Originalmente publicada no portal Cronópios, São Paulo, 19/04/2005
O poeta moderno é perplexo porque se tornou crítico, para
além de ser um artífice da língua. Nem sempre escreve apenas poemas, dir-se-ia,
por vezes, também uma figura, cujo
estatuto varia. Floriano Martins (Fortaleza, 1957) é essa figura, nome que
assina uma obra e que a obra constrói, mais do que o homem que simplesmente a
fabrica.
Autodidata, iconoclasta,
desconcertante, resistente, poliédrico, o autor de Alma em Chamas (Letra & Música, 1998) exerce ainda as funções
de ensaísta, editor, tradutor, de Lorca a Cabrera Infante. Estudioso da
literatura hispano-americana, no domínio poético, especialista do surrealismo,
sobretudo na América Latina, dirige, com Claudio Willer, a Agulha Revista de Cultura, coordenando
o projeto Banda Hispânica.
Floriano Martins é, todavia,
sobretudo poeta. Poeta perplexo perante o estremecimento do mundo, em cuja
escrita se fundem géneros. Consciente da importância crítica da cultura
enquanto compreensão distanciada e, no entanto, acesa, o escritor de Estudos de Pele (Lamparina, 2001) veste
a pele da astúcia ensaística no seu caminho de palavras que trata como seres
vivos. Sabe que nelas há uma força não domesticada, maldita, privilegiando, no
diálogo entre trevas e luz, as relações de vizinhança, próximas ou
dissemelhantes, com a arte dos outros. Proclama a máxima surrealista, o autor
de Sábias Areias (Mundo Manual,
1991): “Quero que se calem quando deixarem de sentir”, sabendo que a linguagem
anuncia o mundo. Pensar o poema significa, pois, procurar que a memória se
transcenda num jogo entre imaginação e entendimento. [AMG]
AMG | Estudos de Pele é o seu mais recente livro de
poesia. Pele do corpo, pele da página. Textos do corpo, corpo do texto, da
criação. Entre tudo o mais, dir-se-ia também uma obra sobre a escrita, a
linguagem, e ainda sobre a memória?
FM | Um livro mestiço. Em toda a
criação não damos um passo sem a memória e a linguagem. São aspectos
intrínsecos, indissociáveis. Quanto à pele, sendo o que nos recobre, pensamos
nela apenas em sua exterioridade. Não a vemos como um conjunto de tecidos, e
menos ainda suspeitamos do que lhe passa por dentro. Isto porque caímos no
ardil de perceber o mundo de forma fragmentada, alheios às infinitas conexões
existentes entre os fragmentos. O livro se volta para este conhecimento, a identificação
do todo por meio do convívio com as suas partes, a busca dos elos entre elas.
AMG | Estamos
perante um livro polifónico que atua na reconstrução de um mundo, sendo o seu
conteúdo o imaginário poético encontrado entre o real referencial e o discurso
do fabuloso, do fantástico, do onírico, até do maldito?
FM | O mundo que busca reconstruir é
justamente o dessa unidade perdida, porém sem saudosismo de espécie alguma.
Neste caso a polifonia é indispensável, bem como a presença desses discursos todos.
O imaginário, mesmo em sua conotação de ilusório, é real. Não faço essa
distinção entre uma coisa e outra. Somos também aquilo que sonhamos e
desejamos. E dentro dessa mescla não caberia esquivar-se do maldito. A
perversão nos define, sobretudo nas maneiras menos percebidas como tais. Basta
pensar nas fábulas e nas cantigas de roda, por exemplo. É uma estranha relação
a que o homem mantém, tão íntima, com as trevas.
AMG | Entrelaça
na sua obra delírio e lucidez, corpo e espírito. Quando perguntaram a Max Ernst
o que pensava de Kant, ele respondeu: “A nudez da mulher é mais sábia do que o
ensinamento do filósofo”. Poderia ter tido uma resposta tão desconcertante como
esta, ou não?
FM | O desconcerto é um dom, sim,
porém causa hoje um efeito retórico, no sentido de que há uma hipocrisia
reinante que busca nele apenas um divertimento, a figura circense,
engraçadinha, previsivelmente “desconcertante”. Era outro o cenário em que agiu
o Surrealismo dentro de tuas referências. Equivalências? Teríamos que pensar na
maneira violenta como a privacidade tem sido assentada como uma mercadoria. E o
que a filosofia e a arte têm feito a respeito.
