Originalmente publicada na revista eletrônica Balacobaco, setembro de 1998
RSL | Você acaba de lançar um livro de entrevistas com escritores
latino-americanos. Qual a importância de ouvir as vozes da poesia latino-americana?
FM | Trata-se de um livro de diálogos
com poetas latino-americanos. Este é o primeiro registro em livro de um encontro
assim tão amplo entre estes poetas. A maioria nem se conhece entre si, sobretudo
os brasileiros. Nosso conhecimento da poesia hispano-americana é grosseiramente
limitado. A razão de um diálogo não é exatamente a de se saber quem é o mais importante
ou quem antecede quem neste ou aquele assunto. O diálogo radica justamente na troca
de experiências. Trata-se tão-somente de ouvir o outro. Claro, esta audição implica
sempre um sentido crítico. No caso da poesia latino-americana, creio que a importância
maior de se ouvir essas vozes vem do fato de podermos descortinar um mundo até então
desconhecido. Reunir, como fiz, 24 poetas de dez países em um mesmo lugar de encontro,
cumpre o papel de apresentar ao leitor uma nova maneira de observar o fato poético
na América Latina. A partir daí é possível entender que esta poesia não se limita
àquelas circunstâncias mínimas equivocadamente delineadas pela crítica ou por nossa
falta de programação editorial.
RSL | O que não pode faltar em uma entrevista? O que busca
saber do entrevistado?
FM | Obviamente, uma comunicação fluida
entre as duas partes que a compõem. Uma entrevista falha quando o entrevistador
não possui uma carta de indagações ou quando o entrevistado desanda a esquivar-se
a todo instante. Enfim, quando não há compromisso, de um lado ou de outro, com a
integridade do diálogo. Evidente que há alguns casos de inexpressividade, mas não
é disto que tratamos. De minha parte, entrevisto pessoas a partir de um plano de
trabalho, de maneira que o que busco saber de um entrevistado é justamente sua relação
intrínseca com o que faz. Também busco uma cumplicidade na tessitura de um texto
final, de maneira que a entrevista (diálogo) resulte em uma espécie de ensaio a
quatro mãos.
RSL | Quanto tempo levou para realizar este seu trabalho? Quais
foram as maiores dificuldades?
FM | A publicação de Escritura Conquistada (Diálogos com Poetas Latino-americanos)
funciona como a primeira colheita de um largo plantio, que atravessa a contagem
de uma década. Ali há entrevistas realizadas entre 1988 e 1996. Contudo, antes já
realizara algumas outras não incluídas neste volume, assim como sigo preparando
novas. A intenção central é a montagem de um vasto painel crítico em torno da poesia
latino-americana em todo este século. Além das entrevistas, há o preparo paralelo
de duas outras instâncias: uma Antologia da Poesia Hispano-americana no Século XX
e uma seleção de ensaios sobre esta mesma poesia. Claro, a partir daí surgem inevitáveis
desdobramentos. Exemplo disto é o libreto Escrituras
Surrealistas (O Começo da Busca) (Fund. Memorial da América Latina. São Paulo.
1998) – um ensaio sobre o surrealismo na América Hispânica. Quanto às dificuldades
encontradas no preparo de Escritura Conquistada,
naturalmente contei com algumas inomináveis recusas por parte de poetas que não
quiseram ser entrevistados. Além disto, lamento a morte prematura do excepcional
poeta chileno Enrique Lihn (1929-1988), cuja entrevista seria algo indispensável
para este livro. Contudo, sua grande dificuldade foi de natureza editorial. O livro
passou por várias editoras, situação que me parece absurda, dada a indiscutível
sugestibilidade do trabalho em si.
RSL | Como foi o processo de escolha dos entrevistados para
o livro?
