quinta-feira, 6 de abril de 2023

PROPRIEDADE IMAGINÁRIA | Galeria virtual


 


A data era imprecisa ou simplesmente ilegível. Circundei com a ponta da faca o corpo que estava no centro da foto. Era quase um desenho em suas linhas certeiras. Daria uma boa composição colado sobre uma pedra esverdeada. Imaginei que poderia expandir-se como uma nuvem fumando seu cachimbo, beliscando a nervura da tarde. Quem pensaria em fumar uma pedra verde-musgo com um cadáver inadvertido dessa nova imagem que ia se formando a cada baforada? A tarde deveras chamava para si os prismas da fumaça e a irritação de meus olhos. Seria mesmo impossível identificar a data, mas a esta altura já não importava tanto saber o que o tempo fez de si para que uma cena fosse se ocupando de outra. Talvez fosse este o mistério da colagem. O inesperado agradecimento que deixamos escapar à metáfora invisível que nos reconforta com a realidade. Sim, o cachimbo evocava uma realidade e um coro de eunucos soprava a cortiça para o interior da garrafa de vinho. Talvez fosse a hora de recordar um pouco Max Ernst: Oh deusa querida, acaricia-me como bem sabes fazer, na inesquecível noite em que… nós estávamos certos de que a novena de eunucos pintaria o céu sem tropeçar nas nuvens. Max tinha um carrossel para cada assimilação de ventanias nos cabelos de sua amada. Uma delas chegou a lhe prometer: Vou trazer uma dúzia de toneladas de açúcar. Mas não toque no meu cabelo. Os tecidos reconfigurados com que os lugares poderiam passar a ser melhores. Max os tinha. Talvez guardados em baús com plaquetas de títulos enganosos. Max soube reescrever todo o enigma e a criação da luz em Gustave Doré, até que as suas belas dançarinas estivessem completamente exaustas. Oh deusa tão querida, as formas pareciam as mesmas, mas foram coladas de modo tão divergente em Blake, Doré, Ernst, que os carvões já sabiam o endereço certo de cada linha. As gerações acabam por perceber que as expansões são erráticas, e os escalpes amontoados em um quarto escuro não projetam o ressurgimento de uma velha tribo dizimada.


Eu devia ter algo em torno de uns sete anos e uma bem diversificada coleção de gibis que meu pai semanalmente me comprava. Lendo as desoladas páginas de uma índia cavalgando em um altiplano, enquanto falava com seus mortos, pensei em tirá-la dali e então cuidadosamente recortei sua figura. Creio que funcionou ao contrário do que imaginei, o espaço começou a ser preenchido por um corredor extenso, com uns cinco passos de largura, muitos quadros nas paredes, como se fossem efeitos de uma memória implantada, guiada por um gatilho que me fazia saltar de um móvel a outro, a mobília para mim irreconhecível, até o ponto em que uma senhora se aproximou e me disse chamar-se Toshiko Okanoue. Um homem alto a acompanhava, em terno completo, a cabeça de um abutre com os olhos furados. Um cão negro bebia o óleo de uma bacia cujo fundo era um relógio. Toda a cena parecia propagar uma melancolia incomum. O corredor era o da casa de minha avó materna. Os quadros nas paredes sempre estiveram ali, porém eram naturezas mortas tradicionais, e não um cortejo de metamorfoses que mais pareciam adentrar do que sair das molduras. Quando toquei melhor algumas obras de Toshiko aprendi que a superfície mais hipnótica de uma colagem é aquela em que o enigma está recortando seus detalhes, formando uma nova concepção de abismos e situações. Não se trata de um apanhado de conjunções dissimiles ou opostas, não é um jogo de oposições, mas antes a sensação de que a realidade pode ser munida por afinidades insuspeitas. Os sonhos de Toshiko Okanoue eram um prato de mutações, mapa de acidentes que condensavam a realidade à volta de outros sonhos. Talvez por esta razão a figura da índia cavalgando que eu recortei fosse buscar outros corpos iguais aos seus, dispersos pelas paredes, convidados por Toshiko a pressentir uma nova quimera nas asas miraculosas do silêncio.