AMG | Referia-me também ao diálogo que
encontro na sua obra entre o pensar e o sentir, entre o ensaístico e o poético,
tendo em conta essa nudez a que se refere Ernst…
FM | São vasos comunicantes que estabelecem uma íntima relação
entre arte e vida, desde que não se comportem como se o pensar e o sentir
estivessem desligados. Tampouco o faço por puro modismo de quebra de barreira
entre gêneros. Há muito empastelamento anódino sob tal artifício.
AMG | Pode
entender-se Estudos de Pele como um
enredo ficcional, viajando entre os diversos géneros literários (poema em verso
ou em prosa, drama, ensaio…), em que as vozes das mulheres nos contam como o
mundo as abandonou e nos falam da possessão?
FM | Foi pensado exatamente assim, no
que diz respeito ao primeiro aspecto de tua abordagem, ou seja, um enredo
ficcional, não linear, mesclando gêneros e técnicas e mesmo apropriando-se,
ainda que raramente, de algumas anônimas sutilezas alheias. Contudo, não se
trata de livro atento apenas às “vozes das mulheres”, mas sim essencialmente
ligado à expressão do feminino, à sensibilidade – essa metade arrancada de
todos nós.
AMG | Mas há uma intensidade que se
reflete mais, a seu ver, no mundo feminino?
FM | A grande violência advinda deste
aspecto se reflete na mulher, sendo ela quem a sofre de maneira mais intensa. O
livro dá às personagens femininas uma especial atenção – inclusive porque vem
delas uma réstia de sensibilidade que talvez se mantenha exatamente pela
consciência do padecimento. Essas mulheres, no entanto, desconhecem a raiz do
sofrimento. Diferem, sob este aspecto, das personagens femininas de um livro
que está por sair, Duas mentiras, onde notamos a presença não mais da
perplexidade diante de tópicos como crime, violência, dor, sujeição, mas sim
entonações de sarcasmo, manipulação, escárnio… Se observarmos bem, em Estudos
de Pele, as figuras masculinas, anônimas em boa parte do livro, mas
identificadas em algumas passagens (Alfredo, D. Leopoldo, o garoto do capítulo
“Rastros de um caracol”), são plenamente ativas, enquanto as mulheres
representam a parte passiva.
AMG | Atravessa este livro toda uma
herança da história feminina, na opressão e na astúcia que se lhe juntou. Ou
não?
FM | Há bem menos sinais da astúcia
do que da opressão, eu diria. Os capítulos que abrem (“Sombras raptadas”) e
encerram (“Modelos vivos”) o livro reúnem as mesmas personagens bíblicas:
Ester, Madalena, Maria, Marta, Raquel, Rute e Sara – isto dá uma falsa ideia de
circularidade, intencional, onde embaralho os conceitos de opressão e astúcia,
como sugeres. Peguemos um caso, o de Madalena. Na primeira parte a personagem é
demasiado ingênua ao mostrar-se por inteiro – a certo momento indaga a Deus: “O
que fui, senão tua prisioneira, bastarda e incestuosa, crente pusilânime de que
o prazer reanima a fé?” Ela retorna na parte final com uma grande voltagem de
astúcia, confundindo-se no poema duas vozes femininas, ou seja, quem é a
verdadeira Madalena que ressurge em “Flagrantes da fé” – a que se assemelha à
personagem histórica Erzsébet Báthory, a condessa sangrenta tão bem
retratada por Alejandra Pizarnik, ou a anônima esposa de Gustavo, que narra a
história e deixa escapar que há mais ênfase no olhar de seu marido quando ela o
faz cativo? Acho que essencialmente atravessa o livro o componente opressivo,
através do qual a astúcia se prepara para o momento seguinte, em que é sugerida
como uma decorrência, sem que se faça tão presente quanto a opressão.