FM | Sendo um livro que vem a partir de
um projeto mais amplo de difusão da poesia latino-americana, a seleção de autores
entrevistados buscou tanto uma abrangência do maior número possível de países assim
como destacar a importância desses poetas no universo literário de seu país. Em
um primeiro momento, como já disse, reuni dez países. Agora estou trabalhando no
complemento deste painel iniciado em Escritura Conquistada. Cabe aqui uma digressão
interessante. Quando tive recentemente uma breve conversa com alunos e professores
na UnB, um professor nicaragüense indagou-me por qual razão havia incluído no livro
um “poeta de direita” como é o caso, segundo ele, de Pablo Antonio Cuadra. Disse-lhe
da absoluta inconsistência de seu enfoque, uma vez que não relevo a política e sim
a poética. Neste território sagrado é indiscutível a contribuição de Cuadra (1912),
que renovou todo um cenário literário em seu país, seja na poesia, no teatro ou
no ensaio.
RSL | Qual foi o entrevistado mais arredio? Teve alguma decepção?
Um poeta ou escritor que se revelou aquém de suas expectativas intelectuais?
FM | A leitura do livro mostrará que os
verdadeiros poetas não se furtam ao diálogo. Não há, portanto, nenhuma passagem
em que se verifique uma postura arredia. Conversamos claramente sobre os diversos
assuntos colocados em pauta. Tomei o cuidado de fazer com que, de alguma maneira,
todos participássemos do livro como um todo. Neste sentido, teci uma extensa rede
de citações, um entremeado de referências que iam ligando cada entrevista às demais,
repetindo propositadamente algumas indagações, buscando um entrelaçamento das diversas
opiniões, para que assim o livro tomasse uma consistência maior. Não houve, como
indagas, decepção alguma. O livro está repleto de notáveis satisfações. O crítico
espanhol Jorge Rodríguez Padrón me escreveu dizendo que tracei “um panorama da poesia
menos habitual, e portanto da mais necessitada de leitura”, completando: “para que
vejam os experts que nem tudo começa e acaba nos quatro de sempre”. Este feliz espaço
de comunhão, por assim dizer, não teria mesmo como permitir a decepção.
RSL | Qual a diferença de uma entrevista por e-mail ou carta
e a cara a cara?
FM | Não há diferença alguma. Tudo irá
depender sempre da postura das duas partes envolvidas. Evidentemente que há sempre
uma possibilidade de maior reflexão no texto escrito, ao contrário do imediatismo
da resposta falada. Por outro lado, há aqueles que defendem que no primeiro caso
se perde a espontaneidade. Não creio que o leitor sério esteja interessado apenas
na espontaneidade de uma entrevista. A mim interessa sobretudo a reflexão que ela
possa propiciar. Mas isto também se pode conseguir em uma entrevista ao vivo.
RSL | Os poetas têm espaço devido na mídia?
FM | Jamais terão. Há uma incompatibilidade
clara entre a Poesia e toda forma de massificação de valores. Nem creio que seja
exatamente a este tipo de situação que os poetas aspiram. Claro que tua pergunta
indaga mais sobre o reconhecimento público do trabalho poético. Mesmo aí, quando
observada melhor a circunstância em que se dão algumas evidências, compreendemos
que sua raiz não é justamente a do reconhecimento, mas antes a do manejo hábil com
a matéria em questão. De uma maneira geral, a mídia não pode mesmo esboçar reconhecimento
algum pela Poesia. Nem mesmo é esta sua tarefa usual. A Poesia implica concentração,
recolhimento, iluminação, ao passo que a mídia tem-se mostrado empenhada na dispersão
e distorção de valores, ou seja, é mero obscurantismo.
RSL | Qual é o melhor caderno cultural brasileiro?
FM | Seria irresponsável uma resposta
tão a seco, e nada traria de construtivo a essa discussão. Em um país imenso como
o nosso, devemos observar também aqui com uma lente mais ampla. Há os jornais que
circulam em todo o país, ao mesmo tempo em que aqueles de circulação restrita à
região em que atuam. Entre eles muitos possuem suplementos culturais. Cada um a
seu tempo, dentro das circunstâncias da empresa jornalística a que estão vinculados,
buscam realizar um trabalho digno. Para não deixar de mencionar nomes, posso citar
alguns destes suplementos: Pensar, do
Correio Brasiliense (DF), Cultura, do Jornal da Tarde (SP), Prosa &
Verso, de O Globo (RJ), A Tarde Cultural, de A Tarde (BA), Viver, do Diário de Pernambuco
(PE), Sábado, de O Povo (CE). Não há importância alguma em se discutir qual seja o melhor.