Era preciso tirar aquele pássaro negro da foto, talvez com um tiro ou uma tesoura. A imagem abolida dará lugar a uma mudança de estação ou buscará compensação em outra ideia. Uma sombra pode penetrar bem fundo em seu vazio e dali extrair um outro símbolo. Mas o que deveria sair da imagem não era tão simples como o efeito de um objeto perdido. Talvez se pudesse pensar no recurso de preparação de cena. Quando fosse noite eu poderia recortar as partes mais escuras e depois fazer com elas uma caixa preta repleta de segredos à espera de um acidente. Os papéis recortados poderiam assim inventariar a fortuna e o desvario de uma distinta precipitação da realidade. Jorge de Lima e Enrique Molina, o modo como ambientavam seus recortes, fricções ágeis entre a cola e as sombras dos papéis. O mistério à espera de uma participação oportuna em cena. As chances seriam dadas pela observação de outros mundos. Um mundo de esferas tumultuadas e feras repetidas à exaustão. Os cabelos de Max Ernst, o expediente generoso de sua imaginação, o melhor para estrangulá-los, meus filhos, parecia dizer a tantos tributários, que pareciam haver copiada a frase: Meu lugar será sempre aos pés de um criador misericordioso, enquanto o que se lia, uma vez mais seguros de se tratar de uma fala de seus cabelos, era: Sonhar, vestir, balbuciar nos dias de doença. A poesia de Jorge e Enrique possuía a vertente porosa de uma expressão que fundava em si mesma, rio renascido no próprio leito, a vitalidade de ousada permanência além da realidade. Essa força teatral de florescimento de mil formas de ser é o que Max conseguiu através da colagem. Se fazemos passear juntos suas colagens e os poemas dos dois outros, veremos que sabem decantar a intimidade do olhar, abrigando as passagens mais secretas que nos conduzem de um mundo a outro. Porém são, ao mesmo tempo, tão distintas entre si, que é impossível guardar segredo desses elegantes realces.


De outra longínqua esfera, o horizonte submerso em si mesmo, a fundura náutica do deserto, o oceano enturvado da imaginação, lá desse confim de um mistério maravilhado, vinha aquela que talvez seja a ponta mais fina da revolução surrealista no âmbito da colagem, esse mundo aparentemente extraviado que encontramos na tesoura de Ludwig Zeller e que é capaz de transformar o sonho, ou como ele próprio sempre cuida de nos recordar, a cada imagem: a vida é tão-somente a pele de uma miragem. Quantas vezes viajamos pela perene oportunidade de outros sonhos quando nos deixamos tocar por suas colagens. E quando lemos seus poemas o encantamento se multiplica porque descobrimos que é a mesma fonte, a mesma intensidade ou consciência do olho, o que desejamos decifrar em sua lupa. Como um peregrino que recorta as sombras do sol desmembradas sobre nossos passos na terra, o caminho solitário do mágico cruzando o deserto, os personagens dessa imensidão que a todo instante nos diz: Concentrando a mente aparece a paisagem. Se fosse o caso eu confessaria que esse banquete de maravilhas que Ludwig Zeller realiza, mais do que no poema ou na colagem, na alta temperatura com que funde os metais de sua imaginação, sim, eu confessaria que foi ele o propiciador de meu calendário de excessos, do barco ébrio de minha criação.

Quando o homem tem bem dentro de si uma mulher é que ele pressente o quanto a realidade é incompleta. Dois corpos se arrastam pelo interior um do outro buscando uma causa para suas consequências. Talvez a vida fale mais alto ao sublinhar as ausências, talvez seja este o modo dela dizer que todas as formas tendem à imitação. Quando tenho uma imagem recortada bem colada dentro de outra, também aí vislumbro que novas formas cobrem seu lugar em uma simples mudança de ângulo. A colagem acaba por gerar uma outra e igualmente incompleta realidade, onde sou tudo o que colo em mim, até mesmo as mais inadvertidas causas. Incompleta ou não, diante da metamorfose resultante de uma colagem jamais nos indagamos que sentimento ela tem acerca de sua nova vida. A realização do olhar desconsidera a razão de ser do objeto exibido. Digamos que seja uma mulher com seis pares de braços e uma cabeça de serpente, a fascinação exercida por essa imagem não vem dela e sim de quem a contempla. A realidade advém dessa estranha forma de divinização que aplicamos a ela. 

