quinta-feira, 22 de julho de 2021

AGULHA REVISTA DE CULTURA # 176 – julho de 2021

  

• EDITORIAL – O ESPÍRITO NATURAL DA RESISTÊNCIA

 


Uma nova edição da Agulha Revista de Cultura e uma vez mais os nossos sinais de resistência, sem maior alarde, porque resistir é um estado natural do ser. Revistas de cultura em muito se fundamentam por expressarem essa conquista da resistência, apresentando ao leitor uma cartografia do impossível. Uma dessas revistas teve, em sua época, a força espiritual de João Cabral de Melo Neto como sua baliza essencial. Trata-se de O cavalo de todas as cores, surgida ao final dos anos 1940. Nosso editorial reproduz um artigo de Ricardo Souza de Carvalho que narra a gênese dessa rara publicação. A presente edição se faz ainda acompanhar de outro intenso sinal de resistência, uma série de desenhos criada por Susana Wald em 2016 para acompanhar uma edição do livro Au féminin, de Guy Cabanel, publicado pela Editorial Sonámbula, em Montreal. Susana Wald conversa comigo sobre seu diálogo com o editor Enrique Lechuga: Enrique me pidió cinco o seis ilustraciones, pero cuando vi los poemas me entusiasmé e hice ilustraciones para todos. Los dibujos se pueden conectar puestos lado a lado como una especie de cadáver exquisito, una referencia a un juego que practican los surrealistas y muchos niños del mundo. Eso da una extensa obra de varios metros de ancho. Fueron expuestos de esa manera en marzo de 2020 en la Galería Xicoténcatl de Oaxaca. A série soma 50 desenhos, que os reproduzimos em sua quase totalidade em nossa presente edição.

 

Os Editores

 

RICARDO SOUZA DE CARVALHO | O cavalo de todas as cores. Uma revista editada por João Cabral de Melo Neto

 

Desde o início de sua excursão pela tipografia com sua minerva na Barcelona de 1947, o poeta diplomata João Cabral de Melo Neto idealizava uma revista. O primeiro registro está em carta sem data a Clarice Lispector, quando tentava suas primeiras impressões, com o seu Psicologia da Composição:

 

Estou em entendimento com o Lauro Escorel - e este com o Antonio Candido, de S. Paulo - para fazermos uma revista trimestral, chamada ANTOLOGIA (dístico: PLUS ÉLIRE QUE LIRE, Paul Valéry). Será uma revista minoritária, de 200 exemplares, distribuída a pessoas escolhidas pelos diretores. Não terá programa formulado, não dará bola à chamada vida literária, não terá seções, nem de cinema, nem de livros, nem de nada. Qualquer coisa fora do tempo e do espaço – um pouco como nós vivemos. O fim verdadeiro da revista será o de começar a escolher o que presta de todos nós. Qualquer coisa como um balanço de antes do fim de ano, um balanço dos fevereiros que nós todos somos. Que acha Você? Um momento, pensei em fazer uma revista para os escritores brasileiros de fora do Brasil. Mas um certo aspecto Itamaraty dessa ideia me fez deixá-la em quarentena. Gostaria que V. nos mandasse – se é que o Lauro já não as solicitou – suas sugestões, e – coisa que seria ótima – que considerasse a possibilidade de figurar como um dos diretores (aliás, em vez de diretores, podíamos declarar: ESTA REVISTA É PUBLICADA POR: a) b) c), etc.). O cargo não lhe daria grandes trabalhos nem a distrairia grandemente de seu trabalho. Você compreenderá que numa revista chamada ANTOLOGIA o trabalho de diretor é um trabalho de escolhedor. Diga se quer ser um dos ESCOLHEDORES.

A revista será impressa por mim, aproveitando minha máquina e as delícias do câmbio. Esperamos ter um número pronto – no mais tardar – em março” (in Sousa, 2000, pp. 290-1).

 

Em carta de 17 de fevereiro de 1948, foi a vez de Manuel Bandeira ser comunicado da edição de Antologia. Se por um lado Antonio Candido ainda não respondera se aceitava o convite de dividir a direção com Cabral e Lauro Escorel, por outro já havia colaborações para o primeiro número: “[…] a) um ensaio de Antonio Houaiss sobre o vocabulário de Carlos Drummond de Andrade; b) 'El alejandrino en la poesía castellana del presente', nota e antologia de um rapaz daqui; c) 25 tankas de Carles Riba, o melhor poeta catalão vivo, traduzidas por mim […]” (in Süssekind, 2001, pp. 60-1). Como Antologia não saiu logo, três dessas tankas traduzidas ao português foram publicadas no número 16 da revista Ariel, de Barcelona, em abril de 1948, com apresentação de Joan Triadú intitulada “Brasil i Catalunia”.

O lançamento de Antologia não se concretizava, fazendo com que Cabral pensasse em recuperar um projeto anterior com os amigos no Rio de Janeiro, como propõe a Carlos Drummond de Andrade em carta de 9 de outubro de 1948: “[…] Agora que posso imprimir de graça, por que não fazemos aquela revista que planejamos  você, Vinicius e eu?  e para cuja discussão até nos reunimos uma tarde no M. da Educação?” (in Süssekind, 2001, p. 228).