Antes importa assinalar que uma distorção conceitual entre cultura e entretenimento
faz com que alguns suplementos culturais mais se pareçam com os chamados cadernos
de variedades.
RSL | Quem é mais importante: o poeta Floriano ou o jornalista?
FM | Não existem essas duas figuras ou
quaisquer outras. Sou essencialmente poeta. Não sou jornalista de profissão. O trabalho
jornalístico (artigos, resenhas, entrevistas etc.) surge como uma opção de reflexão
crítica em torno da produção cultural de meu tempo.
RSL | Como surgiu o poeta? Quais são as suas influências?
FM | Poetas surgem do nada, de um mesmo
magma escaldante de onde surge todo artista. Da plenitude negra do mistério. Não
surgem essencialmente de textos ou desejos alheios, embora se alimentem de ambos.
São naturalmente a grande soma de todas as vertigens, porém só firmam sua voz ao
distingui-la das demais. Há um elo mágico entre o poeta e a biblioteca. Não a biblioteca
imaginária, mas antes a real, que é composta de suas leituras, de suas identificações.
Poetas herdam sempre algo de perdido. São uma invisível ponte entre as inúmeras
instâncias imperceptíveis do cotidiano. Pegam, escutam, cheiram, ouvem, veem. Claro
está que minha poesia encontra-se impregnada de todas as substâncias que compõem
os sentidos humanos. Posso particularizar algumas identificações – a exemplo das
canções interpretadas por Agostinho dos Santos, Dolores Duran ou Nat King Cole,
que meu pai ouvia durante minha infância; minhas leituras das tragédias de Shakespeare
e alguns romances de Dostoievski, sobretudo Crime e Castigo; ou mesmo a paixão que
me despertaram pouco depois as obras de Goya, Dürer, Velázquez, Brueghel e Bosch
–, mas a verdade é que essas identificações não funcionam em isolado, nem tampouco
podem dispensar a vivência humana, ou seja, o entremeado de sentimentos de que somos
feitos.
RSL | Como é o seu processo criativo?
FM | Já os poemas não surgem do nada.
Têm sua origem em algo bastante concreto: a busca de identificação do criador consigo
mesmo – isto evidentemente não quer dizer a tessitura de uma camisa-de-força da
egolatria – e não se realizam senão na condição de objetos de linguagem. Interessa-me
unicamente uma escritura de exceção. Não creio em arte de escolas, assim como desprezo
os epigonismos de toda ordem. Não se pode criar nada sem que se imponha alguns desafios.
Toda a discussão atual em torno de pós-isto ou aquilo não justifica senão uma debilidade
estética contagiante, o mesmo que essa obsessão pelo resgate de alguma instância
perdida. Passado ou futuro devem ser guiados por princípios mais sugestivos. O processo
criativo de um poeta não justifica a qualidade de uma obra de arte. Apenas ilustra
seu entorno. Há os que escrevem mascando cravo, os que se encharcam de uma droga
qualquer, os obsessivos pela realidade, aqueles cuja pena é movida unicamente pelas
desventuras amorosas, os que não dispensam a presença de um metrônomo etc. Tudo
isto ajuda a compor a mitologia em volta do poeta. Não mais que isto.
RSL | Você vive de literatura. Conte-nos um pouco.
FM | Francamente, não sei de onde se tirou
esta ideia. É verdade que não tenho uma profissão paralela (funcionário público,
professor de curso de letras, redator publicitário etc.), porém crio uma série de
afluentes que ajudam a regar o trigo e a cevada. As opções foram por instâncias
que funcionassem como desdobramentos de um universo poético já bastante definido.