AMG | Erzsébet Báthory que Valentine
Penrose, tão acarinhada pelos surrealistas, tratou de forma esplendorosa no seu
livro dedicado à condessa sanguinária, espécie de Gilles de Rais no feminino…
De facto, Estudos de Pele tem esse
lado do romance negro, essa luminosidade terrífica com aroma a açafrão húmido e
a sangue. Ambos tratam o mal com cintilância…
FM | A própria Alejandra Pizarnik
escreveu seu belíssimo La condesa sangrienta a partir do livro de
Valentine Penrose, claro. E tocas aqui em algo que não se percebeu ainda na
leitura do livro, sua intimidade com o romance negro, o entrelaçamento entre
erótico, místico, criminal, recursos sombrios, as cartas de prisão, a crônica
policial descrevendo cenas e estilos de crime, feitiçarias, raptos, confissões,
tudo isto que se encontra também em Sade, cuja leitura na adolescência foi
fundamental para mim.
AMG | Detecta-se,
talvez por isso, um erotismo poderoso em Estudos
de Pele, como, aliás, na sua restante obra: “Extinta a vida dos sentidos,
nada mais nos resta no espírito” como refere Aquinauta que cita no seu Alma em Chamas?
FM | Toda escrita é resvaladiça. Nada
faz sentido além do escorregadio. O homem está sempre a fugir de si, e há algo
de erótico neste jogo de máscaras. Mas o efeito do crime tem inocentado
inúmeros assassinos. O erotismo em Estudos de Pele é utilizado de várias
maneiras, incluindo a lascívia, um tipo discreto de suborno, o encantamento
mágico. Evidente que já em Alma em Chamas Aquinauta compreendia que o
sentido extrapola o juízo e o objetivo. Daí que o aproximes tão bem de uma
erótica. Está perfeita a tua leitura. Mas recordemos que Aquinauta não se
referia a um sentido encontrado, mas antes a um sentido buscado. Eis o que
somos, inclusive eroticamente: aquilo que buscamos.
AMG | Diria que somos mais aquilo que
desejamos do que o que buscamos. Não é esta uma civilização do desejo?
FM | Em uma sociedade pautada pela
conquista, a concorrência, a ganância etc., não se pode falar em desejo. O
próprio termo civilização já não tem mais cabida nas sociedades contemporâneas,
mais afeitas à barbárie. A rigor, nem seria correto falar em busca, porque
somos induzidos a um sistema de rivalidades.
AMG | Há
excesso de realidade, de razoabilidade. O poeta procura-se, por isso, fora de
si?
FM | A crônica policial é o nosso
livro sagrado. Se fôssemos hoje tratar de um Novo Testamento ele seria
formado por uma recolha de nossa crônica policial. Vivemos em uma sociedade
criminal, recheada de seqüestros, subornos, falsos depoimentos, prevaricações,
terrorismo, e crimes passionais – sim, ainda se mata por essa falsa ideia de
amor. Podemos chamar a isto de excesso de realidade? Os velhos monstros da
razão, sim.
AMG | E quando o poeta se procura,
fá-lo dentro de outras vozes como as deste livro recheado de intertextualidades
(da Bíblia à crónica policial)?
FM | A intertextualidade, essa, não
me interessa como um recurso da modernidade, um exercício de afetação
intelectual, mas sim como uma afirmação de diálogo, da busca de cumplicidade
com a voz que me é alheia, mas que procuro incorporar não propriamente ao meu discurso,
mas antes à minha vida, que é – aceitem ou não – a de todos. Jogo de tal forma
com este aspecto da intertextualidade que chego a criar uma personagem fictícia
apenas para citá-la. A citação não é apenas transcrição ou intimação judicial.
Trata-se também de uma confissão, a de que não me quero sozinho no mundo.
Pensada como uma transgressão ou mero recurso técnico, a citação reflete o
caráter, como qualquer outra atitude.
AMG | Então como relaciona
autobiografia com ficção?
FM | Como um recurso para pôr em
xeque a vida do leitor, que é invariavelmente um prolongamento da escrita. A
ficção como um cadinho de realidades e vice-versa. Bem sei que tudo isto se
tornou complexo porque a ficção romanesca já de muito foi atropelada pela
voracidade da mídia em forjar realidades. Neste caso, o autobiográfico vem à
tona como um resgate da essência do ser, embora também possa ser apenas um
ardil a mais para a anulação desta mesma essência. Isto requer atenção maior da
parte do leitor e responsabilidade ainda maior da parte do escritor.
