quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

1998 | CONTINENTE DE POETAS | Wilson Martins

Originalmente publicado em O Globo, Rio de Janeiro, 29.08.1998

 

Julgado, em 94, por um poeta (Marcus Accioly) e dois cantores de música popular (Milton Nascimento e Paulinho da Viola), o prêmio Nestlé de poesia revelou o nome de Aníbal Beça dentre 7.038 concorrentes. Livros de todo o país, escreve Marcus Accioly, em caixas e caixas, foram lidos e analisados durante meses, até uma possível certeza, uma convicção. O trabalho foi compensado pela alegria do resultado, único e unânime: Suíte para os habitantes da noite.

Em outras palavras, nesses concursos os vencedores são escolhidos por exclusão, diminuindo progressivamente, na proporção das leituras, as exigências dos julgadores. É fenômeno elementar de psicologia, sem falar no tédio e no cansaço. Os poemas premiados, agora incluídos em volume (Banda de asa. Rio: Sete Letras, 1998), buscavam sugestões ou assimilações gratuitas no vocabulário musical, aplicado de maneira arbitrária e, muitas vezes, com intenções humorísticas: Chorinho para bandolim, cavaquinho, flautas e violões, ou Carimbó para gambás, tambor de onça e clarineta, e assim por diante.

Um comentarista dessa poesia afirma que, em cada verso, em cada imagem, encontra-se uma intensa catexia objetal, do que não duvido, embora prefira os poemas inspirados pela cidade de Manaus. O tropismo surrealista de Aníbal Beça estimula os impulsos analíticos da crítica. O Poema cíclico, por exemplo, trava a batalha com o clássico e o moderno, em versos destacados por Paulo Graça: dos meus olhos saltam/ dois pássaros ariscos/ prontos a deflorar begônias/ em setembro. Ou ainda: A trave dos meus olhos é pólen de crisântemos: farpas cronológicas. Esse surrealismo tardio, que poderíamos imaginar perempto, ainda é praticado em capelas iniciáticas através do continente, sem excluir o Brasil, cujo grupo surrealista foi organizado e é mantido por Sérgio Lima (Escritura conquistada. Diálogos com poetas latino-americanos. Floriano Martins. Fortaleza/Rio/Mogi das Cruzes: Letra & Música Comunicação/Biblioteca Nacional/Universidade de Mogi das Cruzes, 1998).

Entre os latino-americanos, Floriano Martins incluiu vários brasileiros, como Ivan Junqueira e Donizete Galvão, mas a verdade, nas palavras de Sérgio Lima, é que o modelo na América Latina é insular e não continental, pois trata-se de ilhas culturais, o que se confirma de forma por assim dizer física e demográfica nas observações do cubano José Kozer, ele próprio judeu de origem ashkenazi, filho de polaco ateu e comunista e filho de uma checa burguesa e de pais judeus ortodoxos: em Cuba, nunca vi um porto-riquenho ou um dominicano; nunca vi um mexicano ou um equatoriano; nunca vi um uruguaio ou um argentino. Em Nova York, tenho visto até paraguaios […].

O advérbio demonstra que a verdadeira América Latina situa-se nas duas costas dos EUA… De fato, trata-se de um mito mental e de uma utopia do intelecto, para nada dizer, claro está, dos subentendidos políticos: não são as línguas que separam, não havendo nenhuma identificação orgânica nos países hispânicos entre si, mas a psicologia e a história, além dos variados ressentimentos que se foram acumulando ao longo dos séculos: É curioso que este continente de países tão diferentes leve um nome como se fosse um só país, escreve Cabrera Infante em páginas de Mea Cuba que valem a pena reler.

Nesse contexto, é possível que a propensão surrealista, respondendo à sua natureza profunda, seja uma técnica subconsciente de superar a realidade pelo imaginário e de compensar o sentimento de inferioridade pelo desafio do hoje desmonetizado realismo mágico, mais mágico do que realista. Para o que nos interessa, as entrevistas realmente importantes são as dos brasileiros e respectivas visões pessoais a respeito das nossas letras. Assim, o depoimento de Ivan Junqueira, desmistificando alguns tabus e ideias-feitas com que se alimentam os espíritos simples.