A partir daí firmam-se os trabalhos de pesquisa, as traduções, os ensaios, os textos
críticos para imprensa etc. Porém este conjunto de ações implica uma série de riscos.
O mais acertado, ao menos no momento, seria dizer que estou vivendo de riscos.
RSL | Os grandes polemistas morreram. A polêmica morreu. Faz
falta?
FM | Não creio nesses obituários inconsequentes.
É claro que estamos nitidamente enfrentando uma entressafra, sobretudo de valores.
Ao mesmo tempo, somos avassalados por alguns impérios parasitas de meros catalogadores
de plantão. A polêmica pertence ao reino do diálogo e não da exposição barata de
preconceitos ou à vulgaridade da espetacularização das fraquezas humanas. Em uma
época em que a transgressão tornou-se uma falácia banal, o polemista pode naturalmente
ser confundido com o moralista, o conservador, o careta. Possivelmente esta confusão
terá alguma participação em uma característica bastante peculiar de nossa sociedade
contemporânea: a inação. Vivemos em um estado pleno de diluição de valores, onde
passado e futuro não se tocam, pela simples razão de que não há compromisso com
o presente. Vivemos em um estado de congelamento da história. A humanidade posta
em freezer. Não é exatamente o polemista que faz falta. Faz falta essencialmente
recuperarmos nossa vontade de viver.
RSL | Por que a crítica literária migrou para as universidades?
Qual a importância da teoria literária?
FM | Não vejo isto exatamente. Ao que
parece estamos de volta ao universo da mera catalogação. Claro que há uma ambientação
acadêmica algo rançosa que empobrece toda discussão crítica. Poderíamos chamar a
isto de síndrome do viés, aquela retórica risível da “questão de… passa por”. Contudo,
há uma forma inteligente de discurso, sobretudo quando busca fundar-se no diálogo,
no exercício de abrir-se à experiência alheia, à voz do outro. Pode-se dizer da
universidade que tenha erguido muros que a impedem de relacionar-se com o restante
da comunidade que efetivamente a sustenta. Por outro lado, escritores também são
dados a fundar guetos, ao mesmo tempo em que igualmente perderam um norte crítico,
no caso acentuadamente autocrítico. O que um perde acaba sobrando para que a outra
faça dele o pior uso.
RSL | O Nordeste produz uma poesia de qualidade. O que falta
para torná-la ainda mais conhecida? Como vê a internet?
FM | Não me agrada o que há por trás disto
de se dizer que o Nordeste produz uma poesia de qualidade e que não é conhecida
ou reconhecida. Isto pode conduzir àquele nocivo sentido do pária sem fundamento,
do enjeitado, do ‘tadinho’. Sem falar nos riscos de um redutor ideário regionalista.
Creio que é bem conhecida a poesia de João Cabral de Melo Neto, Gerardo Mello Mourão
ou Sebastião Uchoa Leite. Se há casos de desconhecimento ou falta de reconhecimento,
isto não se dá exatamente pelo fato de se ser nordestino ou sulista. Quando surgem
compilações da poesia de Joaquim Cardozo ou Raul Bopp tudo nos parece um espanto.
E quase nada sabemos da poesia de Henriqueta Lisboa, Augusto Meyer e Américo Facó.
Isto se dá, antes de qualquer outra coisa, pelo simples fato de que o país se desconhece
a si mesmo. E não me refiro unicamente a (falta de) atitudes governamentais. Somos
dados a transferir responsabilidades. É nossa herança cabralina. Adoramos mandar
ou por a culpa nos outros. Governos devem cuidar de um mínimo de administração pública.
Poetas, de um mínimo de administração poética. E há também papéis fundamentais a
serem desempenhados por editores, críticos literários, jornalistas etc. Se tudo
é bem comum, então cuidemos de cada coisa com igual zelo. Nossos governos são tristes
e não trocam uma lâmpada de praça sem interesse próprio. De uma certa forma, os
poetas brasileiros também agem assim. Enquanto não aprendermos a ouvir o outro,
nenhuma internet nos salvará.