AMG | A escrita como prolongamento de
um Eu, ou a vida como prolongamento da escrita? Que vem antes, primeiro?
FM | A dúvida impera sempre, a
inquietude, o desconforto, a curiosidade, estes são os princípios motores dessa
complexa relação entre vida e escrita. A rigor nenhuma das duas personagens se
sente menos protagonista que o outro. Tratássemos de um filme – e de certa
forma não passa disto – nenhum dos dois ia querer o papel de bandido.
AMG | É
seu um discurso das origens e da origem do discurso que se materializa numa
poética da decifração, à semelhança do seu “pai” Blake?
FM | Tradução, premeditação,
compreensão, leitura – tudo isto é decifrar as origens. Não faço a menor ideia
do que pode motivar as pessoas a escrever nem quero abordar aquela ideia do
sujeito que se sente feliz sendo um artista somente quando essa condição
coincide com a glória… A toda hora, nos empanturramos de experiências, o
encontro casual na rua, um filme, o som de algum objeto que nos remete a uma
lembrança, uma frustração, tudo. Para mim, essas sensações todas formam uma
grande malha de conexão com o que sou.
AMG | Vê-se, então, como?
FM | A resposta está sempre na
pergunta, naquilo que se indaga. Vejo a mim de muitas maneiras, mas isto se passa
com toda a gente. Há a existência comum, vulgar, trivial, cuja origem
compartilhamos inconscientemente. William Blake tinha esta percepção, embora
acentuadamente sob um aspecto místico. Não foi a minha primeira leitura, mas
sim o primeiro impacte dentro deste âmbito de uma polifonia de vozes. Temos que
provar do outro para tocar o que somos. Tenho que me misturar ao mundo para
identificar-me. Não procuro uma origem comum, mas sim me inteirar do que seja
Floriano Martins o suficiente para garantir um diálogo honesto com o outro.
AMG | Não
deixa de existir um trabalho de colagem em Estudos
de Pele, que curiosamente, se alia a uma outra faceta sua, a de artista
plástico. Como se fundem palavra e imagem?
FM | A exemplo do que se passou com Alma
em Chamas (1998), Estudos de Pele teria na capa uma colagem minha,
que dava continuidade a um entrelaçamento entre gêneros e técnicas, o que
acabou não sendo possível por falta de sensibilidade da editora. Um raro
aspecto negativo. O livro está escrito, e isto importa além de sua publicação.
Toda a minha geração cresceu sobre o influxo do cinema. E cinema é
essencialmente colagem. O cinema põe em xeque uma arte purista, no sentido dela
originar-se de uma só matéria. Evidente que pode seguir sendo realizada por
alguém em isolado, mas a ideia de fonte, as origens, isto o cinema ajudou a
questionar tanto quanto a máxima de Lautréamont de que a poesia deve ser feita
por todos. E isto só funciona se cada um de nós fizer de tudo. Se perdermos a
ideia estanque das propriedades sem comunicação entre si.
AMG | As suas colagens são, de alguma,
forma diarísticas, espécie de anotações, memórias, teatro de imagens? São
poemas?
FM | Sim. São essencialmente poemas,
um tipo de caligrama que já não se limita ao arranjo tipográfico. A imagem
continua sendo uma representação da escrita. Vivemos em uma sociedade esmagada
pela imagem, mas em grande parte essa condição opressiva vem de nossa relação
mal digerida com a escrita. A rigor, somos sufocados pela ignorância. Quanto à
referência às anotações, é tudo o que fazemos, por mais que esteticamente
estabelecido como arte, tudo não passa de anotação.
AMG | Há um lado visceral e
aparentemente torrencial na sua escrita poética, aliado a um fulgor ensaístico.
Ligam-se, portanto, imaginação transformadora, loucura e razão?
FM | Entendeste bem a questão, o que
prova a menção ao “aparentemente torrencial”. Sei dos riscos de se confundir a
intensidade de um discurso com sua entoação verborrágica. Muito do que se tem
hoje alardeado como pós-moderno ou neobarroco não passa disto. Não é só a
imaginação que é transformadora; também o são a loucura e a razão. E todas
podem ser apenas deformadoras.