O quarto estava inteiramente despido de si. Nem porta ou janelas, cortina ou tapete. Sem luz ou móvel algum. Como um cubo em completo despudor. Rosália sabia o que fazer, passear a sua nudez na escuridão e em silêncio, movendo-se e retorcendo o corpo de todos os modos que a dor e a imaginação permitissem. O clique da câmara abria a bocarra do flash que engolia a carne do acaso dos movimentos dessa mulher. Seu corpo ia sendo criado através de inúmeros fragmentos e quanto mais incompletos mais reverenciavam uma paisagem multiplicada em si mesma. Quando fomos passar as fotos para o computador pude verificar a ousadia crescente com que ela foi tingindo seus movimentos de um voraz erotismo, tocando-se, abrindo-se, contorcendo-se como um molusco que aprendera a lidar com sua sexualidade. Aquelas fotos seriam o princípio de formação de uma nova matéria. A partir delas surgiriam os ovos cujas cascas uma vez rompidas dariam passo a essa realidade inimaginável. A colagem é um salto na imensidão agônica de uma ausência de significado do mundo já existente. É possível dever a ela a felicidade do encontro de novo significado. Mas essa celebração se verifica em qualquer forma de criação artística. Assim como é colagem, sob certo aspecto, tudo o que deslocamos de um ambiente para outro em nossa visão de mundo, de modo que esse deslocamento se realize na música, no teatro, na dança etc.

Ao final do dia a garrafa vazia vivia seu pior dilema. Todas as fotos haviam sido recortadas e o que elas agora tinham a dizer era bem diverso da imagem fixa de sua memória. Era possível até mesmo sobrepor objetos, revirando a casa, dando novo endereço ao acaso. Como quem recortasse os dias em um calendário para com eles dar início a uma biografia repleta de incertezas. Os dias escolhidos ao acaso talvez até coincidam com os interesses da memória, mas podem sintonizar uma nova perspectiva de extravio. O personagem que permita sortear desse modo o próprio destino decerto saberá entender que as partes faltosas são como veias dissecadas ou visões esquecidas em um simples piscar de olhos. Um dia conversando com outro artista, eu lhe disse: O problema (não é para mim um problema, já saberás) é que a forma como fui talhando a essência de meu pensamento, essa profundeza de uma síntese, não me permite a utilização de espaço demasiado para dizer o que tenho a tanto. Talvez eu devesse voltar à narrativa encontrada por Max Ernst para contar uma história através da colagem, e não para ilustrar o texto com a imagem. Em um livro como Rêve d’une petite fille qui voulut entrer au Carmel (1930), a impressão que temos é que se algo atua como elemento ilustrador é o texto, um texto, é bom que se diga, que poderia estar ausente de suas páginas sem comprometer a fiação do caso. Talvez eu devesse retornar à tesoura, à cola, à lupa, ao modo como comecei a lidar com a colagem, com a obsessão discreta de um miniaturista, que procurava as fontes de expansão da imagem em sua entrada cada vez mais aprofundada em si mesma. Quando comecei a recortar livros abertos e a inserir no interior de suas páginas as visões minúsculas de uma realidade alheia à sua incompletude, que ia tocando cada objeto e o convertendo em outra forma, ou simplesmente em outro modo de olhar a si mesmo.