RSL | Qual o futuro do objeto livro?
FM | Creio que a melhor felicidade que
se pode alcançar em um livro é a da identificação com seu universo. Descobrir afinidades
entre si e a leitura de um livro é um momento de extrema grandeza. Assim o é com
qualquer outra forma de convívio, de doação, de diálogo. Não entendo porque nos
preocupa tanto o futuro do objeto livro e não mencionamos o futuro de nossa própria
humanidade. O livro não é determinante desta e sim o contrário. Se mantivermos uma
garantiremos a perenidade do outro, assim como de quaisquer objetos que sejam sua
expressão verdadeira. Toda discussão fora deste plano me soa como um catastrofismo
vulgar.
RSL | Você detectou inveja no meio literário e mostrou isto
através de um ensaio. A inveja tem cura? Neste mesmo ensaio você pede união. Isto
é possível?
FM | Naquele meu artigo (“A inveja, essa
Ibijara”, publicado no suplemento Sábado,
do jornal O Povo, em 11/01/97, e que estou
recolhendo agora em livro) denunciei a presença da inveja e da presunção como duas
gritantes características negativas do cearense. Isto reflete uma baixa cultura
e uma carência alarmante de autoestima. Naquela ocasião me escreveram algumas pessoas
dizendo que estas não se tratavam de características essencialmente cearenses. Isto
é claro, porém entre nós elas são por demais imperativas. A inveja é um desejo desmedido
pelo que nos é alheio. Só se justifica, portanto, em quantos não se conhecem a si
mesmos. A presunção, por sua vez, é uma forma de desprezo pelo alheio, justamente
por falta de autocrítica. Em um caso cobiçamos aquilo que não sabemos ao certo se
temos ou não, enquanto que no outro nos supomos aleatoriamente superiores, sendo
ou não. Daí que nossa grandeza é a medida do que se tem e nunca do que se é. Nisto
de adorarmos o alheio, acabamos não identificando nossos reais e vitais valores
e só os reconhecemos em segunda mão. Se há cura para a inveja? Esbocemos uma aparente
digressão. Há pouco tempo, uma campanha movida pelos Correios em Brasília fez com
que os carros parassem diante das faixas de pedestre. Uma outra campanha reduziu
bastante o cruzamento indevido de sinal vermelho em Salvador. Talvez pudéssemos
descobrir uma maneira de fazer com que cearenses reduzissem o volume da música em
sons de carro, bares etc. Assim como candangos ou baianos, cearenses precisam ser
ensinados a ouvir o outro. A cidade de Fortaleza é uma cidade imperativamente ruidosa.
Como sabemos, o ruído interfere na comunicação. Talvez esta tenha que ser nossa
grande campanha, a de redução do ruído a um nível aceitável, de maneira que a reabsorção
do silêncio nos ensine a percepção do que está dentro de nós e à nossa volta. Se
aparentemente embaralho os assuntos, isto se dá porque vejo todas essas coisas muito
interligadas. Se escrevo um poema, publico um livro, assino um texto na imprensa,
traduzo outro poeta etc., estas são formas de compromisso. Tenho que estar ciente
do que faço, assim como do que se faz ao meu redor. Não pode então haver espaço
para inveja, presunção ou qualquer outro aspecto redutor.
RSL | Qual a principal característica da poesia cearense?
FM | Não há isto. Não há a “principal
característica” da poesia tailandesa ou da peruana. Devemos abominar toda forma
de regionalismos ou nacionalismos. A princípio, não há uma poesia cearense, mas
antes, bem antes, uma poesia feita no Ceará. O poeta está aqui, sendo ou não daqui,
identifica-se com esta ou aquela circunstância, nada mais. Basta imaginar dois casos
pertinentes: Gerardo Mello Mourão e Francisco Carvalho. O que ambos têm em comum?