AMG | No fundo, vive dentro dos
propósitos da ação surrealista, recusando o naturalismo e a expressão unicamente
interpretativa do real?
FM | Breton dizia que os naturalistas
eram demasiado otimistas. Eu me considero um pessimista produtivo, mas tenho
certa rejeição a essa terminologia que resulta ser excludente. De um lado ou de
outro. Breton propunha um risco tão intenso, que não dava para deixar de fora
quem não o atendesse em sua verticalidade. Nem ele próprio o fez, e o princípio
era mesmo outro. É inaceitável a forma grosseira com que se tem buscado
reproduzir o real. É um tipo falseado de naturalismo, hoje orquestrado por uma
indústria que o anula justamente na maneira como o evidencia.
AMG | De alguma forma há um lugar da
infância que assalta os seus textos?
FM | Nunca estamos longe da infância.
Há quem prefira dizer de outra maneira: jamais nos livramos da infância. A
psicanálise adora esta nossa má compreensão do assunto. Há todo um capítulo em Estudos
de Pele, “Rastros de um caracol”, em que se tem a presença de um garoto às
voltas com o que lhe foi determinante para o resto da vida. Mas a todo instante
as personagens deste livro estão voltando à infância.
AMG | Ou seja, é o mesmo livro que tem
vindo a escrever, igualmente oriundo desse lugar do menino, sempre aliando
drama e lirismo?
FM | Sempre estamos neste embate
interminável com nossos fantasmas. Há autores em que a variedade estilística
denuncia, mais do que uma voracidade, certa instabilidade emocional. Mas há
também o risco de retórica, diluição, nesse repetir-se à exaustão. Interessa-me
sobremaneira expressar conjuntamente drama e lirismo porque esta é a nossa
existência, não extraímos de nós um ouro puro, mas sim uma pedra mestiça que
nos devolve à vida justamente pela mistura.
AMG | “Tudo que somos está fora de seu
lugar,/ festim de simulações,/ sistema sem princípio”? Por isso escreve?
FM | É um conjunto de ações e
reações, não simplifiquemos. Por mais que eu tente esclarecer o motivo por que
escrevo, haverá sempre algo em mim que escreve por outra razão. Apenas escrevo.
AMG | E onde persiste o amor, como
questiona um dos seus poemas?
FM | Em toda parte, é um dos mais
obstinados e crédulos dos sentimentos. Tem resistido a tudo em toda a história
da humanidade. Em nome da igreja, da política, sobretudo da dúvida. Creio que
mais temos duvidado do amor do que o afirmado. Convertido em veneração,
negociação, saudosismo, andou por todas as partes e atualmente é apenas
fílmico, embora a crônica policial esteja repleta de crimes passionais. Lendo a
poesia que se publica hoje é bem possível algum cronista futuro enunciar que os
poetas estavam muito aquém do amor.
AMG | Amor, liberdade e poesia lado a
lado na definição do amor de Breton citado no seu prefácio a O Começo da Busca – O Surrealismo na poesia
da América Latina (2001), que inverte o título da obra de Octavio Paz, La Búsqueda del Comienzo. Trata-se de
uma antologia de poetas acompanhada de um estudo, um historial da prática do
Surrealismo na América de Língua Portuguesa e castelhana, incluindo ainda um
conjunto de entrevistas. Essa busca de que fala mal começou?
FM | Este é um livro isolado se
fizermos um mapa editorial brasileiro e buscarmos suas relações com a América
Latina. O abismo entre as duas culturas – se definidas apenas do ponto de vista
idiomático – constitui já um vício histórico, um tipo de droga legalizada. Eu
posso publicar 10 livros iguais a este e nada se altera. O que se passa é que a
cultura brasileira não pode propor diálogo com outra cultura enquanto não
existir por si mesma, e não existirá enquanto não compreender suas raízes e
brigar por elas. Não importa quanta exceção se produza aqui, seguimos
colonizáveis. Não nos livramos de tal estigma.
AMG | A presença do Surrealismo do
Brasil (com pouca penetração, no seu entendimento, por causa da tradição
positivista) não só é desconhecida, mas ocultada (e por vezes negada) pela
crítica e pelo poder cultural?
