quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

2002 | AS MANIFESTAÇÕES SURREALISTAS NA AMÉRICA LATINA | José Castello

Originalmente publicado no jornal O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 04/08/2002

 

O escritor cearense Floriano Martins tem-se destacado por um trabalho inquieto como poeta, ensaísta, biógrafo, tradutor e editor. Em suas mãos, os gêneros costumam se mesclar e coexistir, e é isso o que ocorre mais uma vez neste O Começo da Busca, antologia crítica de poetas latino-americanos marcados pela estética surrealista, como Aldo Pellegrini, Enrique Molina, Octavio Paz e os brasileiros Roberto Piva e Sérgio Lima, na qual se misturam ensaios, poemas e entrevistas.

O nascimento do Surrealismo pode ser datado em 1919, quando André Breton e Philippe Soupault publicaram Os Campos Magnéticos, considerada a primeira coletânea de textos automáticos. A escrita automática, inspirada no Eu é um outro de Rimbaud e ditada pelo inconsciente, foi seu método principal. André Breton, o grande mentor, falava sempre em nós e, muito poucas vezes, no eu. Ele encarava a poesia não como uma atividade intelectual, submetida a regras e preceitos, mas como uma aventura; apesar disso, foi, muitas vezes, duramente criticado por sua postura rígida e seu gosto pelos sistemas. O Manifesto Surrealista, primeira sistematização de ideias até então dispersas, é de 1924. Teve adeptos entusiasmados e inimigos impetuosos. O escritor romeno Tristan Tzara chegou a dizer: Nós sim éramos contra todos os sistemas e a favor do indivíduo. Éramos contra até a ausência de sistema, desde que ela se transformasse num princípio. A polêmica nunca se esgotou.

Ainda que discrepantes, as vozes de Breton e de Tzara ainda se confundem. Num texto dos anos 90, o surrealista argentino Enrique Molina diz que o surrealismo não é um movimento estético, como outras escolas de vanguarda, mas uma concepção total do homem e de suas relações com o universo. Um reino sem fronteiras, cujos domínios ultrapassariam os da poesia. Quando desembarcou no México, Breton declarou que chegava ao país surrealista por excelência, frase que marca a introdução das ideias surrealistas na América Hispânica. Desde então, como diz Floriano Martins em seu ensaio introdutório, o surrealismo foi vítima de inúmeras confusões e atentados. Até hoje, em particular no Brasil, não recebe a consideração merecida.

O título da antologia de Floriano Martins, O Começo da Busca, é um empréstimo, invertido, do título de uma coletânea de ensaios sobre o surrealismo, A Busca do Começo, publicada pelo poeta mexicano Octávio Paz em 1974. Martins organizou este livro, entre outras motivações, com o objetivo de desmentir a ideia, bastante corrente, de que não houve surrealismo no Brasil. A primeira manifestação surrealista na América do Sul se deu em torno da revista Qué, publicada por Aldo Pellegrini no ano de 1928. O movimento perdurou ao longo do século, não se deixando vencer pelo tempo. Vinte anos depois, surgiria, também em Buenos Aires, uma segunda revista, Ciclo. A existência desse grupo, segundo Floriano Martins, desmente uma afirmação leviana de Octavio Paz, quando afirma que a relação da poesia hispano-americana com as vanguardas europeias restringia-se à imitação. Com Enrique Molina, a partir de 1952, Pellegrini dirigiu uma terceira revista, A Partir de Cero.

A concepção poética dos surrealistas, de fato, ultrapassa a noção de movimento datado. O argentino Aldo Pellegrini a definiu assim: A poesia nada mais é do que a violenta necessidade de afirmar seu ser que impulsiona o homem. É, ainda segundo ele, tudo aquilo que fecha a porta aos imbecis. Alargando ainda mais essa noção, Enrique Molina viu o surrealismo não como uma escola literária, mas como uma concepção total do homem e do universo. O movimento se espalhou pelo Chile, com o grupo Mandrágora, de Bráulio Arenas; pelo Peru, em torno das figuras de César Moro e Emilio Adolfo Westphalen; e finalmente pelo Brasil. Há um hábito da crítica esclarecida em situar Murilo Mendes como exemplo isolado do surrealismo no Brasil, Martins recorda. Não se pode, contudo, esquecer de nomes como Mário Pedrosa, Osório César e Flávio de Carvalho. Em sua antologia, o surrealismo brasileiro está representado por dois poetas contemporâneos, Roberto Piva e Sérgio Lima.

Na parte final do livro, há uma entrevista de Piva em que ele, lembrando Lautréamont, recorda que, desde o surrealismo, a poesia passa a ser feita por todos. Não para todos, mas por todos, cada um à sua maneira. Esta ênfase na liberdade – que o dogmatismo de Breton, em parte, destruiu – foi um dos motivos da lenta, mas persistente disseminação do surrealismo na paisagem mais dispersa da América Latina. O poeta Ángel Pariente chega a dizer que talvez os poetas americanos tenham sido mais audaciosos na busca de uma linguagem poética. Em sintonia com essa avaliação, o brasileiro Sérgio Lima afirma, por sua vez, que a grande novidade do surrealismo foi difundir a crença de que a arte não tem uma função em si, que ela é apenas um modo de expressão do vital no homem.