Este tipo de falsa identificação pertence ao mundo escolástico, aos manuais ou cartilhas
similares. Há uma poesia sendo escrita hoje no Brasil que muito se assemelha a esta
ambientação retórica das cartilhas. Se observarmos bem, temos hoje uma poesia que
é refém absoluta de uma imagem. Costumo dizer, a título de boutade, que se tirarmos
o vaso de plantas da janela cai por terra grande parte da poesia que se escreve
hoje no Brasil. Além disto, perdemos o radical da identidade da voz poética. Se
embaralharmos os poemas em uma dessas ocasionais mostras em periódicos nacionais,
ninguém dará pela troca de autores. Não há mais voz poética, e sim uma mera articulação
de sintomas.
RSL | Estamos além do moderno. No pós-moderno, onde está a
novidade? Qual a novidade?
FM | Não, não. Não estamos além do moderno.
Já é um milagre estarmos nos mantendo na modernidade. Temos andado para trás. A
modernidade implica uma ampliação de diálogo. O moderno significa abrir-se à compreensão
do outro. Uma arte que seja mais abrangente, e que isto não se limite a uma pecha
meramente estatística. Creio que o Surrealismo – acima dos ismos de quermesse –
imprime o grande sentido de modernidade, na medida em que recusa toda forma de catalogação.
No entanto, a amplidão proposta pela modernidade desandou em um desnorteamento,
coincidindo com uma série de outras quedas de valores no decorrer desta fatia final
do século. Não há uma novidade propriamente dita, no sentido corrosivo em que este
termo se encaixa hoje. As verdadeiras novidades não se anunciam. Elas vão se dando
bem além de nossa conta. Quando leio um poeta como o irlandês Seamus Heaney, vejo
ali uma modernidade fundada justamente no diálogo que mantém com a tradição, no
caso a literatura celta. É preciso entender que a modernidade não é um caderno de
receitas. Não vamos alcançá-la recortando o verso segundo orientações terceiras.
O moderno será o reflexo de nosso diálogo com o mundo. Não há novidade. Nunca houve
novidade. O que há são desdobramentos e não são visceralmente o cerne da questão.
RSL | O que mais lhe agrada em um poema?
FM | Semanas atrás, quando estava em São
Paulo, fui ver a estreia do filme Kenoma,
de Elianne Caffé. Saí dali irritado pelo fato de que apenas uma das partes havia
funcionado. É excepcional ver como o ator José Dumont extrai leite das pedras. O
mesmo se dá na encenação de Jeromy Irons na versão cinematográfica de Adrien Lyne
para o romance Lolita de Nabokov. Não
há soma, não há abrangência de recursos. Aspectos como roteiro ou definição de personagens,
isto nos parece não ir além de uma falácia ordinária. No entanto, não se pode sair
de uma sessão de cinema dizendo “oh que maravilhosa fotografia”, como uns hippies
abestados ecoavam ao final dos anos 70. Se leio um poema e tenho a impressão que
a ausência de José Dumont ou de Jeromy Irons pode liquidar com seu valor aparentemente
intrínseco, então não estou lendo nada. Não se trata de uma demagogia da forma,
mas antes de uma essencialidade de valores constitutivos de uma expressão artística.
Então o que me agrada em um poema é sua completude, sua ousadia por abranger, a
um só tempo, as inúmeras estações de que é feito.
RSL | Qual o papel do ensaísta para a literatura?
FM | Suponho que indagues pela função
da crítica. Neste sentido, prefiro valer-me do que já havia dito em um artigo meu
justamente sobre a crítica literária no Brasil, publicado no jornal O Povo (15/03/98). Assim começava aquele
texto: “Disse Heine que o historiador é aquele que profetiza o que já aconteceu.
Borges nos lembra que é desta difícil arte de adivinhar o passado que surgem as
histórias da literatura. A estimativa do valor de uma obra não pressupõe um equívoco.