FM | É a tal relação de intimidade
que o Surrealismo propunha entre vida e obra. Isto é um inferno para a
intelectualidade brasileira, que jamais viu na criação uma razão de ser. Antes
ao menos havia uma reação por conta do catolicismo aqui imperante, mas hoje é
apenas ignorância, repetição acrítica de um modelo preconceituoso.
AMG | Enquanto estudioso do
Surrealismo, tem procurado, de alguma forma, evitar aquilo que chama
“falseamento da história”?
FM | [risos] Eu tenho cobrado isto a
todo instante, inclusive de mim. A memória é subornável. É mais: é uma grande
cafetina. A história está nas mãos desta Sra. Agora, não nos esqueçamos que a
história tem um relator: o homem.
AMG | Considera ter havido negligência
brasileira para com a cultura dos seus vizinhos? E em Portugal, cuja poesia tem
acompanhado de perto, que fizeram da herança surrealista?
FM | Lendo as cartas do António Maria
Lisboa se percebe o quanto que ele chamava a atenção para os riscos da ortodoxia.
Este sempre foi o grande dilema da recepção do Surrealismo em outras culturas,
evitar a tentação de ser mais real que o rei. Os dois nomes fundamentais do
Surrealismo em Portugal estão ainda vivos: Mario Cesariny e Cruzeiro Seixas. O
desdobramento proposto por ambos, distinto entre eles, foi bastante construtivo
e evidente, o que surpreende que um estudioso como Perfecto Cuadrado trate do
assunto como um capítulo vencido da história portuguesa.
AMG | Molina disse, numa entrevista,
que “nenhum poeta pode deixar de querer o Surrealismo”. Entendida como
referência histórica, e na acepção de um humanismo poético, a afirmação faz
sentido, mas não será excessiva?
FM | Mas o que não é excesso no
Surrealismo? Considerando os inúmeros exemplos de uma poesia hispano-americana
que hoje caiu no ardil de um novo formalismo, como é o caso do neobarroco, que
faz esta poesia retroceder aos seus primórdios modernistas – o que equivale, em
termos brasileiros, ao parnasianismo –, eu acho que Molina estava correto ao
afirmar aquilo, pensando não propriamente em uma receita surrealista, mas sim
no espírito de liberdade que permeava o Surrealismo, enfim, que o poeta,
qualquer, não seria poeta sem defender aqueles princípios, que em circunstância
alguma se pretendiam escolásticos.
AMG | A dimensão política da arte tem
sido motivo de reflexão sua, bem como tem feito uma crítica feroz à poesia que
se tem vindo a praticar no Brasil há algumas décadas. Mais uma vez solitário?
FM | É que os poetas acham que dão em
árvore ou que compram joguinhos de construção poética em livrarias. Uma gente
sobrenatural, talvez. Alienados ou cínicos? É irritante o fato de que ninguém
se compromete com nada neste país. Vivemos um estado de letargia da indignação.
Engraçado é que, a todo instante, um tolo se autoproclama a antena da raça. O
poeta não faz ideia do quanto é cúmplice do crime que nos deforma.
AMG | Poeta, ensaísta, tradutor,
editor, jornalista, diretor com Claudio Willer, da Agulha Revista de Cultura, coordenador do projeto editorial Banda Hispânica… Qual a faceta que
impera em todas as suas atividades, a do poeta?
FM | Nenhuma dúvida. Tudo isto são
decorrências do poeta. Não tenho formação acadêmica. Sou o franco-atirador, o
autodidata. Esta postura se reflete em tudo o que faço, onde a versão oficial é
a primeira a ser posta em questão, mas em momento algum evidenciando o underground
apenas por sua condição marginal.
AMG | Como escreveu André Breton, “a
poesia faz-se na cama como o amor”? Ou seja, é nesse estado de “beleza convulsiva”
que se escreve para “salvar” a vida?