Apesar dessa perspectiva universal, o surrealismo brasileiro, até hoje, continua a ser desprezado. Um dos motivos, Martins cogita, seria a crítica que os surrealistas sempre fizeram ao modernismo e ao nacionalismo – que, a partir de 22, passam a dar as cartas no cenário cultural brasileiro. Virada a página do século modernista, talvez agora, enfim, se abra um espaço para uma retomada menos preconceituosa das ideias disseminadas pelos seguidores de André Breton. Nela, a antologia de Martins se torna, desde já, uma peça-chave.              

 



 

1989 A POÉTICA DO PARADOXO [Entrevista concedida a Sérgio Campos]

1996 A FAVOR DO CONTRA [Entrevista concedida a Lira Neto]

1997 O TEATRO E O ATENEU: Breve introdução à poesia de Floriano Martins [Carlos Felipe Moisés]

1998 A MODERNIDADE NÃO É UM CADERNO DE RECEITAS [Entrevista concedida a Rodrigo de Souza Leão]

1998 A NECESSIDADE DA POESIA [Entrevista concedida a Emmanuel Nogueira]

1998 CONTINENTE DE POETAS [Wilson Martins]

1998-2010 FRAGMENTOS ROUBADOS AO TEMPO [Preparado por Márcio Simões]

1999 FLORIANO MARTINS TRAZ POETAS HISPANO-AMERICANOS AO BRASIL [Entrevista concedida a José Castello]

1999 UN LIBRO QUE UNE Y ESCUDRIÑA [Carlos Germán Belli]

2000 OS TORMENTOS DO VERBO E DA IMAGEM NA ESTRUTURA DA ALMA [Eric Ponty]

2002 AS MANIFESTAÇÕES SURREALISTAS NA AMÉRICA LATINA [José Castello]

2002 HUMANISMO POÉTICO [Entrevista concedida a Fabrício Carpinejar]

2002 MÉXICO Y BRASIL BUSCAN ACERCARSE A TRAVÉS DE LA POESÍA CONTEMPORÁNEA [Rodrigo Flores]

2002 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Rodrigo Petronio]

2002 UM OLHAR NA POESIA [Entrevista concedida a Carmen Virginia Carrillo]

2002 VOZES EM CONFLUÊNCIA [Maria Esther Maciel]

2003 O MERGULHO EM TODAS AS ÁGUAS [Entrevista concedida a Rodrigo Petronio]

2003 PALAVRAS PRELIMINARES [Entrevista concedida a Jorge Ariel Madrazo]

2004 SÁBIO IMPREVISTO [Entrevista concedida a Álvaro Alves de Faria]

2004 UMA AGULHA NA REDE DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]

2005 SOMOS O QUE BUSCAMOS [Entrevista concedida a Ana Marques Gastão]

2005 VERTIGENS DO OLHAR: autorretratos [Floriano Martins por Floriano Martins]

2006 A OUTRA MÁQUINA DO MUNDO [Entrevista concedida a Belkys Arredondo]

2008 FESTA DA MESTIÇAGEM [Entrevista concedida a José Anderson Sandes]

2008 UMA CONVERSA COM O CURADOR DA 8ª BIENAL INTERNACIONAL DO LIVRO DO CEARÁ [Entrevista concedida a Lira Neto]

2009 A INOCÊNCIA DE FLORIANO MARTINS. INOCÊNCIA? [Jacob Klintowitz]

2010 ÀS VOLTAS COM O LIVRO-OBJETO E SUAS SOMBRAS [Entrevista concedida a Madeline Millán]

2010 CIBERCULTURA EN TIEMPOS DE ANALFABETISMO GLOBAL [Entrevista concedida a José Ángel Leyva]

2010 NASCENDO TODOS OS DIAS [Entrevista concedida a Manuel Iris]

2010 OPÇÃO PELA DISSIDÊNCIA [Entrevista concedida a Márcio Simões]

2010 TODAS AS COISAS À MINHA VOLTA [Entrevista concedida a Adlin Prieto]

2011 CRÍTICA E RUPTURA: a inocência de pensar de Floriano Martins [Teresa Ferrer Passos]

2011 PARTICIPAÇÃO POÉTICA [Entrevista concedida a Márcio Simões]

2013 QUE HOMEM É ESSE? [Entrevista concedida a Oleg Almeida]

2015 O LUGAR QUASE LASCIVO DE UMA AMBIGUIDADE [Entrevista concedida a Renata Sodré Costa Leite]

2016 AVENTURAS DA POESIA NO TEMPO: o inteiro continente revelado [R. LeontinoFilho]

2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 01 [Alfonso Peña & Floriano Martins]

2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 02 [Omar Castillo & Floriano Martins]