O crítico espanhol Jorge Rodríguez Padrón refere-se à revelação de uma 'quietude
sacramental' que centraliza toda inquietude da escritura poética como sendo o 'ofício
sagrado' da crítica. Ou seja, não uma crítica que domine (detenha) o sentido de
uma obra, mas que o habite, que se permita fazer parte dele. Não há a determinação
do sentido e sim sua celebração. A crítica literária não pode aspirar a ser uma
sentença. Trata-se, a bem da verdade, de um exercício de perplexidades. O crítico
tem que descobrir a mesma trilha singular do objeto de sua crítica. Seguir as pistas,
investigar ideias, formas, técnicas. Em última instância, estabelecer um diálogo
com o texto.” Eis o que penso.
1989 A POÉTICA DO PARADOXO [Entrevista concedida a Sérgio Campos]
1996 A FAVOR DO CONTRA [Entrevista concedida a Lira Neto]
1997 O TEATRO E O ATENEU: Breve introdução à poesia de Floriano Martins [Carlos Felipe Moisés]
1998 A MODERNIDADE NÃO É UM CADERNO DE RECEITAS [Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão]
1998 A NECESSIDADE DA POESIA [Entrevista concedida a Emmanuel Nogueira]
1998 CONTINENTE DE POETAS [Wilson Martins]
1998-2010 FRAGMENTOS ROUBADOS AO TEMPO [Preparado por Márcio Simões]
1999 FLORIANO MARTINS TRAZ POETAS HISPANO-AMERICANOS AO BRASIL [Entrevista concedida a José Castello]
1999 UN LIBRO QUE UNE Y ESCUDRIÑA [Carlos Germán Belli]
2000 OS TORMENTOS DO VERBO E DA IMAGEM NA ESTRUTURA DA ALMA [Eric Ponty]
2002 AS MANIFESTAÇÕES SURREALISTAS NA AMÉRICA LATINA [José Castello]
2002 HUMANISMO POÉTICO [Entrevista concedida a Fabrício Carpinejar]
2002 MÉXICO Y BRASIL BUSCAN ACERCARSE A TRAVÉS DE LA POESÍA CONTEMPORÁNEA [Rodrigo Flores]
2002 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Rodrigo Petronio]
2002 UM OLHAR NA POESIA [Entrevista concedida a Carmen Virginia Carrillo]
2002 VOZES EM CONFLUÊNCIA [Maria Esther Maciel]
2003 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Entrevista concedida a Rodrigo Petronio]
2003 PALAVRAS PRELIMINARES [Entrevista concedida a Jorge Ariel Madrazo]
2004 SÁBIO IMPREVISTO [Entrevista concedida a Álvaro Alves de Faria]
2004 UMA AGULHA NA REDE DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]
2005 SOMOS O QUE BUSCAMOS [Entrevista concedida a Ana Marques Gastão]
2005 VERTIGENS DO OLHAR: autorretratos [Floriano Martins por Floriano Martins]
2006 A OUTRA MÁQUINA DO MUNDO [Entrevista concedida a Belkys Arredondo]
2008 FESTA DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Anderson Sandes]
2008 UMA CONVERSA COM O CURADOR DA 8ª BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ [Entrevista concedida a Lira Neto]
2009 A INOCÊNCIA DE FLORIANO MARTINS. INOCÊNCIA? [Jacob Klintowitz]
2010 ÀS VOLTAS COM O LIVRO-OBJETO E SUAS SOMBRAS [Entrevista concedida a Madeline Millán]
2010 CIBERCULTURA EN TIEMPOS DE ANALFABETISMO GLOBAL [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]
2010 NASCENDO TODOS OS DIAS [Entrevista concedida a Manuel Iris]
2010 OPÇÃO PELA DISSIDÊNCIA [Entrevista concedida a Márcio Simões]
2010 TODAS AS COISAS À MINHA VOLTA [Entrevista concedida a Adlin Prieto]
2011 CRÍTICA E RUPTURA: a inocência de pensar de Floriano Martins [Teresa Ferrer Passos]
2011 PARTICIPAÇÃO POÉTICA [Entrevista concedida a Márcio Simões]
2013 QUE HOMEM É ESSE? [Entrevista concedida a Oleg Almeida]
2015 O LUGAR QUASE LASCIVO DE UMA AMBIGUIDADE [Entrevista concedida a Renata Sodré Costa Leite]
2016 AVENTURAS DA POESIA NO TEMPO: o inteiro continente revelado [R. LeontinoFilho]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 01 [Alfonso Peña & Floriano Martins]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 02 [Omar Castillo & Floriano Martins]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 03 [José Ángel Leyva & Floriano Martins]
2016 LOS NAVEGANTES DE LA PARADOJA [Entrevista concedida a Alfonso Peña]
2016 UM NOVO CONTINENTE [Marco Lucchesi]
2017 À LUZ DO PARADOXO [Entrevista concedida a Leila Ferraz]
2017 FLORIANO MARTINS, POETA E DEMIURGO [Claudio Willer]
