Tributo devido a Floriano Martins, Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências, Portugal, 2021
Na transgressão das
escritas e das imagens, os ensaios críticos rompem como construções da palavra
e da voz. Nesta ruptura inscrevo A
Inocência de Pensar de Floriano Martins, recentemente
publicado por Escrituras Editora, com sede em S. Paulo. A transgressão é, em
Floriano Martins, um modo de ser muito especial que o intelectual deve
subscrever, como se fosse uma superior necessidade, se não mesmo uma transcendência
terrena.
A essência do
pensar torna-se para Floriano Martins um objectivo de vida. A sua obra
variegada – poesia, ensaio, ficção, pintura, etc. – marca, em quem a conhece,
um percurso pleno de seriedade. Cada circunstância torna-se na escrita-imagem
de Floriano Martins, uma paisagem sem nuvens nem véus mais ou menos velados. A
língua apresenta-se como uma transcendência demasiado humana, como disse, algum
dia, Nietzsche. E dizemos demasiado humana porque Floriano Martins ultrapassa
toda a palavra escondida ou a esconder, toda a ideia suspeita ou sob suspeição;
descobrimos nos seus trabalhos literários ou nas suas composições feitas de
formas-imagens uma intencionalidade transparente, plena de cântico à natureza,
à forma-imagem, como dissemos atrás.
Se pensar é uma
inocência, Floriano Martins apontou o dedo na direcção certa. Na verdade, o
paraíso está na interioridade humana ou não está em lado nenhum. O paraíso,
metáfora da natureza pura do Homem, recolhe-se ao coração aberto como um mar
sem fim, no autor de A
Inocência de Pensar. Numa análise fecunda a um vasto número de
escritores latino-americanos – desde o Brasil ao Chile e à Venezuela, desde a
Espanha a El Salvador, à Colômbia, Panamá ou à Costa Rica –, o autor analisa a
sua conformidade com os tempos em que se projectou a sua escrita, tomando como
ponto de partida fundamental a sua personalidade, os seus desvios e as suas
contingências perante os obstáculos, os contratempos e as modas da sua
controversa época.
Como escreve a
propósito de Sânzio de Azevedo o
pensamento crítico alimenta a compreensão histórica da nossa passagem por este
mundo, razão pela qual cabe ao crítico fundar-se a partir de um diálogo perene
com todas as forças que nos orientam e desorientam.
Não podemos deixar
de fazer uma alusão ao prefaciador de A
Inocência de Pensar, Jacob Klintowitz. Respigamos do seu texto
elucidativas frases que nos oferecem um retrato bem definidor da identidade
intelectual de Floriano Martins: nele perpassa
o mistério da amorosidade”; “ao invés da sentença, ele prefere o retrato do
artista, ou ainda o
único lugar habitável é a utopia.
Na leitura dos
vários ensaios inseridos nesta obra, encontrámos, abundantemente, esta ligação
de Floriano Martins ao fraterno diálogo, à busca da personagem oculta nas palavras
e ao fantástico lugar da utopia, esse estado de espírito construtor da
inventabilidade. De facto, o mundo da utopia não pode deixar Floriano Martins
indiferente. Ele é um artista da palavra e da imagem. Por isso, aí se coloca. A
utopia é a transcendência do humano. Nela tudo o que é humano ganha espaço e um
espaço de futuro.
O caminho da
humanidade é árduo, é agreste, é inseguro. Mas esse caminho pode cobrir-se de
sentidos e de sentimentos que o dimensionam à escala da sagração deste “animal
pensante” de que nos fala Floriano Martins. Mesmo quando o célebre marquês de
Sade rompe com a sociedade sua contemporânea, procurará ele regressar
àquele paraíso
perdido a que o poeta inglês John Milton nos quis conduzir?
Na entrevista
concedida a Floriano Martins (aqui publicada), Eliane Robert Moraes, a autora
do livro Lições de
Sade – ensaios sobre a imaginação libertina, diz: Sade projecta sua ficção de um homem
completamente livre. E, mais adiante, nesta excelente abordagem de
Sade, Martins indaga: Até
que ponto interessa distinguir perdas e ganhos de linguagem, ocasionados
justamente pela obsessão de um projecto maior que extrapola os domínios da
própria linguagem? E vai mais longe, em outra questão posta a
Eliane: Para além da
incitação à liberdade total, estaria Sade empenhado em descarnar a tragédia de
uma sociedade cuja hipocrisia confundia virtude e vício?