Nossa cultura, diz ele, é europeia, como, aliás, a de toda a América Latina: as raízes são portuguesas, espanhola, francesas, alemãs, inglesas, e não africanas, ou indígenas. Não menos vigorosas são as suas apreciações sobre Oswald de Andrade e o concretismo (mais a invenção de Oswald de Andrade pelos concretistas e derivados), na linha da revisão de valores sintetizada pelo argentino Leônidas Lamborghini: devemos desmitificar também no que se refere ao fazer poético, ao que o venezuelano Juan Calzadilla retruca, sem saber, com uma dessas verdades elementares que muitos preferem ignorar: Segundo Montale, não há contribuição importante em poetas que não provenha da prosa. Sem prosa não haveria boa poesia moderna, e menos ainda entre nós, na América Latina, onde se adotou, e espero que definitivamente, o verso livre, e onde são cada vez mais deploráveis os ensaios de restauração da rima e da métrica tradicionais. A vantagem da prosa é que com ela se pode pensar, presta-se como instrumento a serviço do qual a intuição e a reflexão na produção de pensamentos seguem juntas, porém separadas. Na poesia, em troca, a intuição contém ou afoga o impulso reflexivo ou o torna desnecessário, uma vez que se recusa a qualquer explicação.

Aníbal Beça, de seu lado, propõe a teoria poética no plano das efusões líricas: Que ela seja clássica moderna contemporânea de vanguarda comportada marginal lírica épica que ela seja nada e tudo e nada: varal chuva casa alicerce arcabouço não importa e nem defini-la comporta-se o que reporta é a fatura do e para o homem assim como a porta da rua é a serventia do poema.

Claro, em termos de reflexão crítica isso não significa nada, confundindo na mesma equivalência a forma e a substância, problema levantado por Floriano Martins na entrevista com Juan Calzadilla, vanguardista, ao que parece, acima de qualquer suspeita. Mas, na medida mesmo em que é hermético, metafórico ou arbitrário, o surrealismo é uma poética de conteúdo, ou seja, exatamente o oposto do que se convencionou entender como arte moderna.

 

 


 

1989 A POÉTICA DO PARADOXO [Entrevista concedida a Sérgio Campos]

1996 A FAVOR DO CONTRA [Entrevista concedida a Lira Neto]

1997 O TEATRO E O ATENEU: Breve introdução à poesia de Floriano Martins [Carlos Felipe Moisés]

1998 A MODERNIDADE NÃO É UM CADERNO DE RECEITAS [Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão]

1998 A NECESSIDADE DA POESIA [Entrevista concedida a Emmanuel Nogueira]

1998 CONTINENTE DE POETAS [Wilson Martins]

1998-2010 FRAGMENTOS ROUBADOS AO TEMPO [Preparado por Márcio Simões]

1999 FLORIANO MARTINS TRAZ POETAS HISPANO-AMERICANOS AO BRASIL [Entrevista concedida a José Castello]

1999 UN LIBRO QUE UNE Y ESCUDRIÑA [Carlos Germán Belli]

2000 OS TORMENTOS DO VERBO E DA IMAGEM NA ESTRUTURA DA ALMA [Eric Ponty]

2002 AS MANIFESTAÇÕES SURREALISTAS NA AMÉRICA LATINA [José Castello]

2002 HUMANISMO POÉTICO [Entrevista concedida a Fabrício Carpinejar]

2002 MÉXICO Y BRASIL BUSCAN ACERCARSE A TRAVÉS DE LA POESÍA CONTEMPORÁNEA [Rodrigo Flores]

2002 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Rodrigo Petronio]

2002 UM OLHAR NA POESIA [Entrevista concedida a Carmen Virginia Carrillo]

2002 VOZES EM CONFLUÊNCIA [Maria Esther Maciel]

2003 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Entrevista concedida a Rodrigo Petronio]

2003 PALAVRAS PRELIMINARES [Entrevista concedida a Jorge Ariel Madrazo]

2004 SÁBIO IMPREVISTO [Entrevista concedida a Álvaro Alves de Faria]

2004 UMA AGULHA NA REDE DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]

2005 SOMOS O QUE BUSCAMOS [Entrevista concedida a Ana Marques Gastão]

2005 VERTIGENS DO OLHAR: autorretratos [Floriano Martins por Floriano Martins]

2006 A OUTRA MÁQUINA DO MUNDO [Entrevista concedida a Belkys Arredondo]

2008 FESTA DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Anderson Sandes]

2008 UMA CONVERSA COM O CURADOR DA 8ª BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ [Entrevista concedida a Lira Neto]

2009 A INOCÊNCIA DE FLORIANO MARTINS. INOCÊNCIA? [Jacob Klintowitz]

2010 ÀS VOLTAS COM O LIVRO-OBJETO E SUAS SOMBRAS [Entrevista concedida a Madeline Millán]