2020 | DIÁLOGO CON FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Berta Lucía Estrada]
2020 | FLORIANO MARTINS: Todos somos marginados a la sombra de lo desconocido | [Entrevista concedida a Elys Regina Zils]
2020 UMA CONVERSA COM FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Anna Apolinário & Demetrios Galvão]
2021 UNA PRESENTACIÓN DE LA OBRA DE FLORIANO MARTINS [José Alcántara Almánzar]
2021 VOCAÇÃO DIALOGANTE [Entrevista concedida a Maria Estela Guedes]
2022 DE ITARARÉ A UMA DEAMBULAÇÃO CONTÍNUA: Conversa com Floriano Martins sobre o Surrealismo no Brasil [Entrevista concedida a Anderson Costa & Elys Regina Zils]
2023 | FLORIANO MARTINS E O MARAVILHOSO TUMULTO DE SUA VIDA | Roda de imprensa, várias vozes
2023 A OUTRA VOZ DO TEMPO: Cronologia de vida e obra [Preparada por Floriano Martins & Márcio Simões]
OBRA ENSAÍSTICA PUBLICADA
El corazón del infinito. Tres poetas brasileños. Trad. Jesús Cobo. Toledo: Cuadernos de Calandrajas, 1993.
Escritura conquistada. Diálogos com poetas latino-americanos. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Escrituras surrealistas. O começo da busca. Coleção Memo. Fundação Memorial da América Latina. São Paulo. 1998.
Alberto Nepomuceno. Edições FDR. Fortaleza. 2000.
O começo da busca. O surrealismo na poesia da América Latina. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2001.
Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América. San José de Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2004.
Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América. Caracas, Venezuela: Monte Ávila Editores, 2008.
A inocência de Pensar. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2009.
Escritura conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica. 2 tomos. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2010.
Invenção do Brasil – Entrevistas [edição virtual]. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013.
Esfinge insurrecta – Poesía en Chile [edição virtual, em coautoria com Juan Cameron]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad. México: UACM – Universidad Autónoma de la Ciudad de México, 2015.
Sala de retratos. São Paulo: Opção Editora, 2016.
Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Valdir Rocha e a persistência do mistério. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Laudelino Freire. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2018.
Escritura conquistada – Poesía hispanoamericana. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Visões da névoa: o Surrealismo no Brasil. Natal: Sol Negro Edições, 2019.
120 noites de Eros. Fortaleza: ARC Edições, 2020.
TRADUÇÕES
Poemas de amor, de Federico García Lorca. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.
Delito por dançar o chá-chá-chá, de Guillermo Cabrera Infante. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.
Nós/Nudos, de Ana Marques Gastão (edição bilíngue). Lisboa: Gótica, 2004.
A condição urbana, de Juan Calzadilla (edição bilíngue). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005.
Dentro do poema – Poetas mexicanos nascidos entre 1950 e 1959, Org. Eduardo Langagne. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
A aventura literária da mestiçagem, de Pablo Antonio Cuadra (em parceria com Petra Ramos Guarinon). Fortaleza: Edições UFC, 2010.
III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.
Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.
Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.
Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.
Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.
Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.
Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.
Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.
O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.
A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
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