Diante de mais uma ideia que não vingou, Cabral, em carta a Clarice de 15 de fevereiro de 1949, quando divulgava suas traduções de “Quinze Poetas Catalães” na Revista Brasileira de Poesia, comenta que deseja um veículo mais específico, um periódico para divulgar a cultura catalã no Brasil: “[…] Tenho planejada agora, com alguns amigos catalães, uma revista clandestina catalã brasileira. Não sei bem como será. Mas desde que a polícia fechou a que eles publicavam aqui, quero fazer alguma coisa de propaganda da cultura deles junto aos intelectuais brasileiros” (in Sousa, 2000, p. 295). A revista proibida chamava-se Algol, que conheceu um único número no final de 1946, dirigida por Joan Brossa, Arnau Puig e Antonio Tapiès. Esses jovens, mais Modesto Cuixart, Joan Ponç, Joan-Jospe Tharrats e Juan Eduardo Cirlot, criaram em 1948 a revista Dau al Set, nome pelo qual ficou conhecido esse grupo de artistas de vanguarda, um dos mais importantes do pós-guerra na Espanha. Para eles Cabral tornou-se uma referência decisiva ao discutir o papel social da obra de arte, mas sem abandonar a preocupação estética.

Em carta de 15 de setembro de 1949, Cabral anuncia a Bandeira o que poderia ser mais uma ideia de periódico que não saía do âmbito das cartas: “Também tenho em projeto uma revista: 'O cavalo de todas as cores', impressa por mim e dirigida pelo Alberto Serpa e por mim” (in Süssekind, 2001, p. 104). Mas o poético título ganhou forma em seu primeiro e único número de janeiro de 1950, ao que tudo indica, sugerido pelo texto em prosa de José Régio, “Poesia”, estampado nesse número, que assim termina:

 

[…] Mas à Poesia como Poesia, ao alado Cavalo furta-cores que, para se atirar às estrelas, escava as raízes e faz espinchar tanto a água das fontes como a dos charcos, – não lhe ponham antolhos que lhe não pertencem! não lhe deem rédeas que não aceita. Porque o seu tempo próprio é a Eternidade, o seu espaço a Imensidão, o seu fim o Absoluto.

 

Esse fragmento pode ter servido de ponto de partida para a ilustração da capa, a cargo de Francisco García Vilella, pintor em início de carreira em Barcelona apoiado por Cabral, que lhe encomendara as 11 ilustrações que acompanham as traduções de poemas de Baudelaire por Osório Dutra, Cores, Perfumes e Sons, editadas pelo Livro Inconsútil em 1948.


O trabalho de impressão da revista demorava, como compartilha com Vinicius de Moraes em carta de outubro de 1949:

 

Estou agora imprimindo a revista: um poema do português P. Homem de Melo, sua 'Bomba atômica', umas coisas catalãs e uma de Alberti, não mandadas por ele, mas escolhidas aqui. A coisa vai indo lenta: o meu ensaio sobre Miró que estão editando aqui me esgota completamente – ao fazer a revisão de provas (in Moraes, 2003, p. 163).

 

Vale lembrar que a colaboração de Alberti não se confirma no número de janeiro de 1950. [1]

Por um lado, O Cavalo de Todas as Cores segue a configuração dos demais “livros inconsúteis”: pequena dimensão (22 x 14,5 cm) e folhas soltas formando cadernos a partir das colaborações. Por outro, recupera a proposta da Antologia comentada nas cartas: revista trimestral de “tiragem limitada a 200 exemplares”, trazendo uma seleção de textos, sem seções ou informações atuais. A poesia predomina, não apresentando nenhum programa ou estética comum. A diversidade da origem dos autores – Brasil, Portugal e Espanha – abarca um universo ibero-americano, em português, espanhol e até um pouco de catalão. As duas colaborações portuguesas – as “Nove Canções Católicas”, de Pedro Homem de Mello, e “Poesia”, de José Régio – provavelmente chegaram por intermédio do conterrâneo Alberto de Serpa. As outras três refletem as amizades brasileiras e espanholas de Cabral.

Embora as propostas poéticas fossem muito diferentes, Cabral e Vinicius não deixaram de ser amigos. [2] Além da primeira publicação do poema “Bomba Atômica” em O Cavalo de Todas as Cores, O Livro Inconsútil editara Pátria Minha e a tradução ao espanhol por Alfonso Pintó de “Elegía al Primer Amigo” para a Antología de Poetas Brasileños de Ahora, ambos do final dos anos 40.

Quanto aos espanhóis Rafael Santos Torroella e Enric Tormo, estavam entre os grandes contatos de Cabral durante sua estada em Barcelona como diplomata de 1947 a 1950. Torroella, importante crítico e promotor da arte moderna, estreara na poesia com o volume Ciudad Perdida (1949). Em O Cavalo de Todas as Cores, “Cuatro Poetas”, mestres da poesia moderna espanhola, merecem quatro poemas: Miguel de Unamuno, Antonio Machado, Federico García Lorca e Miguel Hernández. Os três últimos integram as preferências de Cabral na literatura espanhola; inclusive escreveu sobre Hernández o poema “Encontro com um Poeta” de Paisagens com Figuras.