2010 CIBERCULTURA EN TIEMPOS DE ANALFABETISMO GLOBAL [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]

2010 NASCENDO TODOS OS DIAS [Entrevista concedida a Manuel Iris]

2010 OPÇÃO PELA DISSIDÊNCIA [Entrevista concedida a Márcio Simões]

2010 TODAS AS COISAS À MINHA VOLTA [Entrevista concedida a Adlin Prieto]

2011 CRÍTICA E RUPTURA: a inocência de pensar de Floriano Martins [Teresa Ferrer Passos]

2011 PARTICIPAÇÃO POÉTICA [Entrevista concedida a Márcio Simões]

2013 QUE HOMEM É ESSE? [Entrevista concedida a Oleg Almeida]

2015 O LUGAR QUASE LASCIVO DE UMA AMBIGUIDADE [Entrevista concedida a Renata Sodré Costa Leite]

2016 AVENTURAS DA POESIA NO TEMPO: o inteiro continente revelado [R. LeontinoFilho]

2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 01 [Alfonso Peña & Floriano Martins]

2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 02 [Omar Castillo & Floriano Martins]

2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 03 [José Ángel Leyva & Floriano Martins]

2016 LOS NAVEGANTES DE LA PARADOJA [Entrevista concedida a Alfonso Peña]

2016 UM NOVO CONTINENTE [Marco Lucchesi]

2017 À LUZ DO PARADOXO [Entrevista concedida a Leila Ferraz]

2017 FLORIANO MARTINS, POETA E DEMIURGO [Claudio Willer]

2020 | DIÁLOGO CON FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Berta Lucía Estrada]

2020 | FLORIANO MARTINS: Todos somos marginados a la sombra de lo desconocido | [Entrevista concedida a Elys Regina Zils]

2020 UMA CONVERSA COM FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Anna Apolinário & Demetrios Galvão]

2021 UNA PRESENTACIÓN DE LA OBRA DE FLORIANO MARTINS [José Alcántara Almánzar]

2021 VOCAÇÃO DIALOGANTE [Entrevista concedida a Maria Estela Guedes]

2022 DE ITARARÉ A UMA DEAMBULAÇÃO CONTÍNUA: Conversa com Floriano Martins sobre o Surrealismo no Brasil [Entrevista concedida a Anderson Costa & Elys Regina Zils]

2023 | FLORIANO MARTINS E O MARAVILHOSO TUMULTO DE SUA VIDA | Roda de imprensa, várias vozes

2023 A OUTRA VOZ DO TEMPO: Cronologia de vida e obra [Preparada por Floriano Martins & Márcio Simões]


 


OBRA ENSAÍSTICA PUBLICADA

 

El corazón del infinito. Tres poetas brasileños. Trad. Jesús Cobo. Toledo: Cuadernos de Calandrajas, 1993.

Escritura conquistada. Diálogos com poetas latino-americanos. Fortaleza: Letra & Música, 1998.

Escrituras surrealistas. O começo da busca. Coleção Memo. Fundação Memorial da América Latina. São Paulo. 1998.

Alberto Nepomuceno. Edições FDR. Fortaleza. 2000.

O começo da busca. O surrealismo na poesia da América Latina. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2001.

Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América. San José de Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2004.

Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra AméricaCaracas, Venezuela: Monte Ávila Editores, 2008.

A inocência de Pensar. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2009.

Escritura conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica2 tomos. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2010.

Invenção do Brasil – Entrevistas [edição virtual]. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013.

Esfinge insurrecta – Poesía en Chile [edição virtual, em coautoria com Juan Cameron]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad. México: UACM – Universidad Autónoma de la Ciudad de México, 2015.

Sala de retratos. São Paulo: Opção Editora, 2016.

Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Valdir Rocha e a persistência do mistério. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Laudelino Freire. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2018.

Escritura conquistada – Poesía hispanoamericana. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Visões da névoa: o Surrealismo no Brasil. Natal: Sol Negro Edições, 2019.

120 noites de Eros. Fortaleza: ARC Edições, 2020.

 

TRADUÇÕES

 

Poemas de amor, de Federico García Lorca. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.

Delito por dançar o chá-chá-chá, de Guillermo Cabrera Infante. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.

Nós/Nudos, de Ana Marques Gastão (edição bilíngue). Lisboa: Gótica, 2004.

A condição urbana, de Juan Calzadilla (edição bilíngue). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005.

Dentro do poema – Poetas mexicanos nascidos entre 1950 e 1959, Org. Eduardo Langagne. Fortaleza: Edições UFC, 2009.

A aventura literária da mestiçagem, de Pablo Antonio Cuadra (em parceria com Petra Ramos Guarinon). Fortaleza: Edições UFC, 2010.

III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.

Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.

Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.

Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.

Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.

Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.

Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.

Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.

O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.

A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.

 

 

 

 

Agulha Revista de Cultura

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