As minhas gavetas, caixas encontradas em tamanhos variados, eu as fui viciando em miúdas fontes descompassadas, como pedaços de corpos de diminutas bonecas, de pano ou plástico, desejosas de entrar em uma espécie de castelo das naturezas mortas. Oi pequeninos, o que vocês acham que poderão ser amanhã? Eu bem poderia cedo pela manhã indagar isto àquela inconsciente relíquia. A natureza, a outra, a incompleta e que se imagina viva, à qual julgamos pertencer, me havia viciado a ver o mundo desfigurado, despedaçado, como se eu houvesse instalado um par de tesouras em meu olhar. Será sempre assim quando criamos? De algum modo, com o tempo, os meus pequeninos foram se cansando de mim. As silhuetas bem-humoradas de Hans Arp, as caixas de Joseph Cornell que projetavam o mundo em seu interior, o recenseamento do absurdo na multiplicação infinita de seres em Peter Blake, esse mundo que ia produzindo suas sombras entre a pintura, a fotografia, o objeto, que ia me visitando e apaixonando anos a fio… Mesmo assim, os meus pequeninos acabaram conhecendo a solidão no interior de suas câmaras de madeira ou papelão. Durante algum tempo a colagem deixou de me interessar até a descoberta de um motivo: os meus fantasmas queriam para si um corpo que eles pudessem identificar como sendo seu integralmente, uma ilusão de que poderiam habitar o mundo sem a menor sombra de semelhança com outros. O primeiro plano dessa descoberta me levou a compor um acervo fotográfico próprio que eu poderia recortar e moldar a novos ambientes inevitavelmente incompletos. Somente ao encontrar um segundo plano é que acabei por entender que os meus novos pequeninos poderiam ser espíritos, espectros, prenúncios de uma imagem que somente nasceria de um gesto amoroso, o da sobreposição de desejos.

De volta à pequenina de Max Ernst, Marceline-Marie, quando lhe diz: Aqui na minha mão, pai, está a faca da suprema vicissitude, prudência, zelo e caridade. Meus companheiros receberam ordens para não gritar. Ao contrário, como eu não estava buscando um mosteiro, mas sim a entrada dos fundos de uma passagem para o inferno, com os motivos da imprudência e seus ardis devassáveis, as minhas imagens agora ansiavam por uma orgia que se prolongasse até a descoberta de um novo ser. Um corpo nu roçando uma pedra dura, o olhar revelado no íntimo de um tecido áspero, as flores carnudas do sexo brotando de troncos de árvores e margens de rios. Havia uma devassidão sem par que espreitava todos os encontros entre superfícies desejados pela beleza e a crueldade, o amor e a repulsa. Era preciso saber de tudo, que a consciência é má e pode nos enganar a todos, que os tolos só se aliviam porque lhes foram negadas a lucidez, que estamos condenados a desaparecer no vazio do hábito. A luz não era mais eleita em face da escuridão. As virtudes haviam perdido lugar no proscênio. Era preciso apenas escapar do enfado da existência. A lei, a moral e os relógios haviam sido demitidos. A partir daí criei extensas séries fotográficas, intituladas “Sombras raptadas”, “Selva de peles”, “Cadernos de taras”, onde o desmedido era a tática eficaz para recuperar o sentido perdido da criação. Um novo choque de ilusão, se me permitem.

Talvez existisse uma estranha linha sutil em que o sentido procurasse apoiar-se. Um simulacro de formas não resistiria por muito tempo se não desse a cada aparência um motivo que fosse interpretado como a chave para livrar o mundo dos repetidos truques da escuridão. O artista e sua obsessão pelo missionário. A serpente e sua memória viciada em paraísos. Quem quebraria essa corrente? Era preciso descrer no mito. Fragmentar o caos até que ordem alguma mais fosse possível. Jamais esperar que o hábito das pedras refaça o caminho. O baile dos vestidos no bosque fantasma. As caixas vazias de sapatos caminhando pela casa. Talvez os temas fossem possuídos por suas formas. Ou talvez os contornos se excitassem até que o papel assumisse uma vazante de identidades que extrapolasse qualquer sentido. As sobreposições permitiam uma colagem abstrata onde jovens corpos pareciam sair do fundo de um lago. Não seria possível conservar ordem alguma, porque o olhar não fazia perguntas, se mostrava sempre como uma porta cujo abrir e fechar era motivo suficiente para a multiplicação do inesperado. O olhar queria ser encontrado e mesmo apropriado por essas imagens. Eu queria uma colagem distinta daquela que tanto admirava nas páginas de Robert Rauschenberg ou Deborah Roberts ou John Baldessari. Não me interessava o pano de fundo dos dogmas, as vertigens implantadas dos blefes sociais, os disfarces de sonhos insuflados. Eu tinha, tenho ainda, aquela única certeza de Ionesco, de que ao final de tudo apenas o assombro permanece. E com ele eu repeti tantas vezes: De repente, a luz fraca de uma esperança insensata: o dom da vida nos foi dado, "ninguém" pode recomeçar. Não sei bem o que isso significa. Não o sei, em absoluto.