FM | Eu não diria salvar,
termo já melodramaticamente incorporado por Hollywood. Mas é evidente que a
poesia se faz na cama como o amor. Ela se torna presente em nós não apenas no
verso, mas na maneira como nos identificamos com cada coisa em nossa vida, uma
canção, aquela imagem de repente referida de uma exposição, o amor, caminhar
pela rua com um amigo, um sonho, saudade, esta entrevista… Onde a intensidade
do que fazes? Brincando com os filhos, pesquisando sobre qualquer tema, abrindo
um vinho recordando a cena marcante de um filme… Por onde a vida se torna
convulsiva? A poesia não responde. A poesia é a grande fonte de inquietudes.
Trate de viver, não de vivê-la. Ninguém consegue viver a poesia. Mas que delícia
que é cada um tratando de viver a si mesmo…
1989 A POÉTICA DO PARADOXO [Entrevista concedida a Sérgio Campos]
1996 A FAVOR DO CONTRA [Entrevista concedida a Lira Neto]
1997 O TEATRO E O ATENEU: Breve introdução à poesia de Floriano Martins [Carlos Felipe Moisés]
1998 A MODERNIDADE NÃO É UM CADERNO DE RECEITAS [Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão]
1998 A NECESSIDADE DA POESIA [Entrevista concedida a Emmanuel Nogueira]
1998 CONTINENTE DE POETAS [Wilson Martins]
1998-2010 FRAGMENTOS ROUBADOS AO TEMPO [Preparado por Márcio Simões]
1999 FLORIANO MARTINS TRAZ POETAS HISPANO-AMERICANOS AO BRASIL [Entrevista concedida a José Castello]
1999 UN LIBRO QUE UNE Y ESCUDRIÑA [Carlos Germán Belli]
2000 OS TORMENTOS DO VERBO E DA IMAGEM NA ESTRUTURA DA ALMA [Eric Ponty]
2002 AS MANIFESTAÇÕES SURREALISTAS NA AMÉRICA LATINA [José Castello]
2002 HUMANISMO POÉTICO [Entrevista concedida a Fabrício Carpinejar]
2002 MÉXICO Y BRASIL BUSCAN ACERCARSE A TRAVÉS DE LA POESÍA CONTEMPORÁNEA [Rodrigo Flores]
2002 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Rodrigo Petronio]
2002 UM OLHAR NA POESIA [Entrevista concedida a Carmen Virginia Carrillo]
2002 VOZES EM CONFLUÊNCIA [Maria Esther Maciel]
2003 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Entrevista concedida a Rodrigo Petronio]
2003 PALAVRAS PRELIMINARES [Entrevista concedida a Jorge Ariel Madrazo]
2004 SÁBIO IMPREVISTO [Entrevista concedida a Álvaro Alves de Faria]
2004 UMA AGULHA NA REDE DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]
2005 SOMOS O QUE BUSCAMOS [Entrevista concedida a Ana Marques Gastão]
2005 VERTIGENS DO OLHAR: autorretratos [Floriano Martins por Floriano Martins]
2006 A OUTRA MÁQUINA DO MUNDO [Entrevista concedida a Belkys Arredondo]
2008 FESTA DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Anderson Sandes]
2008 UMA CONVERSA COM O CURADOR DA 8ª BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ [Entrevista concedida a Lira Neto]
2009 A INOCÊNCIA DE FLORIANO MARTINS. INOCÊNCIA? [Jacob Klintowitz]
2010 ÀS VOLTAS COM O LIVRO-OBJETO E SUAS SOMBRAS [Entrevista concedida a Madeline Millán]
2010 CIBERCULTURA EN TIEMPOS DE ANALFABETISMO GLOBAL [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]
2010 NASCENDO TODOS OS DIAS [Entrevista concedida a Manuel Iris]
2010 OPÇÃO PELA DISSIDÊNCIA [Entrevista concedida a Márcio Simões]
2010 TODAS AS COISAS À MINHA VOLTA [Entrevista concedida a Adlin Prieto]
2011 CRÍTICA E RUPTURA: a inocência de pensar de Floriano Martins [Teresa Ferrer Passos]
2011 PARTICIPAÇÃO POÉTICA [Entrevista concedida a Márcio Simões]
2013 QUE HOMEM É ESSE? [Entrevista concedida a Oleg Almeida]
2015 O LUGAR QUASE LASCIVO DE UMA AMBIGUIDADE [Entrevista concedida a Renata Sodré Costa Leite]
2016 AVENTURAS DA POESIA NO TEMPO: o inteiro continente revelado [R. LeontinoFilho]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 01 [Alfonso Peña & Floriano Martins]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 02 [Omar Castillo & Floriano Martins]
2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 03 [José Ángel Leyva & Floriano Martins]
2016 LOS NAVEGANTES DE LA PARADOJA [Entrevista concedida a Alfonso Peña]
2016 UM NOVO CONTINENTE [Marco Lucchesi]
2017 À LUZ DO PARADOXO [Entrevista concedida a Leila Ferraz]
2017 FLORIANO MARTINS, POETA E DEMIURGO [Claudio Willer]