Ao abordar Amedeo
Modigliani, diz-nos Floriano Martins que ele definiu uma erótica, em contraponto a um brutal
preconceito carnal existente. Depois, Caminhando com o espírito de
Ghérasim Luca, refere a sua conotação surrealista ao conjugar amor, erotismo, sonho, humor negro
(…) em uma orgia de imagens que se enriquecem à medida que afirmam o quanto
estão vivas, atuantes, dentro do mundo, dentro de nós.
De relevante
interesse são também as polémicas biográficas à volta de Carlos Drummond de
Andrade (47 páginas) ou as suas considerações sobre António Bandeira (com 45
páginas). Debruça-se sobre os
segredos da imaginação em Marcel Schwob. Refere-se a Max Ernst
como um dos nomes
cimeiros da arte neste nosso controvertido século, uma dessas criaturas de fogo do
tempo. E não podemos esquecer a sua entrevista a Michel Roure, absolutamente clandestino,
numa verdadeira sequência
de filmes ou de documentários.
Nestes socalcos da
literatura e da vida se envolve Floriano Martins, quer através do artigo, quer
através das perspicazes entrevistas, aqui reunidas. E tudo faz com a força dos
impulsos da Inocência
de Pensar, porque na
língua [a língua portuguesa] é que se encontram as raízes das nossas
ambiguidades. A língua, nota Floriano, não a cultura. E aqui chama
a atenção para a criatividade, a invenção de uma língua, como sendo o seu mais
importante sustentáculo. A língua é a raiz e o notável instrumento de todo o
pensar e, como tal, a língua lança as bases de uma fulgurante inocência. Uma inocência
a arriscar e sempre pronta para a novidade.
1989 A POÉTICA DO PARADOXO [Entrevista concedida a Sérgio Campos]
1996 A FAVOR DO CONTRA [Entrevista concedida a Lira Neto]
1997 O TEATRO E O ATENEU: Breve introdução à poesia de Floriano Martins [Carlos Felipe Moisés]
1998 A MODERNIDADE NÃO É UM CADERNO DE RECEITAS [Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão]
1998 A NECESSIDADE DA POESIA [Entrevista concedida a Emmanuel Nogueira]
1998 CONTINENTE DE POETAS [Wilson Martins]
1998-2010 FRAGMENTOS ROUBADOS AO TEMPO [Preparado por Márcio Simões]
1999 FLORIANO MARTINS TRAZ POETAS HISPANO-AMERICANOS AO BRASIL [Entrevista concedida a José Castello]
1999 UN LIBRO QUE UNE Y ESCUDRIÑA [Carlos Germán Belli]
2000 OS TORMENTOS DO VERBO E DA IMAGEM NA ESTRUTURA DA ALMA [Eric Ponty]
2002 AS MANIFESTAÇÕES SURREALISTAS NA AMÉRICA LATINA [José Castello]
2002 HUMANISMO POÉTICO [Entrevista concedida a Fabrício Carpinejar]
2002 MÉXICO Y BRASIL BUSCAN ACERCARSE A TRAVÉS DE LA POESÍA CONTEMPORÁNEA [Rodrigo Flores]
2002 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Rodrigo Petronio]
2002 UM OLHAR NA POESIA [Entrevista concedida a Carmen Virginia Carrillo]
2002 VOZES EM CONFLUÊNCIA [Maria Esther Maciel]
2003 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Entrevista concedida a Rodrigo Petronio]
2003 PALAVRAS PRELIMINARES [Entrevista concedida a Jorge Ariel Madrazo]
2004 SÁBIO IMPREVISTO [Entrevista concedida a Álvaro Alves de Faria]
2004 UMA AGULHA NA REDE DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]
2005 SOMOS O QUE BUSCAMOS [Entrevista concedida a Ana Marques Gastão]
2005 VERTIGENS DO OLHAR: autorretratos [Floriano Martins por Floriano Martins]
2006 A OUTRA MÁQUINA DO MUNDO [Entrevista concedida a Belkys Arredondo]
2008 FESTA DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Anderson Sandes]
2008 UMA CONVERSA COM O CURADOR DA 8ª BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ [Entrevista concedida a Lira Neto]
2009 A INOCÊNCIA DE FLORIANO MARTINS. INOCÊNCIA? [Jacob Klintowitz]
2010 ÀS VOLTAS COM O LIVRO-OBJETO E SUAS SOMBRAS [Entrevista concedida a Madeline Millán]
2010 CIBERCULTURA EN TIEMPOS DE ANALFABETISMO GLOBAL [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]
2010 NASCENDO TODOS OS DIAS [Entrevista concedida a Manuel Iris]
2010 OPÇÃO PELA DISSIDÊNCIA [Entrevista concedida a Márcio Simões]
2010 TODAS AS COISAS À MINHA VOLTA [Entrevista concedida a Adlin Prieto]
2011 CRÍTICA E RUPTURA: a inocência de pensar de Floriano Martins [Teresa Ferrer Passos]
2011 PARTICIPAÇÃO POÉTICA [Entrevista concedida a Márcio Simões]
2013 QUE HOMEM É ESSE? [Entrevista concedida a Oleg Almeida]
2015 O LUGAR QUASE LASCIVO DE UMA AMBIGUIDADE [Entrevista concedida a Renata Sodré Costa Leite]