Também em Paisagens com Figuras, aproximou-se de Enric Tormo no poema “Paisagem Tipográfica”. Tipógrafo que colaborou com Joan Miró e o grupo Dau al Set, Tormo foi o braço direito para que Cabral se tornasse o impressor da coleção O Livro Inconsútil. O seu pequeno texto que encerra O Cavalo de Todas as Cores, “Xilografía Popular en Cataluña”, é acompanhado pela reprodução de 15 gravuras do século XVIII de sua coleção particular, das quais duas aparecem na portada dos livros Acontecimento do Soneto, de Ledo Ivo, e Sonets de Carnuixa, de Joan Brossa, impressos por Cabral.

Com a transferência para o consulado geral de Londres, em 1950, Cabral interrompeu a impressão de O Cavalo de Todas as Cores e dos exemplares de O Livro Inconsútil. No entanto, a ideia de um periódico ainda não o abandonou. Ao ser nomeado primeiro-secretário da embaixada brasileira em Madri, em 1961, estimulou a criação de uma revista que divulgasse a literatura e cultura brasileiras na Espanha. Surgia assim a Revista de Cultura Brasileña, dirigida pelo poeta Ángel Crespo, de 1962 a 1970, que veiculou, principalmente, estudos e traduções para o espanhol da poesia moderna brasileira, dando a conhecer as últimas tendências, como a poesia concreta, ainda inovadoras naquele contexto para o leitor espanhol.

Raridade bibliográfica como os outros impressos de Cabral, O Cavalo de Todas as Cores deve sair do limbo como testemunho de um período fértil em atuações no meio intelectual espanhol por parte do poeta de O Cão Sem Plumas.

 

NOTAS

1. Sobre o poeta espanhol, Cabral publicou o poema “Fábula de Rafael Alberti” em Museu de Tudo (1975). 

2. Cabral, além de dedicar Uma Faca Só Lâmina (1955) a Vinicius, escreveu os poemas “Ilustração para a 'Carta aos Puros' de Vinicius de Moraes”, de A Educação pela Pedra (1966), e “Resposta a Vinicius de Moraes”, de Museu de Tudo (1975). As cartas de Cabral encontram-se no acervo de Vinicius no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa Rui Barbosa. 


***** 

• ÍNDICE

 

ADALBER SALAS HERNÁNDEZ | Gladys Mendía y la poética del atisbo

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/07/adalber-salas-hernandez-gladys-mendia-y_22.html

 

ALCEBIADES DINIZ MIGUEL | Raimundo Lúlio e o Livro Móvel (Questões em torno da desintegração, formal ou conceitual, da narrativa)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/07/alcebiades-diniz-miguel-raimundo-lulio.html

 

ALEXIS ZALDUMBIDE | Veintidós libros para aporrear a la peste

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/07/alexis-zaldumbide-veintidos-libros-para.html

 

ANTÓNIO CÁNDIDO FRANCO | Três revistas ibéricas: A Ideia, Salamandra e Flauta de Luz

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/07/antonio-candido-franco-tres-revistas.html

 

ANTÓNIO LAGINHA | Antidança

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/07/antonio-laginha-antidanca.html

 

BERTA LUCÍA ESTRADA | Hasta ahora te creo, de Maribel Abello Banfi

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/07/berta-lucia-estrada-hasta-ahora-te-creo.html

 

CARLOS GARAYAR | César Calvo y la novela de Ino Moxo

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/07/carlos-garayar-cesar-calvo-y-la-novela.html

 

MADELINE CÁMARA | Henriqueta Lisboa: una poeta en el reino de lo intemporal

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/07/madeline-camara-henriqueta-lisboa-una.html

 

AGATHI DIMITROUKA | Bolívar, eres bello como un griego [Parte 4]

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/07/agathi-dimitrouka-bolivar-eres-bello.html

 

SUSANA WALD | Recuerdo de sus amigos: Arturo Schwarz (1924-2021) y Cruzeiro Seixas (1920-2020)

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2021/07/susana-wald-recuerdo-de-sus-amigos.html

 

 

 


 

Susana Wald

*****

SÉRIE PARTITURA DO MARAVILHOSO

 

ARGENTINA


BRASIL


COLOMBIA

CUBA

ECUADOR

EL SALVADOR

GUATEMALA

HONDURAS

MÉXICO

NICARAGUA

PANAMÁ

PERÚ



REP. DOMINICANA

URUGUAY

VENEZUELA

 *****

Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NA MESA O MUNDO NO PRATO

Número 176 | julho de 2021

Artista convidada: Susana Wald (Hungria, 1937)

editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com

editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com

logo & design | FLORIANO MARTINS

revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES

ARC Edições © 2021

 

Visitem também:

Atlas Lírico da América Hispânica

Conexão Hispânica

Escritura Conquistada

 



Nenhum comentário:

Postar um comentário