Por essa época duas novas abordagens começaram a me interessar: a supressão da realidade e uma mutabilidade narrativa. No primeiro caso o desafio estava em copiar da realidade as suas gradações perdidas, coladas umas sobre as outras, como um palimpsesto, até que essa mecânica assumisse a forma de uma realidade imaginária. Uma cidade feita dos elementos em abandono, das coerências esquecidas, das relações profundamente enterradas. Somente a radicalização desse mundo desconhecido permitiria o alcance das placas mais subterrâneas do imaginário. Tal iluminação não encontraria pretexto para mostrar-se visível se não fosse levada a conhecer os efeitos de uma reconstituição teatral do inesperado, a fonte do risível, os fundos falsos de uma certeza de si mesma. A partir daí comecei a trabalhar em uma série de máscaras, capas de discos e cartazes de cinema, um vetor de novas perspectivas ao encarar o que somos e fazemos, o ser e a criação. Seria aquele caso de alguém que dispara a arma contra o peito de seu reflexo no espelho, sem temer, em momento algum, a fatalidade de seu ato. Ou daquele outro que explode uma bomba na sapateira em seu quarto certo de que jamais perderia os pés. Alguém poderia lembrar a temperatura elevada em que as coisas se revelam. Sim, é isto. Deixar de lado o jogo das predisposições. Não prometer ir à rua atirando a esmo nas pessoas. Atirar em si mesmo, infinitamente, até descobrir-se outro. Foi nisto que pensei ao compor a minha tríade imaginária: os rostos, a música, as marcações cênicas. Não é outra a totalidade do assombro: o que vemos, ouvimos e o modo como nos expressamos no mundo.

A outra abordagem veio de uma exigência natural da imagem tridimensional. A curiosidade de sondar o encontro entre a assemblagem e a página-roteiro de um gibi. Volta à infância, pois era algo disto que eu fazia ao recortar os personagens das histórias em quadrinhos e com eles montar um teatro imaginário tridimensional. Certamente Jean Dubuffet se divertiria muito com aquele entreato infantil que viria décadas depois encontrar-se com a dúvida impressa em uma das páginas recentes: Deuses não descansam enquanto não os esquecemos. Não havia Dubuffet, Ionesco ou Hans Bellmer na minha infância; e, no entanto, como já estavam presentes! Como uma floresta (cuja miniatura poderia ser o quintal da casa dos pais, um bosque impenetrável de bananeiras e mamoeiros, cujas noites me aturdiam o espírito como um mistério querendo me excitar, dizendo que estava ali, que eu também poderia estar ali), uma floresta ao alcance de uma nova concepção. Se vai contar uma história, nunca se deixe enganar pela lógica perversa do tempo. A memória adora compartilhar seus pecados. Na página-assemblagem em que escrevi isto estava o foco daquela temperatura elevada que me assaltava a infância. Ao que parece da vida só sobrevive, em seu acúmulo ilusório, aquilo ao qual nos estreitamos com toda a determinação. O que Ionesco chamava de vitalidade prodigiosa. O grau mais alto do devaneio. Lendo a página seguinte a intuição se torna a forma alucinatória por excelência: Não importa o degredo, a barganha, o vexame da fórmula, o dialeto das cinzas. A verdadeira essência humana é um ideograma grafado no vazio. Quando me li, impressionou-me que não tenha escrito isto aos sete anos. Essa identidade informal da analogia, o mundo improvável onde cultivamos uma horda de problemas somente em busca de algo que justifique nosso fracasso por não os solucionar. O sonho nunca foi um impasse e sim o implante de vigílias que instalamos em nós como um enxame de promessas que sabemos jamais serão cumpridas. Deuses botam a comida no prato da noite, preparam as estações para a fúria das aventuras e as cicatrizes das mais finas ilusões. Eis o que fizemos de nossa vida: somos os senhores de nossas próprias ruínas.