2016 LA INUTILIDAD DE LAS FUENTES, 03 [José Ángel Leyva & Floriano Martins]

2016 LOS NAVEGANTES DE LA PARADOJA [Entrevista concedida a Alfonso Peña]

2016 UM NOVO CONTINENTE [Marco Lucchesi]

2017 À LUZ DO PARADOXO [Entrevista concedida a Leila Ferraz]

2017 FLORIANO MARTINS, POETA E DEMIURGO [Claudio Willer]

2020 | DIÁLOGO CON FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Berta Lucía Estrada]

2020 | FLORIANO MARTINS: Todos somos marginados a la sombra de lo desconocido | [Entrevista concedida a Elys Regina Zils]

2020 UMA CONVERSA COM FLORIANO MARTINS [Entrevista concedida a Anna Apolinário & Demetrios Galvão]

2021 UNA PRESENTACIÓN DE LA OBRA DE FLORIANO MARTINS [José Alcántara Almánzar]

2021 VOCAÇÃO DIALOGANTE [Entrevista concedida a Maria Estela Guedes]

2022 DE ITARARÉ A UMA DEAMBULAÇÃO CONTÍNUA: Conversa com Floriano Martins sobre o Surrealismo no Brasil [Entrevista concedida a Anderson Costa & Elys Regina Zils]

2023 | FLORIANO MARTINS E O MARAVILHOSO TUMULTO DE SUA VIDA | Roda de imprensa, várias vozes

2023 A OUTRA VOZ DO TEMPO: Cronologia de vida e obra [Preparada por Floriano Martins & Márcio Simões]


 


OBRA ENSAÍSTICA PUBLICADA

 

El corazón del infinito. Tres poetas brasileños. Trad. Jesús Cobo. Toledo: Cuadernos de Calandrajas, 1993.

Escritura conquistada. Diálogos com poetas latino-americanos. Fortaleza: Letra & Música, 1998.

Escrituras surrealistas. O começo da busca. Coleção Memo. Fundação Memorial da América Latina. São Paulo. 1998.

Alberto Nepomuceno. Edições FDR. Fortaleza. 2000.

O começo da busca. O surrealismo na poesia da América Latina. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2001.

Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra América. San José de Costa Rica: Ediciones Andrómeda, 2004.

Un nuevo continente. Antología del Surrealismo en la Poesía de nuestra AméricaCaracas, Venezuela: Monte Ávila Editores, 2008.

A inocência de Pensar. Coleção Ensaios Transversais. São Paulo: Escrituras, 2009.

Escritura conquistada. Conversaciones con poetas de Latinoamérica2 tomos. Caracas: Fundación Editorial El Perro y La Rana. 2010.

Invenção do Brasil – Entrevistas [edição virtual]. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013.

Esfinge insurrecta – Poesía en Chile [edição virtual, em coautoria com Juan Cameron]. Fortaleza: ARC Edições, 2014.

Un poco más de surrealismo no hará ningún daño a la realidad. México: UACM – Universidad Autónoma de la Ciudad de México, 2015.

Sala de retratos. São Paulo: Opção Editora, 2016.

Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América. Fortaleza: ARC Edições, 2016.

Valdir Rocha e a persistência do mistério. Fortaleza: ARC Edições, 2017.

Laudelino Freire. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2018.

Escritura conquistada – Poesía hispanoamericana. Fortaleza: ARC Edições, 2018.

Visões da névoa: o Surrealismo no Brasil. Natal: Sol Negro Edições, 2019.

120 noites de Eros. Fortaleza: ARC Edições, 2020.

 

TRADUÇÕES

 

Poemas de amor, de Federico García Lorca. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.

Delito por dançar o chá-chá-chá, de Guillermo Cabrera Infante. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1998.

Nós/Nudos, de Ana Marques Gastão (edição bilíngue). Lisboa: Gótica, 2004.

A condição urbana, de Juan Calzadilla (edição bilíngue). Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2005.

Dentro do poema – Poetas mexicanos nascidos entre 1950 e 1959, Org. Eduardo Langagne. Fortaleza: Edições UFC, 2009.

A aventura literária da mestiçagem, de Pablo Antonio Cuadra (em parceria com Petra Ramos Guarinon). Fortaleza: Edições UFC, 2010.

III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes, de Vicente Huidobro & Hans Arp. Natal: Sol Negro Edições/São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2012.

Sobre Surrealismo, de Aldo Pellegrini (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2013.

Memória de Borges – Um livro de entrevistas (2 volumes). São Pedro de Alcântara: Edições Nephelibata, 2013.

Bronze no fundo do rio, de Miguel Márquez (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2014.

Tremor de céu, de Vicente Huidobro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2015.

Costumes errantes ou a redondeza da terra, de Enrique Molina (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2016.

Reino de silêncio, de Mía Gallegos (edição bilíngue). Teresina: Kizeumba Edições, 2019.

Traduções do universo, de Vicente Huidobro. Natal: Sol Negro Edições, 2016.

O álcool dos estados intermediários, de Gladys Mendía. Santiago: LP5 Editora, 2020.

A tartaruga equestre, de César Moro (edição bilíngue). Natal: Sol Negro Edições, 2021.

 

 

 

 

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