2020 | DIÁLOGO CON FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Berta Lucía Estrada]
2020 | FLORIANO MARTINS: Todos somos marginados a la sombra de lo desconocido | [Entrevista concedida a Elys Regina Zils]
2020 UMA CONVERSA COM FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Anna Apolinário & Demetrios Galvão]
2021 UNA PRESENTACIÓN DE LA OBRA DE FLORIANO MARTINS [José Alcántara Almánzar]
2021 VOCAÇÃO DIALOGANTE [Entrevista concedida a Maria Estela Guedes]
2022 DE ITARARÉ A UMA DEAMBULAÇÃO CONTÍNUA: Conversa com Floriano Martins sobre o Surrealismo no Brasil [Entrevista concedida a Anderson Costa & Elys Regina Zils]
2023 | FLORIANO MARTINS E O MARAVILHOSO TUMULTO DE SUA VIDA | Roda de imprensa, várias vozes
2023 A OUTRA VOZ DO TEMPO: Cronologia de vida e obra [Preparada por Floriano Martins & Márcio Simões]
OBRA ENSAÍSTICA PUBLICADA
El corazón del infinito. Tres poetas brasileños. Trad. Jesús Cobo. Toledo: Cuadernos de Calandrajas, 1993.
Escritura conquistada. Diálogos com poetas latino-americanos. Fortaleza: Letra & Música, 1998.
Escrituras surrealistas. O começo da busca. Coleção Memo. Fundação Memorial da América Latina. São Paulo. 1998.
Alberto Nepomuceno. Edições FDR. Fortaleza. 2000.
O começo da busca. O surrealismo na poesia da América Latina. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2001.
Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América. San José de Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2004.
Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América. Caracas, Venezuela: Monte Ávila Editores, 2008.
A inocência de Pensar. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2009.
Escritura conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica. 2 tomos. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2010.
Invenção do Brasil – Entrevistas [edição virtual]. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013.
Esfinge insurrecta – Poesía en Chile [edição virtual, em coautoria com Juan Cameron]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.
Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad. México: UACM – Universidad Autónoma de la Ciudad de México, 2015.
Sala de retratos. São Paulo: Opção Editora, 2016.
Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América. Fortaleza: ARC Edições, 2016.
Valdir Rocha e a persistência do mistério. Fortaleza: ARC Edições, 2017.
Laudelino Freire. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2018.
Escritura conquistada – Poesía hispanoamericana. Fortaleza: ARC Edições, 2018.
Visões da névoa: o Surrealismo no Brasil. Natal: Sol Negro Edições, 2019.
120 noites de Eros. Fortaleza: ARC Edições, 2020.
TRADUÇÕES
Poemas de amor, de Federico García Lorca. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.
Delito por dançar o chá-chá-chá, de Guillermo Cabrera Infante. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.
Nós/Nudos, de Ana Marques Gastão (edição bilíngue). Lisboa: Gótica, 2004.
A condição urbana, de Juan Calzadilla (edição bilíngue). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005.
Dentro do poema – Poetas mexicanos nascidos entre 1950 e 1959, Org. Eduardo Langagne. Fortaleza: Edições UFC, 2009.
A aventura literária da mestiçagem, de Pablo Antonio Cuadra (em parceria com Petra Ramos Guarinon). Fortaleza: Edições UFC, 2010.
III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.
Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.
Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.
Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.
Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.
Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.
Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.
Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.
O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.
A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.
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Agulha Revista de Cultura
Criada por Floriano Martins
Dirigida por Elys Regina Zils
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1999-2024
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