Ao final de qualquer ciclo sempre poderemos ler a invisível tabuleta que garante que somos uma colagem ofertada ao fracasso de tudo o que não compreendemos em nossa vida. Talvez o trabalho da intuição ainda tenha algo a nos revelar, porém criamos um vendaval daquilo que Bellmer chamava de percepção-enganosa. Somos a representação de nada. A prova de que a imaginação é uma deusa bastarda. Mal respiramos, pois tudo à nossa volta é irreparável. Houve época em que acreditávamos que o artista possuía um valor espiritual maior do que a pessoa comum. Não creio mais que tal crença possibilite a impressão de uma nova intensidade no mundo. 

 

 



PROPRIEDADE IMAGINÁRIA

Galeria Virtual | FLORIANO MARTINS

 

1990-2012 A IMAGEM E A SEMELHANÇA Entrevista com Floriano Martins

1998-2023 TRAJETÓRIA DE UM CAPISTA (seleção) Texto de Maria Estela Guedes

2010-2014 SÁTIRA DE ESPELHOS  Texto de Carlos M. Luis

2011 NA MÃO DE ADÃO CABEM TODOS OS SONHOS Texto de Jacob Klintowitz

2012 PERMANÊNCIA DA REALIDADE

2013 SOMBRAS RAPTADAS Texto de Berta Lucía Estrada

2014 BRONZE NO FUNDO DO RIO Texto de Mía Gallegos

2014 CINEMA IMAGINÁRIO Texto de Floriano Martins

2014 MÁSCARA IMAGINÁRIA Textos de Floriano Martins e Nicolau Saião

2014 MÚSICA IMAGINÁRIA Texto de Floriano Martins

2015 A MOBÍLIA VIOLENTA DO FOGO Texto de Leila Ferraz

2015 A EXPRESSÃO DO LAMENTO 

2016 CIRCO CYCLAME

2016 LÁBIOS PINTADOS DE AZUL Texto de Aglae Margalli

2017 OSSOS DO ESPÍRITO 

2018 SELVA DE PELES Texto de Elys Regina Zils

2023 O CEGO IDEALISTA Texto de Wasily Kaplowitz

2023 A ÚLTIMA LINHA CAPAZ DE DEVOÇÃO Texto de Maria Lúcia Dal Farra

 

 

Poeta, tradutor, ensaísta, artistas plástico, dramaturgo, FLORIANO MARTINS é conhecido por haver criado, em 1999, a Agulha Revista de Cultura, veículo pioneiro de circulação pela Internet e dedicado à difusão de estudos críticos sobre arte e cultura. Ao longo de 22 anos de ininterrupta atividade editorial, a revista ampliou seu espectro, assimilando uma editora, a ARC Edições e alguns projetos paralelos, de que são exemplo “Conexão Hispânica” e “Atlas Lírico da América Hispânica”, este último uma parceria com a revista brasileira Acrobata. O trabalho de Floriano também se estende pela pesquisa, em especial o estudo da tradição lírica hispano-americana e o Surrealismo, temas sobre os quais tem alguns livros publicados. Como artista plástico, desde a descoberta da colagem vem desenvolvendo, com singular maestria, experiências que mesclam a fotografia digital, o vídeo, a colagem, a assemblagem e outros recursos. Iniciou seu percurso com colagens, algumas das quais para capas de seus livros e de outros autores. Em 2011 o crítico Jacob Klintowitz foi o curador de sua primeira individual, em São Paulo, toda ela montada a partir de suas fotografias digitais. A segunda individual foi em 2016, no Centro de Estudos Brasileiros, da Embaixada do Brasil na Costa Rica. A esta altura já havia inscrito algumas de suas obras na galeria Saatchi Art: https://www.saatchiart.com/florianomartins, bem como criado uma soma valiosa de capas de livros. Propriedade imaginária é uma galeria desenvolvida como espaço paralelo dentro da Agulha Revista de Cultura, a partir de uma ideia do próprio Floriano Martins que jamais foi realizada, Museu imaginário, documentário baseado na construção de maquete de um museu em miniatura que abrigaria toda a sua obra plástica. 



  

 

Agulha Revista de Cultura

Criada por Floriano Martins

Dirigida por Elys Regina Zils

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/

1999-2024


 

 

 

  

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