2016 AVENTURAS DA POESIA NO TEMPO: o inteiro continente revelado [R. LeontinoFilho]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 01 [Alfonso Peña & Floriano Martins]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 02 [Omar Castillo & Floriano Martins]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 03 [José Ángel Leyva & Floriano Martins]
2016 LOS NAVEGANTES DE LA PARADOJA [Entrevista concedida a Alfonso Peña]
2016 UM NOVO CONTINENTE [Marco Lucchesi]
2017 À LUZ DO PARADOXO [Entrevista concedida a Leila Ferraz]
2017 FLORIANO MARTINS, POETA E DEMIURGO [Claudio Willer]
2020 | DIÁLOGO CON FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Berta Lucía Estrada]
2020 | FLORIANO MARTINS: Todos somos marginados a la sombra de lo desconocido | [Entrevista concedida a Elys Regina Zils]
2020 UMA CONVERSA COM FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Anna Apolinário & Demetrios Galvão]
2021 UNA PRESENTACIÓN DE LA OBRA DE FLORIANO MARTINS [José Alcántara Almánzar]
2021 VOCAÇÃO DIALOGANTE [Entrevista concedida a Maria Estela Guedes]
2022 DE ITARARÉ A UMA DEAMBULAÇÃO CONTÍNUA: Conversa com Floriano Martins sobre o Surrealismo no Brasil [Entrevista concedida a Anderson Costa & Elys Regina Zils]
2023 | FLORIANO MARTINS E O MARAVILHOSO TUMULTO DE SUA VIDA | Roda de imprensa, várias vozes
2023 A OUTRA VOZ DO TEMPO: Cronologia de vida e obra [Preparada por Floriano Martins & Márcio Simões]
OBRA ENSAÍSTICA PUBLICADA
El corazón del infinito. Tres poetas brasileños. Trad. Jesús Cobo. Toledo: Cuadernos de Calandrajas, 1993.
Escritura conquistada. Diálogos com poetas latino-americanos. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Escrituras surrealistas. O começo da busca. Coleção Memo. Fundação Memorial da América Latina. São Paulo. 1998.
Alberto Nepomuceno. Edições FDR. Fortaleza. 2000.
O começo da busca. O surrealismo na poesia da América Latina. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2001.
Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América. San José de Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2004.
Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América. Caracas, Venezuela: Monte Ávila Editores, 2008.
A inocência de Pensar. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2009.
Escritura conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica. 2 tomos. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2010.
Invenção do Brasil – Entrevistas [edição virtual]. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013.
Esfinge insurrecta – Poesía en Chile [edição virtual, em coautoria com Juan Cameron]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad. México: UACM – Universidad Autónoma de la Ciudad de México, 2015.
Sala de retratos. São Paulo: Opção Editora, 2016.
Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Valdir Rocha e a persistência do mistério. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Laudelino Freire. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2018.
Escritura conquistada – Poesía hispanoamericana. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Visões da névoa: o Surrealismo no Brasil. Natal: Sol Negro Edições, 2019.
120 noites de Eros. Fortaleza: ARC Edições, 2020.
TRADUÇÕES
Poemas de amor, de Federico García Lorca. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.
Delito por dançar o chá-chá-chá, de Guillermo Cabrera Infante. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.
Nós/Nudos, de Ana Marques Gastão (edição bilíngue). Lisboa: Gótica, 2004.
A condição urbana, de Juan Calzadilla (edição bilíngue). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005.
Dentro do poema – Poetas mexicanos nascidos entre 1950 e 1959, Org. Eduardo Langagne. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
A aventura literária da mestiçagem, de Pablo Antonio Cuadra (em parceria com Petra Ramos Guarinon). Fortaleza: Edições UFC, 2010.
III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.
Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.
Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.
Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.
Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.
Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.
Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.
Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.
O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.
A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/
1999-2024
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