efervescência criativa se localiza na poesia, na escritura de poemas, na experiência com o verso, inclusive a prosa poética, da qual é um dos grandes cultores. A grande obra da carne – título emprestado de um de seus livros, é uma biblioteca desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins, de modo a propiciar acesso gratuito a toda a sua produção poética.


 

 

OBRA POÉTICA PUBLICADA

 

Cinzas do sol. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Sábias areias. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1991.

Tumultúmulos. Rio de Janeiro: Mundo Manual Edições, 1994.

Ashes of the sun. Translated by Margaret Jull Costa. The myth of the world. Vol. 2The Dedalus Book of Surrealism. London: Dedalus Ltd., 1994.

Alma em chamasFortaleza: Letra & Música, 1998.

Cenizas del sol [con Edgar Zúñiga]. San José, Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2001.

Extravio de noites. Caxias do Sul: Poetas de Orpheu, 2001.

Estudos de pele. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.

Tres estudios para un amor loco. Trad. Marta Spagnuolo. México: Alforja Arte y Literatura A.C., 2006.

La noche impresa en tu pielTrad. Marta Spagnuolo. Caracas: Taller Editorial El Pez Soluble, 2006.

Duas mentiras. São Paulo: Edições Projeto Dulcinéia Catadora, 2008.

Sobras de Deus. Santa Catarina: Edições Nephelibata, 2008.

Teatro imposible. Trad. Marta Spagnuolo. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2008.

A alma desfeita em corpoLisboa: Apenas Livros, 2009.

Fuego en las cartas. Trad. Blanca Luz Pulido. Huelva, España: Ayuntamiento de Punta Umbría, Colección Palabra Ibérica, 2009.

Autobiografia de um truque. São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2010.

Delante del fuego. Selección y traducción de Benjamín Valdivia. Guanajuato, México: Azafrán y Cinabrio Ediciones, 2010.

Abismanto [com Viviane de Santana Paulo]. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

O livro invisível de William Burroughs. Natal: Sol Negro Edições, 2012.

Lembrança de homens que não existiam [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2013.

Em silêncio [com Viviane de Santana Paulo]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Overnight medley [com Manuel Iris]. Trad. ao espanhol (Juan Cameron) e ao inglês (Allan Vidigal). Fortaleza: ARC Edições, 2014.

O sol e as sombras [com Valdir Rocha]. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

A vida inesperada. Fortaleza: ARC Edições, 2015.

Circo Cyclame [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

O iluminismo é uma baleia [com Zuca Sardan]. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Espelho náufrago. Lisboa: Apenas Livros, 2017.

A grande obra da carne. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Tabula rasa [com Valdir Rocha]. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Antes que a árvore se feche (poesia reunida). Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Tríptico da agonia [com Berta Lucía Estrada]. Fortaleza: ARC Edições, 2021.

Las mujeres desaparecidas. Santiago, Chile: LP5 Editora, 2021.

Un día fui Aurora Leonardos. Quito: Línea Imaginaria Ediciones, 2022.

El frutero de los sueñosWilmington, USA: Generis Publishing, 2023.

Sombras no jardim. Fortaleza: ARC Edições, 2023.


 

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024 

 


 



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